Antonio Cândido Sobre o Direito de um Homem Ter uma Companheira e a Forma de um Homem se Divertir com as Mulheres 

Quero tecer dois comentários breves (OK, talvez, nem tanto…) quanto a uma entrevista de Antonio Cândido, disponível no YouTube, no seguinte endereço:

[https://www.youtube.com/watch?v=rvnuWlDcX8M

O vídeo foi extraído de um material mais amplo da TV Cultura, que pode ser visto, também no YouTube, em:

[https://www.youtube.com/watch?v=Xv0Z_8DFjmE]

Infelizmente, não tenho a data da gravação do material original.

O vídeo foi postado no Facebook por minha amiga Priscila Gonsales (Prigon), em 12 de Maio de 2017, que o honrou com o seguinte comentário:

“E viva a ‘ética da transgressão’ e da alegria! #AntonioCândico [sic] e seu legado! <3”

[https://www.facebook.com/priscila.gonsales/posts/10211637460045542]

Minha mulher, Paloma Epprecht e Machado de Campos Chaves (Pa), comentou o vídeo e o comentário da Priscila Gonsales, já no dia 13 de Maio, dizendo:

“Eu gosto da ideia da ética da transgressão… Gosto muito, mesmo! Mas não me soaram muito agradáveis dois aspectos de sua fala: quando ele se refere ao “direito” de todo homem de ter uma companheira (não creio que seja um direito, mas uma possibilidade que ele precisa conquistar, pois envolve o querer de outra pessoa); e na citação que ele faz do filme de Renoir, em que a mulher aparece em uma posição meio vulnerável, manipulável, em relação ao homem… Ok… Posso estar exagerando… Mas senti isso…” [há um emoticon ao final que não consigo transcrever fielmente aqui].

A esse comentário da Paloma a Priscila retorquiu com o seguinte comentário, também no dia 13 de Maio:

“Minha leitura não foi essa, Pa, achei leve, bem humorado, mas entendo seu ponto, hoje em dia muitos autores, compositores, pintores, escritores (incluindo Monteiro Lobato) causariam muita polêmica!”

Meus comentários originais, transcritos em Apêndice, ao final, podem ser encontrados em:

[https://www.facebook.com/eduardo.chaves/posts/10155226795527141]

[https://www.facebook.com/eduardo.chaves/posts/10155226848952141]

Este artigo é uma elaboração revista dos meus dois comentários originais, dando a eles o tom de um artigo sobre a questão — artigo esse que esclarece o teor de minha conversa com a Paloma depois de ambos vermos o vídeo.

O primeiro comentário é sobre o que, de acordo com Antonio Cândido, está envolvido no que ele chama de “ética da transgressão. O segundo está envolvido no que ele chama de “ética da alegria”.

1. ANTONIO CÂNDIDO E A ASSIM CHAMADA “ÉTICA DA TRANSGRESSÃO”

Sobre a “ética da transgressão” Antonio Cândido alega a existência de um direito que, felizmente, ainda não foi incluído na “Constituição Cidadã” (expressão com que Ulysses Guimarães batizou a Constituição Brasileira de 1988):

“O direito que todo homem tem de ter sua companheira”.

Considero absurda a afirmação desse suposto direito (que, na realidade, efetivamente inexiste e não deveria nem sequer ser cogitado).

Só pode dizer um absurdo desses quem está definitivamente contaminado pela visão de que os direitos humanos incluem (além dos direitos individuais negativos que todo liberal clássico defende) também direitos positivos, em geral chamados de sociais (embora incluam igualmente os econômicos). Com a existência desses direitos positivos nenhum liberal clássico concorda.

Os direitos individuais negativos são negativos porque não impõem, sobre as demais pessoas, nenhuma obrigação positiva de agir, de fazer alguma coisa, mas, sim, apenas a obrigação negativa de não agir, de não fazer nada, não interferindo, portanto, com o seu exercício. Assim são os direitos de ir e vir, de fazer associações para fins lícitos, etc. Assim também é o direito de buscar a felicidade — que nunca foi um direito de alcançar a felicidade, de apossar-se dela, ou seja, um direito de ser feliz, que seria um direito positivo.

