“A consciência por vezes é uma merda”

A frase que dá título a este artiguete me foi dita pelo Rubem Alves, em correspondência pessoal. Espero que ele me perdoe por citá-la, entre aspas, em público.

A consciência é, por vezes, isso aí que ele disse, porque ela não é racional, e, portanto, não reflete aquilo que racionalmente consideramos certo e errado: ela é, em grande medida, formada pela opinião dos outros, que procuram nos moldar e formar, assim condicionando e influenciando o que pensamos, o que valoramos, o que consideramos certo e errado… A consciência por vezes é uma merda porque uma vez gravado algum ditame em nossa consciência, não é fácil removê-lo de lá… Se alguém escreveu em nossa consciência, em algum momento, que, por exemplo, dizer palavrões é algo errado, que devemos a todo custo evitar dizê-los, que não devemos nem sequer chamar de bunda a parte de nosso corpo com que nos sentamos, vamos sempre sentir uma dorzinha na consciência ao dizer um palavrão – ainda que não seja realmente um palavrão, mas apenas, digamos, um palavrinho…

Certamente não basta que, com nosso pensamento racional, deixemos de acreditar que é errado aquilo de que nossa consciência nos acusa… Racionalmente, dizemo-nos que há horas em que apenas um enorme palavrão é a reação correta a algo de ruim ou absurdo que nos está acontecendo… Mas mesmo nessas circunstâncias a nossa consciência vai continuar, merdosamente, a nos acusar… Acho até que o Rubem Alves usou um palavrão (palavrinho?) na frase dele para desafiar a consciência de bom menino protestante que, mesmo em época que antecedia de muito a era do politicamente correto, aprendeu que o “certo” seria dizer “a consciência por vezes é um cocô…”. (Com toda a franqueza, acho esta última frase quase pornográfica de tão horrível…).

A consciência é nosso “super-ego”… Ela é formada pelos pais, pela comunidade, pela igreja, pela escola, pela mídia… Felizmente, essas diversas influências, muitas vezes, não agem na mesma direção. É terrível quando o fazem. Quando eu era criança, meus pais, a comunidade em que eu vivia, minha igreja, minha escola e a mídia pareciam estar todos de acordo que não era certo dizer palavrões. Bem… a comunidade de pares (os meninos que jogavam bola juntos no campinho) e o ambiente não-formal da escola, nem tanto… Nesses ambientes eu ouvia uma boa série de palavrões… Colegas de escola uma vez me chamaram (por causa de meu segundo nome) de Oscar Alho… Até de amigos da igreja com quem eu jogava bola eu ouvia palavrões… O Israel, crente que freqüentava a mesma igreja, um dia, quando jogávamos bola, e ele ia bater uma falta, me mandou ficar no cu da área… Minha consciência já era bem formada: eu ouvia esses palavrões e me sentia culpado – culpado de os haver ouvido, não de os haver dito, notem bem…

Quando criança, em regra eu me sentia culpado de ler um palavrão muito feio (que até hoje minha consciência não me permite escrever aqui) que estava pichado na parede de uma fábrica que ficava entre minha escola e minha casa… Eu tomava a firme resolução, ao sair de casa ou da escola, de que, ao passar pela fabrica, não iria olhar o palavrão… Mas meus olhos eram como que magneticamente atraídos por ele… Mesmo quando eu conseguia não olhar para ele, eu me lembrava de que ele estava lá e a palavra vinha à minha mente (a coisa eu nem tinha bem como imaginar ainda…). E eu, como acreditava então, pecava – e tinha de orar pedindo perdão a Deus por ter visto o palavrão – ou pensado nele, mesmo sem vê-lo… (Um dia, fui orar, enquanto andava, ao passar pelo palavrão na parede, de olhos fechados, como sempre, para que assim não o visse, e entrei com tudo num poste: Deus podia ter me protegido, em consideração ao esforço que eu estava fazendo para não ver o palavrão…). Por que é que, até hoje, mais de cinqüenta e cinco anos depois, eu consigo até dizer o palavrão, em determinados contextos, mas apenas no diminutivo, como se essa forma diminuísse o seu conteúdo pecaminoso, no qual eu não mais acredito? Por que eu consegui escrever cu, no parágrafo anterior, mas não consigo aqui dizer qual é o palavrão da parede da fábrica – mesmo que, racionalmente, eu há muito tempo tenha deixado de acreditar no fetiche das palavras, e, portanto, não mais acredite que seja moralmente errado dizer qualquer palavra (ainda que seja deselegante, e, portanto, desaconselhável dizer algumas delas em determinados contextos)??? A Adélia Prado, poetisa mineira que o Rubem Alves cita adiante, em texto que transcrevo, me ajudou a me livrar desse fetiche, quando escreveu um poema em que dizia “cu é lindo” – poema esse que foi usado numa escola católica, segundo consta, ligeiramente modificado: lá se dizia “céu é lindo”…).

