Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo

Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo

Eduardo Chaves e Gilberto Luiz Alves

 Conteúdo

Apresentação

Comentários Iniciais de Eduardo Chaves à Palestra do Prof. Gilberto

Duas Respostas do Prof. Gilberto aos Comentários de Eduardo Chaves

Réplica de Eduardo Chaves às Respostas do Prof. Gilberto

Anexo: Passagens de Adam Smith

I. Apresentação

Meu artigo “O Liberalismo na Política, Economia e Sociedade e suas Implicações para a Educação: Uma Defesa”, publicado aqui neste blog Liberal Space na URL https://liberal.space/2018/03/18/o-liberalismo-na-politica-economia-e-sociedade-e-suas-implicacoes-para-a-educacao-uma-defesa/, foi inicialmente apresentado em um conjunto de seminários organizado pelo Grupo de Pesquisa HISTEDBR, da Faculdade de Educação da UNICAMP, em 2001, sobre o tema Liberalismo e Educação. Meu seminário foi o primeiro a ser apresentado. Em datas subsequentes vários outros seminários foram apresentados. Oportunamente, os Professores José Claudinei Lombardi e José Luís Sanfelice, do HISTEDBR, resolveram publicar em forma de livro as diversas contribuições apresentadas no seminário e me pediram para revisar o texto de minha apresentação, incorporando, tanto quanto possível, questões levantadas na discussão. O resultado da revisão foi a versão que agora, em Março de 2018, publiquei no meu blog Liberal Space e que é basicamente idêntico ao texto que foi publicado no livro Liberalismo e Educação em Debate (Autores Associados, Campinas, 2007), pp.1-60.

Minha participação nos seminários não se limitou à apresentação do texto que republiquei hoje aqui neste blog. Fiz comentários escritos às apresentações de dois outros professores. Um deles, o Prof. Gilberto Luiz Alves, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), redigiu duas respostas aos meus comentários iniciais sobre a sua palestra, que, por sua vez, geraram uma longa réplica minha.

É esse material que agora transcrevo aqui, e que foi originalmente distribuído na lista de discussão do HISTEDBR.

O texto correspondente à palestra original do Prof. Gilberto está nas pp. 61-76 do livro Liberalismo e Educação em Debate. Ao receber o livro impresso, fui surpreendido pelo fato de que o texto do Prof. Gilberto publicado no livro tem um “Anexo”, impresso nas pp. 76-84. Esse “Anexo” incorpora parte do material das duas respostas que o professor enviou aos meus comentários originais, mas leva em conta, igualmente, minha réplica – tudo isso sem mencionar a discussão que tivemos. Tudo isso foi feito sem que eu tivesse ciência e, pior, sem que eu tivesse condições de responder. Cabe ao leitor avaliar como organizadores de livros se comportam em relação a autores que contribuíram para a elaboração da obra que organizaram. Das 224 páginas do livro, nada menos do que sessenta (mais de um quarto) foram redigidas por mim.

Eduardo Chaves

18 de Março de 2018

II. Comentários Iniciais de Eduardo Chaves à Palestra do Prof. Gilberto

Em 29 de Junho de 2001 encaminhei ao Prof. José Claudinei Lombardi (conhecido como Zezo) o seguinte e-mail:

“Caro Zezo,

Ontem tive que sair da palestra imediatamente após o término da apresentação, sem acompanhar, ou, como eu desejava, participar, da discussão.

Como já fiz em ocasião anterior, porém, teci alguns comentários sobre a palestra, que coloco adiante, que, peço, sejam distribuidos e ao autor da palestra e aos demais participantes.

Eduardo”

——————————

Minha principal crítica à palestra do Prof. Gilberto, que teve como título e tema “O Liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”, está na falta de clareza e coerência conceitual na sua caracterização, seja de Liberalismo, seja de Escola Pública.

O tema da palestra sugeria que o palestrante iria explicar a participação do Liberalismo na produção da Escola Pública Moderna (i.e., imagino, a Escola Pública que hoje conhecemos). Se, como pretendo demonstrar, faltou clareza e coerência conceitual na caracterização tanto do Liberalismo como da Escola Pública, a palestra ficou seriamente prejudicada – embora tenha contido um bom número de observações interessantes e até mesmo verdadeiras.

1. A Conceituação do Liberalismo

A principal falha da palestra esteve na conceituação do Liberalismo. Na verdade, não houve sequer uma tentativa de conceituar o Liberalismo. O palestrante pareceu pressupor que todo mundo na audiência soubesse exatamente o que era o Liberalismo. No entanto, ele próprio pareceu pressupor que o Liberalismo é um conjunto de ideias vago e às vezes até mesmo incoerente.

Exemplifico.

A. Tópicos em Destaque na Palestra do Prof. Gilberto

O tema da palestra era mostrar o papel do Liberalismo na “produção” da Escola Pública Moderna.

Primeiro, o autor começou por esclarecer (?) que o Liberalismo surgiu na Idade Média – por volta do século X – quando a classe burguesa procurou se livrar do que ele chamou de “entraves feudais” (especialmente pagamento de impostos aos senhores feudais).

Segundo, ele mencionou o papel da Reforma Protestante na proposição da tese de que a educação deve ser universal, isto é, de que todo mundo deve saber ler e escrever para poder, por si só, ter acesso à Bíblia.

Terceiro, ele mencionou o papel da Contra-Reforma, em especial dos Jesuítas, na construção da ideia (pareceu-me) de que o conhecimento é especializado e, consequentemente, sua transmissão deve ser realizada através de disciplinas por preceptores especializados (divisão do trabalho docente). [Essa ideia não ficou muito clara, tendo sido tratada meio en passant].

Quarto, ele mencionou o papel da Universidade de Paris na divisão dos alunos em turmas, por nível de adiantamento no domínio dos conteúdos disciplinares.

Quinto, ele mencionou o papel de Comenius, que teria sistematizado as ideias mestras da Escola Moderna (não necessariamente da Escola Pública Moderna, que deveria ter sido o tema – fato em si já significativo), na qual o trabalho didático fica organizado em disciplinas e séries e o trabalho docente é dividido, ficando a cargo de professores especializados nas disciplinas e preparados para atuar numa determinada série (ou num determinado conjunto de séries).

Sexto, ele mencionou, em seguida, o papel de Adam Smith e dos enciclopedistas franceses, em especial de Condorcet.

Paro por aqui – embora outros movimentos e autores tenham sido mencionados na tentativa de mostrar como se “produziu” a Escola Pública Moderna.

B. Observações sobre Esses Tópicos

Faço sobre esse relato apenas as observações que me parecem mais importantes.

Primeiro, o palestrante, em nenhum momento, sequer tentou justificar o que pareceu ter sido um pressuposto básico seu, a saber, que o movimento de combate ao Feudalismo, a Reforma Protestante, a Contra-Reforma, a Universidade de Paris, Comenius, Adam Smith, os “Philosophes” Franceses do século XVIII, tudo isso é parte do Liberalismo! O que é que o palestrante entende por Liberalismo que lhe permite incluir como exemplos da evolução do Liberalismo tanto a Reforma Protestante quanto a Contra-Reforma Católica?

Segundo, a colocação da origem do Liberalismo na Oposição e no Combate ao Feudalismo – na crítica ao que ele chamou de “entraves feudais” – confunde (de forma até bastante lisonjeira para o Liberalismo) a luta pela liberdade, em si, com a teoria liberal, que é uma teoria normativa, bastante específica, que defende a maior liberdade possível do indivíduo face ao governo e às demais instituições da sociedade e que, portanto, contém uma visão muito clara sobre qual deve ser o papel (extemamente limitado) do Estado na sociedade.

Terceiro, a ausência de uma conceituação clara do Liberalismo impede o palestrante de apreciar adequadamente o fato de que alguns não-liberais (como os Reformadores Protestantes), na sua luta para quebrar o monopólio que a Igreja Católica exerceu sobre a educação durante a Idade Média, valeram-se do poder de um Estado que tinha interesses que se contrapunham aos da Igreja Católica (como, no caso de Lutero, claramente um não-liberal, e os príncipes saxões). Nessa luta contra a Igreja Católica, muitos dos reformadores protestantes (quase todos eles não-liberais) não se importaram em manter o vínculo entre a Igreja Protestante e o Estado (caso de vários territórios na Alemanha, da Inglaterra, ou mesmo da Genebra calvinista, por exemplo). Os liberais, entretanto, logo perceberam o risco de, ao escapar do monopólio da educação pela Igreja Católica, cair no monopólio da educação pelo Estado (ainda que esse estado não estivesse ligado à Igreja Católica), e, na defesa da liberdade do indivíduo, se opuseram a que a educação ficasse sob o controle do Estado (ainda que protestante).

Quarto, o palestrante jogou com a imprecisão de certos conceitos básicos extremamente importantes para uma discussão do tema que se propôs discutir.

C. Uso Impreciso e Obscuro de Certos Conceitos pelo Palestrante

Ilustro.

  1. Ao falar dos Reformadores Protestantes, disse que eles defenderam a tese da educação universal. Mesmo que isso tenha sido verdade (o que não vale a pena discutir aqui), essa tese da universalidade da educação não equivale (como o palestrante pareceu pressupor) à tese de que a educação é um direito inerente à pessoa humana. Uma coisa é dizer que toda pessoa deve (por prudência, isto é, condicionalmente) aprender a ler e a escrever, porque, SE não aprender, será (entre outras coisas) presa fácil de padres ignorantes desejosos de manipula-la, os quais poderão leva-la a “perder a sua alma”. Outra coisa é dizer que a educação é um direito básico das pessoas e que, portanto, alguém (em geral o Estado) tem o dever incondicional de prover-lhes a educação necessária.
  2. Ao falar de Adam Smith (que foi apresentado aos presentes como um crítico da divisão do trabalho!), o palestrante deixou a impressão de que Adam Smith defendia a tese de que a educação é um direito do indivíduo e que cabe ao Estado prover a educação da população (até mesmo gratuitamente). Adam Smith, entretanto, não defendeu a tese de que a educação é um direito da pessoa, muito menos de que o Estado devesse provê-la diretamente à população, muito menos ainda de que, em o fazendo, devesse fazê-lo de forma gratuita. Em geral, os autores liberais, entre os quais Smith certamente se encontra, ao defenderam a tese de que todo mundo devesse se educar ou ser educado, não advogaram a gratuidade da educação e apelaram à iniciativa privada para a ajuda àqueles que, não podendo pagar pela sua educação, tinham, entretanto, condições (aptidão, capacidade, motivação, etc.) de se educar ou de serem educados. O palestrante, entretanto, ao mencionar o assunto de “bolsas de estudo” pareceu estar sugerindo que bolsas de estudo seriam necessariamente governamentais, custeadas obrigatoriamente por impostos, desconsiderando o fato óbvio e inconteste de que até muito recentemente bolsas de estudo eram dadas apenas a pessoas carentes e merecedoras e exclusivamente por entidades privadas filantrópicas.