Os chamados direitos sociais positivos são positivos porque eles impõem obrigações sobre as demais pessoas. Se eu tenho direito a uma moradia, alguém tem a obrigação de me prover essa moradia; se eu tenho o direito de estudar em uma escola, ou de ser tratado em um hospital, alguém tem a obrigação de me prover essa escola e esse hospital. Como quase ninguém faz isso se não for obrigado, o dever acaba por recair (por default) sobre o estado, que, tendo o monopólio no uso inicial da força e da coerção, obriga parte da população a fornecer moradia (“Minha casa minha vida”), escola (pública) e hospital (do SUS) para os demais que necessitam, ou afirmam necessitar, desses bens e serviços e não podem pagar por eles ou não estão dispostos a fazê-lo. É por isso que, até bem pouco tempo, a cidade de São Paulo escrevia nos ônibus: “Transporte, direito do cidadão, dever do estado”. Os cidadãos que não usam ônibus nunca foram consultados se estavam de acordo em pagar ou subsidiar o custo do transporte público dos demais. Se esses cidadãos, por iniciativa própria, deduzissem de seu IPTU (município) ou de seu IPVA (estado) uma pequena parcela que fosse, do valor total, para se reembolsar do custo do transporte de terceiros que estava assumindo ou subsidiando, seriam presos.

Só uma pessoa assim contaminada por essa nefasta ideologia que ainda nos assola diria:

  1. todo homem [todo ser humano] tem direito de ter uma casa — concluindo que, logo, o estado tem o dever de criar políticas públicas para prover moradias para todos, ou, pelo menos, para todos os que se acham necessitados de moradia, sem poder ou querer pagar por ela com recursos próprios;
  2. todo homem [todo ser humano] tem direito a ter educação, saúde, etc — concluindo que, logo, o estado tem o dever de criar políticas públicas para prover escolas, clínicas, laboratórios, hospitais, etc. para todos, ou, pelo menos, para todos os que se acham necessitados dessas coisas, sem poder ou querer pagar por elas com recursos próprios.

Mesmo dentro dessa visão de que existem direitos positivos ou sociais (que aqui admito apenas ad argumentandum, por amor ao argumento, posto que dela discordo totalmente), não faz o menor sentido afirmar que todo homem tem direito a uma companheira. Nos casos anteriores (moradia, educação, saúde, etc.), aos supostos direitos corresponde sempre um suposto dever: o dever do estado. Mas e aqui? Se o homem tem direito a uma companheira, e não consegue arrumar uma por si só, quem vai prover-lhe essa companheira? O estado? O estado vai caçar alguma mulher para atender ao presumido direito do dito cujo? Vai sortear mulheres disponíveis entre os homens necessitados ou simplesmente desejosos de uma companheira? Não faz o menor sentido.

Antonio Cândido nem sequer contempla a possibilidade de que a mulher pode não querer participar desse arranjo, seja por não querer ser companheira de ninguém, seja por preferir ser companheira de outro homem (ou de vários, simultaneamente — a poligamia está às portas), seja por preferir ser companheira de outra mulher (ou de várias, simultaneamente — o casamento gay e o “poliamor multigênero” está por aí), e não daquele homem específico ao qual o estado, através de seus burocratas, pretende lhe destinar… Esses, sim, são direitos reais e legítimos que uma mulher poderia postular, pois são negativos e, assim, não impõem dever positivo a ninguém — só o dever (dos outros e do estado) de não se meter na questão. A mulher (se for liberal clássica) pode simplesmente preferir que o estado não se meta em sua vida nem que seja para arrumar-lhe um companheiro, achando que, tendo ela interesse na coisa, procurar um companheiro é direito individual dela, que ela pode ou não exercer, e que, se optar por exerce-lo, ninguém, a não ser ela, tem direito, muito menos dever, de se meter no processo ou de definir-lhe parâmetros.

É verdade que Antonio Cândido diz o que diz no contexto de uma referência ao celibato clerical, propondo, como se fosse um incendiário 500 anos atrasado em relação a Lutero (daí a “ética da transgressão”), que padres e monges deveriam simplesmente sair por aí se casando, a despeito da proibição da igreja. Mas foi isso que Lutero fez em 1525 (e tantos outros reformadores antes dele, como Karlstadt, e depois dele). O direito que Lutero afirmou foi o direito de todo homem, querendo, procurar uma mulher que queira se casar com ele e, encontrando-a, e estando ambos de acordo, casarem-se os dois. Ele nunca afirmaria que “todo homem tem direito de ter uma companheira”, e que, por causa disso, o Papa, ou o Eleitor da Saxônia, ou seja lá quem fosse, teria o dever de arrumar-lhe uma.

Essa “ética da trangressão” de Antonio Cândido é muito mais velha do que os 98 anos com que ele morreu.

2. ANTONIO CÂNDIDO E A ASSIM CHAMADA “ÉTICA DA ALEGRIA”

Agora quanto à suposta “ética da alegria”.

