A Igreja, o Estado, o Casamento e a Família

Desde os vinte anos (em 1963) fui um liberal clássico, estilo “laissez faire”. Tornei-me um liberal desse tipo lendo o livro On Liberty, de John Stuart Mill, no meu último ano do Ensino Médio. (Comecei a minha escolaridade quase aos nove anos, e, por isso, terminei a chamada Educação Básica já na maioridade). Essa minha defesa do Liberalismo Clássico foi confirmada e radicalizada quando, aos trinta anos (em 1973), encontrei Ayn Rand e li Atlas Shrugged, pela providencial mediação de Charles King, meu colega no Pomona College, segunda instituição de ensino superior em que trabalhei. Charles posteriormente se tornou presidente do Liberty Fund, instituição liberal na área da cultura e da educação criada por Pierre F. Goodrich ((da família de B. F. Goodrich, o magnata da empresa de pneus criada em 1870). Em Pomona, Charles era responsável pela área de Filosofia Política e eu estava atuando na área de Metafísica, Lógica e Filosofia da Religião. Quanto a mim, ao fazer setenta anos (em 2013), já aposentado há seis anos da UNICAMP, e depois de ter voltado para a igreja e para a teologia, e de ter escrito bastante em defesa do Liberalismo Clássico, fui forçado a reconhecer que, na filosofia política, eu havia avançado para um Libertarianismo Anarquista, à la Murray N. Rothbart. Considero esse um avanço significativo, depois de defender o Liberalismo Clássico ao longo de cinquenta anos, dos meus vinte aos meus setenta anos. Por mais que alguns possam imaginar que se trate de evidência de senilidade, não acredito que se trate disso…

Mas isso significa que hoje estou convicto da possibilidade de uma vida social sem estado, baseada em uma mistura daquilo que David Smith chamava de interesse próprio, ou auto interesse racional (rational self interest), aquilo que Ayn Rand chama de egoísmo racional, bom senso (que inclui o sentido de uma justiça natural (aquela que nos leva a dizer, em várias situações, “isto não é justo”, that isn’t fair), e a percepção de que vale mais a pena, no longo prazo, ser bom, tolerante e pacífico, e conviver bem, e em ordem, uns com os outros, criando instituições privadas, do que as alternativas que envolvem viver em perpétuo conflito e desordem. Pode parecer meio utópico, mas essa postura mas não envolve a criação prévia de um novo homem, altruísta, defensor da igualdade substantiva, batalhador pela justiça social, inconformado com o estado do mundo; uma nova sociedade, sem classes, sem competição, em que a igualdade substantiva sempre tem a condição de trunfo (trump), sobrepujando-se à liberdade; um novo mundo que parece ser o paraíso, que foi perdido no Éden mas é reganho da sociedade sem classes e, por isso, sem conflito, com igualdade, e, por conseguinte, felicidade geral. Aquilo que, hoje, é uma Utopia.

 Na minha visão, basta apenas apelar ao nosso auto interesse racional, que inclui o nosso desejo de viver bem, em paz e em ordem, e o nosso senso natural de justiça, de que a cada cabe apenas aquilo que ele fez por merecer e que lhe é devido. E isso pode ser alcançado sem Estado (donde a referência ao anarquismo), em um clima de libertaridade (o caráter libertário, a mais plena liberdade possível), em que existem desigualdades, mas elas são justas, e, por isso, não intoleráveis.

E tudo isso pode ser feito também em um ambiente de desescolarização — certamente sem escolas públicas ou estatais e até mesmo sem escolas quaisquer,  überhaupt, ou tout court. Digo isso para conectar esta discussão com outro grande interesse meu: a Educação (não a Escola, na qual hoje não tenho nenhum interesse).

Tudo isso tem que ver, naturalmente, com o Estado, ou melhor com a desestatização da sociedade — mas o que tem que ver com a Igreja? O título deste trabalho, afinal de contas, é “Igreja e Estado”.

Antes de me referir ao que penso, é mister que diga que, embora seja defensor do Libertarianismo Anárquico, sou realista o suficiente para ter certeza de que, tão cedo, o Estado não vai embora de livre e espontânea vontade, por iniciativa própria, nem vai ser extinto, contra a sua vontade, pela vontade do povo. Logo, temos de lidar de forma racional e sensata com essa realidade, mesmo que não gostemos dela.

Isso posto, começo meu argumento.

Um postagem na forma de foto com texto que eu compartilhei no Facebook diz o seguinte:

Eis a foto:

Eu fiz o seguinte comentário ao postar essa foto:

Eis o que observei ao compartilhar essa imagem no Facebook:

“Compartilho, mas tenho reservas quanto a esta colocação, [reservas] que já expus em vários artigos, e resumirei aqui, se e quando recomendável. Compartilho, para que a colocação seja discutida, sem endossá-la.”

