A Revolta Protestante contra a Tentativa Católica de Sacramentar a Vida

[Este artigo é escrito para o leitor leigo em teologia… Os teólogos não devem esperar muita precisão teológica nele… Mas acredito que o foco central é correto e precisa ser enfatizado.]

1. A Tentativa de Sacramentar a Vida

Os termos “secular / profano” e “sagrado” não são muito usados hoje. Nem os termos “eterno” e “temporal”. Menos ainda os termos “leigo/laico” e “clerical”.

Os termos “civil” e “religioso” são mais usados talvez porque tenhamos nos acostumado a falar em casamento civil  (no cartório) e religioso (na igreja).

Durante o período medieval, e, portanto, antes da Reforma Protestante, a Igreja Cristã Ocidental (Católica Romana), tentou sacralizar, ou sacramentar, o mundo secular / profano, a afirmar a ascendência do eterno sobre o temporal, e a postular a autoridade clerical (papa, cardeais, arcebispos, bispos, padres), supostamente ligada ao eterno, sobre os leigos (o resto do povo) até mesmo sobre as autoridades ditas temporais (reis, imperadores, príncipes, etc.). Muito rei foi destituído de seu poder pelo papa durante esse período. O poder de excomungar (barrar da comunhão, isto é da eucaristia) era temido pelos leigos.

Nesse processo a Igreja Cristã Ocidental (Católica Romana) criou uma série de sacramentos — sete, na verdade, número cabalístico que combina não só com os sete pecados capitais e as sete virtudes cardeais, mas também com os sete dias da semana. São eles: batismo, confirmação (crisma), comunhão (eucaristia), reconciliação (confissão e penitência), unção dos enfermos (incluindo a extrema unção dos que estão para morrer), casamento, e ordenação. Os dois últimos são mutuamente exclusivos: quem casa não pode ser ordenado padre, e quem é ordenado não pode se casar (doutrina do chamado celibato clerical).

Os sacramentos cobrem a vida toda de um indivíduo, do nascimento (batismo — que precisa ser confirmado quando a pessoa atinge idade da razão) até a morte (extrema unção), passando por fases importantes, como o casamento e as doenças sérias. Além disso há dois sacramentos que são tipicamente ligados à igreja: a confissão / penitência e a comunhão. Os dois são vinculados um ao outro: para participar da comunhão (eucaristia) é preciso antes confessar os pecados e cumprir a penitência, sem a qual não haverá o perdão que dá acesso à santa ceia.

Com esse mecanismo dos sacramentos a Igreja Cristã Ocidental (Católica Romana) amarrou as pessoas a ela, do nascimento à morte, e passou a ter controle total da vida de seus seguidores. Até os pensamentos mais íntimos, se possivelmente pecaminosos, precisavam ser confessados ao padre. E o católico sabe que o padre sabe o que ele pensou ou, tendo pensado, fez, depois.

Com esse mecanismo dos sacramentos a Igreja Cristã Ocidental (Católica Romana) se fez mediadora da relação do fiel ou do crente com Deus. Para chegar a Deus ele precisa passar pela igreja, com seus sacerdotes e seus santos.

Antes de falar na Reforma Protestante, é interessante dizer uma palavra mais sobre os dois últimos sacramentos, os que são mutuamente exclusivos: casamento e ordenação.

Segundo a Igreja Cristã Ocidental (Católica Romana), esses dois sacramentos de certo modo gravam em quem os recebe uma marca irremovível (chamada de character indelebilis, em Latim). Isso quer dizer, no caso da ordenação, que uma vez ordenado, sempre ordenado — não há como se desordenar. Da mesma forma, no caso do casamento (embora a igreja raramente fale em character indelebilis aqui), uma vez casado, sempre casado — a menos que um dos dois morra. (Não é fácil fugir do injunção bíblica “até que a morte os separe” — a morte, portanto, separa o casal. E separa para sempre, porque no céu não haverá casamento. Algumas igrejas não católicas, como a Igreja dos Santos dos Últimos Dias, os chamados mórmons, vão além dos católicos aqui: acreditam no casamento eterno, para além da morte). Por isso, a Igreja Cristã Ocidental (Católica Romana) nunca admitiu o divórcio. Duas pessoas que se casam só podem se descasar se o casamento for declarado nulo — por alguma razão relevante. (Houve época em que uma boa oferta para a igreja muitas vezes era considerada razão relevante).

