Opiniões, Convicções, Certezas – e Seus Mercadores: Considerações sobre Doutrinação, Lavagem Cerebral e Controle Mental

Lembro-me de uma vez, há muito tempo, mas não me lembro exatamente quando, que fui visitar meu tio Aldo Chaves — irmão mais novo do meu pai (hoje falecido como são todos os irmãos de meu pai, e o meu pai também). Era uma figura. Foi, pelo que me consta, funcionário público a vida inteira. Solteirão. Nunca se casou. Mas foi acusado de ter um filho e não o renegou. Fora do trabalho, que não lhe ocupava muitas horas, nem preenchia todas as horas em que tinha de estar na repartição, tinha todo o tempo do mundo. Gostava de ler. Jornais. Principalmente o Estadão (apesar de morar a vida inteira em Patrocínio, MG). Assinava o Estadão – que lhe chegava, naquele tempo, com um pequeno atraso. Mas o atraso não fazia diferença. Não havia nada que precisasse fazer em decorrência das leituras. Lia apenas pelo prazer da leitura. Gostava de estar informado. Lia o Estadão inteiro, creio que até os classificados. Classificado também era notícia para ele. Achava importante saber o que as pessoas estavam vendendo e comprando. E não jogava fora o jornal lido: guardava-o em um barracão que mandara construir, especialmente para esse fim, no fundo de sua modesta chacrinha. Ali havia uma verdadeira montanha de jornais vencidos.

Eu não o via desde que eu era criança. O início da conversa foi meio difícil, ele meio desconfiado da razão que poderia ter me levado até lá. Sabia um pouco da minha vida, e estava curioso para descobrir o que eu ensinava em meus cursos e minhas aulas na UNICAMP. Começou a espicular. Eu, para tentar remover a impressão de que estava sendo entrevistado por ele, perguntei-lhe o que ele fazia com todo aquele mundaréu de jornal velho. Ele me respondeu que a gente nunca sabe quando vai precisar de alguma informação que já leu, e, com os jornais guardados, ele sempre poderia encontrar as referências para as coisas que lera. Disse-me que estava muito interessado, naquele momento, na guerra entre a Rússia e a Tchetchênia. E voltou a me “entrevistar”: “Qual a sua opinião sobre a Tchetchênia?”, indagou. Fui pego totalmente de surpresa com a pergunta. Fiquei con a sensação de que estava sendo entrevistado no Roda Viva e não tinha a menor ideia sobre como responder a uma pergunta. Disse a ele: “Tio, para lhe dizer a verdade, não tenho nenhuma opinião sobre a Tchetchênia. Não sei nem mesmo por que o país está em guerra com a Rússia — ou a Rússia com ele, se é que faz alguma diferença.” Pude ver que os olhos dele se estatelaram! Retorquiu: “Mas como pode um professor da UNICAMP, uma das melhores universidades do país, não ter nenhuma opinião sobre a Tchetchênia? Você nunca leu nada sobre os tchetchenos? Se algum aluno seu lhe perguntar o que você acha da guerra, o que você vai dizer?”. Respondi com tranquilidade: “Vou dizer que não acho nada, que não sei por que estão brigando e, na verdade, não sei porque estão brigando porque não tenho o menor interesse no assunto. Direi que pergunte a algum professor de história política contemporânea, porque eu não tenho nenhuma opinião sobre a questão, nem faço questão de ter”. Ele não conseguia acreditar. Estava pasmo. Acho que peguei meio pesado.