Estou, porém, como dizia meu pai, rodeando o toco e levando um tempo enorme a preambular para chegar aonde eu quero… O assunto que eu quero discutir é casamento, separação, divórcio, adultério – e o papel que a religião tem na formação de nossa consciência sobre esses assuntos (que no fundo são apenas um) – consciência que, merdosamente, por vezes dá umas pontadas em relação a esses assuntos, mesmo quando a gente está racionalmente convencida de que não fez nada errado.

Começo citando um exemplo que me vem prontamente à mente. Na igreja que eu freqüentava quando criança, da qual o meu pai era pastor, havia um senhor nordestino, já prá lá da meia idade, que era um dos membros mais assíduos e dedicados. Como se isso não bastasse, ele era, do ponto de vista doutrinário defendido por meu pai, o pastor, inatacável. Meu pai não conseguia encontrar nele desvio doutrinário algum (coisa extremamente rara, pois ele via desvios doutrinários com grande facilidade, a torto e a direito: vivia escrevendo artigos contra os católicos romanos, os pentecostais, os glórias, os adventistas, os testemunhas de Jeová, os mórmons, até contra os batistas, os carismáticos e os avivados…). Apesar de pessoa simples (era pedreiro), esse senhor fazia umas das mais belas orações que me foi dado ouvir na minha infância e adolescência – belas no conteúdo e na forma. Não me esqueço delas até hoje. Mas ele tinha, na visão do meu pai, um problema sério… Havia sido casado, no Nordeste, antes de vir para São Paulo. Ninguém nunca soube o que exatamente se passou com esse casamento. O que se sabia é que, já separado, ou ainda não, ele veio tentar a vida em São Paulo. Veio e ficou. Um dia, lá atrás, uns vinte anos antes, encontrou uma outra mulher, apaixonou-se e passou a viver com ela (algo de resto bastante comum). Tiveram filhos: muitos. Eles viviam uma vida normal de casados – só que eram apenas “amasiados”, como se dizia então, naqueles tempos anteriores ao divórcio (linguagem que ainda prevalece em textos jurídicos de baixa qualidade hoje em dia). Ambos freqüentavam a igreja regularmente, na Escola Dominical, no culto do domingo à noite, nos estudos bíblicos de quarta-feira… As crianças eram criadas na fé e na moral cristã (o filho mais velho é pastor presbiteriano hoje…). No entanto, a consciência de meu pai não lhe permitia que ele deixasse aquele senhor já de meia-idade, crente fiel e zeloso, sob todos os aspectos temente a Deus, participar da Santa Ceia… Por quê? Óbvio: porque ele estava vivendo, na visão do meu pai, em adultério, e, portanto, em pecado… Na realidade, ninguém sabia se a primeira mulher do nosso amigo ainda existia ou se já havia morrido… Se ela já houvesse morrido, o nosso amigo seria viúvo e, portanto, poderia se casar de novo… Mas quem iria garantir que isso havia acontecido? Assim, em caso de dúvida, meu pai julgava contra o réu, não a favor dele… E o impedia de participar daquela que é chamada “A Ceia do Senhor”. Nos primeiros domingos do mês, no culto da noite, se celebrava a Santa Ceia. Nessa ocasião, o nosso amigo, crente assíduo e fiel, não vinha à igreja para não passar pelo constrangimento público de ver negada a sua participação na “Mesa do Senhor”… Desumano? Evidente. Não tenho dúvida acerca disso. Desumano e errado. Não sei como nosso amigo suportou a humilhação até a morte. Eu teria procurado outra igreja e outro pastor – ou teria abandonado a igreja de vez… Ele, não. Continuou na igreja – só fugia do constrangimento humilhante… Admirável a sua conduta, em especial quando vista em contraste com a do meu pai. Mas tenho certeza que sua consciência doía muito nos primeiros domingos do mês à noite, porque ela havia sido em grande parte moldada por aquele que na verdade era o seu algoz, o Rev. Oscar…

