Relendo o post “Você não sabe até onde eu chegaria para te fazer feliz”, colocado aqui no meu space há poucos dias, lembrei-me de um divertido conto de Monteiro Lobato, com o título do post atual, que tentarei resumir de memória.
O narrador da história, no conto, se chama Aldrovando Cantagalo. Tem uma obsessão: “a última flor do Lácio, inculta e bela”, a nossa língua portuguesa, Que é bela, não há dúvida. Que é inculta, talvez também… Dizem alguns que é maltratada pelos que erram ao usá-la.
Mas há erros e erros – erros que são apenas erros e erros que são prenúncios de inovação… (É deste tipo o erro da frase “Você não sabe até onde eu chegaria para te fazer feliz”…)
Dentro da obsessão de Cantagalo, os pronomes recebiam especial atenção – porque, como esclarece Lobato, Cantagalo “nasceu e morreu por um erro de pronome”.
O erro de pronome que explica o seu nascimento é o mais curioso – embora, talvez, o menos trágico.
Seu pai não tinha lá grande intimidade com as minúcias da gramática de nossa língua. Naqueles tempos sisudos, apaixonou-se, má sorte, pela filha mais nova do Coronel local — ela, pessoa jovem, graciosa, um amor de criatura; ele, o Coronel, pessoa brava e temida, a principal causa do fato de que sua filha mais velha provavelmente iria morrer solteirona (talvez invicta, mas nunca se sabe). Ela infelizmente tinha, além do pai bravo, outras características não muito desejáveis: era um pouco velhusca, meio rechonchuda, tinha um que de vesga e mancava de uma perna… (É… acho que morreu invicta mesmo).
O pai de Cantagalo e sua bela se viram no footing do jardim, encontraram-se vez ou outra furtivamente, trocaram-se bilhetes, amaram-se daquela forma que era totalmente virtual, mesmo que o termo ainda não fosse consagrado nesse sentido — pois o amor virtual era o único que era permitido antes (e fora) do casamento.
Um dia um dos bilhetes caiu nas mãos do Coronel. O bilhete, dirigido pelo pai de Cantagalo à sua amada, dizia:
"Fulana [o nome da dita]: Amo-lhe".
De posse do bilhete o Coronel mandou incontinenti chamar o ousado namorador, que diante da confrontação com o Coronel tremeu nas pernas. Mas convocação de Coronel é coisa que não se recusa — especialmente quando o Coronel é o pai da amada.
Lá chegando, o pai de Cantagalo foi recebido pela criada que o colocou no escritório. Um pouco depois entrou no escritório o temido Coronel, que foi direto ao assunto. Mostrou o bilhete ao pobre rapaz e lhe perguntou se era ele o autor.
— "Sim, Coronel, fui eu que o escrevi", respondeu.
— "E é verdade o que aqui está aqui escrito?", indagou o velho.
— "Sim, sim, claro que sim". [‘Oh, Virgem Santíssima, tem piedade de mim…]
— "E o bilhete foi dirigido à minha filha mais nova?"
— "Sim, sim, senhor".
— "Então, está bom. Vai casar".
Cantagalo caiu das nuvens. Haviam-lhe dito que o Coronel era pessoal temível e que ele poderia nem mesmo sair vivo da casa. Casar? Pois ele não queria outra coisa!
— "Ora, Coronel, que alívio… Com prazer, sim, com prazer me casarei com ela. Em verdade eu tinha esperança de que um dia pudesse fazer isso, mas…"
— "Tudo bom. Vamos chamar a noiva", interrompeu o Coronel.
E, dirigindo-se à criada, mandou que esta trouxesse ao escritório sua filha mais velha.
— "Perdão, Coronel. Acho que houve um engano. Não é a mais velha, é a mais nova…"
— "Como? Você não admitiu que escreveu o bilhete para minha filha mais nova? E o bilhete não diz ‘amo-lhe’? Ora, se você, escrevendo à mais nova, lhe diz ‘amo-lhe’, só pode amar a mais velha — a menos que fosse minha esposa que o senhor tinha em mente ao escrever?"
— "Não, não, Coronel. O senhor está certo. Absolutamente certo. Sua esposa? Não, nunca… Eu me caso com sua filha mais velha".
E casou-se. E do casamento nasceu Aldrovando Cantagalo.
Nasceu por um erro de pronome. Por isso dedicou sua vida ao estudo da língua portuguesa, para que o que aconteceu ao pai não lhe acontecesse, a ele próprio, um dia.
Mas quis o destino que, do mesmo modo que nasceu por um erro de pronome, viesse a morrer por outro.
Em seus estudos da língua portuguesa Cantagalo se encantou com a prosa de Eça de Queiroz. Leu tudo que o escritor português escreveu. E resolveu, inspirado pela beleza daquela prosa, escrever um tratado (em vários volumes) enaltecendo a beleza de nossa língua e ensinando as pessoas a reverenciá-la, falando-a bem…
Dedicou a obra “A Eça, que me sabe as dores”.
Terminada a obra, procurou editores – não os encontrou, naqueles tempos primitivos, anteriores à Sociedade da Informação. Resolveu pagar com recursos de seu próprio bolso (embora escassos) uma tipografia para que a imprimisse.
No dia em que a obra foi entregue em sua casa, sentou-se para se deliciar calmamente com a inebriante sensação que é ver o seu primeiro livro impresso… Abriu um dos pacotes, retirou dele o primeiro volume, abriu-o – e caiu fulminado por um ataque do coração!
O tipógrafo, ao compor o texto da dedicatória, resolveu corrigir o que estava certo, e mudou a dedicatória para:
“A Eça, que sabe-me as dores”.
Morreu o Cantagalo por outro erro de pronomes – este, de colocação. Provavelmente é o primeiro (quiçá o único) mártir da língua portuguesa.
Deveria ter um feriado dedicado a ele.
[NOTA: Este post incorpora elementos de uma crônica que escrevi, “O Amor e a Gramática”, publicada em meu site de crônicas: http://cronicas.info/textos/gramatica.htm]
Em São Paulo, 28 de Outubro de 2009
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