Os profissionais da escola (também conhecidos como professores, embora em regra não se saiba o que professam…)

A escola convencional exige demais — e, paradoxalmente, de outro ângulo, muito pouco – dos profissionais que lá trabalham (dos professores, como comumente são chamados, nome que é extremamente inadequado para descrever não só o que de fato fazem, mas também o que devem fazer, esses profissionais, como a seguir se verá).

Pode-se presumir que o ofício do profissional que trabalha na escola (qualquer que fosse o nome dado aos seus ocupantes então) surgiu com a escola – um lugar especializado em ajudar as crianças a aprenderem e, assim, se desenvolverem com seres humanos. Na escola, havia necessidade de alguém que ajudasse as crianças a aprender e, assim, a se desenvolver como seres humanos. Dessa forma, o profissional que trabalhava na escola (ou equivalente) deveria ser um profissional da aprendizagem, ou do desenvolvimento humano – não do ensino. Ele não era necessariamente docente, aquele que ensina. E ele não professava, necessariamente, nada.

Por milhares e milhares de anos, as crianças aprendiam tudo o que precisavam aprender em casa ou dentro dos limites do círculo familiar. Quem as ajudava a aprender, portanto, era a família: a mãe, o pai, a avó, a avô, a tia, o tio, os irmãos mais velhos, os primos mais experientes… No contexto relativamente simplificado em que isso se dava, os membros da família tinham, em seu conjunto, tudo o que se exigia para ajudar os mais jovens a aprender e a se desenvolver. Em seu conjunto, eles dominavam tudo o que as crianças precisavam, tudo o que devia ser aprendido, a saber:

  • Em primeiro lugar, coisas práticas: a linguagem (por muito tempo apenas a linguagem falada; depois, e mesmo assim nem em todas as famílias, a leitura e a escrita), os rudimentos da aritmética, e as habilidades práticas exigidas pelo negócio da família: os negócios externos (em geral caçar, pescar, cultivar a terra, cuidar dos animais, etc.), em regra reservados para os homens, e o trabalho doméstico: cuidar da casa, cozinhar, lavar roupas, tecer, costurar, bordar, tricotar, etc.), em regra reservado para as mulheres;
  • Em segundo lugar, ainda coisas práticas, mas agora colocadas num “plano mais elevado”: a “arte de viver”, ou os princípios e as regras da moralidade, da vida espiritual e (talvez num plano não tão alto) da estética.

O primeiro componente era mais ou menos pressuposto como algo que nem merecia discussão, mas o segundo era considerado realmente importante, visto que envolvia preparar as crianças para viver suas vidas não só nesta vida, mas também na futura… (como diz, até hoje, o moto da educação adventista).

A “arte de viver” geralmente incluía:

  • Educação moral: ajudar as crianças a entender a diferença entre o moralmente certo e o moralmente errado [conceito], entender (ou simplesmente aceitar) aquilo que faz com que uma determinada ação seja moralmente certa ou moralmente errada [critério], classificar diferentes ações concretas como moralmente certas, ou moralmente erradas, ou moralmente indiferentes [segundo o critério], e, mais importante, fazer o que é moralmente certo e deixar de fazer o que é moralmente errado;
  • Educação spiritual: [especialmente em círculos cristãos] ajudar as crianças a entender que temos um corpo mas somos uma alma, que nossa alma que sobrevive à morte do seu corpo, que como nos comportamos aqui na vida aqui na Terra vai nos trazer recompensas ou punições na vida futura, e que, portanto, é importante ler (ou ouvir) as escrituras, orar solicitando a orientação divina, ir à igreja, etc.
  • Educação estética: [dirigida mais para as meninas] ajudar as crianças a desenvolver alguns dos mais finos hábitos e a cultivar as artes, aprendendo a desenhar, pintar, cantar, tocar um instrumento, e, em geral, apreciar o que é belo e evitar o que é feio.

À medida que a vida foi se tornando mais complexa, porém, a família teve de recorrer a profissionais externos, especializados, para apoiá-la na tarefa de ajudar suas crianças a aprender tudo o que era considerado digno de aprender para que se desenvolvessem plenamente como seres humanos. Foi nesse contexto que surgiu, primeiro, a função de um profissional especializado em ajudar os outros a aprender e a se desenvolver – e foi nesse contexto que a escola moderna (com sua “Congregação dos Mestres”, expressão até hoje utilizada), foi inventada.