Meu pai era um presbiteriano fundamentalista. Quando jovem, havia sido católico romano fervoroso, participado da congregação mariana (hoje quase ninguém parece mais saber o que significava ser mariano, para um homem, ou filha de Maria, para uma mulher…). Mas ele era daqueles “ou tudo, ou nada”… Quando se desconverteu do catolicismo romano, e se converteu ao protestantismo presbiteriano, rejeitou tudo – ou assim ele pensava – que a Igreja Católica representava e passou a combatê-la com o fervor de um neófito zeloso, cujas atitudes beiravam o fanatismo… E passou a aceitar in totum a doutrina protestante-presbiteriana, na sua versão fundamentalista, como ele a entendia, então amplamente difundida e compartilhada. Dentro dessa visão, se alguém está vivendo com uma pessoa com quem não se casou, direitinho, segundo as leis da terra, no cartório, de papel passado, com uma penca de testemunhas, esse alguém está vivendo em pecado. Ou seja: nessa visão, o não cumprimento de uma lei humana implicava uma ofensa moral e espiritual (um pecado)… e cabia à igreja punir essa ofensa, ou, pelo menos, deixar claro que ela a tomava seriamente!

O Rubem Alves, num artigo que publicou há algum tempo, intitulado “A Praga”, escrito quando o Papa (acredito) ainda era outro, comentou:

“É bom atentar para o que o Papa diz. Porta-voz de Deus na Terra, ele só pensa pensamentos divinos. Nós, homens tolos, gastamos o tempo pensando sobre coisas sem importância tais como o efeito estufa e a possibilidade do fim do mundo. O Papa vai direto ao que é essencial: ‘O segundo casamento é uma praga!’

Está certo. O casamento não pertence à ordem abençoada do Paraíso. No Paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação alguma de que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento: o Criador, celebrante, Adão e Eva nus, de pé, diante de uma assembléia de animais, tudo terminando com as palavras sacramentais: ‘E eu, Jeová, vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu ajuntei os homens não podem separar…’

Os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem à ordem maldita, caída, praguejada, pós-Paraíso. Nessa ordem não se pode confiar no amor. Por isso se inventou o casamento, esse contrato de prestação de serviços entre marido e mulher, testemunhado por padrinhos, cuja função é, no caso de algum dos cônjuges não cumprir o contrato, obrigá-lo a cumpri-lo.

Foi um padre que me ensinou isso. Ele celebrava o casamento. E foi isso que ele disse aos noivos: ‘O que vos une não é o amor. O que vos une é um contrato.’ Aprendi então que o casamento não é uma celebração do amor. É o estabelecimento de direitos e deveres contratuais. Até as relações sexuais são obrigações que devem ser cumpridas.

Agora imaginem um homem e uma mulher que muito se amam: são ternos, amigos, fazem amor, geram filhos. Mas, segundo a Igreja, estão em estado de pecado: falta ao seu relacionamento o selo eclesiástico legitimador. Ele, separado da antiga esposa, não pode se casar de novo porque a Igreja proíbe a praga do segundo casamento. Aí os dois, já no fim da vida, são obrigados a se separar para poder participar da eucaristia: cada um para um lado, adeus aos gestos de ternura… Agora está tudo nos conformes. Porque o Deus da igreja não enxerga o amor. Ele só vê o selo eclesial.

O Papa está certo. O segundo casamento é uma praga. Eu, como já disse, acho que todos são uma praga, por não ser da ordem paradisíaca mas da ordem da maldição. O símbolo dessa maldição está na palavra ‘conjugal’: do Latim, ‘com’= junto e ‘jugus’= canga. Canga, aquela peça pesada de madeira que une dois bois. O vínculo conjugal significa que, mesmo quando um dos cônjuges não quer mais estar junto do outro, a canga vai obrigá-lo, sob pena do ferrão divino…”

O artigo continua, e mais adiante citarei o que falta.

