Erik Ritter von Kuehnelt-Leddihn – Capítulo 2

A Ameaça do Rebanho, ou Procrusto à Solta

O livro, cujo título (The Menace of the Herd or Procrustes at Large, no original) empresta o subtítulo para este segundo artigo sobre Erik Ritter von Kuehnelt-Leddihn, foi publicado em 1943. Esse ano (além de ser o ano em que eu nasci e em que Casablanca ganhou o Oscar de Melhor Filme de 1942) viu a conclusão de outro livro de combate ao Socialismo ou ao Esquerdismo: O Caminho da Servidão, de Sir Friedrich von Hayek, que no original se chamou The Road to Serfdom – e que foi publicado no início de 1944 (Março), no auge da Segunda Guerra Mundial.

Neste segundo artigo da série vou procurar dar uma ideia do conteúdo do primeiro livro de von Kuehnelt-Leddihn mencionado no artigo anterior.

Começo o que escrevi sobre ele no artigo anterior, delimitando o seu foco:

“A parte inicial do título do primeiro livro faz referência a rebanho. O termo inglês ‘herd’ quer dizer, literalmente, ‘rebanho’: aquele conjunto de animais que normalmente é pastoreado em bandos. Em um bando, eles, que em geral já se parecem uns com os outros, gostam de estar juntos de seus iguais, se comportam de forma igual, e, por isso, são relativamente fáceis de pastorear. O termo “the herd” tem um sentido derivativo e figurado em Inglês: “a plebe”, “o povão”, “the generality of mankind“. Essa parte do título afirma que o rebanho, ou a plebe, ou o povão, é uma ameaça.

A parte final do título do primeiro livro faz referência a Procrusto, personagem da mitologia grega, e afirma que ele está à solta em nossa sociedade. Procrusto era um ferreiro que detestava coisas de tamanhos desiguais, e, por conseguinte, de aparência diferente. Ele tinha em sua oficina uma cama, e tentava atrair para ela as pessoas que passavam em frente da oficina. Dentro da oficina, ele colocava a pessoa na cama. Se ela fosse menor do que a cama, ele a espichava, usando sua arte de ferreiro, para que ficasse do tamanho exato da cama; se fosse maior, ele lhe cortava um pedaço (cortar um pedaço é sempre mais fácil do que esticar) para que ela também ficasse do tamanho exato da cama. Ao sair da oficina, todas as pessoas tinham exatamente o mesmo tamanho, e, assim, eram, pelo menos no tocante ao tamanho, iguais. O autor não diz no título, mas ele achava Procrusto, tanto quanto o rebanho, uma ameaça.

Procrusto detestava a desigualdade e gostava de rebanhos, em que todos animais têm a mesma aparência, gostam de seus iguais, e se comportam, em geral, da mesma maneira. Mas Procrusto era um perigo: se você passasse em frente da oficina dele corria o risco de ser espichado ou de ser encurtado para ficar igual aos demais.”

O livro contém o seguinte frontispício:

“Este livro é dedicado a todos os que defendem nossa liberdade com a espada, não com a caneta, em todos os cinco continentes desta Terra.”

Como adverte o editor do e-book que estou usando, Francis Stuart Campbell, a causa que von Kuehnelt-Leddihn esposa e defende não era popular em 1943, quando ele publicou o livro, nem, tampouco, é agora. Durou pouco o interregno liberal representado por Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margareth Thatcher, no Reino Unido. Mas ele deixou raízes, algumas das quais começam a frutificar no Brasil de hoje.

A causa que von Kuehnelt-Leddihn esposa e defende é a defesa e a promoção da liberdade contra seus inimigos — em especial contra os que buscam a promover a igualdade. Mas von Kuehnelt-Leddihn também esposa e defende a cultura liberal que só viceja em ambiente de liberdade. O fato de nossa cultura, agora também em sentido mais estreito e técnico, envolvendo as artes, em geral, e aquilo que o povo cultiva, estar em estado deprimente e lastimável, é sintomático do fato de que a liberdade está ameaçada pelo cerco dos movimentos que busca a igualdade a todo custo, movimentos que von Kuehnelt-Leddihn discute neste e nos outros dois livros. O fato de que a Globo é ainda líder de audiência no Brasil, apesar de um programação nojenta  com suas novelas, suas séries, seus shows, seus programas supostamente sérios como “Profissão Repórter”, conduzido por aquele repórter que faz jus ao nome de Caco Barcelos, e malgrado um jornalismo ativista revoltante, em favor de causas que hoje começam a se tornar visivelmente impopulares, é prova dessa afirmação. O fato de que seus índices de audiência vêm caindo gradualmente, mas sem oscilar, nos últimos tempos é sinal de alguma esperança — mesmo que as redes concorrentes estejam longe de merecer a audiência que vêm conquistando.