Muitas coisas tornaram esse desenvolvimento necessário – mas algumas delas são especialmente importantes, e tiveram lugar por volta do fim do século quinze e durante os séculos dezesseis e dezessete:

  • A invenção da imprensa de tipo móvel, a explosão de textos escritos que resultou dessa invenção (e que marca o início da literatura no vernáculo da maior parte das línguas modernas);
  • A descoberta de partes até então desconhecidas do mundo;
  • A Reforma Protestante;
  • O aparecimento da ciência experimental moderna.

Os reformadores protestantes tiveram um papel importante no processo, porque insistiram que cada um devia aprender a ler para poder ler as Escrituras por si só, e, assim, não ser enganado pelos padres católicos (pois o preço de não aprender a ler poderia ser a danação eterna no inferno…). O resultado disso foi que escolas começaram a aparecer em toda cidade ao lado das igrejas protestantes.

Uma conseqüência importante dessa ênfase na educação foi que o mister de ajudar as crianças a aprender e a se desenvolver se tornou mais complexo e uma gradual “divisão de trabalho” (com sua conseqüente criação de funções especializadas) começou a ocorrer. A família, por um tempo, reteve as funções práticas de preparar os meninos para os negócios externos da família e as meninas para os negócios domésticos relacionados ao cuidado da casa e, oportunamente, dos filhos (ou seja, para o casamento). A educação moral e espiritual foi, em larga medida, compartilhada pela família e pela igreja. A educação estética (“a educação da sensibilidade”) perdeu um pouco de sua importância. E a escola assumiu uma área que não existia antes, mas que estava fadada a crescer e a assumir cada vais mais importante: a educação intelectual.

Com o aparecimento de várias linguagens modernas e sua correlata literatura, com a descoberta de novos mundos, com a criação de várias denominações protestantes (competindo não só com a Igreja Católica, mas também umas com as outras), com o surgimento da ciência moderna, que gradualmente evoluiu da astronomia e da física para a química e a biologia, e o posterior surgimento das ciências humanas (história, geografia, psicologia, sociologia, antropologia, ciência política, etc.), o cenário intelectual – o mundo das idéias – cresceu em complexidade e importância. De repente a família parecia totalmente inadequada para a tarefa de preparar as crianças para aprender coisas tão complexas e variadas que lhes permitissem a viver e agir com naturalidade no mundo… E, curiosamente, e de certo modo paradoxalmente, esse novo mundo das idéias estimulou o interesse no velho mundo das idéias dos Gregos e Romanos…

Nem mesmo se podia esperar que um profissional individual, geralmente empregado por famílias de mais posses, pudesse dominar tudo aquilo que se esperava que as crianças, especialmente as das classes mais elevadas, viessem a aprender… As famílias mais ricas começaram a contratar vários profissionais especializados. A classe média emergente (e, mais tarde, também os ricos) tiveram de recorrer à “Congregação dos Mestres” fornecida pelas escolas… (Os pobres geralmente ficavam de fora – até bem recentemente).

E assim chegamos à escola atual, convencional… Essa escola é, desde o início, e quase que por definição, um ambiente de aprendizagem especializado: ela tenta lidar apenas com a educação intelectual e, mesmo assim, apenas com um segmento dela. A educação moral, espiritual e estética ficam normalmente fora de seu escopo. E a chamada educação profissional e vocacional foi atribuída a instituições especializadas que nunca foram consideradas suficientemente importantes pelas elites para se equipararem às escolas regulares.

A escola convencional de hoje (e a sociedade, em geral) quer que os seus profissionais sejam várias coisas ao mesmo tempo…

Acima de tudo, ela quer que seus profissionais sejam especialistas em conteúdo, isto é, quer que eles conheçam bem uma das matérias (disciplinas acadêmicas) nas quais o currículo (aquela parte restrita, que deve ser aprendida na escola, dentre tudo o que deve ser aprendido por uma criança) veio a ser dividido.

Com a explosão da informação que caracteriza o nosso tempo, expectativas acerca da área dos profissionais que trabalham na escola foram sendo ajustadas (i.e., estreitadas). Hoje não se considera mais razoável que um profissional escolar seja um especialista em toda a biologia, ou em toda a física, ou mesmo em toda a história: os profissionais da escola precisam escolher sub-especialidades: História do Brasil, por exemplo, no caso de um profissional de história… ou até mais (isto é, menos) do que isso: História do Brasil Republicano (ou, pior, História do Brasil Após a Segunda Guerra…)

Mas as expectativas foram ainda mais estreitadas à medida que foram sendo “focadas”… Além da escolha de especialidades dentro das especialidades, os profissionais da escola começaram a se especializar no conteúdo específico que deveria ser ensinado às classes sob sua responsabilidade: “Sou professor de matemática no ensino médio”… “Sou professor de língua portuguesa na oitava série”…

Mas o nível de especialização tem uma conseqüência ainda mais problemática.