O Rubem Alves é, porque sempre foi, um protestante presbiteriano – mas nunca foi, que eu saiba, um protestante presbiteriano fundamentalista. Para ele, a instituição do casamento (ou do matrimônio, como preferem alguns) pertence não à “Cidade de Deus”, mas, sim, à “Cidade dos Homens” – aquela cidade que, segundo Agostinho, o inventor dessas expressões, é governada por “um bando de ladrões” – era assim que Agostinho via o governo (presciente o homem!). Como ressalta o Rubem Alves, não consta que Deus tenha celebrado o casamento de Adão e Eva no Paraíso… Deus simplesmente criou os dois e… bom, eles se encarregaram do resto. Em outras partes da Bíblia, no Novo Testamento, se esclarece que, no Céu, não haverá casamentos… Tudo isso parece corroborar a tese de que o casamento, como hoje o temos, é uma instituição humana, criada, como tantas outras, para arranjar e facilitar a nossa vida em sociedade – pelo menos em uma sociedade em que há propriedade privada, que deve ser transmitida por herança, etc.

A Igreja Católica Romana, porém, não acredita nisso. Continuo a citar o artigo do Rubem Alves.

“Por que o segundo casamento é uma praga para a Igreja Católica? Porque, para havê-lo, é preciso que o primeiro seja anulado pelo divórcio. Mas, se a Igreja admitir a anulação do primeiro casamento ela terá de admitir também que o sacramento que ela realizou não é aquilo que ela afirma ser: um ato realizado pelo próprio Deus. Permitir o divórcio equivale a dizer: o sacramento é uma balela. Donde, a Igreja é uma balela… Com o divórcio ela seria rebaixada do seu lugar infalível e passaria a ser apenas uma instituição falível entre outras. A Igreja não admite o divórcio não é por amor à família. É para manter-se veículo privilegiado das bênçãos divinas…

A Igreja, sábia, tratou de livrar seus funcionários da maldição do amor. Proibiu-os de se casarem. Livres da maldição do casamento, os sacerdotes têm a suprema felicidade de noites de solidão, sem conversas, sem abraços e nem beijos. Estão livres da praga…”

O artigo termina aí.

Há uma coisa, porém, que o Rubem Alves omite na sua interessante análise, a saber: o fato de que os diversos fundamentalismos protestantes, em geral extremamente críticos da Igreja Católica Romana, adotaram essa visão católica, sacramental, do casamento…

Para os protestantes não fundamentalistas, o casamento é uma instituição humana: pertence à “Cidade dos Homens”. A decisão de se casar é uma decisão inteiramente humana, tomada por um homem e uma mulher. Não é um ato no qual Deus tenha necessariamente participação. A igreja pode apenas, caso os nubentes assim o desejem, pedir a bênção divina sobre a união que se celebra (como, mal comparando, se pede a bênção divina sobre uma casa nova que se constrói ou um navio novo que se lança ao mar). Dentro desse entendimento, não é a igreja (ou Deus) que faz o casamento: a regulamentação da união é toda feita pelas leis da terra. A igreja apenas invoca a bênção de Deus sobre o casal. (Mesmo hoje, quando se faz um casamento religioso com efeito civil, o casamento é celebrado pelo pastor ou padre apenas porque as leis da terra facultaram à autoridade competente a delegação ao pastor ou ao padre do direito de celebrar casamentos).

Para os protestantes fundamentalistas, entretanto, o casamento é “divinizado”: ele deixa de ser apenas uma relação “biunívoca” entre um homem e uma mulher e passa a ser uma relação “triangular” entre um homem, uma mulher, na base, e, no vértice do triângulo, Deus. Quando o casamento se desfaz, rompe-se o triângulo e, assim, se desmancha não apenas a relação entre o marido e a mulher mas, para aquele considerado responsável pelo rompimento, também sua relação com Deus. Dentro dessa visão, o cônjuge responsável (“culpado”) pelo rompimento do elo matrimonial ofende não apenas o outro cônjuge, mas também a Deus – porque o casamento é, de fato, sacramentalizado.