2. A Conceituação da Escola Pública

Mas aqui as questões relativas à conceituação do Liberalismo já se misturam com as questões relativas à conceituação da Escola Pública.

O palestrante sugeriu que a escola pública seria, “no discurso liberal clássico”, uma escola que atendesse, simultaneamente, a cinco critérios básicos:

  • Laicidade
  • Universalidade
  • Obrigatoriedade
  • Gratuidade
  • Unicidade (não diferenciação)

A. Laicidade

Certamente os liberais clássicos defenderam uma escola leiga. Isso, no entanto, só quer dizer que defendiam uma escola não controlada (muito menos monopolizada) pela igreja (em especial pela Igreja Católica). Ao defender uma escola leiga, não estavam defendendo, de forma alguma, uma escola controlada pelo Estado. Isso seria simplesmente substituir um monopólio, o eclesiástico, por outro, o estatal, e os liberais não se chamam liberais por acaso: chamam-se liberais porque defendem a liberdade, e não apenas contra aquilo que o palestrante chamou de “entraves feudais”, mas contra todo e qualquer entrave, até mesmo, e em especial, os “entraves estatais”. A defesa da laicidade da escola é, portanto, no discurso liberal clássico, uma defesa da iniciativa privada na educação – uma defesa da tese de que a educação deva ser aberta à iniciativa de quem quer que se interesse em provê-la (até mesmo as igrejas que, na visão liberal, estariam total e cabalmente separadas do Estado).

B. Universalidade

Certamente os liberais clássicos defenderam, em termos, a tese de que todos devem procurar se educar até os limites de seus interesses e de sua capacidade. Isso não quer dizer, entretanto, de modo algum, que o Estado devesse se ocupar do oferecimento de educação a todos, ou mesmo que o Estado devesse se ocupar em garantir que todos tenham educação ou acesso à educação.

C. Obrigatória

Muito menos ainda defenderam os liberais clássicos a tese de que a educação deva ser obrigatória para as pessoas! Não se pode esquecer de que o liberalismo é uma defesa da liberdade dos indivíduos e que, portanto, seria extremamente incoerente imaginar que os liberais clássicos colocassem, sobre as pessoas (ou seus responsáveis, no caso de crianças) a obrigatoriedade da educação. Para eles, educa-se quem quer, até os limites de seus interesses e de sua capacidade – e capacidade, no caso, inclui capacidade intelectual e financeira.’

D. Gratuidade

Não vendo a educação como obrigatória, não haveria porque os liberais clássicos  concluíssem que devesse ser gratuita.

E. Unicidade

Por fim, sendo defensores radicais da liberdade individual, é um contrasenso imaginar que os liberais defendessem uma escola única para todos. Pelo contrário, sua defesa da liberdade na educação pressupõe a importância da diversidade, da diferenciação.

Mas, se isso é assim, de onde surgiu a ideia de uma escola laica, universal, obrigatória, gratuita e única?

Uma coisa é clara. Embora os liberais tenham tido uma importante participação na quebra da ordem tradicional no século XVIII, e, consequentemente, na destituição de todo uma ordem política, social e econômica que beneficiava a nobreza e seus aliados (como o clero), e, nesse processo, tenham, no tocante à educação, tido um importante papel na quebra do monopólio eclesiástico sobre a educação, a ideia de uma escola universal, obrigatória, gratuita, e muito menos ainda de uma escola única (não diferenciada), certamente não é um produto do ideário liberal, muito menos do ideário liberal clássico.

Os liberais, em especial os clássicos, defendiam, radicalmente, a liberdade do indivíduo – contra todo e qualquer entrave, em especial os entraves estatais. Não colocariam, como, em geral, não colocaram:

  1. sobre o indivíduo “consumidor” da educação a obrigatoriedade de se educar ou de educar seus filhos;
  2. sobre o indivíduo “produtor” da educação a obrigatoriedade de oferecê-la, muito menos a todos, e muito menos ainda de forma gratuita;
  3. sobre o Estado a tarefa de prover a educação ou a tarefa de custear, normatizar ou inspecionar a educação oferecida pela iniciativa privada;
  4. sobre toda a Sociedade o imperativo de uma escola única, que não atendesse às peculiaridades da clientela – peculiaridades essas de gosto, de interesse, de aptidão, de talento, de capacidade intelectual, e de busca de diferenciação em termos de qualidade.

3. Escola Pública e Escola Moderna

Por fim, cabe-me observar que o palestrante tratou, em sua palestra, de desenvolvimentos importantes (como a evolução das disciplinas especializadas, a seriação do trabalho escolar, etc.) como se esses desenvolvimentos caracterizassem unicamente a escola publica. Na verdade, esses desenvolvimentos são característicos da escola moderna, qualquer que seja o seu financiador e controlador, público ou privado.

Foi nesse contexto que o palestrante disse algumas coisas interessantes, e até mesmo verdadeiras, acerca da evolução da escola moderna. Mas, ao sugerir que esses desenvolvimentos tenham que ver especialmente com a escola pública, e, mais especificamente, com o papel do Liberalismo na construção de uma escola laica, universal, obrigatória, gratuita, e única (indiferenciada), o palestrante prestou um desserviço aos que assistiam à sua palestra e que não tinham, como ele, a obrigação de conhecer melhor os fatos e de ter mais clareza e precisão conceitual – mesmo falando, como admitidamente falou, como um marxista.

É isso.

III. Duas Respostas do Prof. Gilberto aos Comentários de Eduardo Chaves

O Prof. Gilberto submeteu duas respostas aos comentários que fiz. A segunda de suas respostas chegou às minhas mãos antes da primeira, por razões que não consegui elucidar.

Como se verá a seguir, eu respondi a essas respostas em uma Réplica.

Um Anexo de autoria do Prof. Gilberto acabou sendo publicada no livro impresso. Nem os meus Comentários Iniciais (aos quais suas respostas supostamente se contrapunham), nem minha réplica foram publicados no livro impresso – embora os organizadores do livro tivessem pleno acesso a eles, pois os comentários, as respostas e a réplica foram encaminhados através deles.

Aqui estão as duas respostas do Prof. Gilberto.

1. Primeira Resposta do Prof. Gilberto

Em 1 de Julho de 2001 o Prof. Gilberto encaminhou ao Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo), respondendo aos meus comentários.

Diz ele:

“Caro Zezo:

Transmita ao Prof. Eduardo Chaves os meus agradecimentos pelos comentários.

Eu gostaria de um pouco de tempo para discutir os pontos levantados por ele. Farei isso proximamente e enviarei a vocês.

De imediato, não posso me furtar ao reconhecimentro de que deixei de conceituar o liberalismo. Também não posso deixar de reconhecer que a ênfase, entre os liberais, é a de que a marca do liberalismo é a defesa da liberdade, o que não acentuei em minha exposição. Mas a questão assim colocada é abstrata. Daí eu ter procurado evidenciar o elemento distintivo do liberalismo, na fase de transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista, que encontrei na permanente luta da burguesia por liberar-se dos entraves feudais. A luta era dirigida contra o passado, encarnado nos obstáculos postos pelas tradições, pelos costumes, pelas instituições e pelas normas estabelecidas. Após a emergência do Estado burguês mudou o discurso, que tornou adversários a serem combatidos a ‘ignorância’ e os ‘vícios’, remetendo para o futuro a possibilidade de destruição das desigualdades sociais. Eu disse que esse meu entendimento não nasceu da leitura de estudos de especialistas do liberalismo, mas de minha leitura de documentos clássicos.

Há questões muito ricas, dentre as apontadas pelo Prof. Eduardo Chaves. A necessidade de distinção entre escola moderna e escola pública é um fato. A meu favor se coloca o tema da palestra, centrado na escola pública, a forma de realização mais importante e desenvolvida da escola moderna.

Sobre Adam Smith eu gostaria até de saber se outras pessoas da assistência tiveram o mesmo entendimento do Prof. Chaves. Fiquei surpreso com o comentário, pois o que eu disse foi muito distinto do que ele entendeu. Aliás, a leitura que ele pessoalmente faz de Adam Smith está mais próxima da que eu faço. Eu disse que Smith não pode ser somado entre os defensores da escola para todos, pois afirmou a necessidade de educação, exclusivamente, para os filhos dos trabalhadores das indústrias, visando combater os resultados da divisão do trabalho manufatureira sobre as ‘faculdades intelectuais e marciais’ daqueles que a ela estavam submetidos. Defendia ele, ainda, uma escola suficientemente barata que permitisse até as famílias trabalhadores pagarem pelos estudos de seus filhos. Só isso.

A incorporação da unicidade entre os atributos identificadores da escola pública, no âmbito do discurso liberal clássico, também não a fiz. Fiz questão de afirmar, também, de que esse atributo transformou-se numa bandeira de luta do escolanovismo, no último terço do século XIX, por força do combate exercido contra a escola dualista burguesa, por ele denominada escola tradicional. A unicidade seria o recurso para a superação do dualismo escolar, nesse momento visto pela leitura liberal dos escolanovistas, falsamente, como elemento determinante das próprias classes sociais.

Por ora, fico por aqui. Mas essas informações já iniciam uma interlocução que, acredito, será muito positiva para todos.

Mais uma vez, não posso deixar sem registro a atenção do Prof. Eduardo Chaves, a quem agradeço mais uma vez. Oportunamente, comento em detalhes suas observações.

Um abraço a todos.

Gilberto L. Alves”

2. Segunda Resposta do Prof. Gilberto

Em 3 de Julho de 2001 o Prof. Gilberto encaminhou ao Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo), o seguinte e-mail, com um anexo.

“Caro Zezo:

Segue, em anexo, a minha análise dos Comentários do Prof. Eduardo Chaves.

Um grande abraço a todos.

Gilberto Luiz Alves”

O Anexo continha o seguinte documento:

Análise dos Comentários do Prof. Eduardo Chaves à Palestra “O liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”

Como anunciei no e-mail de 01.julho, estou remetendo aos colegas que participaram da palestra em referência a minha análise dos Comentários tecidos pelo Prof. Eduardo Chaves. Dispenso-me de fazer maiores citações de seu texto, pois todos dispõem do material. Infelizmente, como o e-mail do Prof. Chaves foi colocado na rede do HISTEDBR, sinto por aqueles que não estiveram na palestra e, assim, ficaram sem referências maiores sobre os pontos levantados. Acredito que o debate iniciado, contudo, possa ajudar um pouco na contextualização das questões apresentadas pelo comentarista.