OPINIÕES. A gente tem várias. Todo mundo tem alguma. Sobre os mais diversos assuntos. Alguns, até sobre a Tchetchênia. Alguns têm opinião sobre, literalmente, tudo e qualquer coisa. Acham que é vergonhoso não ter alguma opinião sobre algum assunto, pois mais desinteressante e despropositado que seja o assunto. Mas ninguém precisa ter opinião sobre tudo e qualquer coisa. Nem mesmo professor universitário. Na realidade, pensando bem, nem sobre nada. O único problema de não ter opinião sobre algo é que a gente corre o risco de passar por desinformado, por desinteressado, por alienado, por ignorante, por burro. Fulano? Ah, ele é um desopinionado. Os desopinionados, às vezes, são desinformados, mas, às vezes, não. É possível estar bem informado sobre um assunto e não formar nenhuma opinião sobre ele. Informação é uma coisa que está em livros, revistas, jornais, newsletters, panfletos, cartas, ondas de rádio, telas de televisão, e, hoje, principalmente na Internet. Houve tempo que a opinião era escrita na parede das cavernas. Quando eu estudava em colégio do estado havia muita opinião na parte de dentro das portas das privadas. Opinião é algo que se tem — ou não se tem. Há gente que formula ou forma cuidadosamente uma. Às vezes, com base em informações que coleta ou recebe, de fontes escritas, orais ou imagéticas. Há gente que pega opinião dos outros, prontinha da silva, mas de segunda mão. Outras vezes, a gente forma uma opinião de maneira quase instantânea, sem ler nada na imprensa, sem ouvir nada no rádio, sem ver nada na televisão. Você vê uma cena, na vida real, ou na televisão, e forma uma opinião na hora, como se fosse por inspiração divina: “Esse cara não vale mesmo nada, é um cafajeste… Olhem só o que está aprontando…”. Sua opinião pode, até mesmo, ser totalmente infundada, descolada de qualquer informação. Mas ela é sua opinião. Acho isso porque acho, uai… Opiniões são coisas que a gente forma na mente da gente, com base em informações (do Estadão, por exemplo, ou, Deus me livre, da Folha), ou sem fundamentação em alguma informação transmitida por um meio de comunicação: só de ver, ou ouvir, alguma coisa, no cotidiano, ou, mesmo, de forma totalmente gratuita. Acordei com a opinião de que o mundo vai acabar em 20.10.20. Acho que foi Deus que me revelou em sonho, mas não me lembro direito do sonho. Uma informação é algo relativamente objetivo: está lá, nas páginas do livro, da revista, do jornal, da Internet, ou esteve ali no noticiário do rádio ou da televisão, que deve ter sido gravado e pode ser consultado. Mas uma opinião também é algo subjetivo, que você forma e tem (se quiser), mas pode mudar a qualquer hora — ou, se preferir, como eu em relação à Tchetchênia, nunca formou e, portanto, não tem, nem tem o menor interesse em vir a ter, porque não considera a coisa ou o assunto interessante, pelo menos, digno de uma opinião. E tem todo o direito de não ter — da mesma forma que, tendo, tem o direito de ter qualquer opinião que lhe apeteça, porque a opinião é sua, e de mais ninguém, por mais estapafúrdia que possa parecer aos outros (ou até mesmo a você, o opinante). Pode até achar que cloroquina, água benta, e cachaça Velho Barreiro, é tudo a mesma coisa. Dessas três coisas acho que a Velho Barreiro é a mais gostosa — e é isso que opino. E não que dar satisfação para ninguém de minhas opiniões. Livre pensar, como dizia o Millôr, é só pensar. 

CONVICÇÕES, no entanto, parecem ser opiniões que alguém tem com mais firmeza. Se alguém questiona alguma convicção nossa, parece que nós temos alguma obrigação, moral ou epidêmica, de esclarecer quais são as razões que fundamentam a nossa convicção. 

E CERTEZAS são convicções que alguém considera indubitáveis. Tem gente que gosta de ter certeza de tudo. Eu já tive várias. Fui perdendo quase todas, pouco a pouco. Hoje tenho poucas. Muito poucas. Pouquíssimas. Algumas preferiria até não ter, como esta: tenho certeza de que vou morrer. Por quê? Porque todo mundo morre, uai. Mas não tenho nenhuma opinião sobre quando será. Pode ser amanhã. Pode ser um dia antes de eu completar 100 anos. O pessoal que me conhece vai comentar: Mas por que justo hoje! Se tivesse esperado mais um diazinho, unzinho só que fosse, virava centenário… Quem vai saber, neste mundo em que a gente vive? Aqui está outra certeza minha: tenho certeza de que estou vivo. Não sou exagerado como Descartes, que achava que não podia ter certeza de que estava vivo porque podia estar apenas sonhando que estava vivo…

Se estou certo no que disse até agora sobre opiniões, convicções e certezas, por que é que há tanta gente que tenta nos vender (no sentido figurado) opiniões formadas? Que tenta fazer com que a gente compre (também no sentido figurado) opiniões já prontas e empacotadas? Por que há mercadores de opiniões, que tentam fazer com que aceitemos como nossas as opiniões deles? E que, não contentes com que apenas aceitemos como nossas as opiniões deles, tentam fazer com que também transformemos essas opiniões em convicções e certezas, que não tenhamos qualquer dúvida sobre sua correção ou sua verdade! E que, para isso, ficam batendo na mesma tecla o tempo todo, martelando as suas opiniões em nossos ouvidos, pressionando-nos, não tanto para que formemos nossa própria opinião sobre a questão ou o assunto, mas para que aceitemos as deles, com firmeza e sem que permaneçam dúvidas…