As igrejas protestantes, mesmo as fundamentalistas, em geral se recusam a aceitar a tese católica romana de que o casamento é um sacramento, como o batismo e a eucaristia. Na prática, porém, as igrejas protestantes fundamentalistas endossam essa tese. Se esse cônjuge responsável pelo desfazimento de um casamento vier a se relacionar com outra pessoa, passa a ser considerado adúltero – embora tenha decidido encerrar o casamento antes de conviver maritalmente com a outra pessoa e até mesmo comunicado o fato ao cônjuge anterior. É por isso que ao nosso amigo, na igreja do meu pai, era negado o direito de participar da Santa Ceia, um sacramento oficialmente aceito pela Igreja Presbiteriana: porque ele havia violado o sacramento – oficialmente não aceito, mas na prática endossado por meu pai – do matrimônio… (Foi por isso que disse anteriormente que meu pai rejeitou tudo – ou assim ele pensava – que a Igreja Católica representava… Ele continuou aceitando a doutrina católica do casamento como sacramento). Dentro dessa visão, o cônjuge não considerado culpado pelo rompimento do vínculo matrimonial pode continuar a ter assento à “Mesa do Senhor” – ainda que seja mentiroso, ladrão, ou pior… (et qu’il y en a, il y en a…). Mas o considerado culpado, ainda que tenha uma vida impoluta, não pode… Essa a teologia do Rev. Oscar Chaves – que Deus lha perdoe.

Para os católicos romanos e os protestantes fundamentalistas, não basta que o amor seja infinito enquanto dure… eles querem torná-lo obrigatoriamente eterno. Mas como os amores em geral acabam, ou, pelo menos, são substituídos por outros maiores ou mais interessantes, surge o dilema: o que fazer? Os católicos romanos e os protestantes fundamentalistas em geral argumentam que o que deve ser feito é tentar “salvar o casamento” a qualquer custo. Isto implica, muitas vezes, tentar fazer, por uma série de mecanismos, e até mesmo artimanhas, com que um amor moribundo reviva, ou tentar convencer alguém a matar ou sublimar um grande amor em favor de um amor menor… O resultado é sofrimento… Sofrimento por causa da culpa – ou, pior, por causa da consciência de uma culpa que não deveria existir… É aí que se aplica como uma luva o dito alvesiano: a consciência por vezes é uma merda… Ela é, entre outras coisas, recipiente de um entulho religioso que deveria estar de muito ultrapassado.

Poderia parecer aos desavisados que aqueles que consideram o casamento como um contrato o vêem como uma instituição humana – afinal de contas, contratos podem ser rescindidos, e as leis terrenas da maioria dos países, inclusive do nosso, admitem hoje que o contrato matrimonial seja rescindido – até mesmo de comum acordo, consensual e amigavelmente, sem que seja necessariamente atribuída culpa a um dos cônjuges – e que um novo contrato seja estabelecido. Mas, como se pode perceber na frase do padre, citada por Rubem Alves, o contrato que católicos romanos e protestantes fundamentalistas vêem no casamento não é bilateral: é trilateral: Deus faz parte dele. Isso o torna irrompível.

Na verdade, os fundamentalistas protestantes às vezes são mais realistas do que o rei… Reconhecendo que, na prática, contratos são rompíveis, eles preferem falar, em relação ao casamento, não de contrato, mas de aliança (que é o símbolo material do casamento, quando, no Brasil, usada no dedo anelar esquerdo). Assim, para eles, mesmo que o contrato possa ser rompido, segundo as leis da terra, a aliança, celebrada pelo casal com Deus, é irrompível… O rompimento entre os cônjuges é sempre um rompimento também da aliança supostamente feita por ambos com Deus… Se esse rompimento se dá unilateralmente, por iniciativa de um dos cônjuges, este é visto como pecador… Se ele se separa oficiosamente e entra numa nova união (forçosamente também oficiosa) é adúltero… Se legal e oficialmente obtém o divórcio, e se casa de novo, tudo direitinho, segundo as leis da terra, ainda assim será visto como adúltero pela igreja (enquanto o cônjuge anterior ainda viver)…

Dentro visão católica romana e protestante fundamentalista, o contrato não é apenas um contrato terreno: é uma aliança sobrenatural, eterna. Mesmo que o amor acabe, o contrato-aliança tem de ser mantido, custe o que custar… Mesmo depois de o amor se ter ido, o contrato matrimonial permanece, tem de ser preservado a qualquer custo, mesmo na cláusula que exige dos cônjuges que se relacionem sexualmente um com o outro. (Não conheço outra defesa tão obscena do sexo sem amor como essa…)

É curioso que os protestantes fundamentalistas, que acusam os católicos romanos de toda sorte de erro, se unam a eles nessa visão do casamento, da separação, do divórcio, deixando de lado a visão mais sadia dos protestantes não fundamentalistas.