Cada uma das diferentes áreas de especialização pode ser dividida em duas partes: uma que contém o que poderia ser chamado de o “conteúdo legado”, produzido pelos especialistas do passado (mesmo recente), e outra que contém o “método de investigação e reflexão” que, quando aplicado, pode produzir conteúdo semelhante…

Essa distinção é muito importante.

Tentarei mostrar por que usando como exemplo minha própria área de especialização, a filosofia. É provável que os seres humanos tenham estado a filosofar por muito tempo. Mas a filosofia, como uma forma de investigação sistemática sobre questões como o que existe (ontologia), de onde viemos e para onde vamos (metafísica), qual é o curso correto de ação que devemos assumir (ética), qual é a forma correta de organizar a vida em sociedade (filosofia política), por que consideramos algumas coisas lindas e atraentes e outras feias e repugnantes (estética), e como é que sabemos tudo aquilo que presumimos saber (lógica e epistemologia) – essa forma de investigação teve seu início entre os gregos durante os cinco séculos que precederam a era cristã. E se espalhou, para todo canto e muito rapidamente. Mais de dois mil anos depois, temos uma quantidade incrível de registros históricos daquilo que pensaram os filósofos passados e contemporâneos. Esse é o que chamo de o “conteúdo legado” dessa área de especialização.

Ajudar uma criança a aprender a filosofar pode, nesse contexto, ser interpretado de duas maneiras diferentes:

  • Ajudá-la a assimilar as idéias mais importantes (segundo algum critério) daquilo que outros filósofos pensaram e escreveram;
  • Ajudá-la a desenvolver as competências e as habilidades necessárias para pensar e escrever de maneira semelhante (ou seja, necessárias para que eles mesmos filosofem).

A maior parte dos chamados “professores de filosofia” opta por fazer apenas a primeira dessas duas coisas – e muitas vezes não sabe filosofar nem mesmo para consumo próprio. Não tenho dúvida nenhuma, porém, de que a segunda dessas coisas é a mais importante para a filosofia (a primeira, na verdade, não é filosofia: é história, ainda que da filosofia)… Na realidade, o pensamento escrito de outros filósofos só se torna interessante quando a gente começa a dominar a arte de filosofar… Para quem não tem esse domínio, o pensamento filosófico de terceiros é terrivelmente chato.

O que acabei de dizer sobre a filosofia pode ser dito, com a mesma propriedade, sobre qualquer outra das disciplinas acadêmicas. A maior parte dos profissionais das escolas convencionais de hoje não ajuda as crianças a aprender como filosofar, como pensar como um cientista, como produzir obras de arte. Esses profissionais estão apenas envolvidos em transmitir para os alunos o que filósofos, cientistas e artistas pensaram e fizeram ao longo da história. Seu negócio é “transmitir conteúdos” – uma expressão horrível que, infelizmente, reflete bastante bem o que a maior parte dos profissionais escolares faz: sua área de especialização é, para eles, apenas um monte de conteúdo – conteúdo esse que consiste daquilo que os outros pensaram ou fizeram, e que, agora, precisa ser transferido para os alunos que, quase por definição, não têm familiaridade com ele.

Posto que o conteúdo de uma área de especialização, hoje, cresce muito rapidamente, os profissionais especializados da escola são incapazes de se manter atualizados até mesmo sobre o que se produz em suas estreitas especialidades, e a tendência é que se especializem cada vez mais, até chegar o ponto de saberem quase tudo sobre virtualmente nada. E é isso que transmitem para seus alunos.

A bem da clareza, aqui está o que esses professores não fazem – nem suas escolas exigem que o façam:

  • Ajudar seus alunos a dominar os métodos de investigação de suas disciplinas especializadas;
  • Ajudar seus alunos a entender o contexto mais amplo em que as disciplinas foram definidas e operam;
  • Ajudar seus alunos a entender que as questões mais interessantes em geral transcendem os limites das disciplinas tradicionais e mesmo de mega-áreas como, por exemplo, filosofia, ciência, ou arte;
  • Ajudar seus alunos a lidar com as competências e habilidades práticas exigidas pelas diversas profissões intelectuais;
  • Ajudar seus alunos a lidar inteligente e honestamente com questões morais, espirituais e estéticas que vão inevitavelmente confrontá-los.
  • Ajudar seus alunos a lidar inteligente, sensível e honestamente com algumas das questões práticas da vida, como, por exemplo, o amor, os relacionamentos afetivos mais duradouros, a criação e a educação dos filhos.

