Coisas Importantes, a Propósito da Igreja da Boate

Hoje cedo, ao ver um link no Facebook sobre “Igreja funciona dentro de boate na rua Augusta” postado por meu professor, regente, pastor, amigo e irmão João Wilson Faustini, curti e compartilhei.

Eis o link: http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/961117-igreja-funciona-dentro-de-boate-na-rua-augusta-veja-video.shtml.

Fui além. Coloquei vários comentários. Disse:

“Curioso… Protestantismo é assim mesmo, aberto, open-ended… Isso nunca aconteceria no Catolicismo, mesmo com o Papa Francisco.”

“O protestantismo não lança âncora apenas em catedrais…” (porque eu, afinal de contas, frequento uma igreja protestante – presbiteriana e independente – que congrega em uma catedral.

“Gostei do slogan. Transcrevo a reportagem: “A Capital permite a ingestão de bebidas alcoólicas, desde que com moderação. Sexo, melhor dentro do casamento. ‘O projeto ideal é a castidade, mas, se não é essa a sua realidade, vamos seguir o caminho da reparação’, aponta o pastor. Gays são bem-vindos. ‘Na Augusta, é natural que eles frequentem. Nosso slogan é: Proibido Pessoas Perfeitas”.”

“Ou seja… ‘Perfeitos, fiquem em casa: aqui não é o seu lugar’. Em outras palavras, ‘Fariseus [como na parábola do Fariseu e do Publicano], fiquem em casa ou vão arrotar sua santidade e perfeição em outro terreiro… Aqui só aceitamos publicanos, que se reconhecem pecadores e imperfeitos’. Acho genial isso. . .”

“Recomendo o livro Salvos da Perfeição, do pastor Elienai Cabral Júnior, que tem como subtítulo: ‘Mais Humanos e Mais Pertos de Deus’ (vide http://ultimato.com.br/sites/salvos_perfeicao/). Um chamado para o livro diz: ‘O Deus bíblico insiste em se encontrar conosco não em outra vida, mas na vida’ “.

Gosto da ambiguídade no sentido do termo “vida”, no finzinho da última frase do último parágrafo. Faz lembrar a expressão “mulheres da vida”. Jesus foi acusado de se associar com pecadores, publicanos, samaritanos, e até prostitutas, mulheres da vida. “O Deus bíblico insiste em se encontrar conosco não em ‘outra vida’, mas na vida”. Ao lerem a citação de C S Lewis, ao final, lembrem-se disso.

Sou, politicamente, um liberal à moda antiga que está virando um anarquista de extração libertária. Ao curtir a Igreja da Boate me percebi também um anarquista libertário no campo teológico. Opto por considerar que, no campo teológico, sou apenas protestante. Protestante ao estilo radical. Protestante anti-fundamentalista. Protestante contra os fundamentalismos. Todos eles.

Conversando com a Paloma, minha mulher, enquanto tomávamos um chocolate, hoje cedo, indaguei, mais na forma de uma pergunta retórica, de onde viria esse meu anarquismo radical. Ela disse: “Seu pai foi assim. Era membro da Congregação Mariana, largou e foi ser pastor protestante”.

Essa observação me fez refletir. No meu melhor julgamento, meu pai largou um fundamentalismo para abraçar outro. Foi protestante fundamentalista a vida inteira. A transição de um para o outro foi imediata. Em certo sentido, apenas trocou de sinal.

No meu caso, era fundamentalista, quando adolescente, quando decidi me tornar pastor (em 1960), quando fui para o Instituto José Manuel da Conceição (em 1961), quando fui para o seminário em Campinas (em 1964). Aos poucos fui mudando. E a mudança foi lenta e gradual. Quando resolvi formalmente abandonar a igreja presbiteriana, por volta de 1972, quando terminei meu doutorado em Pittsburgh, PA, e conversei com meu orientador, o popperiano William Warren Bartley III, dizendo que estava pensando em me tornar membro da American Humanist Association, ele me advertiu sabiamente: “Não troque simplesmente uma igreja por outra…”.

Quando li Ayn Rand (Atlas Shrugged, primeiro), no final de 1972, teria ido e me juntado ao que alguns chamam de “Culto de Ayn Rand”, não fosse a advertência de Bill Bartley. “Não troque simplesmente uma igreja por outra…” Fiquei admirador dela, mas sempre crítico. Sempre mais do lado de David Kelley do que de Leonard Peikoff (quem ler, entenda… como diz meu amigo Enézio Eugênio de Almeida Filho – que também sempre diz que devemos sempre olhar as coisas “cum grano salis“. Talvez ele não diga “sempre”: diz de vez em quando. O “sempre” é por minha conta).

