A Liberdade

Post com três componentes: um meu (o do meio) e dois de autores portugueses.

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1. Artigo de José Manuel Fernandes, do jornal (na verdade, meio de comunicação) português Observador, sobre o dia 25 de Abril lusitano — o “Dia da Liberdade Readquirida”, recebido, por email, do autor (que não encontrei, enquanto tal, no site da publicação):

A minha reflexão sobre o 25 de abril

“Caro leitor,

‘Quando encontramos pessoas que constituem uma excepção à aparente unanimidade do mundo a respeito de um assunto qualquer, mesmo que o mundo esteja certo é provável que os dissidentes tenham alguma coisa a dizer que vale a pena ouvir e que a verdade perca algo com o seu silêncio’.

Estas palavras foram escritas por John Stuart Mill, um dos filósofos da liberdade, há mais de 150 anos mas continuam muito actuais, tão actuais que as recordo agora que passa mais um aniversário do 25 de Abril – o 48º.

Mais um aniversário e mais uma oportunidade para recordar que liberdade é liberdade e que isso muitas vezes parece contrariar a vontade da maioria. Para recordar também que a liberdade reconquistada nesse dia não vinha com outro programa político senão o de devolver aos portugueses a palavra sobre o seu destino.

No Observador levamos muito sério esta ideia de liberdade – a ideia de que ela naturalmente contraria a unanimidade, até porque a minoria de hoje pode ser a maioria de amanhã. E que todas as vozes têm direito a exprimir-se, até para discordarmos delas.

Num tempo em que a cultura de cancelamento ameaça a liberdade de expressão, numa era em que regressam discursos autoritários, num país onde muitas vezes há receio de discordar e de divergir, o Observador procura a verdade com a noção de só pode fazê-lo se quebrar silêncios e interditos.

É uma missão em que nos empenhamos há quase oito anos (vamos celebrar em Maio o nosso oitavo aniversário), é uma missão de enorme urgência nestes tempos aflitivos e de guerra, é uma missão só possível de levar por diante com os nossos leitores (e ouvintes da Rádio Observador) e sobretudo com os nossos assinantes.

É também a eles que agradecemos em mais este aniversário da liberdade readquirida.”

José Manuel Fernandes
Publisher do Observador

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2. Meu Comentário
(de Eduardo Chaves), a seguir:

A lição de John Stuart Mill é que a liberdade seria fácil de exercer, e dificilmente seria reprimida, se nós apenas a utilizássemos para dizer aquilo com que todo mundo está de acordo. Mas ela precisa ser exercida, e não deve nunca ser reprimida, quando se trata da voz de um que clama sozinho num deserto intelectual, quando se trata da voz das minorias e dos minoritários. O democracia liberal não implica apenas a tomada de decisão pela maioria. Implica isso, mas também exige a preservação do direito das minorias, ainda que de um só, de externar o seu ponto de vista, de dizer e defender o seu ponto de vista, ainda que ele seja, mais do que apenas discordante, desagradável e ofensivo. Se quem foi ofendido julga que a ofensa é mentirosa e lhe causa dano (material ou à honra e a reputação), pode apelar à Justiça. Mas esse é um direito individual e nominado. Não se aplica à própria Justiça à qual cabe apurar se houve dano. Primeiro, porque a Justiça, ou qualquer tribunal, não é um indivíduo, que é o senhor dos direitos individuais. Segundo, porque, ainda que ela assim fosse considerada, ela estaria julgando em causa própria, o que é sempre inadmissível. Nos julgamentos colegiados, juízes que estejam direta ou indiretamente envolvidos, têm de se declarar incapazes de julgar, por falta de objetividade — princípio que, no Brasil foi julgado no lixo pelos membros do nosso tribunal maior.

Está na hora de lutar para recuperar as liberdades que estamos perdendo. É fácil perdê-las: é só não fazer nada que os ladrões da liberdade nô-la roubam e a levam embora.

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3. Artigo publicado também no Observador, de autoria de João Marecos, com o título A Liberdade da Expressão que Ofende (este disponível no site no endereço https://observador.pt/opiniao/a-liberdade-da-expressao-que-ofende/ (06 fev 2018, 06:0018). Ei-lo:

“As redes sociais, este paraíso de comunicação livre, tem vindo a tornar-se num espaço de expressão governado por uma ditadura da maioria – aquilo a que se usa chamar o politicamente correto.

Nunca conheci quem não fosse pela liberdade de expressão, a começar pela sua. Ainda que naturalmente limitada – a difamação, a injúria, o incitamento à violência ou à fraude, por exemplo, são crimes previstos na lei penal -, não restam dúvidas de que é absolutamente central em qualquer sociedade que se queira dizer livre.