Isto posto, fica claro por que eu disse, no início, que a escola convencional, e a sociedade que a apóia, exige, ao mesmo tempo, demais e muito pouco de seus profissionais (os professores).

Alguém já disse que, dada a complexidade cada vez maior de nossa sociedade, em vinte anos, por aí, serão necessários oito ou nove profissionais especializados para fazer aquilo que hoje se espera de um profissional da escola…

Mas, sem exageros, certamente já é mais do que tempo de desdobrarmos esse profissional em pelo menos dois… Um, com a função de mentor, conselheiro, orientador, de facilitador da aprendizagem “no atacado”; o outro, com a função de técnico, de tutor, de facilitador da aprendizagem “no varejo”…

O primeiro profissional seria responsável por cerca de 15 a 20 alunos, no máximo. Sua responsabilidade envolve o desenvolvimento pessoal do aluno em todos os aspectos relevantes: físico, social, emocional, moral, espiritual e, naturalmente, intelectual. Ele deve conhecer bem as crianças por cujo desenvolvimento ele é responsável. Ele deve descobrir o que as crianças já sabem quando entram na escola, isto é, quais são os talentos, inclinações, interesses, esperanças e expectativas que trazem consigo para a escola (tanto quanto se pode descobrir essas coisas em relação a crianças pequenas). Com a ajuda dos pais delas, ele deve ajudar as crianças a escolher e contratar os projetos de aprendizagem em que vão se envolver. Ele deve supervisionar as crianças enquanto elas não estão envolvidas nos seus projetos de aprendizagem (pois neste caso elas ficam sob a supervisão do outro profissional). Ele deve periodicamente avaliar o seu aprendizado e o seu desenvolvimento (com base em suas observações e com a ajuda de relatórios elaborados pelos instrutores/mestres). E, a menos que problemas surjam, ele não é substituído por outro profissional à medida que as crianças vão ficando mais velhas: ele é uma referência constante para elas.

O outro profissional é, de certo modo, o especialista em conteúdo a quem a responsabilidade pelo desenvolvimento das competências e habilidades específicas é – para usar um termo quase que abusivo – terceirizada. Sua função é oferecer – planejar, desenvolver, implementar, executar — projetos específicos de aprendizagem para as crianças – e avaliar o seu desempenho neles, avaliando não só se realizaram as atividades previstas mas, também, se desenvolveram, ao realizar essas atividades, as competências e habilidades previstas.

Há três características importantes que são buscadas nestes profissionais:

  • Que dominem com competência um conteúdo específico;
  • Que sejam capazes de olhar para o conteúdo que dominam do ponto de vista das competências e habilidades exigidas para produzi-lo, e não do ponto de vista de sua mera transmissão para os alunos;
  • Que tenham um genuíno interesse na área e uma paixão visível pelo que vão fazer, a saber, ajudar as crianças nos detalhes (no “varejo”) de seu desenvolvimento.

Se essas três características estiverem presentes – domínio, foco nos métodos de investigação, e motivação – esses profissionais não devem ter problemas para conseguir que os alunos voluntariamente se disponham a participar de seus projetos: os alunos não precisam ser seduzidos, muito menos compelidos, a participar.

Se os primeiros profissionais fornecem oferecem constância e continuidade, os últimos oferecem mudança e diversidade.

A administração da escola é responsável por garantir que todas as áreas essenciais da Matriz de Competências que serve de currículo estejam cobertas por projetos de aprendizagem oferecidos, liderados e coordenados pelos segundos profissionais – e estes são responsáveis por garantir que os alunos envolvidos em seus projetos não só aprendam o conteúdo dos próprios projetos, mas, também, que desenvolvam as competências e habilidades definidas pela Matriz de Competências. E os primeiros profissionais são responsáveis por garantir que aquilo que os alunos aprendem nos diversos projetos contribui para seu desenvolvimento coerente como pessoas – não só como os indivíduos únicos que são, mas também para sua existência social como cidadãos e para sua preparação para serem, oportunamente, os profissionais que o século XXI exige.

O profissional da escola convencional assim é dividido em dois. E, no caso dos segundos profissionais, seu foco de atuação, dentro de sua área de especialização, foi retirado da transmissão do “conteúdo legado” nela existente para os métodos de investigação.

Em Campinas, 12 de Outubro de 2007 — traduzido para o Português pelo autor, em Salto, 3 de Março de 2008; revisto para remoção de referências específicas em São Paulo, 13 de Novembro de 2009 (uma Sexta-Feira).

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