Quase disse, atrás, Atlas Shrugged não é a Bíblia… Mas a Bíblia, para mim, não é – como dizer? – a Bíblia! (Novamente, quem ler, entenda…).

Em suma, acho que, ao abandonar o meu fundamentalismo inicial, consegui, com ajudas inestimáveis, não ir para outro fundamentalismo, trocar um pelo outro. Tornei-me um combatente contra os fundamentalismos. Todos. Protestante, católico, judeu, muçulmano, marxista, petista… Por isso nunca me afiliei a um partido político.

Alguém pode me retorquir: mas você voltou para a igreja, é hoje membro da Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo.

Isso é verdade. E requer uma explicação, ainda que rápida. A ocasião é oportuna.

Gosto muito de um hino que me lembro de ter ouvido em uma Cruzada do Billy Graham no estádio dos Pitt Panthers, em Pittsburgh, PA, em 1968. Era o hino do apelo. “Just as I am” (“Eu venho como estou”).

Estou na Primeira Igreja (Catedral Evangélica) hoje porque ela me aceitou “Just as I am“. Cheio de falhas, no plano moral, cheio de dúvidas, no intelectual. Mas querendo voltar para uma comunidade, que não é dos santos nem dos perfeitos, mas daqueles que, reconhecendo sua condição de pecadores e imperfeitos, querem melhorar e reconhecem que precisam de ajuda – sabendo que santo e perfeito ninguém conseguirá se tornar, nesta dispensação, e que aqueles que se acham perto da santidade e da perfeição, ou, talvez, mais perto dos que os outros, se enganam a si próprios (dificilmente enganam os outros). Tal qual o Fariseu da parábola. Estou na Primeira Igreja porque ela me reconheceu Publicano, e me aceitou como tal.

Por isso curti a reportagem sobre a Igreja na Boate. Por isso estou aqui combatendo meu bom combate contra os fundamentalismos, contra os farisaísmos, crente de que não preciso ser santo nem perfeito, para viver em comunhão com o meu próximo (haja vista o Samaritano da parábola), e, assim, com Deus. Ele, disse Martin Buber, não está aqui nem ali: está entre um e outro, “entre mim e ti”. Daí o seu livro I and Thou.

Minha saída da igreja começou em 1966, quando estava no terceiro ano do Seminário Presbiteriano de Campinas. Envolvi-me, então, com a maioria de meus colegas, naquela que talvez tenha sido a maior briga de minha vida (houve outra em 1981 que concorre, mas perde). No primeiro semestre de 1966  escrevi, no jornal de que era redator, O CAOS em Revista (chamado de “famigerado” por um professor meu – o “rabi” mencionado no artigo – que, coincidentemente, faleceu a semana passada, decretando o fim de uma era), o seguinte artigo-sermão, chamado “Parafraseando”:

—– Início de citação de artigo anterior meu —–

“Propôs Jesus também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos, e desprezavam os outros” (Lucas 18:9).

Certa vez, em uma Faculdade Teológica, passaram a existir dois grupos: um que se dizia “conservador” e outro que era taxado de “modernista”. Certo dia os conservadores oraram assim: “Ó Deus, graças te damos porque não somos como os demais colegas: defensores da libertinagem e da imoralidade, fumantes e beberrões, defensores do amor livre, mantenedores de simpatias pronunciadamente esquerdistas, irreverentes, cínicos, contadores de piadas e desrespeitadores da dignidade feminina. Louvamos-te, ó Deus, porque assim não o somos. Nós fazemos reunião de oração diariamente, ocasião em que um rabi nos instrui a respeito das idéias ortodoxas da tua palavra e a respeito do calvinismo clássico que tu nos legaste; nós, por ocasião das refeições, ficamos quietos: chegamos a bater palmas e a sorrir para mostrar nosso amor cristão, mesmo quando são proferidos discursos que nos criticam; aceitamos a Bíblia toda como palavra inspirada de Deus; estamos sempre aos pés dos líderes da Igreja para aprender deles como agir honesta, franca e desinteressadamente; saímos três ou mais vezes por semana para pregar a tua palavra, embora nosso estudo seja com isso prejudicado: contudo, teu sábio servo do passado já dizia que “o muito estudar é enfado da carne” — aliás o teu Espírito colocará nos nossos lábios a mensagem, mesmo que nada tenhamos estudado! Ó Deus, atenta para isto: somos fiéis servos e testemunhas da tua palavra aqui neste Seminário; para conseguirmos sê-lo chegamos até a desrespeitar as leis da Congregação, ó Deus, pois mandamos, por trâmites ilegais, um formidável manifesto aos crentes da tua igreja, condenando tudo o que de errado se passa aqui dentro, fora do nosso grupo, evidentemente; por amor à tua causa, ó Deus, chegamos ao ápice da ousadia e da coragem ao afirmar que as próprias autoridades que dirigem este Seminário não parecem estar em condições de agir com firmeza. Mas nós o estamos, ó Deus, e te agradecemos por isto.”