Eu gostaria de afirmar, inicialmente, a minha tranquilidade em relação ao tom dos Comentários. Aprendi na vida acadêmica, e muito disso devo à UNICAMP, de que os aspectos da crítica que não somam devem ser desprezados. Assim, procurei ler os comentários desarmadamente. Sob o primeiro impacto, escrevi o e-mail já referido, no qual prometia uma resposta mais sistemática, o que procuro fazer agora.

Concordo que a palestra não foi fluente como eu gostaria. Eu não consegui elaborar um texto sintético que me permitisse seguir rigorosamente todos os passos do roteiro previsto. Mas, depois de ter lido e relido os Comentários do Prof. Eduardo Chaves, a minha preocupação centrou-se na quantidade de mal entendidos que constam de seu escrito. A “falta de clareza” de minha palestra pode ter levado, em certo grau, a esse resultado, mas sei, também, que as diferenças teóricas pesam muito no entendimento do ouvinte. Caso fossem consistentes todos os julgamentos do comentarista, eu não teria outro alternativa senão reconhecer a “falta de clareza” de toda a palestra e o seu comprometimento total. A minha exposição, então, não teria sido digna de ser qualificada como palestra, mas sim, como uma versão do “samba do crioulo doido”.

Comecemos pela consideração de “falta de clareza e coerência conceitual” quanto ao liberalismo. Como afirmei, no meu primeiro e-mail, ao iniciar a exposição não fiz uma conceituação do liberalismo enquanto doutrina. Afirmei, inclusive, que esse não era o meu caminho, pois não me sensibiliza a forma pela qual o liberalismo é vendido pelos seus apologetas e pelos seus especialistas. Por outro lado, há a questão da ambiguidade que cerca a sua conceituação. Para confirmar, basta ler o verbete correspondente no Dicionário de Política, de Bobbio. Para mim, o importante era resgatar o conteúdo do liberalismo, enquanto a “visão de mundo” por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe. É claro que ao discutir o liberalismo, enquanto doutrina, essa visão de mundo também se manifesta, mas essa doutrina é só uma de suas expressões e tem, por isso, uma acepção muito mais restrita. Portanto, vi o liberalismo no sentido mais lato possível, como visão de mundo da classe burguesa.

A partir daí, não pode encontrar eco em meu entendimento a afirmação de que a questão central do liberalismo é a liberdade, segundo o Prof. Eduardo Chaves, pois assim posta é abstrata e, portanto, ahistórica. Para mim, o liberalismo ganha significados históricos diferentes em distintos momentos, desde a fase de transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa, independente de uma certa unidade e homogeneidade do discurso liberal em todas as épocas. Ele pode, concretamente, ter tudo a ver com a liberdade, mas pode, também, negar-se e expressar o seu contrário. Eu coloco o meu entendimento da visão de mundo burguesa no âmbito da contradição. Não basta que o discurso pleiteie a liberdade; importa ver se, concretamente, a liberdade está pleiteada. Por isso, ao buscar situar a visão de mundo burguesa, tendo como referência as lutas da classe correspondente, procurei chamar a atenção para o fato de que, na fase de transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista, e só nessa fase, o que marcou a atuação política da burguesia foi a permanente busca de superação dos “entraves feudais”, que tolhiam a liberdade de trocar e a liberdade de produzir. A luta era dirigida contra o passado, encarnado nos obstáculos postos pelas tradições, pelos costumes, pelas instituições e pelas normas estabelecidas. Inclusive no caso da educação, quem analisa os revolucionários franceses verifica que a preocupação era a de superar o controle até então exercido pela Igreja Católica sobre a educação. A Igreja Católica, nesse contexto, era um daqueles “entraves feudais” do passado, do qual desejava a burguesia se ver liberada. Nessa fase, a visão de mundo burguesa foi marcada por uma grandiosidade tal que, “mesmo falando como um marxista”, não posso negar tal evidência histórica. Considero, inclusive, que o ideário produzido nesse instante pela burguesia hoje figura como um rico patrimônio da humanidade. Daí não ser essa uma consideração “lisongeira para o Liberalismo”, mas sim, uma consideração histórica. Após a emergência do Estado burguês mudou o discurso da classe dominante, logo do próprio liberalismo, entendido no seu sentido restrito, que tornou adversários a serem combatidos não mais classes sociais e sim distorções como a “ignorância” e os “vícios”. Isso teve grande importância para a educação, que passou a ser celebrada como a instância mais própria à superação desses obstáculos e à construção de um futuro sem desigualdades sociais. Desde então, a tendência do discurso liberal, na educação, foi o de remeter para o futuro a possibilidade de superação dos problemas sociais, originados naquelas distorções, por meio de plataformas educacionais apropriadas: as “reformas”. Se as reformas não dão certo, basta afirmar que houve equívoco de suas plataformas e que, para colocar tudo nos trilhos, são necessárias outras reformas. Isso se tornou reiterativo. Eu disse, ainda, que esse tipo de discurso teve nas suas origens Horace Mann, o reformador norte-americano, e que, progressivamente, foi sendo universalizado, expandindo-se inclusive pela Europa. Reafirmo que meu entendimento não nasceu da leitura de estudos de especialistas do liberalismo, mas de minha leitura de documentos clássicos. Reconheço, por fim, que ao privilegiar o entendimento do liberalismo como visão de mundo da burguesia, por excelência, abri-me para críticas como a do Prof. Eduardo Chaves, que procura impor-me a necessidade de explicitação do liberalismo como doutrina. Como eu disse, esse não foi o meu caminho. Por outro lado, não vejo a possibilidade de destacar o liberalismo, enquanto doutrina, da forma de existência da burguesia e da visão de mundo que construiu a partir de suas lutas históricas. O liberalismo, enquanto doutrina, é uma forma de elaboração erudita dessa visão de mundo, que procura legitimar a forma de existência da burguesia a partir de bandeiras que “um marxista” julga abstratas e ahistóricas. A liberdade, tal como a considera o Prof. Eduardo Chaves é uma dessas bandeiras.

A outra crítica de peso do Prof. Eduardo Chaves incide sobre “a falta de clareza e coerência conceitual” quanto à escola pública. Afirma ele, inclusive, que não houve uma necessária distinção entre escola pública e escola moderna. Nessa questão é mais difícil sustentar diferenças de interpretação no campo doutrinário e é exatamente nele que se revelam as inconsistências dos comentários. Os juízos neles contidos atribuem-me afirmações que, em absoluto, fiz, durante a palestra. Vamos às principais dessas inconsistências:

  1. Em nenhum momento afirmei que a escola pública que conhecemos e que pode ser sintetizada por seu ideário liberal clássico – escola pública, universal, gratuita, obrigatória e laica – teve existência até a época de emergência do estado burguês. Eu afirmei que inclusive Comenius não defendeu uma escola gratuita, logo nem obrigatória. Ele defendeu, sim, o barateamento dos serviços escolares. Por motivos óbvios, ele, que era um bispo protestante, não defendeu, também, uma escola laica. No interior da Reforma, o que se impôs foi a obrigação da família pela educação de seus filhos. Mas a origem da escola moderna está claramente fundada na obra Didática Magna, de Comenius, que concebeu essa instituição social como decorrência da necessidade de se “ensinar tudo a todos”. A divisão de trabalho que a particulariza, a organização do trabalho didático e as tecnologias que lhe são próprias, tudo isso já estava presente na concepção de Comenius.
  2. Ao chegar a esse ponto da exposição, afirmei que os colégios jesuíticos, ao incorporarem o modus parisiensis de ensinar, criaram as pré-condições necessárias à divisão do trabalho, no âmbito do trabalho didático, tal como se conformou, mais tarde, em Comenius. Comparei a divisão das turmas por níveis de adiantamento, central nesse modo de ensino, às manufaturas nascentes. Para aqueles que quiserem mais detalhes, encaminhei um texto sobre isso para o próximo Encontro Nacional do HISTEDBR. Só pode ser a partir disso que o Prof. Eduardo Chaves colocou na minha exposição a intenção de tomar a “Contra-Reforma Católica” como “exemplo da evolução do Liberalismo”.
  3. Ele considerou igualmente absurda a consideração da “Reforma Protestante” como um desses “exemplos”. Do ponto de vista da doutrina liberal, tudo bem. Mas, do ponto de vista da visão de mundo burguesa, a Reforma protestante foi fundamental e celebrou, entre as liberdades do indivíduo, a de interpretar livremente os livros sagrados. Isso foi central para a educação, pois motivou a defesa, pela vez primeira na história, da necessidade de que todos tivessem acesso à leitura e à escrita, o que explica o avanço da escola nas regiões dominadas pela Reforma protestante.
  4. Também não fiz de Adam Smith um defensor da escola pública para todos. Nem de longe, minha fala deixou sequer subentendidas as ideias de que o economista inglês defendeu a tese de que a “educação é um direito da pessoa”, de que o “Estado devesse provê-la diretamente à população” e “devesse fazê-lo de forma gratuita”. Aliás, eu nada teria entendido de Adam Smith se tivesse feito afirmações nesse sentido. Como já coloquei em meu primeiro e-mail, Smith não pode ser somado entre os defensores da escola para todos, pois afirmou, tão somente, a necessidade de educação para os filhos dos trabalhadores das indústrias, visando combater os resultados da divisão manufatureira do trabalho. Smith reconhecia que a divisão do trabalho estava comprometendo as “capacidades intelectuais e marciais” dos trabalhadores da indústria, daí propor para os filhos destes – e só para os filhos destes –, como um lenitivo, o acesso à educação. Para tanto, sugeria que o estado tornasse a educação pública e produzisse uma escola tão barata que até os trabalhadores pudessem pagar os custos de formação de seus filhos. Por reconhecer que a divisão do trabalho comprometia o desenvolvimentos dos trabalhadores, seria lícito concluir que Adam Smith foi um crítico da divisão do trabalho? Não, a essa insinuação do Prof. Eduardo Chaves eu respondo dizendo que esse efeito, para ele, era como se fosse um acidente de percurso e que a educação, tal como a preconizava, poderia, pelo menos, minorá-lo. Adam Smith considerava a divisão do trabalho uma conquista fundamental da humanidade, pois criou uma nova força produtiva, encarnada no caráter social do trabalho.
  5. No processo revolucionário francês, pela vez primeira, se apresentou a reivindicação de uma escola pública, universal, obrigatória, gratuita e laica. Considerei isso a expressão fundamental do ideário liberal clássico sobre a escola. Mas não afirmei que esse ideário se realizou imediatamente. Pelo contrário, eu disse que ele só começou a se realizar no último terço do século XIX. Uma legislação comprometida com esses princípios só a partir da década de setenta do século XIX começou a ser produzida na Alemanha, na França e na Inglaterra. Nos Estados Unidos, as primeiras iniciativas, nessa direção, surgiram na década de trinta do século XIX com reformadores como Horace Mann, mas, mesmo assim, circunscritas a estados como o de Massachusetts.
  6. Também em relação às bolsas de estudo, o Prof. Eduardo Chaves contesta o conteúdo de minha exposição e afirma que representam um mecanismo muito recente para assegurar educação às crianças pobres. Afirma, ainda, que esse mecanismo esteve atrelado à ação de entidades filantrópicas e não do estado. O texto de sua afirmação é o seguinte: as bolsas de estudos “até muito recentemente (…) eram dadas a pessoas carentes e merecedoras exclusivamente por entidades privadas e filantrópicas.” Essa argumentação categórica desconsidera, pelo menos, a longa luta de pensadores burgueses de porte, como um Diderot ou um Cordorcet. No século XVIII eles faziam a defesa desse mecanismo e entendiam que o estado deveria prover, também, bolsas para as escolas. Como não é um texto disponível em português, transcrevo um extrato de Mémoires pour Catherine II: “(…), numa escola geral e pública deve haver três tipos de alunos: os internos, os bolsistas e os externos. (…) Os Bolsistas – Serão os filhos daqueles que não são suficientemente abastados para prover a educação e a subsistência de seus filhos, razão pela qual o colégio os adota. (…) As bolsas serão sustentadas pela munificência do soberano ou pelo patriotismo dos grandes senhores ou das pessoas ricas, a quem eu não daria, contudo o direito de intervir na seleção.”[1]
  7. Por fim a questão da unicidade, um atributo da escola pública moderna e que eu, segundo o Prof. Eduardo Chaves, teria incluído entre os atributos que lhe foram conferidos pelo liberalismo clássico. Não, no contexto de minha exposição, o liberalismo clássico foi identificado com o pensamento burguês do século XVIII. A unicidade, como já expus no primeiro e-mail, transformou-se numa bandeira de luta do escolanovismo, no último terço do século XIX, por força do combate exercido contra a escola dualista burguesa, por ele denominada escola tradicional. A unicidade seria o recurso para a superação do dualismo escolar, nesse momento visto pela leitura liberal dos escolanovistas, falsamente, como elemento determinante das classes sociais. É digno de nota que o pensamento escolanovista, nesse instante, nem de longe revelava a grandeza do discurso liberal clássico. Pelo contrário, afundava-se na má consciência. Portanto, toda a leitura do Prof. Eduardo Chaves, quanto à questão da escola moderna e da escola pública moderna foi comprometida pelos reiterados mal entendidos expostos. Pelo menos quanto a esse aspecto, eu não posso responder pelos problemas de entendimento do autor dos Comentários.

