Vidas

Houve época em que a duração média de uma vida era pequena. As pessoas viviam por volta de trinta anos. Casavam-se assim que a biologia permitia, tinham seus filhos cedo (um monte!), e morriam também cedo (em relação a hoje).

Os poetas românticos brasileiros morreram extremamente jovens: Laurindo Rabelo, o que mais durou, morreu com 38 anos (1826-1864); Álvares de Azevedo, com 20 anos (1831-1852); Junqueira Freire, com 22 (1832-1855); Casimiro de Abreu, com 21 (1839-1860); Fagundes Varella, com 33 (1841-1875); Castro Alves, com 24 (1847-1871)… [Dados retirados da Wikipedia.] Nenhum destes chegou as quarenta anos e alguns morreram quando mal haviam entrado nos vinte.

São chamados de “poetas românticos brasileiros”. Lendo sua obra, tem-se a impressão de que amaram muito – mas fica a pergunta: Quando??? A vida lhes foi tão curta!!! Quando eu hoje olho para uma pessoa de vinte anos, não imagino que possa ter vivido intensamente…

A expectativa de vida de uma pessoa que nasce hoje no Brasil chega aos setenta anos – mas isso é uma média. Provavelmente muitos dos que hoje são jovens passarão dos 120 anos, e os que hoje são crianças passarão dos 150 — tal é o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.

Isso significa que quem morre, hoje, aos 85 anos, como Olavo Setúbal, já viveu mais do que quatro vidas de Álvares de Azevedo ou Casimiro de Abreu. Na verdade, Olavo Setúbal, com seus 85 anos ao morrer, viveu basicamente a soma das vidas de Álvares de Azevedo (20), Junqueira Freire (22), Casimiro de Abreu (21) e Castro Alves (24). Quatro vidas em uma. Deixando o amor ao dinheiro de fora, será que Olavo Setúbal amou tanto quanto apenas um deles???

Nossos filhos e netos hoje com dez anos, por aí, viverão quantas vidas de Álvares de Azevedo? Seis? Talvez sete? Amarão quantas vezes? Apaixonar-se-ão quantas? Irão se casar? Em caso positivo, quantas vezes? Mas será que esse modelo de casamento que temos sobreviverá diante de vidas tão longevas?

Há religiões que acreditam em reincarnação. O mais provável, porém, é que, com vidas tão prolongadas, a gente vá se reencarnar em si próprio e viver várias vidas num só corpo (se é que se pode dizer que o corpo aos 65 anos seja o mesmo corpo do adolescente, do jovem de 18, do ainda jovem de 30…).

Mesmo hoje, quando a vida ainda não é tão duradoura quanto será no futuro, já é difícil reconhecer em nós, hoje, a mesma pessoa que éramos quando tínhamos 13, 20, 35 anos… O que é que nos mantém os mesmos??? As células do corpo que tínhamos quando entramos na puberdade certamente já foram todas substituídas. O que é que nos permite dizer que o nosso corpo, hoje, maltratado e envelhecido, é o mesmo corpo daquele adolescente de carne firme de 15 anos?

Seria o fato de que aquele corpo é habitado pela mesma mente? Mas e a mente — não muda??? A minha mente hoje, aos 65 anos, é a mesma mente do adolescente bobão de 12 anos que eu era quando entrei no Ginásio em 1956? Dificilmente. Talvez minha mente, durante esse período, tenha mudado ainda mais do que o meu corpo…

John Locke, o maior filósofo do século XVII (na minha opinião), sugeriu que o que ancora a identidade pessoal é a memória. Eu, hoje, sou o mesmo menino de oito anos que se mudou de Maringá para Santo André em 1951 porque eu me lembro da mudança… E me lembro do meu primeiro amor (será legítimo usar o mesmo nome?), a Eladir Pereira, também de nove anos, como eu, à época… Eu me lembro de quando entrei no Ginásio em 1956, de quando entrei no Clássico, em 1961, de quando me apaixonei pela Reacy Camargo naquele mesmo ano no JMC… (Fiquem tranquilos: paro por aqui).