O resto todo o mundo sabe. Aquela criatura de tão excelentes qualidades, o fariseu da parábola de Jesus, não foi o que desceu para casa justificado, mas sim aqueles que era roubador, injusto e adúltero, aquele que era um pária moral na sociedade de sua época. Estranho, não? Mas real. No entanto seria bom perguntar por que o fariseu, que era o pietista, o legalista, o moralista, o ortodoxo, o fundamentalista da época de Jesus, não foi justificado. A razão parece óbvia, embora muitos não a queiram ver: o fariseu não foi justificado porque colocou como critério de sua auto-avaliação diante de Deus o seu próximo, o publicano. E, nestas circunstâncias, aferindo-se por um critério imperfeito, o fariseu jactou-se diante de Deus, orgulhou-se, e creu que poderia trazer nas mãos e apresentar diante de Deus algo de bom: o seu comportamento, a sua conduta, o seu modo de ser, agir e pensar, o seu zelo pelo cumprimento da lei divina. E não foi justificado embora praticasse atos muito bons em sua vida, se os considerarmos isolados de sua motivação e de seu contexto. Porque todas as vezes que nos avaliamos por critérios e padrões imperfeitos nos tornamos orgulhosos.

Às vezes este orgulho é disfarçado sob a capa de uma pseudo-humildade, sob palavras tais como estas: “Somos os primeiros a reconhecer nossa imperfeição, nosso pecado, nossas falhas, nossa pobreza espiritual, nossas deficiências em todos os sentidos, contudo…” (grifo meu). Não são, no entanto, nossas palavras a coisa que tem importância primária. É nossa atitude, que lhes subjaz, que é o primariamente importante. Mesmo que pronunciemos, em lágrimas e com o coração sangrando, palavras que falem a respeito de nossa humildade, se nossa atitude for a de um juiz apontando erros nos outros, não estaremos sendo humildes, mas orgulhosos.

Será bom perguntar porque sentimos um prazer imenso em apontar as falhas, erros e os defeitos dos outros, principalmente quando estes são pessoas mais preeminentes que nós, em outros setores, ou talvez no mesmo a que nos dedicamos. Porque no instante que fazemos isto podemos nos jactar e nos consolar intimamente, dizendo: “embora fulano seja melhor estudante que eu, embora se destaque mais em certos círculos, na hora em que souberam que ele faz isto e aquilo eu subirei na cotação do povo, mediante o rebaixamento do outro!” A raiz de todo mexerico, fuxico e de toda delação está nesse nosso desejo de nos compararmos com os outros e de ver neles falhas, e de torná-las ainda mais negras, através de generalizações precipitadas e de mentiras mesmo, porque assim teremos maior realce. Isto até me faz lembrar da história daquela ordem de monges, que, nada mais tendo de que se orgulhar, orgulhavam-se de sua humildade!

O erro do fariseu não foi fazer todas aquelas coisas. Foi comparar-se com o que não fazia, e julgar-se superior, julgar-se na condição de juiz do seu próximo. Todas as vezes que nos aproximamos de Deus auto-avaliando-nos por critérios imperfeitos nos tornamos orgulhosos, e nos sentimos no direito e em condições de apresentar a Deus alguma realização nossa, algo que nos conceda mérito diante dele. E todas as vezes que assim fazemos estamos sendo fariseus: mesmo que aquilo que estejamos apresentando a Deus seja a nossa fé, seja a nossa “ortodoxia”, seja a nossa conduta impecável!