A passagem de Jean Renoir, retirada do roteiro do filme La Règle du Jeu (A Regra do Jogo, de 1939; Renoir foi, além de diretor, co-roteirista do filme), que Antonio Cândido cita de memória é:

“Moi, Monsieur le Marquis, quand j’ai une femme,
je la fais tout d’abord rigoler,
parce quand une femme rigole,
vous avez ce que vous voulez d’elle”.

Tradução:

“Quanto a mim, Senhor Marquês, quando estou com uma mulher,
eu faço antes de tudo que ela se divirta,
porque, quando uma mulher está se divertindo,
você consegue dela qualquer coisa que você quer”.

Na verdade, o que a frase original afirma, na segunda parte, é algo um pouquinho diferente:

“Parce que quand une femme rigole,
elle est désarmée,
vous en faîtes ce que vous voulez!”

Tradução:

“Porque, quando uma mulher está se divertindo,
ela fica desarmada,
e diante disso [“en”] você faz o que quer [com ela]”.

A frase citada por Antônio Cândido dá a impressão de que, porque a mulher está se divertindo, você consegue que ela consinta fazer qualquer coisa que você quer dela ou que você quer fazer com ela. A frase no original [que, admito, não é muito melhor], afirma que, estando a mulher a se divertir, você, diante desse fato, faz o que você quer que ela faça.

De qualquer forma, a frase é horrorosa, em qualquer das duas versões. Para que vejam quão horrorosa, basta substituir a primeira parte dela com esta variante:

“Quanto a mim, Senhor Marquês, quando estou com uma mulher,
eu a faço antes de tudo que ela se embebede,
porque, quando uma mulher fica bêbada,
você consegue dela qualquer coisa que você quer”.

Feministas, que acharam bonitas as afirmações do doce e simpático Antonio Cândido, que irão dizer, agora, de sua “ética da transgressão” e da sua “ética da alegria”?

3. BREVE CONCLUSÃO

  1. Todo homem tem direito a ter uma companheira, sem que as potenciais companheiras se manifestem de acordo? Evidentemente que não.
  2. Todo homem tem direito de se divertir, se simplesmente presume que a companheira que ele arrumou está se divertindo também, ou, pior, se presume que ela não tem condições de se manifestar explicitamente de acordo — ou contra? Evidentemente que não.
  3. Por que é que há pessoas, em especial mulheres, e mulheres inteligentes e engajadas em causas que defendem os direitos das mulheres, que louvam as besteiras defendidas por Antônio Cândido nesse vídeo, em vez de sentirem ultrajadas por elas? Só porque ele é um ícone da esquerda, supostamente bem-humorado? Deixo a pergunta aos leitores — não me cabe tentar respondê-la aqui.

4. APÊNDICE

Acrescento este Apêndice, apesar de ele ser em grande parte redundante, apenas para deixar registrado o Sitz im Leben do artigo ao qual ele é acrescentado.

A. Primeira parte de material original que resultou nesse artigo, retirado do Facebook, na data de 13 de Maio de 2017:

[https://www.facebook.com/eduardo.chaves/posts/10155226795527141]

ANTONIO CÂNDIDO – 1 (continua com ANTONIO CÂNDIDO – 2)

Compartilho, via Paloma Epprecht Machado Campos Chaves e Priscila Gonsales. Vou comentar abaixo.

[PS: Tentei coloca-lo abaixo, mas não consegui. Acrescentei-o como novo post, a seguir. EC]

A Paloma fez o seguinte comentário:

“Eu gosto da ideia da ética da transgressão… Gosto muito, mesmo!

MAS, não me soaram muito agradáveis dois aspectos da fala de Antonio Cândido.

1 – Quando ele se refere ao DIREITO de todo homem de ter uma companheira… Não creio que seja um direito, mas uma possibilidade. Afinal, como me lembrou o Eduardo Chaves, aqui do meu lado, todo direito pressupõe uma obrigação. Alguém precisa garantir esse direito. E, em se tratando de relacionamentos, não existem garantias, obrigações, pois envolve o querer de outra pessoa; e

2 – A citação que ele faz do filme de Renoir, denota uma INTENÇÃO de ‘divertir’ a mulher para ‘desarmá-la’, deixando-a em uma posição vulnerável, manipulável… Ok, é natural que em um ambiente divertido as pessoas se desarmem e convivam de forma mais leve e harmoniosa. Mas a intencionalidade, nesse caso, pode trazer uma conotação meio desagradável…