Mas nós, hoje, sabemos que a memória “plays tricks”, como dizem os anglófanos – nos pega peças, como diríamos nós no nosso tupiniquinês. Esquecêmo-nos de coisas que aconteceram (reprimimos algumas memórias que não causam dor, ou simplesmente esquecemos outras que não tiveram tanto significado), inventamos acontecimentos que não se deram (porque eles enriquecem nossa história de vida), embelezamos outros…

Enfim… Quantas vidas eu já vivi nesses 65 anos que vou completar em poucos dias? Vivi uma vida de criança, outra de adolescente, outra de jovem, outra de jovem adulto… Quantas outras? Restam-me ainda vidas para viver?

A gente em geral admira quem é capaz de viver uma só vida em vários anos. Um casal de noventa e poucos anos que celebra setenta cinco anos de casado (um com o outro!) é notícia suficiente para o Fantástico. Mas será que viver uma só vida em tantos anos é mérito ou demérito??? Quantas vidas terá vivido Castro Alves em seus vinte e quatro anos? Aos vinte e quatro anos eu estava me casando pela primeira vez, começando o que era (no mínimo) minha segunda vida – e Castro Alves estava terminando a única que teve… Ou será que Castro Alves teve apenas uma vida em seus 24 anos??? Se o Coronel Slade (Al Pacino, em Perfume de Mulher) está certo, quando afirma que se pode viver uma vida num minuto, é possível que Castro Alves tenha vivido centenas, milhares mesmo, de vidas nos seus curtos 24 anos…

É possível viver vidas puramente virtuais? Vidas que não são vividas no espaço-tempo, mas, sim, numa dimensão puramente mental, inventada ou preservada pela pessoa, em que as coisas acontecem conforme a sua vontade e não conforme as regras da interação humana na realidade não-mental, não-inventada?

E o que acontece quando deixamos a vida virtual irromper na vida real e gerar, nesta, fatos e consequências que não podemos mais controlar totalmente? 

E vidas vicárias? Há muitas mães cujas vidas são vicárias, i.e., consistem em viver a vida de seus filhos… Na verdade, pior ainda, há muitas mulheres cujas vida consistem em viver a vida de seus maridos… Em nenhum caso têm vida própria. Vivem a vida de outrem. Se essa vida lhes é subtraída, acaba também a sua…

Há inúmeros casos, entre os quais o dos meus avós maternos, em que as identidades de duas pessoas se mesclam de tal maneira que, quando uma morre, a outra morre em seguida… Pergunta importante: Isso é para ser celebrado ou lastimado???

E olhem que estou me limitando a discorrer, por assim dizer, sobre este lado da eternidade… Se houver uma vida futura, quem amou várias vezes aqui, serial ou paralelamente, vai amar quem na vida eterna futura? (A questão já foi levantada nos Evangelhos…)

Vidas. O que dá sentido à vida é o fato de que ela não é eterna, é mortal. Já escrevi sobre isso e vou escrever mais ainda. Preciso achar uma passagem linda de Popper sobre o assunto…

E quanto mais próxima do fim a vida está, mais sentido ela adquire. Ou mais pressionados ficamos para dar-lhe sentido…

Em Campinas, 30 de Agosto de 2008

NOTA acrescentada em 6 de Abril de 2017:

No dia seguinte ao dia 30 de Agosto de 2008, em que escrevi este artigo, parti de viagem para os EUA, a trabalho. Uma viagem de cinco dias, na Microsoft, em Redmond, WA. Saí de lá  no dia 5 de Setembro, e cheguei de volta ao Brasil no dia seguinte, 6 de Setembro. Nesse mesmo dia, véspera do meu aniversário de 65 anos, tomei uma decisão radical: sem voltar para a casa em que eu até ali havia vivido por cerca de 24 anos, comecei uma vida nova, em uma nova casa, em uma nova cidade, que este ano completará nove anos: a minha vida com a Paloma, minha mulher amada. Essa vida (de que número?) tem sido de longe a melhor das que eu já tive. Deus ajude a que continue assim.

EC

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