Após a conclusão de minha palestra, o Prof. Eduardo Chaves necessitou sair e não acompanhou, infelizmente, os debates. Lastimo que isso tenha ocorrido, pois impediu a troca de informações e de reflexões ao final. No debate, constatei que, em pelo menos um caso, o que eu havia falado exigia uma problematização maior para evidenciar melhor como vejo a escola presentemente. Retomei, com níveis de desenvolvimento variados, os pensadores clássicos, bem como Horace Mann, o escolanovismo e  vertentes contemporâneas do pensamento liberal. Sem considerar as diferenças de ordem doutrinária, um bom número das questões do Prof. Eduardo Chaves poderia ter sido superado nessa oportunidade.

Espero que as questões colocadas possam contribuir ao aprofundamento do debate. Mas, desde já, eu gostaria de renovar aos meu colegas, que se colocam no campo do marxismo, a necessidade de afastarmos um vício acadêmico que pouca contribuição tem dado à troca de ideias. Não podemos fazer das ideias dos adversários caricaturas. É fácil criticar as caricaturas, mas isso não revela as fragilidades de outras posturas nem enriquece teoricamente o nosso campo. Esse não tem sido um problema só dos marxistas. Como eu disse, isso está difundido no mundo acadêmico. Daí eu entender que, hoje, está colocada, para nós, uma tarefa importante, qual seja a de participar construtivamente das condições que propiciem o debate acadêmico num patamar mais estimulante, do ponto de vista intelectual, e menos castrador. Nesse sentido eu me dirijo, ainda, ao Prof. Eduardo Chaves, já como um estudioso com o qual não tive a oportunidade de conviver mais assiduamente na UNICAMP, mas com quem, a partir de agora, espero estreitar relações: nos Comentários, foi feita uma caricatura de minha palestra, muito fácil de ser combatida, mas que não espelha as ideias que realmente defendi. Sei que o senhor terá a grandeza moral e intelectual de reconhecê-lo. Também tumultua o ambiente acadêmico a utilização de termos pouco apropriados à ética que deve presidir nossas relações. Eu nunca consideraria um “desserviço” aos estudantes que assistem às suas aulas o fato de, nela, serem veiculadas ideias com as quais não comungo. Na nossa atividade, o desserviço de uma ação existe quando se sustenta na má fé ou no erro. Não enquadro o que apresentei na palestra referida em nenhum dos dois casos. Como norma de convivência intelectual, tenho procurado me colocar na posição do oponente para melhor entendê-lo e até para compreender melhor os seus fortes e as suas fragilidades. Esse é o segredo da tolerância, aliás uma ideia burguesa muito cara ao liberalismo, incluída entre aquelas hoje celebradas como integrantes do patrimônio humano e que merece ser preservada por todos e, com muito mais motivos, pelos liberais.

Um abraço a todos.

Gilberto Luiz Alves

IV. Réplica de Eduardo Chaves às Respostas do Prof. Gilberto

Em 9 de Julho de 2001 escrevi ao Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo) o seguinte e-mail:

“Caro Zezo:

Eu recebi primeiro a segunda resposta do Prof. Gilberto Luiz Alves aos meus comentários iniciais sobre a sua palestra, que me foi enviada em 3/7/01 (. . .). Ao constatar que havia uma resposta anterior, de 1/7/01, que eu não havia recebido, solicitei-a a você, que teve a gentileza de a enviar a mim. (. . .).

Incluo, aqui, o texto de minha réplica às respostas do Prof. Luiz Carlos Santana. (. . .) Atenho-me, mais de perto, em minha réplica, à segunda resposta do Prof. Gilberto, não só porque a recebi primeiro, e, portanto, pude lhe dedicar mais atenção, mas, principalmente, porque é nela que nossas divergências ficam mais evidentes.

Presto meu tributo a todos os que estão tendo a paciência de acompanhar esta discussão, em especial ao Prof. Gilberto por ter honrado meus comentários iniciais com sua atenção, e a você, por estar conduzindo todo o processo e por ter me honrado com o convite para ministrar a primeira palestra da série.

Como o Prof. Gilberto se referiu, em sua segunda resposta, ao tom de minha mensagem, deixando implicito que haveria algo inusitado sobre ele (o tom), gostaria de esclarecer que esse é o tom que normalmente uso quando estou escrevendo, especialmente quando estou envolvido em polêmica.

Gostaria de deixar claro que, ao usar esse tom (inclusive nesta réplica), não me move, de forma alguma, animosidade contra o Prof. Gilberto. Creio que é possível combater ideias com dureza, ao mesmo tempo que se tem respeito e consideração por quem as sustenta – embora seja inegável que, sendo nossas ideias uma importante parte de nosso eu, sintamo-nos muitas vezes pessoalmente atingidos quando nossas ideias são atacadas.

Eduardo Chaves”

1. Algumas Considerações Preliminares

a) A palestra do Prof. Gilberto Luiz Alves foi apresentada numa série de Seminários sobre Liberalismo e Educação, promovida pelo HISTEDBR, que, segundo entendo, tem por intuito contribuir para que os estudantes de História da Educação possam entender melhor o Liberalismo, a partir de seus clássicos (do Liberalismo) – até porque, os estudantes de História da Educação da UNICAMP, e de outras universidades brasileiras dominadas pelo Marxismo, metodológico ou doutrinário, raramente têm condições de ver o Liberalismo caracterizado por aqueles que de fato o defendem, conhecendo-o, quando muito, através de seus críticos.

b) Sendo o Liberalismo uma filosofia política que, por incorporar a defesa do Liberalismo Econômico (na prática conhecido como Capitalismo), ficou transformada no grande adversário do Marxismo, seria de esperar que o Prof. Gilberto, que, em sua segunda resposta, conclama seus colegas marxistas a “não . . . fazer das ideias dos adversários caricaturas”, não fizesse exatamente isso.

c) Tendo em vista o observado nos dois ítens anteriores, seria de esperar, em outras palavras, que o Prof. Gilberto, ao falar sobre o Liberalismo, numa série de palestras voltadas para entender o Liberalismo a partir de seus clássicos, e como historiador marxista preocupado em não caricaturar a posição dos adversários, fizesse pelo menos alguma menção do fato de que os liberais não só NÃO SE RECONHECEM no Liberalismo que ele descreve, mas não reconhecem como liberais (e, portanto, como “fellow travellers”) a maioria das pessoas e dos movimentos que ele, de alguma forma (e reconhecidamente sem muita clareza), associou ao Liberalismo em sua palestra.

d) Em sua primeira resposta, o Prof. Gilberto observa: “De imediato, não posso me furtar ao reconhecimentro de que deixei de conceituar o liberalismo. Também não posso deixar de reconhecer que a ênfase, entre os liberais, é a de que a marca do liberalismo é a defesa da liberdade, o que não acentuei em minha exposição. Mas a questão assim colocada é abstrata”. Sem dúvida que a questão é abstrata: afinal de contas trata-se de conceituar um movimento filosófico que teve, e continua a ter, enormes implicações práticas. Mesmo que fosse um movimento apenas prático, sem um ideário filosófico, conceitua-lo ainda assim seria uma questão abstrata. O que é a questão que o Prof. Gilberto se propõe a discutir, “O Liberalismo na Produção da Escola Pública Moderna”, se não uma questão abstrata? Recuso-me, portanto, a aceitar o tom aparentemente pejorativo que o Prof. Gilberto atribui à discussão de questões abstratas.

e) Tendo “despachado” como abstrata a forma em que os liberais se enxergam, o Prof. Gilberto, na palestra e nas suas respostas aos meus comentários iniciais, insiste em não conceituar o Liberalismo, descrevendo-o apenas, de forma vaga, como “a ‘visão de mundo’ por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe”. Fazendo uso parcial de uma expressão utilizada pelo próprio Prof. Gilberto em sua segunda resposta, não me sensibiliza a forma pela qual o Liberalismo é apresentado pelo seus críticos e por especialistas em ideias que lhe são adversárias, entre os quais o próprio Prof. Gilberto. Mas mesmo assim, totalmente não sensibilizado, estou disposto a admitir, “ad argumentandum”, e temporariamente, que o Liberalismo seja a “visão de mundo” da burguesia (daqui por diante tiro as aspas da expressão). O que cobrei do Prof. Gilberto, em minhas observações iniciais, foi exatamente uma explicitação clara e coerente dessa visão de mundo. Aqui, diante da conclamação a posteriori feita pelo Prof. Gilberto a seus colegas marxistas, acrescento mais uma cobrança: a de que a explicitação dessa visão de mundo, sob pena de ser rechaçada como caricatura, seja, além de clara e coerente, reconhecida pelos próprios liberais como sendo a SUA visão de mundo.