Acredito que tenha descoberto a razão…

Católicos romanos e protestantes fundamentalistas estão à busca de certezas… Quem se atrai a eles em geral está em busca de certezas… Não é à toa que os católicos tenham investido certos pronunciamentos do papa (sobre fé e prática, feitos ex cathedra) do atributo de infalibilidade… E também não é à toa que os protestantes fundamentalistas tenham atribuído característica semelhante (inerrância), não a pronunciamentos, mas à Bíblia Sagrada (devidamente expurgada de alguns livros que os católicos romanos aceitam e em geral interpretada de forma literal)… Ambos estão à busca de certezas, de coisas verdadeiras de forma absoluta, de sentimentos e relacionamentos eternos… No tocante ao casamento, esquecem-se de que sua base deve ser o amor, não a certeza, a infalibilidade, a inerrância – e que o amor, sendo sentimento, pode acabar… Ele não é imortal, posto que é chama – mas deve ser infinito enquanto dure (Vinicius de Moraes – o soneto é transcrito na íntegra adiante). [Vide adiante, também, em outro post, uma nova crônica, "Dois fatos importantes sobre o ser humano", publicada posteriormente].

Transcrevo parte de uma outra crônica do Rubem Alves, que me é muito cara, porque se refere a pássaros e gaiolas – e tenho, em meu coração, um lugar especial para seu livrinho A Menina e o Pássaro Encantado (que, por sinal, traduzi para o Inglês como The Little Girl and the Enchanted Bird):

“Escrevo hoje para os que casam, por medo de que, fascinados por um rito, se esqueçam do outro… . . .

O primeiro rito, sobre que todos sabem, e para o qual se fazem convites, é feito com pedras, ferro e cimento.

Mas há um outro rito, secreto, que se faz com o vôo das aves, com água, brisa, espuma e bolhas de sabão.

O primeiro rito nasceu de uma mistura de alegria e tristeza. Viram o vôo do pássaro, ficaram alegres. Mas logo o pássaro se foi e ficaram tristes. Não lhes bastava que a alegria fosse infinita enquanto durasse. Queriam que ela fosse eterna. E disseram: ‘Queremos o vôo do pássaro, eternamente.’ E que coisa melhor existe para conter o vôo do pássaro que uma gaiola? E assim fizeram. Engaiolaram o pássaro e chamaram os mágicos, ordenando-lhes que dissessem as palavras do bruxedo: ‘Para sempre, até que a morte os separe.’

A definição mais precisa desse rito, eu a ouvi da boca de um sacerdote. ‘Não é o amor que faz um casamento’, ele afirmou. ‘É o contrato’. Contratos são feitos de promessas.

Assustei-me. Sabia que assim era, no civil, casamento-contrato, rito frio da sociedade, para definir os deveres (sobre os prazeres se faz silêncio) e a partilha dos bens e dos males. Sociedade é coisa sólida. Precisa de pedra, ferro e cimento. Garantias. Testemunhas. Documentos. O futuro há de ser da forma como o presente o desenhou. Para isso, os contratos. E a substância do contrato são as promessas. Sim. Ele estava certo. ‘Não é o amor que faz o casamento. É o contrato’. São as promessas.

Promessas são as palavras que engaiolam o futuro. Por isso elas se fazem acompanhar sempre de testemunhas. Se o pássaro engaiolado, em algum momento do futuro, mudar de sentimento e de idéia e resolver voar, as testemunhas estão lá para reafirmar as promessas feitas no passado. O dito e contratado não pode ser mudado.

Muitas são as promessas que os noivos podem fazer: prometo dividir os meus bens, prometo não maltratá-la, prometo não humilhá-lo, prometo protegê-la, prometo cuidar de você na doença. Atos exteriores podem ser prometidos.

Assim se fazem os casamentos, com pedra, ferro, cimento – e, espera-se, amor.

