"O por dentro" e "o por fora"

Ontem (30/6/2005), na CPI dos Correios, Roberto Jefferson repetiu, de forma mais explícita e com detalhes, uma acusação que já havia feito no programa "Roda Viva" da TV Cultura: a de que, no que diz respeito ao financiamento de campanhas, não há um congressista, pelo menos dos que fazem parte da CPI, que literalmente cumpra a lei.

Ontem ele foi mais longe do que havia ido antes: disse aos membros da CPI que tinha as prestações de contas da última campanha de todos eles e que ninguém, ali, era melhor do que ele. Esclareceu que uma campanha para Deputado Federal hoje, no Brasil, não sai por menos de 1 milhão ou 1,5 milhões de reais, e que uma campanha para Senador, por menos de 2 ou 3 milhões de reais – e que, no entanto, as prestações de contas que tinha em mãos ficavam por volta de 100 mil para Deputados Federais e por volta de 250 para Senadores.

"Este processo", esclareceu ele, "começa na mentira e deságua no PC Farias, nos outros tesoureiros, e agora no senhor Delúbio e no senhor Valério."

Jefferson sugeriu que as campanhas do PT, nas últimas eleições, em especial a fracassada campanha de José Genoíno para o governo de São Paulo, eram milionárias, fato que não está representado nas prestações de contas. Admitiu que a prestação de contas dele era fajuta. Eis o que disse:

"É de deixar a gente perplexo. Ou alguém tem dúvida que a campanha mais rica de 2002 foi a campanha do PT? A mais milionária, a mais poderosa de todo o Brasil, do Oiapoque ao Chuí? E as declarações da Justiça Eleitoral não traduzem a realidade. Nem a minha, porque é igual a dos senhores."

Enfim, Jefferson acusou todos os membros da CPI de manter Caixa 2 com o dinheiro de financiamento de campanha.

Ninguém – absolutamente ninguém – o contestou.

Todos os membros da CPI tiveram a oportunidade de falar, mas ninguém ousou dizer que Jefferson estava mentindo. Nem mesmo os "puros" petistas.

Em outras palavras: o que os nossos políticos recebem "por dentro" (na forma da lei, devidamente registrado e relatado) é apenas um percentual pequeno daquilo que recebem "por fora"…

Alguém pode questionar que isso seja corrupção. Pode ser que não seja. Mas que envolve falsidade ideológica, o parlamentar mentir quando se exige dele que diga a verdade, disso ninguém tem dúvida.

Aos comuns mortais é motivo de certa perplexidade que um cidadão gaste centenas de milhares, mesmo milhões de reais para ocupar um cargo que tem um salário que, somados todos os meses em que o dito cujo ficará no cargo, não chega a uma fração do que ele gastou para conquistá-lo.

Jefferson também esclareceu essa questão ao deixar claro o processo mediante o qual "o por fora" é negociado. Ao esclarecer, deixou também claro por que é que os parlamentares se ocupam tanto em conseguir colocar "afilhados" seus nos diversos cargos dos vários escalões do serviço público e das empresas de economia mista. Esses afilhados vão precisar ter contato com representantes do mundo empresarial privado, nos vários processos de licitação para compras públicas. Ao negociar esses fornecimentos, poderão pleitear uma contribuição para o partido do afilhado (provavelmente o mesmo de seu "padrinho").

Aqui está a gênese, segundo esclareceu Jefferson, do "por dentro" e do "por fora". Na negociação com vistas à obtenção de uma contribuição para o partido, pode-se chegar a uma contribuição "por dentro" – nos termos da lei, devidamente registrada e relatada na prestação de contas, no valor correto – ou "por fora" – no Caixa Dois.

Mas há ainda uma modalidade de contribuição mais corrompida. Até aqui se trata, digamos, do princípio do "uma mão lava a outra", mente-se mas literalmente não se rouba (pelo menos, não necessariamente). O dinheiro vai do empresário para a conta do partido (embora, no que diz respeito ao "por fora", ninguém pode ter certeza de que uma parte não vai parar no bolso do parlamentar). A forma mais corrompida de contribuição é aquela em que uma obra, um bem ou um serviço é superdimensionado na licitação, porque já está acertado, com a empresa que ganhar a licitação, que ela vai, em decorrência do seu superfaturamento, devolver ao responsável pela licitação a parcela superfaturada (o famoso "kickback"). Os reajustes que a lei permite aos processos de licitação já em curso também são freqüentemente usados para esse fim.

Jefferson não acusou todos os políticos de angariarem fundos para seus partidos e para suas campanhas políticas dessa segunda forma, mais corrompida. Dessa forma de corrupção ele se isentou a si próprio e ao seu partido.

Mas admitiu que a primeira modalidade de angariar contribuições, ainda que não ilegal, envolve um certo "afrouxamento moral".