f) Parece-me evidente que, a menos que marxistas desejem continuar falando sobre Liberalismo exclusivamente com outros marxistas, o Liberalismo que eles apresentam deve ser reconhecível pelos liberais como a SUA visão de mundo. Ou seja, a menos que o diálogo dos marxistas se pretenda exclusivamente intra-marxista, os marxistas, ao descrever (antes de criticar) o Liberalismo, deveriam fazê-lo de tal forma que os liberais dissessem: “É exatamente isso que eu defendo – agora vamos ver quais são as críticas”. Mas não, os marxistas (não só o Prof. Gilberto) insistem em descrever sumariamente o que só posso descrever como um “Pseudo-Liberalismo Marxista”, isto é, um Liberalismo que só existe em sua própria mente, porque nenhum liberal o reconhece como a sua visão de mundo. Esse Pseudo-Liberalismo Marxista só foi criado e continua a existir para servir de alvo nos exercícios de tiro de intelectuais marxistas. Eles até podem acertar alguns tiros – mas o alvo é falso, e, portanto, os liberais reais, não os de palha, não se sentem atingidos, pela razão simples de que não são atingidos.

g) Pergunto: teria eu alguma chance de diálogo com marxistas se me propusesse a fazer uma palestra sobre “Marxismo e Educação” e me recusasse a conceituar o Marxismo, dizendo apenas que o Marxismo é, “por excelência”,  a religião escatológica de indivíduos que se autoproclamam profetas da iminente implantação de uma versão secular do reino de Deus na terra sob a liderança dos pobres não só de espírito?

2. Estranhos Liberais

a) O tema da palestra do Prof. Gilberto era: “O Liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”. Infelizmente não gravei a palestra, mas anotei, com razoável cuidado, as observações que me causaram mais espécie. Depois das respostas do Prof. Gilberto aos meus comentários iniciais à sua palestra, procurei encontrar uma explicação plausível para o fato de que duas pessoas adultas, intelectualmente maduras, professores universitários, possam ter se desencontrado tanto na interpretação de uma palestra que durou uma hora, se tanto. Achei uma explicação que, pelo menos para mim, lançou alguma luz sobre o problema. Quando vou assistir a uma palestra, imagino que o título que o autor lhe deu procure resumir o que ele de fato vai discutir na palestra. No caso, o Prof. Gilberto poderia ter escolhido vários outros títulos para a sua palestra: “Raizes da Escola Pública Moderna”, “A Gênese da Escola Pública Moderna”, etc. Na verdade, nem mesmo esses títulos corresponderiam exatamente ao que o Prof. Gilberto discutiu, porque entre as questões que ele enfatizou está a da matriz curricular composta de disciplinas e séries que, a meu ver, caracteriza, hoje, não apenas a escola pública, mas toda a escola moderna (com raríssimas exceções que eu cada vez prezo mais). Assim, títulos como “Raizes da Escola Moderna”, “A Gênese da Escola Moderna”, etc. talvez fossem mais adequados do que os anteriormente mencionados. Mas o Prof. Gilberto optou por dar à sua palestra o título: “O Liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”. Ao escolher esse título, o Prof. Gilberto gerou, em mim, a expectativa de que, a menos que claramente ressalvado, os fatores que ele considerou constitutivos da escola pública moderna fossem ligados ao Liberalismo. Por isso achei, e continuo achando, estranho que numa palestra sobre o papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna tenha sido dada tanta ênfase a pessoas e movimentos não liberais (Reforma Protestante, Contra-Reforma Católica, Comenius, Horace Mann, a Escola Nova) e tão pouca ênfase aos liberais. Na verdade, os únicos liberais mencionados foram Adam Smith e, até certo ponto, os dois philosophes franceses (Diderot e Condorcet). Como vai ficar claro desta minha exposição, não considero a Reforma Protestante, a Contra-Reforma, Comenius, Horace Mann e a Escola Nova movimentos ou pessoas liberais. Foi por isso que tantas de suas considerações me causaram espécie.

b) A primeira delas foi uma observação em que o Prof. Gilberto colocou o início do Liberalismo na Idade Média, por volta do século X, quando a classe burguesa estaria procurando se livrar do que ele chamou de “entraves feudais” (especialmente pagamento de impostos aos senhores feudais). Como mencionei essa tese em meus comentários iniciais, e o Prof. Gilberto não a rejeitou, presumo que ela reflita o que ele de fato pensa. Foi em relação a essa observação do Prof. Gilberto que comentei que ele parece identificar o Liberalismo com “a luta pela liberdade” contra os mais variegados tipos de opressão, luta essa na qual se uniram pessoas de diversos matizes teóricos, e com uma variedade de interesses práticos – amantes e guerreiros da liberdade, talvez, todos eles, mas certamente não necessariamente liberais, no sentido mais técnico do termo. Como, porém, o Prof. Gilberto não discutiu e nem mesmo levantou esse sentido mais técnico do termo “Liberalismo”, permaneceu, a meu ver, essa identificação tácita do Liberalismo com “a luta pela liberdade”.

c) Se não houve tal identificação entre Liberalismo e “a luta pela liberdade”, como é que se explica que, ao procurar esclarecer o papel do Liberalismo na “Produção da Escola Pública Moderna”, o Prof. Luiz invoque, primeiro, os Reformadores Protestantes, depois a Contra-Reforma, depois Comenius, depois Adam Smith, depois os philosophes do século XVIII, depois Horace Mann e, finalmente, a Escola Nova?

d) Entrando em mais detalhe na questão, aos Reformadores Protestantes estou até disposto a conceder que tenham contribuído para a luta pela liberdade, ao enfrentar o monopólio autoritário da Igreja Católica no Ocidente. Mas de que forma pode sua contribuição ser entendida como parte do papel que o Liberalismo teria exercido na “Produção da Escola Pública Moderna”? Creio que os Reformadores Protestantes contribuíram não só para a luta pela liberdade (embora tenham também contribuído, significativamente em alguns casos, para suprimir a liberdade – haja vista Lutero / Münzer e Calvino / Michel de Servetus), mas também para o surgimento da escola moderna – mas não vejo como tenham contribuído para a construção da escola pública moderna nem, muito menos, como alguma contribuição que possam ter dado seja caracterizável como parte do papel do Liberalismo na construção dessa escola (pois era disso que tratava a palestra). Estou genuinamente interessado em entender isso, como liberal, como educador, como ex-protestante, e como ex-estudioso da Reforma Protestante. [Nota de 18/3/2018: removam-se os dois “ex” na descrição de minha condição e de minha situação atual, por favor.]

e) Se estou disposto a conceder aos Reformadores Protestantes uma participação na luta pela liberdade, o mesmo não o faço em relação à Contra-Reforma e aos Jesuítas. Como eles vieram parar numa palestra sobre o papel do Liberalismo na “Produção da Escola Pública Moderna” é, para mim, uma questão ainda mais difícil de entender. Note-se que estou sendo totalmente sincero aqui e não tentando ser o que em inglês se denomina de “facetious”.

f) No caso de Comenius, entendo perfeitamente o papel que desempenhou na construção da escola moderna – mas, novamente, não me fica claro o papel que teria tido na construção da escola pública moderna, nem como esse eventual papel possa ser caracterizável como parte da contribuição do Liberalismo à “Produção da Escola Pública Moderna”. Novamente, estou tentando entender. (Mais sobre isso adiante).

g) Quando o Prof. Gilberto começou a discutir Adam Smith, respirei aliviado, porque achei que finalmente o Liberalismo, como eu o entendo, iria começar a ser discutido. Tenho, de Adam Smith, livros totalizando perto de cinco mil páginas. O que é pinçado de Adam Smith? Uma frase, muito citada, em que ele reconhece que a divisão do trabalho pode levar ao emburrecimento do trabalhador (tema que outro palestrante, o Prof. Luiz Carlos Santana, também enfatizou em sua palestra, a segunda da série), e algumas afirmações (a meu ver incorretas) de que Adam Smith teria defendido a educação apenas dos filhos dos trabalhadores nas indústrias. Eis como o próprio  Prof. Gilberto resume, em sua primeira resposta, o que ele disse sobre Adam Smith: “Eu disse que Smith não pode ser somado entre os defensores da escola para todos, pois afirmou a necessidade de educação, exclusivamente, para os filhos dos trabalhadores das indústrias, visando combater os resultados da divisão do trabalho manufatureiro sobre as ‘faculdades intelectuais e marciais’ daqueles que a ela estavam submetidos. Defendia ele, ainda, uma escola suficientemente barata que permitisse até as famílias trabalhadores pagarem pelos estudos de seus filhos. Só isso”. Concedido que Adam Smith não tenha defendido a escola para todos. Mas é crível que ele tenha defendido “a necessidade de educação, exclusivamente, para os filhos dos trabalhadores das indústrias”? Registre-se que esta não é uma anotação que eu fiz de algo que o Prof. Gilberto disse, mas, sim, algo que ele próprio decidiu registrar, por escrito, na resposta aos meus comentários. Nela ele não faz referência à escola e, portanto, a fortiori, à escola pública: ele faz referência à educação, tout court. Onde é – eu gostaria de saber – que Adam Smith disse ou mesmo sugeriu que os filhos, digamos, dos proprietários de terra e dos “capitães da indústria nascente” não tinham necessidade de educação? Além disso, por que não trazer à baila uma enormidade de outras coisas importantes que Adam Smith disse e que são profundamente relevantes para a questão da escola pública, como, por exemplo, a frase final do trecho que cito mais generosamente adiante (como anexo a esta resposta), que diz: “É por isso que a melhor educação é aquela que se ministra em instituições não públicas”.

h) No tocante aos dois representantes do Iluminismo Francês (Diderot e Condorcet) mencionados pelo Prof. Gilberto, eu pela primeira vez não tenho maiores ressalvas. Minha única estranheza diz respeito à companhia em que eles (e Adam Smith), foram colocados no contexto da discussão do Prof. Gilberto.

