Lindo título da coluna de Marcelo Coelho na Folha de S. Paulo de hoje: "Uma escola sem alma"…
Nossas escolas, hoje em dia, mesmo quando boas, parecem não ter alma… São corpos – em alguns casos, até mesmo corpos vivos, que se mexem, que se alimentam de nossos recursos, que se reproduzem… Mas elas não nos tocam no que temos de mais profundo… Não tocam a nossa alma – porque não passam de corpos sem alma.
Tive o privilégio de estudar numa escola que tinha alma… Talvez pouca coisa mais do que alma, porque a estrutura física era mínima, pobre, precária… Na escola não havia tecnologia. O computador e o vídeo não existiam ainda, e a biblioteca era uma piada. Os professores, hoje me dou conta, eram mal-formados, adaptados, despreparados… Mas a escola tinha alma. Alunos e professores sabiam porque estavam ali. A aprendizagem dos alunos era levada a sério – por uns e por outros. O formal e o não-formal constituíam um todo integrado. A aprendizagem se dava nas salas de aula, mas também no clube recreativo (Castro Alves), no clube espiritual (Miguel Torres), nos clubes de língua estrangeira, nos grupos de debate, nos corais (inúmeros), nas quadras e nos campos esportivos, nas casas dos professores que moravam no campus. Na verdade, nós também, os alunos, morávamos lá: éramos internos. O campus inteiro, e a vila em que se situava, eram um magnífico ambiente de aprendizagem.
Aquela escola – o JMC – tinha alma e me deu educação. E, estou convencido, me deu educação porque tinha alma…
Hoje, quando há escolas riquíssimas, com impressionante infraestrutura, inclusive tecnológica, fico tentado a perguntar:
De que vale, para a escola, ganhar todo esse mundo de coisas, perder a sua alma?
Em São Paulo, 8 de Abril de 2009 (dia do aniversário de Santo André da Borda do Campo).
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Folha de S. Paulo
8 de abril de 2009
MARCELO COELHO
Uma escola sem alma
O protagonista de "Entre os Muros da Escola" erra muitíssimo, mas finge inocência
QUANDO VI o trailer, achei que não assistiria ao filme de jeito nenhum. Essa história de mostrar um professor bem-intencionado toureando uma classe de adolescentes desajustados e estúpidos… Haja paciência, pensei.
Mas "Entre os Muros da Escola", filme de Laurent Cantet, prende a atenção do início ao fim. Estamos longe de assistir a um daqueles relatos heroicos e idealistas, ao gosto do cinema clássico americano, em que um mestre excepcional regenera o bando de trombadões à sua frente.
O que se mostra, numa escola pública da periferia de Paris, é uma série de situações em que todos estão errados: os alunos, o professor, a instituição escolar, a sociedade globalizada, os princípios da República Francesa. Bela coisa, dirá o leitor brasileiro, consciente do estado calamitoso dos "estabelecimentos de ensino" -belo nome, este- que temos por aqui.
As diferenças são enormes, com efeito. Na França, tudo é muito organizadinho, os professores não faltam, parecem satisfeitos com o salário, as classes são pequenas, o padrão de exigência é elevado. Questões de droga não são mencionadas no filme.
Mas os problemas enfrentados pelo professor François (François Bégaudeau) e seus alunos parecem igualmente desesperadores. A classe é multicultural: marroquinos, antilhanos e franceses brancos não se entendem sobre coisa nenhuma, e muito menos entendem algumas palavras e expressões correntes utilizadas pelo professor.
"Suculento", "estar com a pulga atrás da orelha", "austríaco": o professor é obrigado a explicar tudo, enquanto destrincha, por exemplo, a métrica de um poema de Rimbaud para seus alunos de 14 anos.
Seria o clássico exemplo da falta de formação básica dos adolescentes, que conhecemos bem no Brasil. Acontece que a França é a França, e isso acaba piorando as coisas. O professor segue um padrão sarcástico e impiedoso, a que foi provavelmente exposto durante sua própria formação escolar.
Cada aula se transforma numa sessão de tortura, em que prêmios escassos e humilhações constantes, e quase inconscientes, distribuem-se numa velocidade de tiroteio.
Um jovem muçulmano confessa, a certa altura, ter vergonha de comer na presença da mãe de um colega, com quem não tem intimidade. Provavelmente, algum traço cultural de seu país; uma delicadeza que desconhecemos. O professor não se conforma, espreme o garoto com perguntas embaraçosas, como se quisesse provar o absurdo da atitude.
Embora tudo transcorra de forma até certo ponto velada, a situação não deixa de refletir uma concepção típica do republicanismo francês: não apenas a lei tem de ser igual para todos, mas também a escola tem de ser um lugar onde se formam cidadãos teoricamente iguais uns aos outros -nunca um lugar onde se afirmam diferenças de cultura e de religião.
Uma política educacional centrada nas "diferenças", nas "identidades", sem dúvida terminaria fragmentando demais a sociedade. Esmagá-las, com notas baixas no boletim e ironias em classe, está longe de ser a solução. Um professor, evidentemente, é tão humano quanto qualquer aluno, e pode errar a qualquer momento.
O protagonista de "Entre os Muros da Escola" erra muitíssimo; até aí, tudo normal. Mas é fascinante ver que, quando erra, acaba tendo a mesma atitude do pior de seus alunos: finge inocência, esconde o que fez, enrola seus colegas e superiores…
E a dramaticidade maior do filme está nas breves ocasiões em que, talvez, tudo pudesse ter um desfecho diferente. Uma pequena luz brilha nos olhos do aluno indolente, um grão de autoestima começa a brotar no espírito do adolescente humilhado.
Desaparecem: tudo se resolve na aplicação dos regulamentos, das normas. Uma falta assustadora de flexibilidade e de afeto destrói por dentro aquele sistema educacional organizadíssimo -e cego para as necessidades de cada ser humano, aluno ou professor.
Os personagens -vividos pelo mais extraordinário conjunto de atores que se pode imaginar- sobrevivem como podem, sofrendo e se irritando, numa atividade cujo sentido e cuja alma se perderam. Perderam-se há tanto tempo, que ninguém mais lembra que deveriam existir.
coelhofsp@uol.com.br
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