Tá bom… Posso estar exagerando…”

Em São Paulo, 13 de Maio de 2017 (data do meu primeiro comentário)

B. Segunda parte de material original que resultou nesse artigo, retirado do Facebook, na data de 13 de Maio de 2017:

[https://www.facebook.com/eduardo.chaves/posts/10155226848952141]

ANTONIO CÂNDIDO – 2 (continuação de ANTONIO CÂNDIDO – 1)

Nota Preliminar: Comentário que tentei postar no post anterior, como comentário, e não consegui. O post comentado é o compartilhamento que a Paloma fez de um post da Priscila Gonsales que, por sua vez, era um vídeo de um pouco mais de 2,5 minutos do Antonio Cândido, recém falecido.

O vídeo está disponível em:

[https://www.youtube.com/watch?v=rvnuWlDcX8M]

o O o

Dois comentários breves (OK, talvez, nem tanto…) quanto à entrevista de Antonio Cândido, que esclarecem o que eu conversei com a Paloma depois de ver o vídeo. O primeiro comentário é sobre o que, segundo ele, está envolvido no que chama de “ética da transgressão; o outro, está envolvido no que chama de “ética da alegria”.

Sobre a “ética da transgressão” Antonio Cândido alega a existência de um direito que, felizmente, ainda não foi incluído em nossa “Constituição Cidadã” (expressão com que Ulysses Guimarães a batizou):

“O direito que todo homem tem de ter sua companheira”.

Considero absurda a afirmação desse suposto direito (que, na realidade, efetivamente inexiste e não deveria nem sequer ser cogitado).

Só pode dizer um absurdo desses quem está definitivamente contaminado pela visão de que os direitos humanos incluem (além dos direitos individuais negativos que todo liberal clássico defende) também direitos positivos, em geral chamados de sociais (embora incluam igualmente os econômicos). Com a existência desses direitos positivos nenhum liberal clássico concorda.

Os direitos individuais negativos são negativos porque não impõem, sobre as demais pessoas, nenhuma obrigação positiva de agir, de fazer alguma coisa, mas, sim, apenas a obrigação negativa de não agir, de não fazer nada, não interferindo, portanto, com o seu exercício. Assim são os direitos de ir e vir, de fazer associações para fins lícitos, etc. Assim também é o direito de buscar a felicidade — que nunca foi um direito de ter a felicidade, ou de ser feliz, que seria um direito positivo.

Os direitos sociais positivos são positivos porque eles impõem obrigações sobre as demais pessoas. Se eu tenho direito a uma moradia, alguém tem a obrigação de me prover essa moradia; se eu tenho o direito de estudar em uma escola, ou de ser tratado em um hospital, alguém tem a obrigação de me prover essa escola e esse hospital. Como quase ninguém faz isso se não for obrigado, o dever acaba por recair (por default) sobre o estado, que, tendo o monopólio no uso da coerção e da força, obriga parte da população a fornecer moradia (“Minha casa minha vida”), escola (pública) e hospital (do SUS) para os demais que necessitam, ou afirmam necessitar, desses bens e serviços. É por isso que, até bem pouco tempo, a cidade de São Paulo escrevia nos ônibus: “Transporte, direito do cidadão, dever do estado”. Os cidadãos que não usam ônibus nunca foram consultados se estavam de acordo em pagar ou subsidiar o custo do transporte público dos demais. Se esses cidadãos deduzissem de seu IPTU (município) ou de seu IPVA (estado) uma parcelinha que fosse, do valor total, para se reembolsar do custo do transporte de terceiros que estava assumindo ou subsidiando, seriam presos.

Só uma pessoa assim contaminada por essa nefasta ideologia que ainda nos assola diria:

  1. todo homem [todo ser humano] tem direito de ter uma casa — concluindo que, logo, o estado tem o dever de criar políticas públicas para prover moradias para todos, ou, pelo menos, para todos os que se acham necessitados de moradia;
  2. todo homem [todo ser humano] tem direito a ter educação, saúde, etc — concluindo que, logo, o estado tem o dever de criar políticas públicas para prover escolas, clínicas, laboratórios, hospitais, etc. para todos, ou, pelo menos, para todos os que se acham necessitados dessas coisas.