Jefferson pareceu achar que esse afrouxamento moral é parte integrante do fazer política – vide aqui o meu artigo sobre realismo político neste blog.

Alguns petistas – seriam eles idealistas ou ingênuos, ou as duas coisas? – parecem crer que têm uma solução para o problema do custeio de campanhas: fazer com que nós, os pagadores de impostos, assumamos esse custo, através do que chamam do "financiamento público" das campanhas políticas.

O Editorial da Folha de hoje toca no assunto. Diz a Folha:

"Se pretendem tomar medidas que possam de fato coibir a corrupção, o presidente da República e a classe política precisam enfrentar temas mais espinhosos e relevantes, a começar pela moralização das doações para campanhas políticas. O que as denúncias, os depoimentos e as novas descobertas feitas pela imprensa sugerem é algo que o país já conhece: há todo um universo paralelo de movimentação clandestina de elevadas somas de dinheiro, com base em caixa dois e comissões, que está estreitamente relacionado ao financiamento eleitoral. Muitos têm defendido o uso de dinheiro público como a solução para esses desvios. Trata-se de uma proposta bem-intencionada, mas que não constitui – como esta Folha tem insistido – a melhor alternativa para enfrentar a questão. Não faz sentido usar mais verbas públicas para sustentar partidos que já são beneficiados pelo horário gratuito de rádio e TV e, na prática, continuariam tendo acesso a recursos privados."

Está certo o que diz a Folha, mas ela não vai suficientemente fundo em sua crítica.

Se, hoje, que o financiamento é privado, todos os parlamentares da CPI dos Correios tacitamente admitem, pelo seu silêncio, que mentem em suas prestações de contas de campanha, o que é que muda, em relação à sua disposição de mentir, se o financiamento das campanhas for com dinheiro público? O dinheiro público vai ser "o por dentro", naturalmente – mas o dinheiro privado inevitavelmente continuará a entrar "por fora"… Isso é tão evidente que causa perplexidade que ninguém o diga. Os petistas e outros que defendem o financiamento público de campanhas políticas querem apenas aumentar, com o dinheiro de nossos impostos, as contribuições enormes que já recebem da iniciativa privada, voluntariamente ("por dentro" ou "por fora") ou mediante diferentes graus de extorsão ("por fora"). O financiamento público só fará com que o financiamento privado passe a ser totalmente "por fora". E as prestações de conta mentirosas continuarão.

A Folha, que é contra o financiamento público de campanhas políticas, faz uma sugestão, ao final do seu Editorial de hoje:

"O caminho para conter os abusos é assegurar que as doações privadas sejam realizadas ‘por cima da mesa’, num regime de total transparência, municiando a Justiça Eleitoral para identificar e punir com rigor as doações fraudulentas"…

Quantos são os candidatos a cargo eletivo no Brasil hoje? Alguém acredita que isso vai funcionar, dada a fábrica moral da maioria de nossos candidatos (e de parte de nossa Justiça)?

Enquanto estava na oposição, sem maiores compromissos com "governabilidade", o PT conseguiu passar à opinião pública a ilusão de que era um partido puro, ético, incorrupto. Acusava todos os demais mais se isentava, como exceção honrosa, da corrupção.

Não dá mais para passar essa imagem.

Ao mencionar PC Farias, Delúbio e Valério, Jefferson estabeleceu uma comparação entre a situação na época de Collor e a situação atual.

"PC Farias perto do Delúbio é pinto", disse ele (cito aqui de memória – não achei transcrição dessa parte nos jornais).

Como não sou petista, gosto de ver a arrogância petista transformar-se em pó – vide meu artigo sobre arrogância neste blog. Mas acho que a opinião pública, ao se convencer de que os políticos são todos corruptos, acaba reforçando o clima de corrupção. O critério para diferenciar políticos deixa de ser a idoneidade – afinal de contas, todo político é ladrão, acredita ela – e passa a ser a realização de obras públicas. "Fulano" – já se dizia isso de Adhemar de Barros – "rouba, mas faz".

Isso é mau. Mas parece difícil imaginar qual seria a solução do problema.

Acho, porém, que todos os brasileiros somos devedores ao Roberto Jefferson por ter trazido essas questões à discussão na luz do dia.

Por fim, uma palavrinha sobre Lulla. Com sua indiscutível classe e criatividade lingüística ele disse ontem:

"Se alguns dos nossos amigos fizeram algo errado, vão sambar. (…) Quem mijou fora do penico, tchau e bênção".

Será?

[Meu Microsoft Word 2003 não reconheceu "mijou" como uma palavra grafada corretamente: preciso sugerir à Microsoft que se coloque mais em linha com o discurso presidencial.]

Em Campinas, 1º de julho de 2005

Deixe um comentário