Mas para que serve a liberdade de expressão? Por exemplo: posso defender que a cor da pele determina a capacidade intelectual de uma pessoa? Posso acreditar que um género é biologicamente inferior ao outro? Posso mentir sobre mim? Posso mentir sobre os outros? Posso dar opiniões com base em factos falsos? Posso defender realidades que a ciência atual rejeita?

Tudo isto são formas de expressão que, com grandes diferenças de grau – eu sei que estou a misturar muita coisa diferente – reputamos como de menor ou nenhum valor: mentiras, insultos, discurso de ódio, discriminação. E, ainda assim, a questão põe-se: se eu sou verdadeiramente livre para me expressar – se tenho um direito à liberdade de expressão -, não poderei ser racista? Não poderei ser machista? Não poderei ser mentiroso?

Como é, afinal: toleramos o discurso intolerante?

Vamos imaginar que dizemos coletivamente que não: não, o direito à liberdade de expressão não inclui estes discursos ofensivos, vis ou de menor valor. É um conforto: limpamos o espaço público deste tipo de intervenções e passamos a viver num lugar mais asseado.

Ficamos então com o que sobra: o que não ofende, o que não exclui, o que é verdadeiro. Mas quem define o que é ofensivo? Quem define o que é verdadeiro? A maioria? É uma hipótese. Afinal, em democracia, vinga a maioria.

Contudo, a maioria não é estanque. A maioria muda, evolui. E a verdade que aceitamos hoje é a mentira ofensiva de amanhã. Antes, a Terra era plana e as mulheres não votavam. Ai de quem viesse defender o contrário: fogueira com eles. Hoje, rimos com gosto e incredulidade, porque anda por aí um movimento que defende que a Terra é plana e erguemo-nos contra as desigualdades de género. E ainda bem: chegámos a um sítio melhor. Mas precisámos de quem contrariasse a maioria. Precisámos de dar espaço a todo o tipo de discurso, para que do confronto entre duas mundividências resultasse a melhor.

Vem-me tudo isto a propósito deste admirável novo mundo das redes sociais: o paraíso da comunicação livre, onde todos têm uma voz, uma oportunidade de expressar os seus pontos de vista e de entrar em diálogo.

Acontece, porém, que este paraíso de comunicação livre se tem vindo a tornar, progressivamente, num espaço de expressão governado por uma ditadura da maioria – aquilo a que se usa chamar o politicamente correto – onde se põe em causa não só o que foi dito pelo outro, mas o próprio direito do outro a dizê-lo.

O politicamente correto é, no fundo, um manual de regras para uma expressão higienizada. Regula-nos o conteúdo, a forma, o tempo e o meio da expressão.

Há palavras que não se podem usar nunca. Outras que não se podem usar com certas pessoas. Outras que não se podem usar em certas situações. Há coisas que não se dizem. Há momentos para dizer as coisas. Há palavras que podem ser ditas por uns, mas não podem ser ditas por outros. Há coisas com que não se brincam. Há brincadeiras que não são para agora. Há conversas que não se têm. Esta não é a altura certa. Isso não vem a propósito. Isso não se diz. Isso não se faz. Isso não se pensa.

O politicamente correto apresenta-se de cara lavada e com boas intenções: pretende defender os outros da ofensa, do mau trato, da discriminação. Tem, contudo, a perversidade de nos tornar polícias do discurso, dos outros e do nosso, que monitorizamos selvaticamente em busca de transgressões expressivas. E assenta, sobretudo, num engano generalizado e perigoso: o de que o espaço público de expressão não permite a expressão que ofende, que discrimina, que é falsa ou de que simplesmente não gostamos.

Ora, isso não é verdade: nem nós temos autoridade para dizer ao outro o que ele pode ou não pode dizer – insultando-o e perseguindo-o até ele se calar -, nem temos qualquer pretensão a que o discurso dos outros não magoe os nossos sentimentos, ofenda as nossas crenças ou, de um modo geral, nos provoque qualquer alteração negativa de estado de espírito.

O que me leva à questão com que comecei: para que serve a liberdade de expressão? Porque é que a Constituição – a nossa e muitas outras – fez questão de assegurar esse direito? Será que era preciso garanti-lo para proteger as opiniões maioritárias? Para permitir o discurso que não causa desconforto a ninguém? Para afirmar verdades universais e pacíficas?

Faria pouco sentido. Não: o direito à liberdade de expressão serve precisamente para proteger a liberdade, nossa e dos outros, de nos expressarmos, mesmo – ou sobretudo – quando essa expressão é incómoda. Não é grande feito reconhecer ao outro a liberdade de me tratar bem, de concordar comigo ou, no geral, de ser uma pessoa decente. O que precisa de defesa é a expressão que desagrada, a opinião que incomoda, o comentário que suja ou a atitude que escandaliza.