O mérito do publicano estava em que, quando quis avaliar-se, não tomou para si critérios humanos, e, portanto, imperfeitos, mas colocou o próprio Deus como padrão de sua auto-avaliação. E porque assim agiu sentiu-se imediatamente arrasado. Não viu mérito algum em sua pessoa. Diante de Deus ele não era nada. Então, não podia orgulhar-se. Simplesmente não tinha de quê. Só pode dizer: “Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador”. E foi justificado.

Como esta parábola deve ter chocado os ouvintes de Jesus! Como aquela crítica tremenda aos “santos” e “justos” fariseus, aos “ortodoxos”, aos “perfeitos”, e a sentença de que o publicano havia sido justificado, deve ter arrasado os ouvintes de Jesus! Justamente o publicano, que não era apenas “modernista e liberal”, mas considerado IMORAL e HEREJE! No entanto, o impacto que a parábola causou nos ouvintes de Jesus foi esquecido e hoje a parábola não faz parte da Bíblia de muita gente tida por aí como exemplo de santidade e perfeição.

—– Fim de citação de artigo anterior meu —–

Isto escrevi em 1966. Em dois anos e pouco esse artigo fará 50 anos. Acho que durante esse tempo todo tenho sido fiel ao que disse então.

Estou na Primeira Igreja hoje porque ela me aceitou e acolheu sem exigir que eu deixasse de ser fiel ao que expus-preguei nesse artigo-sermão. Porque ela, a seu modo, concorda com o slogan da Igreja da Boate, e afirma (num Português um pouco mais castiço e de forma não tão radical): “Santos e perfeitos não precisam entrar”. Estou certo de que a Primeira Igreja não proibiria a entrada de pretensos santos e perfeitos. Deixaria que entrassem, na esperança de que sua mensagem de humildade, tolerância, e aceitação os alcançasse.

É isso.

Termino citando C S Lewis, em Cristianismo Puro e Simples (Mere Christianity), numa passagem que o Rev. Valdinei Aparecido Ferreira, pastor titular da minha igreja, citou ao final de um sermão seu sobre a homossexualidade:

“Os pecados da carne são maus, mas, dos pecados, são os menos graves. Todos os prazeres mais terríveis são de natureza puramente espiritual: o prazer de provar que o próximo está errado, de tiranizar, de tratar os outros com desdém e superioridade, de estragar o prazer, de difamar. São os prazeres do poder e do ódio. Isso porque existem duas coisas dentro de mim que competem com o ser humano em que devo tentar me tornar. São elas o ser animal e o ser diabólico. Mas o diabólico é o pior dos dois. É por isso que um moralista frio e pretensamente virtuoso que vai regularmente à igreja pode estar bem mais perto do inferno que uma prostituta”.

É por essa e por outras que eu estou na Primeira Igreja. E que muitos que se acham “homens segundo o coração de Deus” a criticam.

[Este artigo é em gratidão a Deus pelo meu quinto aniversário de vida conjunta com a Paloma. Em gratidão a ela, por ter sido o instrumento que acabou me levando de volta à Primeira Igreja, que passou a ser também a igreja dela. Em gratidão à Mary Grace Andrioli, amiga e irmã, por ter nos apoiado sempre, mesmo quando era difícil. E em gratidão ao Elizeu, amigo e pastor, que nos acolheu tão bem na sua igreja, hoje também nossa. E em gratidão aos pastores, presbíteros, diáconos, irmãos e amigos da Primeira Igreja por criarem, para nós, um ambiente tão acolhedor e agradável. Se a gente ainda tinha alguma dúvida, o fim de semana de “Ressurgência” em Serra Negra removeu-a totalmente.]

Em São Paulo, 6 de Setembro de 2013.

 

Uma resposta

  1. Eduardo, agradeço a vc por um artigo tão honesto e claro, e sua posição equilibrada e cristã. Congratulo-me com você por sua franqueza e coragem. Grande abraço.

    Curtir

    • João… Obrigado. Por tudo. Acima de tudo, por ser quem você é, e por ter essa família maravilhosa que vc tem, mencionando, em especial, a Martha, colega do meu pai no JMC, a Loyde, o Sérgio, o Marcos…, a quem considero e amo como meus irmãos…

      Curtir

  2. Pingback: Top Posts of this Blog for all time ending 2014-04-14 with number of views « * * * In Defense of Freedom * * * Liberal Space

Deixe um comentário