As reservas que tenho quanto a esta colocação já foram esclarecidas o suficiente nesta série de artigos que publiquei, no meu blog Liberal Space, entre 17 de abril de 2008 e 30 de junho de 2015 — um período de sete anos que terminou seis anos atrás, quase na data exata.

Pensei que o assunto estivesse esgotado — evidentemente, não está, como o mostra a postagem exibida atrás (a fotografia com letreiro).

  1. [17.04.2008] “A Interferência do Estado na Vida Privada: O Casamento”, em https://liberal.space/2008/04/17/a-interferencia-do-estado-na-vida-privada-o-casamento/
  2. [09.04.2013] “O Casamento entre Homossexuais”, em https://liberal.space/2013/04/09/o-casamento-entre-homossexuais/
  3. [19.05.2013] “Ainda o Casamento entre Homossexuais”, em https://liberal.space/2013/05/19/ainda-o-casamento-entre-homossexuais/
  4. [19.11.2014] “Casamento Homossexual, Poligamia / Poliandria, Casamento Poliafetivo, Casamento Incestuoso (Entre Pessoas Relacionadas por Parentesco)”, em https://liberal.space/2014/11/19/casamento-homossexual-poligamia-poliandria-casamento-poliafetivo-casamento-incestuoso-entre-pessoas-relacionadas-por-parentesco/
  5. [27.04.2015] “Contrato Civil de Convivência e Casamento (Religioso)”, em https://liberal.space/2015/04/27/contrato-civil-de-convivencia-e-casamento-religioso/
  6. [05.06.2015] “As Igrejas, o Casamento e a União Civil”, em https://liberal.space/2015/06/05/as-igrejas-o-casamento-e-a-uniao-civil/
  7. [30.06.2015] “Ainda o Casamento Gay (agora a propósito de decisão da Suprema Corte americana”, em https://liberal.space/2015/06/30/ainda-o-casamento-gay-agora-a-proposito-de-decisao-da-suprema-corte-americana/

Como esclareço no primeiro artigo o Estado não deveria meter o seu bedelho nos relacionamentos amorosos e sexuais dos indivíduos, para tentar regulá-los. Como, porém, esses relacionamentos, muitas vezes, geram, além de bebês, expectativas de direito sobre pensões, heranças, etc., o Estado, existindo, fatalmente irá tentar regular essas questões. Não devia, mas deve.

É forçoso reconhecer que, ao longo do tempo, o Estado, sob pressão dos indivíduos, vem retirando sua patinha de algumas dessas questões.

Antigamente, em muitos países, o mero engajamento em relações sexuais fora do casamento, aquilo que a Bíblia chama de fornicação, por parte de indivíduos livres e desimpedidos, solteiríssimos da silva, e de sexo diferente, era considerado crime. Hoje isso não mais se dá — exceto, aqui no Brasil, quando um dos parceiros é menor de quatorze anos (idade antes da qual o Estado presume — erroneamente, porque um adolescente de quatorze anos nos dias de hoje é plenamente capaz de dar consentimento — que ninguém é capaz de dar consentimento, presumindo-se coerção, o que torna o ato, não simplesmente um mero relacionamento sexual, mas um relacionamento sexual não consentido, ou seja, um estupro.

Antigamente, em muitos casos, o mero engajamento em relações sexuais por parte de indivíduos maiores de idade mas do mesmo sexo, era crime. Hoje isso não mais se dá, indivíduos do mesmo sexo podendo até “se casar”, como o povo diz.

Antigamente, em muitos países, o mero engajamento em relações sexuais por parte de indivíduos de sexo distinto, maiores de idade, mas casados um com o outro, o que a Bíblia chama de adultério, termo ainda usado hoje, era crime. Deixou de sê-lo há bom tempo.

E assim vai.