A liberdade de expressão serve para proteger aquilo que nós não gostamos que os outros digam, façam ou pensem. O racista pode ser racista. O homofóbico pode ser homofóbico. O mentiroso pode ser mentiroso. E toda a gente pode ter opiniões insultuosas e sem sentido.

É uma pena que existam? Será. Pessoalmente, acho lamentável. Mas não me cabe a mim proibi-los: cabe-me contrariá-los. É assim que funciona o jogo da livre expressão: cada um tem a sua visão e no final de uma longa, suja, incómoda e barulhenta refrega, provavelmente vai cada um à sua vida com a opinião que já tinha. Contudo, há em cada debate a pequena possibilidade de persuadirmos alguém, seja o outro ou os que assistiram. É também essa possibilidade que a liberdade de expressão quer proteger.

Nas redes sociais, como fora delas, cada um é responsável pelo que diz e justamente avaliado pelos outros em função disso. Aos racistas, aos homofóbicos, aos machistas, aos mentirosos e àqueles que estão simplesmente errados, deve responder-se sempre, incansavelmente, com discursos de sinal contrário, com argumentos, com factos e com críticas.

É através do confronto público, aceso e constante, dessas formas de expressão com as suas falhas lógicas, com os seus erros de base e com os seus preconceitos que as combatemos e derrotamos. Suprimir este tipo de discurso – proibindo-o, ostracizando-o – é escondê-lo na penumbra, é levá-lo para onde não o vemos nem o podemos criticar, mas onde ele continua a fazer o seu silencioso trabalho. Esse discurso tem direito a um espaço na discussão pública – e é só por isso que o podemos vencer.

Tolerar uma expressão não significa aceitar o seu conteúdo. Mas significa aceitar a sua existência. Da próxima vez que se escandalizar, lembre-se disso.”

[João Marecos tem 26 anos, é advogado e estudante de mestrado na New York University. Integrou os Global Shapers de Lisboa em 2014. É um dos autores da página “Os Truques da Imprensa Portuguesa”]

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Parabéns ao João Marecos, por escrever com tanta competência aos 26 anos.

Em Salto, 24 de Abril de 2022

Sermão Político Líbero-Conservador (Homenagem a Roger Scruton)

[Já tinha publicado este texto no meu Facebook quando fiquei sabendo da morte de Roger Scruton, ocorrida hoje, 12.10.2020. Fica como homenagem a ele.]

“Por um bom tempo, lá fora, nos EUA, com o PD, aqui com o PT, parecia que o futuro seria socialista. Parecia que o chamado “socio-progressivismo” iria dominar o mundo.

Num contexto assim, quem não era chegado ao socialismo, virou os olhos para o passado, lembrando de um mundo em que havia respeito à liberdade (não libertinismo), respeito à família, respeito a certos valores básicos, respeito a certos princípios naturais que devem governar a vida pessoal e social, respeito à responsabilidade de cada um por sua própria vida e a de sua família, busca de um governo pequeno, com menos impostos e nenhuma roubalheira, governo que aplica bem o dinheiro que recolhe, sem destinar metade pro próprio bolso e o dos amigos e apaniguados, governo que cuida da lei e da ordem, com respeito à propriedade privada bem como às crenças inclusive religiosas de cada um…

Esses olhos voltados para o passado fizeram a maioria da população concluir que seria necessário recapturar esses valores e princípios a todo custo. Assim nasceu o líbero-conservadorismo moderno, uma união estratégica de defensores do liberalismo econômico e de defensores de valores básicos e naturais que a Cultura Ocidental preservou. Foi essa a união entre liberais clássicos e conservadores que elegeu Ronald Reagan nos EUA em 1980 — o maior presidente que aquele país já teve. Essa união, depois de quase 35 anos, chegou ao Brasil. Aqui no Brasil, esse clima começou a se implantar em 2013, em São Paulo, contra o PSDB de Alckmin e o PT de Haddad, respectivamente, governador do Estado e prefeito da capital. Duas pessoas diferentes, duas esquerdas diferentes, mas ambas queriam ver o diabo mas não o Bolsonaro. E nenhum deles se dispôs a fazer aliança com o Amoedo, nem mesmo com o Álvaro Dias. A união líbero-conservadora alcançou, depois de seu início em 2013, um primeiro ponto alto em 2016, com o impeachment de Dilma. Fora PT. Momento marcante. Alcançou o ponto mais alto até aqui em 2018, com a eleição de Bolsonaro. Não só “Fora PT”, mas “Fora Esquerda”, E, se Deus quiser, chegará ao clímax em 2022, permitindo que os líbero-conservadores renovem o STF e garantam um período razoável de liberdade, moralidade e respeito a princípios e valores liberais e conservadores.