2. A Revolta Protestante

A Reforma Protestante acabou com (quase) tudo isso.

De pronto, cinco dos sacramentos foram simplesmente eliminados: confirmação, confissão  /penitência, unção dos enfermos, casamento e ordenação. Ficaram apenas o batismo e a eucaristia (chamada, na prática, de santa ceia, ou ceia do Senhor). Houve reformador que queria acabar com os sete, mas de alguma forma o batismo e a eucaristia permaneceram.

Não vou discutir todos os cinco ex-sacramentos: só o casamento, porque é o único que me afeta mais de perto — a mim e a vários amigos.

A Reforma Protestante, ao “dessacramentar” o casamento, declarou o casamento uma questão secular, não sagrada; civil, não religiosa. Não sendo o casamento um sacramento, não deixa marca irremovível nenhuma: pode ser dissolvido. E, uma vez dissolvido, nada impede que os ex-cônjuges possam se casar de novo. (Há uns textos bíblicos que a gente precisa tirar do caminho para defender essa tese, mas não é nada que um bom exegeta-hermeneuta não possa fazer com certa facilidade. A interpretação literal da Bíblia, como a própria Igreja Católica nos ensinou, é coisa de simplórios: vale o sensus plenior).

As Igrejas Protestantes, por conseguinte, não fazem casamento de ninguém: apenas pedem a Deus uma bênção especial para o casal que, normalmente antes, se casou segundo as leis da sociedade secular. (É recente a prática do casamento religioso com efeito civil: uma tentativa de simplificar as coisas do ponto de vista prático, sem nenhuma implicação teológica).

O casamento, assim, se torna um contrato de união civil que pode, ou não, ser acompanhado de uma cerimônia religiosa — mas ela não é necessária, do ponto de vista das Igrejas Protestantes. Durante a celebração do casamento civil ou durante a cerimônia religiosa os “casantes” podem se prometer várias coisas: que vão se amar para sempre, que vão ser fiéis um ao outro, que vão cuidar um do outro na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na juventude e na velhice, na prosperidade e na pobreza, etc. Algumas dessas promessas são “cumpríveis”, outras, não necessariamente — e às vezes não são nada fáceis de cumprir. A promessa de amar alguém para sempre é muito difícil de ser cumprida, talvez impossível, porque o amor é um sentimento sobre que não temos total controle — se é que temos algum. (Houve gente que, por ser incapaz de resistir a ele, desistiu de muito mais do que um simples casamento por causa dele: desistiu do trono inglês, por exemplo).

É bom que os casantes se façam promessas desse tipo, com a intenção de cumpri-las, porque casamento (mesmo que não indissolúvel) é coisa séria: não é algo em que se deva engajar de forma frívola, pensando que, se não der certo, a gente se separa e arruma outro(a) em seguida. Mas se o relacionamento chegar a um ponto em que um dos cônjuges concluir (raramente são os dois em uníssono) que não dá mais para cumprir as promessas, a maior parte das Igrejas Protestantes admite, depois de alguma tentativa de aconselhamento, que se separem, mediante o divórcio, e que, depois de um tempo, se for o caso, se casem de novo com outras pessoas, não se negando sequer a pedir a bênção divina sobre o novo casamento.

Isso é sensato e civilizado — e as Igrejas Protestantes históricas, em geral, com um ou outro escorregão, sempre agiram na direção da sensatez e da promoção daquilo que parecia ser civilizado. É por isso que eu sou protestante histórico. Insensato e civilizado é ficar casado, mesmo depois de o amor de um ou dos dois terminar, simplesmente porque se prometeu amar para sempre ou porque se acredita que o casamento é um sacramento que não pode ser tornado sem efeito.  Insensato e incivilizado — e imoral — é ficar casado com um(a) amando um(a) outro(a).