O livro se inicia com uma Nota Explicativa sobre o conceito de Democracia — conceito que se tornou tão positivo em seu sentido que quase ninguém ousa se dizer não-democrata, quanto mais anti-democrata. Até os países soviéticos do Leste Europeu, durante a Guerra Fria, se diziam democráticos. A Alemanha Comunista (a Oriental) era “República Democrática da Alemanha”, embora nada tivesse de democrático, enquanto a Alemanha Ocidental se chamava “República Federal da Alemanha”, deixando de lado o adjetivo confiscado pela parte da Alemanha que não fazia jus a ele. O governo do PT, aqui no Brasil, quando queria e tentava controlar a mídia, para acabar com o restinho de independência que ela tinha, que o governo não conseguia comprar com verbas publicitárias, dizia que iria democratiza-la, ou, pelo menos, torna-la mais democrática.

Von Kuehnelt-Leddihn começa esclarecendo que “governo representativo como o que foi estabelecido nos Estados Unidos não é sinônimo de democracia”. O que os Pais Fundantes da República Americana criaram não foi uma democracia, mas, sim, uma res publica, uma politéia. Este segundo termo figura em Grego no título do livro de Platão que Cícero traduziu para o Latim como Res Publica, a Coisa Pública, Republica, e que foi traduzido para o Português como A República. Durante os debates para a definição da Constituição dos Estados Unidos, ficou claro que os Pais fundadores da nação não buscavam uma democracia, mas, sim, uma república.

Um exemplo ilustra o que ele quer dizer: a censura é algo iliberal e antiliberal, porque vai contra a liberdade, mas não fere a democracia (não é anti-democrático, nem mesmo ademocrático), SE promovido por um governo eleito pela maioria do povo e se a maioria do povo deseja cercear as opiniões de segmentos minoritários da população.

A Constituição Americana só foi aprovada nos Congresssos dos Estados (antigas Colônias) quando lhe foi incorporada, a título de Primeira Emenda, A Carta de Direitos (The Bill of Rights), que deixa cristalinamente claro, em seu Artigo 1o, que, o Congresso, mesmo de 100% dos senadores e deputados estejam de acordo, e mesmo que seja para atender o clamor de 99,99% da população, fica terminantemente proibido de aprovar qualquer legislação que elimine, viole ou restrinja o direito de expressão. Nunca uma democracia admitiria um dispositivo desses.

A Constituição aprovada pela Constituinte Americana em 1787 não era uma constituição democrática: era, muito mais, uma “constituição republicana aristocrática”, para citar, apud von Kuehnelt-Leddihn as palavras de Ralph Adams Cram.

Mesmo Thomas Jefferson, o Pai Fundante mais brilhantee querido da nação americana, o autor da Declaração de Independência, o Ministro Plenipotenciário da nação americana junto ao governo francês durante a Revolução Francesa, o terceiro presidente dos Estados Unidos (1801-1809), em grande parte responsável por duas importantes medidas, a compra (em 1803) da Região de Lousiana, que era da França, e a expedição de Lewis & Clarke (1804-1806), que permitiram a expansão da nação para o Oeste, mesmo ele não era democrata: ele era defensor de um republicanismo aristocrático, em que os melhores governam.

Disse ele em uma carta de 28/10/1814, a John Adams, que havia sido o segundo Presidente da nação (1797-1801),

“Considero a aristocracia natural o dom mais precioso que a natureza nos legou para nos orientar sobre a melhor forma de governo em sociedade. De fato e na verdade, teria sido inconsistente se o homem tivesse sido feito para viver em sociedade e quem foi responsável pela criação não houvesse dotado um número suficiente deles com a virtude e a sabedoria necessárias para gerir as preocupações da sociedade. Não é essa a melhor forma de governo, a saber, aquela que é mais efetivamente capaz de selecionar esses aristoi naturais para ocupar os cargos do governo?” [passagem citada por von Kuehnelt-Leddihn].

Afirma von Kuehnelt-Leddihn mais adiante:

“Os Estados Unidos não são uma democracia. Não lutamos pela democracia. Lutamos pela liberdade. O país luta não só pela sua sobrevivência, luta pela pela sua liberdade — bem como pela liberdade de outros países. A dignidade humana nunca será preservada sem liberdade. A liberdade é, portanto, o bem real, o bem precioso que vale a pena preservar e redimir mesmo que sangue seja derramado”.

Discutir como é que a República dos Pais Fundantes virou a Democracia de Franklin Roosevelt e de hoje nos levaria muito longe, mas não há a menor dúvida de que, aquilo que os Estados Unidos são hoje, ainda que muito melhor do que aquilo que a União Europeia é, está longe de ser o que os Pais Fundantes da nação americana desejavam e esperavam.

Uma outra deformação na percepção da forma de governo escolhida pelos Pais Fundantes da nação americana apontada por von Kuehnelt-Leddihn é a seguinte:

Não se pode dizer que a Constituição Americana tenha impedido ou mesmo retardado a transformação da forma de governo da nação americana em uma democracia. Mas é inegável que, quando criada pela Constituição em 1787, essa forma de governo claramente não era democrática (no sentido de estabelecer eleição direta para cargos, sufrágio universal, governo da maioria que pudesse, por ser maioria, desrespeitar os direitos de minorias até mesmo de um).

“Liberdade e Igualdade são conceitos que não estão intrinsicamente conectados, de modo a ser impossível ter liberdade perfeita sem ter igualdade completa”.

Mas essa questão será discutida em mais detalhe no segundo livro.

Em São Paulo, 14 de Junho de 2019

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