Tempos que não voltam mais…

[Conforme prometido na crônica "Eu era pobre e feliz… e não sabia", aqui está a crônica, escrita em 1954 por meu pai, Oscar Chaves, e enviada ao “Programa da Saudade”, da Radio Difusora (não Tupi, como eu disse) pelo apresentador do programa, Décio Pacheco da Silveira, por quem meu pai tinha enorme admiração.]

Por que gostamos de recordar os dias passados, longínquos, saudosos, da nossa infância?

Todos nós, depois de grandes, temos um pouco da nostalgia e do sentimentalismo de Casemiro de Abreu, quando chorava, nos versos, a sua “infância querida que os anos não trazem mais”.

Sim, amigo, você tem as suas recordações, com certeza. Eu também as tenho. E como é doce lembrar aquele tempo em que a gente, inocente e despreocupado, “adormecia sorrindo e despertava a cantar”.

Minha cidade era pequena, sossegada e poética, escondida entre as montanhas grandes e corcundas lá do oeste de Minas: Patrocínio. Foi lá que meus pais nasceram, e foi lá que eu vi a luz do sol e me criei. Patrocínio antiga era melhor e mais encantadora do que a de hoje. Talvez eu tenha esta impressão por causa dos sonhos e das alegrias da minha meninice. Tudo, antigamente, parecia melhor, mesmo com o atraso e com a falta de conforto que havia. Ainda me lembro de minha cidade sem luz elétrica. Parecia mais gostosa ainda, pois, em vez de brincarmos à noite, nós, os moleques, nos sentávamos ao redor da “Sia Adélia”, a velhinha magra e bondosa que nos contava histórias todas as noites, à porta de sua casa.

Que histórias extraordinárias ela nos contava! Almas do outro mundo, mulas sem cabeça, assombrações, homens que viram lobisomens… Ela contava, com arte de mestre, coisas que nos deixavam arrepiados!

Eu, o Raul e o Mauro (meus manos), o Joãozinho da S’Adélia, o João do Nilo, o Bias seu irmão, o Walterson (que nós chamávamos de Son) e outros, nós nem piscávamos, eletrizados pelas palavras da nossa boa velhinha. A noite, lá pelas dez horas, quando ela se despedia de nós e entrava em sua casa, nós ficávamos com um medo terrível de nos separarmos para dormir. Parecia-nos ver aquele vulto branco que toda sexta-feira, à meia-noite, gemia debaixo da árvore, perto da porteira, e que costumava montar na garupa do cavaleiro que transitasse por aquelas bandas…

Eu e os manos tínhamos receio até de atravessar a rua, pois nossa casa ficava bem em frente à casa da S’Adélia. – Boa e inteligente velhinha!

Às vezes, sentados em grupos, na calçada de minha casa, à noite, nós fazíamos um dueto triste e dolente, que enchia o “Largo da Cadeia”. Cantávamos a “Tristeza do Jeca”, “O Meu Boi Morreu”, “A Madrugada que já passou”… E esse dueto, bem afinado e sentimental, não deixava de ter a sua poesia e a sua beleza simples. No dia seguinte, no Grupo Escolar, dona Amélia, minha professora, que morava perto, elogiava, alegre e entusiasmada, as vozes tão bonitas que tinham cantado lá no Largo…

E o futebol, no Largo da Cadeia? A molecada se reunia ali, e quase sempre, com bola de pano (ponta de meia velha) a peleja chegava a tal ponto de entusiasmo que terminava em briga. Quanto dedão machucado, quanta unha arrancada naqueles jogos!

E o Carnaval, então? Era uma beleza! Tudo inocente e engraçado. Não tinha as imoralidades, as malicias de agora. A coisa mais engraçada para nós era ver o Tito padeiro vestido de mulher, muito sério, pela rua afora. O Raul Rodrigues, narigudo e feio, vestido de caipira, era também um número extraordinário! Homens de perna de pau, altos, da altura das casas, mascarados, saíam pelas ruas e jardins, acompanhados da meninada… E o povo cantando: “A baratinha, Yayá, a baratinha Yoyô”, “Periquito louro, do bico dourado”… Oh, tempos felizes aqueles!… Não voltam mais, nunca mais!

Depois fomos crescendo, tomando rumos diferentes, separando-nos devagarzinho… Uns, a morte levou. Outros, levou-os a vida. Separamo-nos.

Faz 20 anos que deixei minha terra (*). Tenho-a visitado de vez em quando. Mas não é mais a minha querida Patrocínio. Tudo diferente. Os amigos velhos não estão mais lá. S’Adélia morreu há pouco tempo, cheia de anos e de bondade. O Totonho, seu marido, que ensaiava a banda de música, também morreu há pouco. O Raul lá está ainda, o meu mano. O Mauro formou-se em Lavras, e trabalha em Belo Horizonte. O Walterson é hoje um médico ilustre na Capital mineira. O João do Nilo e o Bias sumiram-se, não sei para onde. Minha querida mãe também (que tantos socos me deu na cabeça por causa do futebol no Largo da Cadeia) está em Belo Horizonte. Eu cá estou, em São Paulo, como ministro do Evangelho, pregando a doutrina de Jesus aos meus bons patrícios.

Mas tenho saudades, imensas saudades da minha terra. Se me fosse dado viver outra vez, eu gostaria de nascer e passar a minha infância lá mesmo, em Patrocínio, meu querido rincão mineiro. Mas não nessa Patrocínio atual. Naquela outra, aquela antiga, poética, inocente, e sem luz elétrica…

Oscar Chaves
Santo André, SP – 1954

(*) Meu pai saiu de Patrocínio em 1934 para ir estudar no Instituto José Manuel Conceição, em Jandira, SP, de 1934 a 1938. Eu estudei no mesmo Instituto de 1961 a 1963.

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