Para os católicos, porém, é preferível que o casal continue casado, mesmo se detestando; é preferível que alguém como Marcelo Mastroiani continuasse por anos casado com sua mulher, mesmo amando Catherine Deneuve, mesmo vivendo parte do tempo com ela, mesmo tendo filhos com ela… Indagado um dia, por que, diante desses fatos, ele não se separava da mulher e se casava com Deneuve, respondeu com franqueza: “Porque sou católico e o meu casamento é indissolúvel”.

Isso é sensato e civilizado? Os protestantes históricos, e qualquer pessoa sensata, acham que não…

Lastimavelmente, nos dias de hoje, alguns grupos fundamentalistas, dentro do Protestantismo, parte do Novo Evangelicalismo, estão voltando a uma visão medieval e católica do casamento como algo sagrado, como uma aliança sacramental indissolúvel que envolve não só um e outro, mas Deus como terceiro vértice de um triângulo… “Casados para Sempre”, é o bordão. Se um deixa de amar, quer se separar, pede o divórcio, este é negado pelo outro; se o que deixou de amar vai embora, pede o divórcio na Justiça, o outro luta contra; se o que saiu de casa passa a viver maritalmente com outra pessoa, os evangélicos fundamentalistas continuam a dizer que a única solução moral para a situação é se separar do segundo cônjuge e voltar para o primeiro, porque é o primeiro casamento que vale diante de Deus, o segundo sendo inválido porque o primeiro era indissolúvel aos olhos do terceiro vértice do triângulo…

Isso é sensato e civilizado? Há pessoas que, num segundo casamento, estão vivendo felizes, às vezes até com filhos, e são pressionados, para poder continuar na igreja dos evangélicos fundamentalistas, a abandonar o segundo cônjuge (considerado apenas um amante adulterino) e voltar para o primeiro…

Isso é sensato e civilizado? Os protestantes históricos acham que não. A maior parte dos brasileiros, exceto os evangélicos fundamentalistas (e alguns católicos mais ortodoxos), acha que não.

Os evangélicos fundamentalistas citam Paulo em sua primeira carta aos Coríntios. Paulo diz, em parte, mais ou menos o que eles estão dizendo hoje. Mas Paulo diz mais. Ele acredita, em primeiro lugar, que Jesus vai voltar logo, ainda durante a vida dele, e o mundo vai acabar. Ele diz que o tempo é curto, é preciso trabalhar, e o ideal é ficar solteiro como ele, para não precisar desperdiçar tempo com um cônjuge. Ele diz também que, se a pessoa não aguentar a ficar solteiro E a se manter casta em sua solteiridade, é melhor que se case — mas que se case com alguém cristão, e sabendo que não vai poder se separar. Há mais algumas nuances, mas no fundo é isso.

Será que a gente vê por aí muitos evangélicos fundamentalistas praticando celibato para trabalhar pela causa cristã? No way. Todos eles se casam. Deixam de se seguir a recomendação paulina, portanto.

Nos versículos Paulo joga muito com uma dialética que afirma, de vez em quando, que isso é ele falando, não o Senhor, mas que, em outras situações, é a determinação do Senhor… Mas em quantos lugares da Bíblia, quiçá do Novo Testamento, há determinações (sem a ressalva de que, no caso, é o apóstolo falando, não o Senhor), que hoje nenhum evangélico fundamentalista cumpre. A determinação de que a mulher use cabelo longo, que fique calada na igreja, que obedeça a seu marido… Quem leva isso a sério hoje em dia entre os evangélicos fundamentalistas, que estão cheios de pastoras, bispas e apóstolas falando na igreja e fora dela, na televisão, emperuadas, de cabelo curto, sem véu, fazendo de conta que a determinação bíblica para obedecer o marido não existe?