Para livrar-me do encargo de formular ainda uma vez, ab initio, o que penso sobre o assunto, resumirei o meu argumento a partir do artigo mais recente dos mencionados, artigo que escrevi há quase exatamente seis anos atrás, no dia. Nele discuto uma série de argumentos que basicamente implicam, em seu conjunto, a afirmação contida na postagem mencionada atrás (a fotografia com letreiro dizendo “Não foi o ESTADO que criou a FAMÍLIA. Logo, não tem AUTORIDADE para MUDAR o conceito de família.”).

a. A ideia de que alguém, Deus ou um outro ser, ou uma sociedade ou grupo social qualquer criou o casamento e a família nos moldes que o pessoal conservador, religioso ou não, imagina (um homem e uma mulher unidos em casamento para a vida toda, produzindo seus descendentes) é um mito. Nem mesmo na Bíblia há um relato da criação do casamento propriamente dito, como ele é entendido pelos conservadores. Segundo um dos relatos bíblicos, Deus criou primeiro o homem, e, depois, percebendo que ele estava meio entediado, sem o que fazer, criou a mulher. Outro relato sugere que eles foram criados juntos. Mas em nenhum dos relatos se afirma eles foram colocados lado a lado e indagados por Deus se era de sua livre e espontânea vontade que compareciam perante ele para se unir pela vida inteira a fim de manter relações sexuais e produzir descendentes, sendo fieis um ao outro até que a morte os separasse. Independentemente do que possa ter sido dito no momento da criação do homem e da mulher, supondo que foram criados, para não complicar demais o argumento, o relato bíblico mostra que os patriarcas e heróis da fé transavam livremente, com pessoas de sexo diferente ou do mesmo, tinham, no caso dos homens, várias mulheres, e independentemente disso, mantinham relacionamentos adulterinos e incestuosos, que, em alguns casos, geravam prole, etc. Longe de isso ser uma anomalia era o costume dos povos primitivos que aparecem nas páginas da Bíblia, para nos ater à religião cristã. O que encontramos na Bíblia — e na história — é qualquer coisa mas não o casamento convencional defendido pelos conservadores, cristãos ou não.

b. Mesmo que a história, bíblica ou não bíblica, relatasse que os primeiros casais humanos aderiam fielmente ao padrão conservador do casamento, é uma falácia genética, que ignora o fato do desenvolvimento social (ainda que não biológico) humano, imaginar que esse fato, por si só, endossa e valida esse padrão per secula seculorum. Mesmo que o relacionamento entre os sexos tivesse sido, originalmente, heterossexual, para a vida toda, com exigência de fidelidade completa até que um dos dois morresse, isso não prova que esse tipo de relacionamento deva ser mantido para sempre, independentemente das mudanças sociais e biológicas. Fornicação e adultério, bem como atração sexual entre pessoas do mesmo sexo, com o consequente relacionamento sexual entre elas, sempre houve no mundo — e nem a Bíblia não nega isso. Poligamia em paralelo (ainda que apenas para os indivíduos do sexo masculino) existiu em todos os tempos, e a poligamia em série, por morte ou divórcio, sempre existiu, ainda que algumas sociedades primitivas tenham exigido que a mulher fosse enterrada junto com seu marido, se ele morresse antes dela… Por conseguinte, essa história de “conceito original de família” é balela.

c. Por muito tempo, a regulação do relacionamento sexual entre as pessoas era feita pelas instituições religiosas, privadas, não pelo Estado. Foi apenas recentemente que o Estado começou a regular esse relacionamento. Mesmo assim, nunca (que eu saiba) impediu que instituições religiosas implementassem a sua própria regulação, dentro do seu âmbito.  

d. A partir, pelo menos, da Revolução Americana, que resultou na independência das colônias britânicas na América, evento que se celebra no dia de hoje, e que começou a acontecer nesse dia em 1776, firmou-se, em nações fundadas nos direitos individuais e na liberdade, o princípio de que deve haver separação entre a religião (e as igrejas) e o Estado, sem desobrigar as pessoas religiosas e os membros das Igrejas de cumprir seus deveres para com o Estado em áreas ou em relação a questões que não são caracteristicamente religiosas ou morais (envolvendo a consciência).

e. A partir desse momento, consagrou-se o princípio de que o Estado pode até regular algumas questões privadas, como as envolvendo o casamento e a família, naquilo que elas possuem ou envolvem de obrigações para com terceiros em geral. Os Estados Unidos da América, enquanto entidade política, não são um país religioso, muito menos cristão. São um país em que a religião e as igrejas são claramente separadas do Estado, que, assim, só pode ser entendido como laico ou não religioso. Mas a Constituição Americana não exige que os governantes da nação sejam ateus ou agnósticos, que o lema da nação seja “In God We Trust” (Em Deus Confiamos), que a Constituição e o dinheiro (as notas e moedas de dólar) façam referência a Deus.

f. Assim sendo, mesmo países criados sob inspiração religiosa, como os Estados Unidos, ou mesmo, até certo ponto, o Brasil, a Igreja (ou a religião) é uma coisa e o Estado é outra — embora o Brasil tenha tido uma religião oficial pelo menos até o início do período republicano.