A maioria dos pais (em relação aos filhos), a maioria dos pastores, padres e rabinos (em relação aos seus fiéis e aos que podem vir a tornar-se seus fiéis), e a maioria dos professores e dos jornalistas (em relação a todo mundo), a maioria dos políticos (em relação a seus potenciais eleitores), todos esses são — na minha opinião! olhem aí, tenho uma!!! — mercadores de opiniões. Às vezes até um cônjuge em relação a outro: “Como você pode gostar do Bolsonaro? O cara é tosco, mal acabado!” Hoje em dia, alterando a ordem natural das coisas, até filhos querem impingir suas opiniões sobre seus pobres pais. Mercadores de opinião. Na verdade, na verdade, lhes digo: o mundo está cheio deles. Infelizmente. Lastimavelmente. E isso porque as pessoas brigam por causa de opinião, embora a liberdade de opinião (inclusive a de não ter nenhuma sobre algum ou sobre qualquer assunto, seja direito garantido pela maioria das Constituições democráticas. Segundo alguns, é até um direito natural, que nos foi dado pelo nosso Criador. (Quem defende essa opinião é também da opinião, quiçá convicção, quiçá ainda certeza, todos nós somos criaturas, isto é, coisa, gente no caso, criada.)

Por que é que parece tão importante para essas pessoas que os outros não só tenham opinião em relação a este ou aquele assunto, a esta ou aquela questão, mas que adotem a opinião delas? Num processo ou num debate oral em um tribunal é compreensível que tanto os advogados das partes como os promotores de justiça queiram que o juiz não só forme uma opinião sobre o assunto, mas adote as opiniões deles. Nesse contexto está em jogo se alguém violou ou não alguma norma e deve, portanto, sofrer as consequências. Mas no dia-a-dia, e em outros contextos? Meu tio achava que eu precisava ter uma opinião sobre a guerra da Tchetchênia — provavelmente, mesmo que não fosse a dele (e ele certamente tinha uma). Mas pais, pastores, padres e rabinos, professores, jornalistas, e políticos em geral acham não só que você precisa ter uma opinião, mas deve adotar a deles! Por quê?

Confesso que não sei qual é a resposta correta a essa pergunta. Tenho várias ideias em minha mente, mas não tenho uma opinião formada sobre a resposta à questão que formulei. Mas, em vez de ficar procurando a resposta, prefiro, socraticamente, levantar outra pergunta: Quem faz isso, quem é mercador de opiniões, quem ganha a vida tentando fazer a cabeça das outras pessoas, ou mesmo quem tenta fazer a cabeça de outras pessoas sem ganhar nada para isso, quem faz isso está agindo certo ou errado? Tem gente que até acha que você, depois de morrer, vai passar toda a eternidade, ou num paraíso de delícias, melhor do que o Éden (até por ser eterno), ou num inferno de torturas, fogo, enxofre mal-cheiroso — dependendo, em parte, pelo menos, das opiniões que você teve aqui na Terra. Opinou errado, tá ferrado. 

Aqui eu mais uma vez tenho minha opiniãozinha. Procurar fazer a cabeça de alguém, tentar fazer com que alguém adote uma determinada opinião sobre alguma questão ou algum assunto, contra a sua vontade, é tolher a liberdade dessa pessoa, é agir para impedi-la de não ter nenhuma opinião sobre a questão ou o assunto, é agir para impedi-la de formar uma opinião própria, é tentar fazer com que adote uma opinião pronta, acabada e embrulhada que, por alguma razão, o mercador de opiniões lhe quer vender (ou, supostamente, dar de graça — mas isso é raro: o mercador de opiniões sempre tem algo a ganhar quando consegue conquistar e controlar a mente de alguém). Admito que a situação é diferente quando alguém vem até você e lhe pede sua opinião sobre alguma coisa. Estou falando de gente que quer que você adote uma opinião contra a sua vontade. De gente que quer doutrinar você ou realizar uma lavagem de seu cérebro, promover o controle de sua mente. Se controlar o corpo já é ruim, controlar a mente é muito pior. É minha opinião. Mas eu não a estou vendendo nem a estou dando de graça. Nem acho que você precisa aceitá-la ou mesmo considerá-la com seriedade. 

Doutrinar ou realizar a lavagem do cérebro ou promover o controle mental de alguém nunca é uma atividade altruísta. Quem doutrina ou realiza a lavagem cerebral ou promove o controle mental de alguém sempre age egoisticamente, sempre tem algo a ganhar se sua vítima sucumbir. Por isso, eu sempre tento resistir quando percebo que alguém está tentando fazer minha cabeça. Vade retro, Satanás!

Essa é a minha opinião. Admito. Não tenho vergonha dela. Na realidade, até tenho certo orgulho de tê-la. Mas eu quero que você, leitor, a aceite? Não, necessariamente. Só gostaria que você pensasse sobre isso. Gostaria que o que estou dizendo aqui começasse a fazer algumas coceguinhas na sua cabeça, como dizia o meu amigo Rubem Alves. Que, na minha modesta opinião, já está curtindo o jardim particular dele no Paraíso, debaixo de um ipê amarelo, tomando suco de carambola, entre um gole e outro de Jack Daniel’s. 

Em Salto, 16 de Julho de 2020.

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