i) O Prof. Gilberto diz, em sua segunda resposta: “Em nenhum momento afirmei que a escola pública que conhecemos e que pode ser sintetizada por seu ideário liberal clássico – escola pública, universal, gratuita, obrigatória e laica – teve existência até a época de emergência do estado burguês”. Eu certamente não disse que o Prof. Gilberto havia afirmado isso. Mas é estranho que, considerando que a escola pública, com esse ideário, tivesse surgido no século XVIII, o Prof. Gilberto tenha gasto tanto Latim falando do Feudalismo, dos Reformadores Protestantes, da Contra-Reforma e de Comenius, como se eles todos fossem relevantes para o entendimento do papel que o Liberalismo teria tido no surgimento dessa escola. A estranheza aumenta quando o Prof. Gilberto esclarece que “Comenius, não defendeu uma escola gratuita, logo nem obrigatória”, e que, “por motivos óbvios, ele, que era um bispo protestante, não defendeu, também, uma escola laica”. Ora, Comenius não era liberal (era um pastor, e depois um bispo moraviano), não defendeu uma escola gratuita, nem obrigatória, nem laica – o que faz ele, então, na discussão da “produção” da “escola pública que conhecemos e que pode ser sintetizada por seu ideário liberal clássico – escola pública, universal, gratuita, obrigatória e laica” – ainda mais quando esse escola, segundo o Prof. Gilberto, só passou a existir a partir do final do século XVIII e Comenius viveu na primeira metade do século XVII? Fico me lembrando da piada: “Ora, pois: afinal de contas, o que estou fazendo aqui? Não me chamo Manuel…”.

j) O título desta seção da minha resposta, “Estranhos Liberais”, vindo, como vem, depois das explicações do Prof. Gilberto, pode ser considerado uma provocação desnecessária. Não penso assim. A razão para manter o título é levantar a questão: se os reformadores protestantes, os contra-reformadores católicos, e Comenius, não são liberais, e em alguns casos defenderam ideias contrárias às do ideário da escola pública (ideário que o Prof. Gilberto chama de liberal, mas que não é liberal, como se verá), o que eles estão fazendo numa palestra sobre o papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna? Minha perplexidade tem sua explicação aí, nesta questão.

3. Importantes Liberais Omitidos na Discussão

a) A inclusão dos Reformadores Protestantes, da Contra-Reforma e de Comenius na discussão que o Prof. Gilberto fez do papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna é ainda mais estranha face à não-inclusão de pessoas que certamente podem ser consideradas como tendo feito uma contribuição importante para o ideário liberal e para a teoria da educação, como John Locke, no século XVII, e Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII (embora, dos dois, não tenha dúvida de que Locke tenha contribuído mais para o Liberalismo e Rousseau mais para a teoria da educação).

b) Conforme observei nos meus comentários à palestra do Prof. Luiz Carlos Santana, é estranho que os marxistas, ao discutir a escola moderna (pública ou não) se atenham muito mais aos aspectos formais e macros da laicidade, universalidade, obrigatoriedade, gratuidade, e unicidade, deixando de dar atenção aos aspectos mais substantivos e micros da relação professor/aluno e do binômio ensino/aprendizagem (coisas que interessavam muito de perto a Locke e a Rousseau).

c) Embora Adam Smith tenha sido mencionado na discussão e eu não tenha dúvida de que o Prof. Gilberto esteja plenamente familiarizado com suas ideias, repito o que já disse, a saber, que aquilo que o Prof. Gilberto escolheu dizer sobre Adam Smith dificilmente pode ser considerado como a contribuição mais importante de Adam Smith à discussão do tema que o Prof. Gilberto se propôs.  Cito, ao final desta minha réplica às respostas do Prof. Gilberto aos meus comentários originais sobre sua palestra, algumas passagens de Adam Smith que me parecem muito mais relevantes ao tema do que aquilo que ele resolveu pinçar, dando aos alunos, uma impressão bastante distorcida da posição de Adam Smith. Foi por causa de distorções como esta que disse que o Prof. Gilberto prestou um desserviço aos alunos presentes à sua palestra: podendo esclarecê-los sobre a real contribuição de Adam Smith para a discussão da escola pública moderna, preferiu se omitir sobre aspectos importantes, ressaltando alguns bem mais secundários. (Mais sobre a questão do “desserviço” adiante).

4. A Conceituação do Liberalismo

a) Isso posto, é preciso voltar à questão da conceituação do Liberalismo. Em sua segunda resposta, o Prof. Gilberto avança um pouco em relação à sua palestra. Diz ele:

“Ao iniciar a exposição não fiz uma conceituação do liberalismo enquanto doutrina. Afirmei, inclusive, que esse não era o meu caminho, pois não me sensibiliza a forma pela qual o liberalismo é vendido pelos seus apologetas e pelos seus especialistas. Por outro lado, há a questão da ambiguidade que cerca a sua conceituação. . . . Para mim, o importante era resgatar o conteúdo do liberalismo, enquanto a ‘visão de mundo’ por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe. É claro que ao discutir o liberalismo, enquanto doutrina, essa visão de mundo também se manifesta, mas essa doutrina é só uma de suas expressões e tem, por isso, uma acepção muito mais restrita. Portanto, vi o liberalismo no sentido mais lato possível, como visão de mundo da classe burguesa. A partir daí, não pode encontrar eco em meu entendimento a afirmação de que a questão central do liberalismo é a liberdade, segundo o Prof. Eduardo Chaves, pois assim posta é abstrata e, portanto, ahistórica. Para mim, o liberalismo ganha significados históricos diferentes em distintos momentos, desde a fase de transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa, independente de uma certa unidade e homogeneidade do discurso liberal em todas as épocas. Ele pode, concretamente, ter tudo a ver com a liberdade, mas pode, também, negar-se e expressar o seu contrário. Eu coloco o meu entendimento da visão de mundo burguesa no âmbito da contradição. Não basta que o discurso pleiteie a liberdade; importa ver se, concretamente, a liberdade está pleiteada.”

b) Gostaria de destacar os elementos que me parecem mais importantes nessa passagem. O Prof. Gilberto afirma não desejar conceituar o Liberalismo “enquanto doutrina”. Ele gostaria de resgatar (sic) “o conteúdo do Liberalismo enquanto a ‘visão de mundo’ por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe”. Ele reconhece, porém, que a “doutrina” é uma das manifestações dessa visão de mundo. Ele, no entanto, considera que a “doutrina” é apenas uma das expressões possíveis do Liberalismo, e, que, portanto, enfocar o Liberalismo “enquanto doutrina” seria adotar uma “acepção . . . restrita” do Liberalismo. Por isso preferiu ver o Liberalismo “como visão de mundo da classe burguesa”. Assim, diz ele, não pode concordar comigo que a questão central do liberalismo é a liberdade, considerando minha posição como “abstrata” e “ahistórica”. Para mim, que não sou nem concretista nem historicista, esses termos não são termos de opróbrio, como, em parte [em relação à natureza abstrata da discussão], já observei.

c) Mas o que é uma “visão de mundo” – e qual é a “visão de mundo” que caracteriza os liberais? No meu entender, uma visão de mundo se manifesta, não através de uma série de imagens, mas, sim, através de uma série de conceitos, valores e juízos que, integrando-se de forma coerente, nos permitem, de um lado, descrever e explicar a realidade e, de outro, agir na busca de nossos objetivos, na defesa de nossos interesses, e na promoção de nossos valores. Se um conjunto integrado de conceitos, valores e juízos é uma doutrina (ou uma teoria), não há como uma visão de mundo possa não ser doutrinária (ou se expressar como uma teoria). A visão de mundo dos liberais é, por conseguinte, eminentemente doutrinária (nesse sentido – eu prefiro caracterizá-la como teórica – especificamente, como uma teoria filosófica).

d) O que é o Liberalismo? O Liberalismo é, basicamente, uma filosofia política que tomou forma no final do século XVII e, principalmente, no século XVIII. Por mais que seja possível colocar o surgimento da burguesia no século X, o Liberalismo só tomou forma a partir do século XVII. A filosofia liberal se sustenta no PRINCÍPIO FUNDAMENTAL de que A LIBERDADE DO INDIVÍDUO É O BEM SUPREMO, que, enquanto tal, tem preponderância sobre qualquer outro que possa ser imaginado. A liberdade é importante especialmente no contexto da relação do indivíduo com o estado e com seus semelhantes na sociedade. Para o Liberalismo, é imperativo, na vida em sociedade, buscar a maior liberdade possível para cada um que seja compatível com igual liberdade para todos. O termo “Liberalismo” vem daí: tem a mesma raiz que o termo “liberdade”. O historiador (ou o sociólogo do conhecimento) pode procurar explicar porque essas ideias só emergiram com clareza no final do século XVII e se fortaleceram no século XVIII. Mas isso não altera a natureza do Liberalismo, que é uma filosofia política, nem afirma-lo enquanto tal é caracteriza-lo de forma “abstrata” e “ahistórica”.

e) O vínculo essencial do Liberalismo é, portanto, com a liberdade – não com a propriedade privada, como, em geral, entendem e pretendem os marxistas. A defesa do direito do indivíduo à propriedade privada é um corolário do Liberalismo na ÁREA ECONÔMICA, não o conceito principal que o define. Este lugar pertence à liberdade, um conceito bem mais amplo, que abrange, além dos econômicos, elementos políticos e sociais.

f) Mesmo na área econômica, a defesa do direito à propriedade privada não esgota o que o Liberalismo defende. O chamado Liberalismo Econômico, geralmente denominado Capitalismo, é uma decorrência lógica do princípio básico do Liberalismo, a saber, que em sociedade é desejável buscar a maior liberdade possível para cada um que seja compatível com igual liberdade para todos. Aplicando esse princípio à área econômica, o Liberalismo defende a tese de que o estado (ou o governo) deve se abster de toda e qualquer tentativa de atuar diretamente na economia (como empresário) ou mesmo de regular, fiscalizar ou de qualquer forma intervir na economia. Na economia o princípio básico do Liberalismo é geralmente resumido na expressão francesa de que o estado, em relação à iniciativa privada, deve “LAISSEZ FAIRE”, isto é, deixar fazer, ou, melhor, “sair da frente e deixar a iniciativa privada agir”.

g) É esse princípio fundamental que sustenta o corolário, agora na ÁREA POLÍTICA, de que melhor estado é aquele que governa menos, deixando, portanto, aos indivíduos mais liberdade. O melhor estado, assim, é o ESTADO MÍNIMO, que deixa aos indivíduos o máximo de liberdade compatível com as exigências da vida em sociedade. Este princípio do estado mínimo é, assim, uma decorrência do princípio da liberdade do indivíduo como bem supremo.

h) Sendo a liberdade o conceito mais importante do Liberalismo, é importante ter clareza sobre como esse conceito é entendido pelo Liberalismo. Ser livre, para o Liberalismo, é não ser coagido a agir (a fazer ou a deixar de fazer) – é não ser obrigado a fazer, nem impedido de fazer – por terceiros. Ser livre, portanto, não deve ser confundido com “ter condições materiais de fazer”, “ter poder de fazer”, alguma coisa.

i) Esse conceito de liberdade é freqüentemente descrito como um conceito negativo ou formal de liberdade. Negativo, porque a liberdade é definida em termos negativos, como não-coação, sendo livre a pessoa que não é obrigada a fazer, nem impedida de fazer, alguma coisa. Formal, porque uma pessoa livre para fazer algo (porque não coagida ou obrigada a deixar de fazê-lo) pode não conseguir fazê-lo, por lhe faltarem condições materiais para tanto (capacidade intelectual, competências cognitivas, conhecimentos, motivação, persistência, recursos, etc.).

j) Conceituado o Liberalismo, como o entendem os liberais, é fácil de entender o profundo mal-estar que causa a um liberal a associação do Liberalismo à Reforma Protestante e especialmente à Contra-Reforma e aos Jesuítas.

