A Verdade: Contra o Ceticismo, o Relativismo, e o Dogmatismo – 2

Wanderley Navarro (http://wynavarro.spaces.live.com/) mais uma vez me deixou um comentário – desafio em que me pede que dê continuidade ao artigo que escrevi recentemente sobre a verdade. O comentário – desafio requer uma resposta.

Disse ele: 

“A verdade (realidade), no plano ôntico, é portanto, um processo antes que um produto, um dado que cabe nas palavras?  Em que você não concorda com Popper? Gostaria muito que este artigo continuasse. Você, eu, Pilatos e mais alguns continuamos, aqui, de plantão, nos perguntando o que é a verdade.”

Fiz uma distinção, no artigo original, entre o “plano ôntico” e o “plano epistêmico” (que havia chamado de “plano epistemológico”, mas agora corrijo para “plano epistêmico”, por isonomia – não havia falado em “plano ontológico”…).

O “plano ôntico” se refere à realidade, às coisas em si, às coisas como elas são, independentemente de nosso conhecimento delas.

O “plano epistêmico” se refere ao nosso conhecimento da realidade, às coisas como conhecidas por nós.

Essa distinção é essencial para entender Popper.  Vou procurar mostrar por quê.

A filosofia pré-moderna – o período anterior, digamos, a Descartes e que abrange a filosofia antiga e a medieval –compartilhava, em linhas gerais, uma visão do mundo, no plano ôntico e no plano epistêmico (apesar das evidentes e consideráveis diferenças não só entre a filosofia antiga e a medieval, como também entre as diversas correntes que constituíram uma e outra).

No plano ôntico, eram estas as principais características da visão pré-moderna:

1) Existe aquilo que na filosofia moderna se convencionou chamar de “mundo exterior”, ou seja, uma realidade externa à nossa mente. A existência desse mundo é tida como evidente e, portanto, não é problemática para a filosofia pré-moderna. Ela, assim, não gasta tempo e energia tentando provar que existe algo que, para ela, é pacífico: uma realidade fora de nossa mente. Para ela, parte dessa realidade existe independentemente de nós – o chamado “mundo natural” – e parte dessa realidade é criada pelo ser humano – o chamado “mundo social” ou “mundo cultural”. (Evidentemente, a filosofia pré-moderna também pressupunha, e não considerava problemática, a existência de umä realidade dentro de nossa mente, o “mundo interior” de cada um).

2) No “mundo exterior natural”, ou seja, na realidade externa cuja existência independe do ser humano, há, simplificando, objetos e fatos. Ainda simplificando, objetos são coisas e fatos são estados de coisas. Objetos e fatos existem na realidade externa natural: eles não são, por assim dizer, constituídos pelo ser humano, que pode apenas os descobrir. É verdade que o ser humano pode agir sobre esses objetos e fatos, alterando-os ou até mesmo, com eles, criando novos objetos e fatos. Mas os objetos e fatos alterados e/ou criados pelo ser humano passam a partencer ao “mundo exterior social”, ao mundo da cultura. (Por exemplo: no mundo exterior natural pode haver uma pedra com uma extremidade cortante, um galho de árvore roliço e algumas fibras maleáveis, que existem independentemente da ação do ser humano. Mas o ser humano, um dia, amarrou a pedra no galho de árvore usando as fibras, e criou um machado, com funções específicas, que passou a ser um objeto do mundo social ou cultural).

No plano epistêmico, eram estas as principais características da visão pré-moderna:

1) O ser humano é capaz de conhecer o mundo exterior – tanto o natural (que sempre existiu, na visão clássica, ou que é criação de Deus, na visão medieval) como o social (que é sua própria criação). (Na verdade, o ser humano é também capaz de conhecer o seu próprio mundo interior – cada um, em princípio, conhece o seu próprio mundo interior, mas, se outras pessoas nô-los revelarem, podemos até mesmo conhecer os mundos interiores dos outros).

2) Dizer que o ser humano é capaz de conhecer o mundo equivale a dizer que o ser humano é capaz de, usando símbolos lingüísticos de sua própria criação, e, portanto, pertencentes ao mundo social ou cultural, fazer enunciados verdadeiros sobre a realidade.

3) Um enunciado (ou juízo) é verdadeiro quando ele corretamente descreve a realidade, ou seja, quando ele “corresponde” à realidade. Assim, o enunciado “A neve é branca” é verdadeiro se, e somente se, a neve for branca; ou, o enunciado “Deus existe” é verdadeiro se, e somente se, Deus existir (isto é, se houver na realidade uma entidade que corresponde a um conceito de Deus devidamente explicitado). A verdade, portanto, é uma relação de correspondência ou adequação entre os enunciados (ou os juízos) de um ser humano e os fatos e estados de coisas que são objeto desses enunciados (ou juízos). A realidade, em si, não é nem verdadeira nem falsa: ela simplesmente é. São nossos enunciados (ou juízos) acerca da realidade que podem ser verdadeiros ou falsos.