Se o Protestantismo tivesse uma autoridade central, um “papa”, que fizesse cumprir as doutrinas reformadas históricas, esses evangélicos fundamentalistas estariam todos excomungados há muito tempo. Não poderiam mais se chamar protestantes…

3. Para Concluir…

Para concluir esta seção: o casamento, para as Igrejas Protestantes históricas, é um contrato civil — não é um sacramento, isto é, não é algo sagrado. Deus pode abençoar, se os cônjuges o desejarem e ele assim houver por bem, mas a união se dá porque duas pessoas assim o desejam: não é Deus que une.

Admitir que todo mundo que está casado civilmente, ou, então, que pede a bênção de Deus para o seu casamento, está unido por Deus, levaria a conclusões totalmente totalmente inaceitáveis, entre elas a de que Deus de vez em quando comete umas barbeiragens que nós não temos outro recurso senão consertar através do divórcio. O casamento, ainda que na Igreja, de um casal cujo marido bate na mulher, violenta as filhas, mantém relacionamentos extraconjugais regulares, representaria sempre, e sem exceção, uma união estabelecida por Deus que a gente não pode dissolver sem descumprir a lei divina? E se a mulher, uma vez dissolvido, acha um companheiro bom, que a ajuda a cuidar dos filhos, estaria ela para sempre proibida de se casar com ele?

Isso seria sensato? Isso seria civilizado?

Repito: para os Protestantes históricos, o casamento é apenas uma união civil estável para a qual se pede a bênção de Deus.

Uma última palavra. Muito depende hoje, quando se discute o chamado “casamento homossexual”, do termo “casamento”. Tenho uma sugestão simples (até simplória).

Da mesma forma que o que um dia era chamado desquite passou a ser chamado de separação judicial, deveríamos chamar o que hoje é chamado de casamento civil de união civil estável (como, na prática, e mesmo em algumas leis, já é). O termo casamento fica reservado para o plano religioso, não secular.

Com essa medida, nada impede que se estenda aos homossexuais o direito de se unirem em uniões civis estáveis.

Se o desejarem, as várias igrejas podem regulamentar o casamento, como quiserem. As protestantes históricas vão provavelmente dizer que casamento é apenas uma cerimônia em que se pede a bênção divina para uma união civil estável já realizada e reconhecida aos olhos da lei. Outras, como a católica e as evangélicas fundamentalistas, podem dizer que o casamento é a colocação de um selo de validade permanente (ou até eterna) sobre a união civil estável, que, uma vez ganhando esse selo, se torna mais do que estável: se torna indissolúvel e, quiçá, eterna. E a igreja que quiser pedir a bênção de Deus sobre a união estável homossexual, transformando-a em casamento religioso, que o faça.

Que tal minha sugestão?

Em São Paulo, 27 de Fevereiro de 2013, levemente revisado em Salto, 6 de Abril de 2017

Uma resposta

  1. A crença na indissolubilidade do casamento não é constitutiva do fundamentalismo evangélico. Outras crenças o constituem, como, por exemplo, a crença na inerrância da Bíblia, a crença em milagres, a crença no nascimento virginal e na ressurreição física e ascensão aos céus de Jesus Cristo, etc. A crença na indissolubilidade do casamento em geral acompanha essas outras em tempos recentes, mesmo sem ser considerada constitutiva do fundamentalismo evangélico.

    Nem mesmo as igrejas protestantes históricas negam a quem o queira o direito de viver em celibato.

    Eduardo Chaves

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  2. Pingback: Top Posts of this Blog for all time ending 2014-04-14 with number of views « * * * In Defense of Freedom * * * Liberal Space

  3. É muito triste ver protestantes querendo altearar o que Jesus disse na bíblia, o que Deus uniu o homem não separe. O casamento é simbolo do casamento de Jesus e da Igreja. Deus amou a Igreja até o fim até a morte de cruz. Porranto no exemplo de Jesus temos que amar nossas esposas até o fim até que a morte nos separe. A felicidade está em cumprir a missão. Temos que nos sibmeter a Deus, não ter a audácia de querer submeter a Deus a nossa luxúria e pecados.

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  4. Pingback: O Cristianismo Tem uma Visão Única do Casamento? A Propósito das Ideias e da Vida de C S Lewis – C S Lewis Space

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