5. A Trajetória do Liberalismo

a) Uma vez formulada com clareza essa visão do mundo – e a obra de Adam Smith representa, sem sombra de dúvida, sua formulação mais consistente e sistemática, antes do século XX – aqueles que ajudaram a formula-la, ou que foram por ela sensibilizados (coisa que nunca aconteceu com o Prof. Gilberto), puseram-se a lutar para que ela transformasse a realidade que eles viviam. É uma notável coincidência que o ano de 1776 marca a data da publicação de An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, de Adam Smith, oportunamente traduzido para o Português como A Riqueza das Nações, e da Revolução Americana, que resultou na Declaração da Independência dos Estados Unidos – nação de imigrantes que, oprimidos na Inglaterra, fugiram para a América, e, sentindo, mesmo na América, o peso da opressão, se propuseram a criar, a partir do zero, uma nova nação, em cima de princípios basicamente liberais, o que se deu no final do século XVIII. (1776 é também a data da morte de David Hume, sobre quem escrevi, trinta anos atrás, minha tese de doutoramento – outro liberal e o maior amigo de Adam Smith).

b) O século XIX foi, nos Estados Unidos, o século em que o Liberalismo foi colocado em prática – não, naturalmente, forma perfeita e não, é evidente, sem oposição. Ironicamente, o Liberalismo, em sua versão clássica, a única que merece o nome, acabou sendo abandonado nos Estados Unidos de forma gradualista, por pressão daqueles que, sob influência de ideias socialistas ou socializantes, concluíram que, não sendo o estado americano um estado opressor, seria muito difícil promover o socialismo mediante o confronto, sendo melhor estratégia a conquista gradual de pequenas vitórias que fossem, pouco a pouco, inflacionando as atribuições do governo e, assim, afastando-o do Estado Mínimo liberal. Esse movimento ganhou grande força com o “New Deal” de Franklin Delano Roosevelt (década de 30 e 40 deste século) mas se cristalizou mesmo com “The Great Society” de Lyndon Baynes Johnson, na década de 60, em pleno século XX. [Numa rara concessão a referências bibliográficas, sugiro, aqui, a leitura dos livros: Por que não Vingou? História do Socialismo nos Estados Unidos, de Seymour Martin Lipset e Gary Marks, e  A Social-Democracia nos Estados Unidos, de Sidney Hook, Leszek Kolakowski, Seymour Martin Lipset e Michael Harrington, ambos publicados pelo Instituto Teotônio Vilela, Brasília, 2000 e 1999, respectivamente. A posição liberal (no sentido em que eu emprego o termo) está bem apresentada em A Life of One’s Own: Individual Rights and the Welfare State, de David Kelley, CATO Institute, Washington, 1998].

c) A consequência mais irônica desse movimento está no fato de que nos Estados Unidos os termos “liberal” e “Liberalism” foram usurpados por essas tendências socializantes, hoje representadas pelos social-democratas (como Edward “Ted” Kennedy e William “Bill” Clinton e, em geral, os membros do Partido Democrata, desde a época do New Deal de Franklin D. Roosevelt), que se rotulam, e, nos Estados Unidos, são rotulados, de liberais. Os que são realmente liberais nos Estados Unidos hoje se viram forçados a se chamar de libertários. (John Rawls, por exemplo, bastante conhecido hoje em dia no Brasil, não é um liberal, estando muito mais perto da Social-Democracia do que do Liberalismo, embora ele próprio se rotule de liberal – mas no sentido “americano” do termo. Tradutores profissionais frequentemente desconhecem esse fato, e traduzem os termos ingleses “liberal” e “liberalism” por “liberal” e “liberalismo”, sem qualquer ressalva ou explicação, assim confundindo leitores menos avisados – isso também é um desserviço, no caso aos leitores brasileiros).

d) Horace Mann, que recebeu algum destaque na palestra do Prof. Gilberto, se inclui, como defensor da escola pública, obrigatória e gratuita, no campo OPOSTO ao do Liberalismo – embora, por causa das questões terminológicas assinaladas no item anterior, tenha ficado conhecido, aqui no Brasil, como liberal, fato que induz muitas pessoas a equívocos lastimáveis. O Liberalismo defende uma escola que não é nem pública, nem obrigatória, nem gratuita.

e) O mesmo se pode dizer de todo o movimento da Escola Nova, que só pode ser considerado liberal no sentido em que os americanos passaram a usar o termo, sentido esse que é fundamentalmente CONTRÁRIO ao sentido que o termo tinha quando da criação da nação americana, que é hoje preservado, nos Estados Unidos, pelo termo “libertário”. Quanto equívoco teria sido eliminado se essa infeliz usurpação de uma palavra não tivesse ocorrido.

f) Em suma, eu não nego a importância de Horace Mann e da Escola Nova na construção da escola pública moderna. Longe disso. Minha tese é de que a contribuição de ambos não foi caracteristicamente liberal e, em alguns aspectos, foi eminentemente anti-liberal – e eu posso fazer uma afirmação dessas de forma absolutamente coerente porque não hesito em conceituar o Liberalismo com clareza e precisão.

g) Especificamente sobre a Escola Nova, a réplica do Prof. Gilberto me deixa ainda mais perplexo. Ele diz:

“A unicidade, como já expus no primeiro e-mail, transformou-se numa bandeira de luta do escolanovismo, no último terço do século XIX, por força do combate exercido contra a escola dualista burguesa, por ele denominada escola tradicional. A unicidade seria o recurso para a superação do dualismo escolar, nesse momento visto pela leitura liberal dos escolanovistas, falsamente, como elemento determinante das classes sociais.”

Aqui a Escola Nova é caracterizada como liberal. A Escola Nova, esclarece-se, teve como bandeira de luta a unicidade da escola. Ao mesmo tempo, afirma-se que a Escola Nova combateu “a escola dualista burguesa”. No entanto, o Prof. Gilberto caracteriza o Liberalismo como a visão de mundo da burguesia. De que há uma contradição aqui não tenho dúvida. Suspeito que o Prof. Gilberto, para se safar dela, diria que a contradição é uma contradição interna do Liberalismo. Mas não é. Primeiro, porque a Escola Nova não é liberal. Segunda, porque o Liberalismo não defende nem a unicidade nem o dualismo da escola: defende uma escola plural. Terceiro, e entrando aqui no cerne da questão, que, atrás, concedi apenas por amor à argumentação, porque o Liberalismo não é a visão de mundo da classe burguesa, da mesma forma que o Marxismo (ou Socialismo) não é a visão de mundo da classe trabalhadora.

h) A tese de que estamos divididos, hoje, basicamente em duas classes, a classe burguesa e a classe trabalhadora, e de que cada uma dessas classes tem UMA visão de mundo determinada ou condicionada por seu papel no processo produtivo, e que o Liberalismo seria a visão de mundo da burguesia, está basicamente ultrapassada (se é que algum dia teve alguma validade). Se formos ainda falar em classe como categoria determinada pelo papel de seus membros no processo produtivo, temos bem mais do que duas classes. Mesmo que, num esforço redutivo, elegêssemos concentrar nossa análise apenas nas duas classes privilegiadas pelo Marxismo, encontramos hoje uma boa parcela dos membros da classe dita burguesa (incluindo intelectuais, empresários e profissionais liberais) optando por um Socialismo de sabor marxista, como encontramos membros da classe dita trabalhadora optando por valorizar a liberdade e procurando afastar o governo de seu caminho.

i) O que diferencia liberais e socialistas não é sua vinculação a classes diferentes e antagônicas, caracterizadas pelo seu papel no processo produtivo, mas, sim, o tipo de sociedade em que cada um prefere viver e pelo qual se dispõe a lutar: se uma sociedade em que a liberdade é o valor fundamental ou se uma sociedade em que a igualdade é o valor fundamental. Encontramos, hoje, membros das duas classes que o Marxismo privilegia defendendo tanto uma como outra dessas sociedades. Os que defendem a primeira alternativa lutam pela ampliação do papel do indivíduo e da iniciativa privada na sociedade e pela redução do papel do estado ou do governo. Os que defendam a segunda alternativa parecem acreditar que só se alcança uma sociedade mais igualitária reduzindo o espaço da liberdade dos indivíduos e da iniciativa privada e ampliando o espaço da ação governamental – espaço este que iria desde a propriedade total dos meios de produção defendida por um Comunismo hoje, espero, definitivamente ultrapassado, até o exercício de funções regulatórias e distributivas hoje tão favorecidas pelos comunistas de ontem.

j) Mas quero, antes de concluir, voltar à questão da escola, para que fique evidente quais são minhas discordâncias com uma palestra que se propunha a discutir o papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna. Essa escola pública moderna, que o Liberalismo teria ajudado a criar, segundo entendi da apresentação do Prof. Gilberto, seria laica, universal, gratuita, obrigatória, e única (indiferenciada). O que sobretudo me chocou na palestra foi o fato de que a escola defendida pelo Liberalismo NÃO TEM NENHUMA DESSAS CINCO CARACTERÍSTICAS: não é necessariamente laica, porque o Liberalismo admite escolas confessionais; não é universal, porque o Liberalismo, ao propugnar por uma escola não estatal e não controlada pelo Estado, deixa aberta a possibilidade de que, em determinados contextos, não haja escola nenhuma (e que, por exemplo, a educação seja feita em casa ou por tutores privados); não é gratuita para o usuário, porque o Liberalismo não inclui a educação entre serviços custeados por impostos que o Estado deve prover à população (vide o texto de Adam Smith); não é obrigatória, porque o Liberalismo, defendendo, como de fato defende, a liberdade dos indivíduos, é contra a obrigatoriedade da frequência à escola; não é, por fim, única, porque o Liberalismo defende a existência de uma escola tão plural quanto possível. Diante disso, não é de admirar que eu ache que a palestra apresentou uma caricatura do Liberalismo, para poder colocá-lo como responsável, ainda que não solitariamente, pela escola pública moderna.