g. O que acabou acontecendo nesses países, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, foi que o Estado veio a reconhecer e a afirmar a validade, em todo o território nacional, de contratos de união civil (normalmente chamados de “casamentos civis” e, mais recentemente, “contratos de união estável”) entre duas pessoas não casadas de qualquer sexo (ou gênero, se preferem) — e, acrescente-se, de qualquer raça, cor, nacionalidade, religião, preferência política, etc. Num primeiro momento, era apenas o primeiro desses quesitos que estava em jogo — sexo ou gênero. Mas já houve época em que casamento civil interracial era banido e deixou de sê-lo. Provavelmente, num futuro não muito distante, o Estado vai liberar casamento entre mais de duas pessoas (a chamada união poliafetiva ou poliamorosa, antigamente chamada de poligamia), ou entre pessoas que são parentes próximos (o chamado, até aqui, de incesto).

h. Não há nada antirreligioso nessas decisões, como não havia na decisão concernente ao divórcio — embora os católicos e os evangélicos conservadores também tenham protestado. O estado está regulando contratos de convivência civil (CCC) entre duas (e oportunamente mais de duas) pessoas não casadas (e oportunamente já casadas — nada havendo que impeça uma pessoa de ter múltiplas uniões civis). Não se está desafiando Deus, ou a Bíblia. Não nos esqueçamos de que os Patriarcas da Fé do Velho Testamento, Abraão, Isaque e Jacó, eram todos “poliamorosos” ou polígamos — e alguns heróis do Velho Testamento chegaram até mesmo a ter conjunções carnais, como diz o pessoal do direito, incestuosas).

i. Cada igreja ou cada grupo social tem total liberdade de definir um casamento mais significativo ou profundo ou espiritual ou carregado de valores do que o civil da forma que quiser. Pode decidir que ele será exclusivamente hétero e entre apenas duas pessoas (necessária e comprovadamente virgens, se preferem), durará para sempre, não podendo ser desfeito (mesmo que um dos envolvidos, ou os dois, estejam sofrendo de forma desesperadora por causa desse casamento, ou que o casamento envolva violência mental ou física, ou manipulação invasiva dos direitos de um cônjuge por parte do outro cônjuge).

j. Num estado laico não faz sentido que evangélicos, católicos e judeus — para não falar nos maometanos — tentem impor seus valores religiosos a todo mundo. Imaginem que os judeus ortodoxos resolvam que um homem só pode casar se for circuncidado. Vocês acham justos que o estado adote esse ponto de vista religioso e obrigue todo humano masculino a se circuncidar? Não faz sentido, não é verdade? Também não faz sentido querer que duas pessoas, para se unir em união  de convivência civil e viver em família, tenham de ser de sexos ou gêneros diferentes.

k. Por fim, já faz muito tempo que a finalidade principal do casamento civil não é a procriação, mas, sim, a parceria, o companheirismo, o apoio mútuo, a união de esforços para um fim comum, etc. Erra, portanto, e fundamentalmente, demonstrando uma imperdoável pobreza de espírito, Hélio Schwartsman, na Folha de 30.06.2015, quando afirma que “O casamento, vale lembrar, é um mecanismo através do qual o indivíduo pede ao Estado licença para manter relações sexuais com outra pessoa.” Nem de longe. Relações sexuais regulares fazem parte do casamento da maioria das pessoas — mas não de todas. Mas estão longe de ser a única razão para o casamento — em especial numa sociedade liberada como a nossa, em que a maior parte das pessoas começa a ter relações sexuais bem antes de se casar (sem pedir para ninguém, muito menos para o Estado através de sua direção, governo), em muitos casos mantém relações sexuais extraconjugais, e, findo o casamento, continua a ter uma vida sexual regular e normal (em alguns casos, até em asilos de idosos).

l. E as igrejas podem continuar a implementar exigências mais estritas e rígidas para as relações afetivas, amorosas e sexuais entre as pessoas, considerando que a sua versão dessas relações é mais válida do que a preconizada pelo Estado.

m. Mas o Estado estará ultrapassando seus limites se proibir que as igrejas façam isso ou se exigir que elas considerem a união de convivência civil proposta pelo Estado como plenamente equivalente ao casamento que elas endossam (mesmo que haja sobreposição de funções, atribuições e deveres).

n. Assim, oponho-me tanto à intervenção do Estado em questões que envolvem exclusivamente a Igreja como a intervenção da Igreja em questões que dizem respeito exclusivamente ao Estado (numa sociedade em que o Estado ainda continua a existir).

É isso…

Em Salto, 4 de Julho de 2021. Have a good Fourth of July.

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