Mas as coisas do amor não podem ser prometidas. Não posso prometer que, pelo resto da minha vida, sorrirei de alegria ao ouvir seu nome… Não posso prometer que, pelo resto de minha vida, sentirei saudades na sua ausência…

Sentimentos não podem ser prometidos. Não podem ser prometidos porque não dependem da nossa vontade. Sua existência é efêmera. Só existem… enquanto existem! Como o vôo dos pássaros, o sopro do vento, as cores do crepúsculo.

O casamento contratual é um rito de adultos, porque somente os adultos desejam que o futuro seja igual ao presente. A sua gravidade, a sua seriedade, os passos cadenciados, processionais, as suas roupas, as suas máscaras, as palavras sagradas, definitivas, para sempre, o que Deus ajunta os homens não podem separar, a exaltação dos deveres: tudo dá testemunho de que esse é um ritual adulto.

O outro ritual, entretanto, se faz com o vôo das aves, com água, espuma e bolhas de sabão. É secreto, para ele não há convites. Secreto foi o casamento de Abelardo e Heloísa, o mais belo amor jamais vivido – o mais belo, mas proibido… Para esse tipo de amor não há convites, nem lugar certo, nem hora marcada: ele simplesmente acontece.

‘Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse…’ (Drummond). Esse tipo de amor não precisa de altares: sempre que ele acontece o arco-íris aparece: a promessa de Deus, porque Deus é amor. Pode ser a sombra de uma árvore, um carro, uma cozinha, um banco de jardim, um vagão de trem, um aeroporto, uma mesa de bar, uma caminhada ao luar…

Não há promessas para amarrar o futuro. Há confissões de amor para celebrar o presente. ‘Como és formosa, querida minha, como és formosa! Há mel debaixo da tua língua!’, ‘O teu rosto, meu amado, é um canteiro de bálsamo e os teus lábios são lírios…’ (Bíblia Sagrada); ‘Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar, em cada despedida eu vou te amar, desesperadamente eu sei que vou te amar…’ (Vinícius); ‘Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo tua matéria, fauna e flora… Te amo com uma memória imperecível’ (Adélia Prado).

E os convidados, muito poucos, vestem-se como crianças: pés descalços, balões coloridos nas mãos: eles sabem que o amor fica somente se permanecermos crianças, eternamente…

‘Ego conjugo vobis in matrimonium’, diz um velho com rosto de criança.

Para vós invoco os prazeres que voam nos ventos e as alegrias que moram nas cores: beleza, harmonia, encantamento, magia, mistério, poesia: que essas potências divinas lhes façam companhia.

Que o sorriso de um seja, para o outro, festa, fartura, mel, peixe assado no fogo, coco maduro na praia, onda salgada do mar…

Que as palavras do outro sejam tecido branco, vestido transparente de alegria, a ser despido por sutil encantamento.

E que no final das contas e no começo dos contos, em nome do nome não-dito, bem-dito, em nome de todos os nomes ausentes e nostalgias presentes, de ágape e filia, amizade e amor, em nome do nome sagrado, do pão partido e do vinho bebido, sejam felizes os dois, hoje, amanhã e depois…”

Que coisa mais linda… mais protestantemente linda. Mas os católicos romanos a refugam. Infelizmente, os protestantes fundamentalistas ficaram, nesse aspecto, do lado dos católicos e tentaram até mesmo ir adiante, com sua doutrina da aliança matrimonial. Para eles, casamento é contrato, aliança. Trouxeram Deus para o casamento na forma de gaiola – não na forma do canto e da beleza do pássaro. Trouxeram Deus para o casamento para tentar eternizar e engaiolar o amor – esquecendo-se de que o amor só sobrevive em liberdade, e deixando de lado o fato de que, no Novo Testamento, Deus é um Deus de amor, não um Deus de contratos, pactos e alianças, como era o Deus do Antigo Testamento…

“Ama”, disse Agostinho, o mais protestante dos pais da igreja, que antecedeu o protestantismo em mais de mil anos, “e faze o que quiseres”.

Como prometi…

Soneto de Fidelidade

Vinicius de Moraes

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

(Vinicius de Moraes, "Antologia Poética", Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1960, pág 96.)

Em São Paulo, 13 de Fevereiro de 2009 – Sexta-Feira 13.

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