Mesmo dentro dessa visão de que existem direitos positivos ou sociais (que aqui admito apenas ad argumentandum, por amor ao argumento, posto que dela discordo totalmente), não faz o menor sentido afirmar que todo homem tem direito a uma companheira. Nos casos anteriores (moradia, educação, saúde, etc.), aos supostos direitos corresponde sempre um suposto dever: o dever do estado. Mas e aqui? Se o homem tem direito a uma companheira, e não consegue arrumar uma por si só, quem vai prover-lhe essa companheira? O estado? O estado vai caçar alguma mulher para atender ao presumido direito do dito cujo? Vai sortear mulheres disponíveis entre os homens necessitados (e desejosos) de uma companheira? Não faz o menor sentido.

Antonio Cândido nem sequer contempla a possibilidade de que a mulher pode não querer participar desse arranjo, seja por não querer ser companheira de ninguém, seja por preferir ser companheira de uma outra mulher (ou de várias, simultaneamente — poliamor está por aí), e não de um homem (ou de vários)… Esses, sim, são direitos reais e legítimos que uma mulher poderia postular, pois são negativos e, assim, impõem dever positivo a ninguém — só o dever (dos outros e do estado) de não se meter na questão. A mulher (se for liberal clássica) pode simplesmente preferir que o estado não se meta em sua vida nem que seja para arrumar-lhe um companheiro, achando que, tendo ela interesse na coisa, procurar um companheiro é direito individual dela, que ela pode ou não exercer, e que, se optar por exerce-lo, ninguém, a não ser ela, tem direito, muito menos dever, de se meter no processo.

É verdade que Antonio Cândido diz o que diz no contexto de uma referência ao celibato clerical, propondo, como se fosse um incendiário 500 anos atrasado em relação a Lutero (daí a “ética da transgressão”), que padres e monges deveriam simplesmente sair por aí se casando, a despeito da proibição da igreja. Mas foi isso que Lutero fez em 1525 (e tantos outros reformadores antes e depois dele). O direito que Lutero afirmou foi o direito de todo homem, querendo, procurar uma mulher que queira se casar com ele e, encontrando-a, e estando ambos de acordo, casarem-se os dois. Ele nunca afirmaria que “todo homem tem direito de ter uma companheira”, e que, por causa disso, o Papa, ou o Eleitor da Saxônia, ou quem de direito, teria o dever de arrumar-lhe uma.

Essa “ética da trangressão” de Antonio Cândido é muito mais velha do que os 98 anos com que ele morreu.

Agora quanto à suposta “ética da alegria”.

A passagem de Jean Renoir, retirada do roteiro do filme La Règle du Jeu (A Regra do Jogo, de 1939; Renoir foi, além de diretor, co-roteirista do filme), que Antonio Cândido cita de memória é:

“Moi, Monsieur le Marquis, quand j’ai une femme,
je la fais tout d’abord rigoler,
parce quand une femme rigole,
vous avez ce que vous voulez d’elle”.

Tradução:

“Quanto a mim, Senhor Marquês, quando estou com uma mulher,
eu faço antes de tudo que ela se divirta,
porque, quando uma mulher está se divertindo,
você consegue dela qualquer coisa que você quer”.

Na verdade, o que a frase original afirma, na segunda parte, é algo um pouquinho diferente:

“Parce que quand une femme rigole,
elle est désarmée,
vous en faîtes ce que vous voulez!”

Tradução:

“Porque, quando uma mulher está se divertindo,
ela fica desarmada,
e diante disso [“en”] você faz o que quer”.

A frase citada por Antônio Cândido dá a impressão de que, porque a mulher está se divertindo, você consegue que ela consinta fazer qualquer coisa que você quer dela. A frase no original [que, admito, não é muito melhor], afirma que, estando a mulher a se divertir, você, diante desse fato, faz o que você quer que ela faça.

De qualquer forma, a frase é horrorosa, em qualquer das duas versões. Para que vejam quão horrorosa, basta substituir a primeira parte dela com esta variante:

“Quanto a mim, Senhor Marquês, quando estou com uma mulher,
eu faço antes de tudo que ela se embebede,
porque, quando uma mulher fica bêbada,
você consegue dela qualquer coisa que você quer”.

Feministas, que acharam bonitas as afirmações do doce simpático Antonio Cândido, que dizer, agora, de sua “ética da transgressão” e da sua “ética da alegria”?

Todo homem tem direito a ter uma companheira, sem que as potenciais companheiras se manifestem de acordo?

Todo homem tem direito de se alegrar, se presume que a companheira que ele arrumou está se divertindo também, ou, pior, se ela não tem condições de se manifestar explicitamente de acordo?

Em São Paulo, 13 de Maio de 2017 (data do meu segundo comentário)

Em  São Paulo, 10 de Outubro de 2017 (revisão de todo o material e recomposição do artigo)

 

 

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