6. Sobre o Restante

a) O Prof. Gilberto me conclama a ter a “grandeza moral e intelectual” de reconhecer que eu teria caricaturado a palestra dele. Eu, infelizmente, não vejo como possa fazer isso em sã consciência. Se a palestra foi gravada e eu, ouvindo-a novamente, perceber que me equivoquei, não hesitarei em admitir. Ou, não tendo sido, seria útil se fosse possível ter acesso ao texto que o Prof. Gilberto tinha consigo no dia da palestra (e que, embora não o tenha lido, aparentemente serviu de base para sua palestra).

b) Na minha opinião, que espero ter esclarecido e fundamentado aqui, e independentemente de eu ter caricaturado a sua palestra, o Liberalismo foi, intencionalmente ou não, por má fé ou por desconhecimento de como os liberais vêem o Liberalismo, caricaturado na palestra do Prof. Gilberto.

c) O Prof. Gilberto, ao final de suas respostas, faz ressalvas ao meu uso do termo “desserviço”, que esclareci nesta resposta. Ao fazê-las, insinua que eu deixei a ética de lado, reivindica tê-la de seu lado, e afirma: “Eu nunca consideraria um ‘desserviço’ aos estudantes que assistem às suas [no caso, minhas, de Eduardo Chaves] aulas o fato de, nela, serem veiculadas ideias com as quais não comungo”. Mas eu em nenhum momento disse que o Prof. Gilberto prestou um desserviço aos alunos presentes simplesmente por ter veiculado em sua palestra ideias com as quais não comungo. Felizmente, o Prof. Gilberto neste caso esclarece que “o desserviço de uma ação existe quando se sustenta [o quê?] na má fé ou no erro”. Tirante a falta de objeto direto na frase, concordo. Não afirmei que ele prestou um desserviço aos alunos presentes por má fé, porque não o conheço o suficiente para fazer uma afirmação desse tipo e duvido que, conhecendo-o melhor, tivesse base para fazê-lo – mas estou convicto de que está errado na sua visão do Liberalismo e do seu papel na construção da escola pública moderna (embora consiga entender perfeitamente porque ele acha que não está).

d) Seguem, após a assinatura, as passagens de Adam Smith a que fiz referência.

Eduardo Chaves

V. Anexo: Passagens de Adam Smith

Algumas passagens de Adam Smith, em A Riqueza das Nações, Livro V, traduzidas do inglês por mim, que são profundamente relevantes, eu diria, para uma análise da Educação Superior Brasileira atual. Esse livro foi originalmente publicado em 1776, ou seja, 225 anos atrás. Sua relevância para hoje, porém, no essencial, ainda é total – e nesse essencial se inclui o que ele diz sobre a educação (em especial a superior).

Os trechos são retirados de várias passagens e foram traduzidos meio livremente. Entre um parágrafo e outro podem ter sido omitidos vários parágrafos não tão relevantes ao que quero registrar.

As passagens foram retiradas das pp.758-764 da edição de An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of the Nations, organizada por R. H. Campbell, A. S. Skinner e W. B. Todd, publicada pelo Liberty Fund, Indianapolis, 1981, na serie Liberty Classics, reimpressão da edição publicada em 1976, data do bicentenário da publicação inicial da obra, pela Oxford University.

“Artigo II – Do Custeio das Instituições Dedicas à Educação da Juventude

As instituições dedicadas à educação da juventude podem gerar receita suficiente para cobrir suas próprias despesas, através de taxas que os estudantes pagam à instituição e honorários que pagam aos mestres.

Mesmo que o pagamento dos mestres não seja totalmente resultante de honorários pagos pelos estudantes, ainda assim não é necessário que ele seja derivado de impostos. [Ele vai mostrar, em seguida, que o os mestres podem ser pagos com fundos decorrentes de dotações de governos e doações de pessoas privadas, indivíduos ou instituições].

Em toda profissão, o esforço da maioria daqueles que a exercem é sempre proporcional à necessidade que eles têm de realizar esse esforço. Essa necessidade é maior quando os rendimentos de sua profissão são a única de fonte de renda que possuem. Neste caso, para obter os rendimentos necessários para viver, eles devem, ao longo de um ano, executar uma certa quantidade de trabalho que tenha um valor determinado. Quando a competição é livre, a rivalidade dos competidores obriga cada um a realizar seu trabalho com um alto grau de qualidade, para que possa se manter em concorrência.

Quando escolas ou universidades recebem dotações [de governos] ou doações [da iniciativa privada], [em vez de se manter através das taxas ou honorários pagos pelos alunos], a necessidade de esforço dos professores fica mais ou menos diminuída. Sua subsistência, à medida que é derivada de um salário fixo [pago pelas dotações ou doações], é evidentemente derivada de um  fundo que independe de seu sucesso como professor ou de sua reputação como mestre.

Em algumas universidades o salário do professor é apenas uma parte, freqüentemente pequena, dos rendimentos do professor, a maior parte se originando nos honorários pagos pelos alunos. A necessidade de esforço não é neste caso totalmente eliminada, mas apenas mais ou menos diminuída, dependendo do montante dos rendimentos que se origina de salário fixo. Sua reputação em sua profissão é, neste caso, ainda importante para ele, porque ele depende da afeição, da gratidão, e da opinião favorável daqueles aos quais ele presta serviços – e estas ele provavelmente não vai ganhar a menos que faça por merecê-las através da habilidade e da diligência com que executa os seus deveres.

Em outras universidades o professor é proibido de receber honorários dos alunos e seu salário fixo representa a totalidade dos rendimentos que ele aufere do exercício de sua profissão. Seu interesse, neste caso, fica desalinhado da qualidade com que ele exerce os seus deveres. É do interesse de qualquer homem viver de forma tão fácil quanto ele puder. Se seus rendimentos são exatamente os mesmos, exerça ele ou não, com grande diligência, deveres bastante trabalhosos, torna-se em seu interesse, pelo menos no entendimento vulgar desse termo, ou negligenciar os seus deveres inteiramente, ou, se ele estiver submetido a uma autoridade que não lhe permita fazer isso, exercê-los de uma forma tão descuidada e desleixada quanto o admita aquela autoridade. Se o professor é naturalmente ativo e gosta de trabalhar, ele vai perceber que é em seu interesse dedicar o melhor de seus esforços a uma atividade na qual a qualidade do esforço despendido é proporcionalmente recompensada – e não no desempenho de tarefas em que não faz diferença se o trabalho é bem feito ou não.

Se a autoridade à qual o professor está sujeito é uma autoridade corporativa e ele próprio faz parte da corporação, junto com outras pessoas que ou são professores ou aspiram a vir a sê-lo, eles todos encontrarão uma maneira de ser bastante indulgentes uns com os outros, e cada um vai consentir que seu próximo negligencie os seus deveres, desde que ele próprio possa negligenciar os seus. Na Universidade de Oxford, a maior parte dos professores pagos com recursos públicos abandonaram, já faz muitos anos, até mesmo qualquer aparência de que têm que ensinar seus alunos, quanto mais que o tenham que fazer com qualidade (razão pela qual se diz que se alguém perder a saúde em Oxford por ter estudado demais só pode culpar a si próprio, pois não terá sido por imposição de terceiros).

Se a autoridade à qual o professor está sujeito é estranha aos círculos universitários (como um bispo, o governador da província, ou um ministro, por exemplo), provavelmente não se admitirá que o professor negligencie o seu trabalho totalmente. Contudo, tudo o que seus superiores poderão fazer, neste caso, é obrigá-lo a dar um certo número de aula por semana ou por ano aos seus alunos. O conteúdo dessas aulas vai depender, quanto à sua pertinência e qualidade, inteiramente da diligência do professor – e essa diligência vai provavelmente ser proporcional aos motivos que ele tenha para exercê-la. Uma autoridade estranha à corporação dos professores provavelmente vá ser exercida de forma tão ignorante quanto caprichosa. A pessoa que exerce essa autoridade, sendo estranha aos círculos universitários, não vai assistir às aulas do professor, nem provavelmente as compreenderia se a elas assistisse. Por isso, acabam por exercer sua autoridade de forma caprichosa. Essa fato degrada o professor, pois este percebe que vai ser recompensado ou punido, não pela maior ou menor diligência com que exerça os seus deveres, mas, sim, pela forma que trate seus superiores, pelos favores que lhes preste, mesmo que, para isso, seja preciso sacrificar a honra da corporação a que pertence.

Quem quer que obrigue estudantes a freqüentar determinada universidade, independentemente dos méritos ou da reputação de seus professores, tende, também, em maior ou menor grau, a diminuir a necessidade de que aqueles professores tenham mérito ou boa reputação em seus ofícios.

Quando uma instituição concede, ela própria, bolsas de estudos aos seus alunos, ela os atrai, independentemente dos méritos e da reputação de seus professores.

Se houver recursos para a concessão de bolsas, melhor seria que elas fossem dispensadas aos alunos independentemente de vínculo com uma ou outra universidade específica, permitindo, assim, que os bolsistas escolham qual universidade preferem freqüentar. Assim as bolsas estimularão a concorrência e a melhoria da qualidade entre as universidades.

Se, em uma universidade, os professores cujos cursos o aluno vai freqüentar não forem livremente escolhidos pelos alunos, mas forem indicados por uma autoridade universitária, e os alunos não tiverem permissão para trocar de professores,  esse procedimento extinguirá toda e qualquer concorrência entre os professores e diminuirá, entre eles, a necessidade de exercer seus deveres com diligência e de dar aos seus alunos a devida atenção, podendo os professores até mesmo negligenciar totalmente os seus alunos, tanto quanto aqueles que não são pagos pelos alunos.

As regras que imperam nas universidades são em geral criadas, não em benefício dos alunos, mas para atender os interesses, ou, melhor dizendo, à tranqüilidade de seus mestres. Seu objetivo, em todos os casos, é preservar a autoridade dos professores, e, caso estes negligenciem os seus deveres, obrigar os alunos a se comportar como se os professores tivessem exercido seus deveres com a maior habilidade e a melhor diligência.

Quando os mestres cumprem com os seus deveres, não creio haver exemplos de que os alunos negligenciem os seus. Não é preciso impor nenhuma obrigatoriedade ou disciplina para que alunos freqüentem aulas a que realmente valha a pena assistir, como todos que já puderam observar essa situação estão prontos a testemunhar.

É por isso que a melhor educação é aquela que se ministra em instituições não públicas.”

[1] DIDEROT. Mémoires pour Catherine II. Paris: Éditions Garnier Frères, 1966, p. 131-2.

Transcrito aqui neste blog em Salto, 18 de Março de 2018

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