4) Para a filosofia pré-moderna, temos evidência da verdade ou não de nossos juízos acerca da realidade externa através principalmente dos nossos sentidos, ou seja, através da percepção sensorial. E aquilo que nos é dado na percepção é nada mais nada menos do que a realidade, propriamente dita, os objetos e os fatos que compõem o mundo externo a nós. Embora seja notório que às vezes nos enganemos em nossa percepção, a essa constatação não se dá importância muito grande na filosofia pré-moderna, porque somos capazes de descobrir nossos enganos.

5) Para a filosofia pré-moderna, por fim, o conhecimento é o conjunto de juízos verdadeiros e evidenciados que compõem a realidade. Para que haja conhecimento é necessário que haja um sujeito, que conhece, um objeto, que é conhecido, e um enunciado verdadeiro e evidenciado que o primeiro faz sobre o segundo.

A filosofia moderna veio a questionar toda essa visão de mundo. Descartes é adequadamente descrito como o pai da filosofia moderna porque ele levantou dúvidas acerca de nossa capacidade de conhecer o mundo exterior a nós. Ele se propôs duvidar, sistematicamente, de que conhecesse qualquer coisa. Como duvidar envolve pensar, porém, ele concluiu que não poderia duvidar de que pensava – e, como imaginou que para que pensasse ele tinha de existir, ele concluiu que, ele, Descartes, existia. Cogito, ergo sum. Mas o Descartes que ele assim imaginou provar que existia era apenas a mente de Descartes, o mundo interior de Descartes. O mundo exterior que ele parecia perceber – e incluía até mesmo o seu corpo – continuavam a ter uma existência ou realidade questionável, e, portanto, não poderia ser, sem mais argumentos, objeto do conhecimento. É esse o problema do conhecimento do mundo exterior que preocupou virtualmente todos os filósofos posteriores a Descartes.

Partindo do pressuposto (que ele acreditava ter provado) de que ele só era capaz de conhecer o mundo interior de sua própria mente, Descartes criou a base do ceticismo moderno – e, na realidade, do solipsismo (a tese de que só tenho condições de conhecer o que eu próprio penso). O objeto de suas percepções (ele acreditava) não era algo no mundo exterior, mas, sim, sensações puramente mentais que, assim, tinham existência apenas dentro de sua mente. E lhe parecia impossível (sem recorrer a Deus) estabelecer uma ponte entre o que havia em sua mente e seja lá o que for que pudesse existir fora dela.

Com essa “virada”, a filosofia moderna acabou se tornando mentalista (não racionalista, como pretendem alguns): nela, a verdade passa a ser apenas coerência entre as sensações e idéias existentes dentro da mente – e o conhecimento algo puramente subjetivo, que carece de um “objeto” no mundo exterior.

É esse o contexto em que Popper filosofou. Em certo sentido, Popper é um filósofo pré-moderno: no essencial, ele nunca duvidou das teses pré-modernas, seja no plano ôntico, seja no plano epistêmico. Ele sempre acreditou que é evidente e pacífico que a realidade externa à nossa mente existe, que ela é cognoscível através dos sentidos e da reflexão, que a verdade, como correspondência entre o pensamento e a realidade extramental, em princípio existe e é alcançável… Em tudo isso Popper é mais pré-moderno do que moderno. Sua única concessão à modernidade foi sua admissão de que, mesmo que tenhamos alcançado a verdade, ou que (mais provável) tenhamos tropeçado nela, nunca poderemos ter a certeza de que a encontramos, e, por isso, precisamos continuar sempre a buscá-la…

Wanderley Navarro me pergunta no que eu discordo de Popper. Minha resposta é: em quase nada… Minha única discordância é pequena (e, talvez, se confrontado com ela Popper nem a consideraria uma discordância) e me foi sugerida por Hume (que é um dos filósofos favoritos de Popper). Na prática, no dia-a-dia, temos de agir como se tivéssemos várias certezas. Quando entramos no mundo da reflexão, porém, é sempre possível encontrar boas razões para duvidar de nossas certezas e, portanto, para questionar aquilo que, em outro contexto, nos parecia evidente e pacífico. É por isso que o dogmatismo é tão nocivo: ele fecha uma discussão que deveria ser aberta e permanente, ele encerra uma busca que deveria ser contínua e incessante.

Em São Paulo, 20 de outubro de 2008

3 responses

  1. Valeu o desafio. Sua exposição, ao mesmo tempo que profunda, é clara. O último parágrafo é perfeito! Mas o ponto final a respeito deste assunto está distante, se é que está. Honra ter sido adicionado. Prepare-se para mais perguntas-desafio.

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