Daí poderá se recapturar o termo Progressismo, lutando por um futuro em que haverá cada vez mais liberdade, cada vez mais ordem, cada vez mais obediência a uma lei que será justa e efetivamente aplicada. Daí o termo Progresso voltará a fazer sentido. Já progredimos muito de 2013 para cá. Vamos progredir muito mais ainda. E os progressistas de antanho vão ficar cada vez mais para trás, atolados na lama em que gostam de chafurdar.

Que assim seja. Este é o meu sermão político deste domingo. Amém.

Em Salto, 12 de Janeiro de 2020.

As Principais Mentiras dos Socialistas Atuais

O Comunismo, que é o Socialismo com sua face mais vermelha, brutal e violenta, pode até estar quase acabado (exceto na Coreia do Norte).

Mas um Socialismo com uma face mais rósea, supostamente democrática e humana, continua firme — e tenta sobreviver e, se possível crescer, espalhando mentiras, ocultando verdades, tentando reescrever a história, redefinindo conceitos, criando (como já anunciou George Orwell, em seu livro 1984, escrito em 1948) uma Nova Língua (New Speak, Novilíngua). Quando o socialista quer criar um Governo Autoritário, de Partido Único, ele chama o regime pretendido de Democracia Popular… Quando o socialista quer controlar a Educação e a Mídia, ele fala em Democratização da Educação, Democratização da Mídia… Quando o socialista quer cometer injustiças (tirar propriedade ou dinheiro de quem trabalha para dar a quem não trabalha) ele diz que está realizando Justiça Social (que seria o sistema político-econômico em que um Estado Grande e Forte, controlado por autodeclarados iluminados, tira dos que têm habilidade e se esforçam para dar aos que são incompetentes ou preferem vagabundear, ou fazer política, a trabalhar).

Duas mentiras que tenho ouvido com frequência ultimamente são:

  • O Socialismo e o Comunismo são sistemas políticos totalmente distintos (e os liberais e conservadores tentam confundir as coisas dizendo que Socialismo e Comunismo são “farinhas do mesmo saco”);
  • O Socialismo é uma forma de Humanismo Social e Democrático que nunca foi tentado.

Ambas as teses são profundamente mentirosas. Nem mesmo podem ser qualificadas de meias-verdades (daquelas em só a outra metade é mentira).

= I =

Os liberais e conservadores (isto é, os anti-esquerda) não tentam confundir coisa alguma.

Socialismo e Comunismo são espécie diferentes de um mesmo gênero. As divergências entre eles não passam de brigas entre membros de uma mesma família. E as diferenças entre a chamada Esquerda (socialistas e comunistas) e a chamada Direita (liberais e conservadores) existem, sim, e são extremamente importantes e significativas (sempre havendo um bando de “pragmáticos”, no Centro, que oscilam de um lado para o outro, ficando com quem paga mais).

O Comunismo (sistematizado por Marx, com a ajuda de Engels, e colocado em prática na Rússia, depois União Soviética, por Lênin e Stalin, e, na China, por Mao) é a uma forma mais brutal e violenta de Socialismo, que tenta levar uma nação, um país, ou uma região para o Socialismo pela Violência Armada, pela Revolução Social, pela Luta de Classes, pela Abolição da Propriedade Privada, pela Instituição da Sociedade (supostamente) sem Classes.

A Social Democracia é uma forma mais branda (“mansa e suave”) e supostamente humana de Socialismo, que tenta levar uma nação, um país, uma região para o Socialismo por Meios Supostamente Democráticos, Controlando a Mídia, Controlando a Educação, Dominando os Partidos Políticos, Manipulando o Processo Eleitoral, Chegando ao Governo, Controlando e Aparelhando o Estado, Instituindo Políticas Públicas, Promovendo a Distribuição de Renda por Taxação Progressiva, etc. — mesmo sem controlar — apenas regulamentando e regulando — os meios de produção, que ficariam em mãos privadas de proprietários de empresas privadas.

O erro, tanto em um caso como no outro, está na essência do Socialismo: imaginar que um bando de iluminados que tomam o Estado (pela força ou pelo voto manipulado) pode abolir, em relação aos demais (em regra a maioria), a liberdade, os direitos individuais, a propriedade privada real, e está autorizado a tirar de uns (por qualquer meio: a força, a persuasão, o voto, o constrangimento) para dar para outros (usando como justificativa o horroroso princípio do “tirando de quem tem habilidade para dar para quem tem necessidade” — que sacramenta a desigualdade real, pressupondo que alguns têm habilidade de produzir e outros apenas a vontade de receber esmolas disfarçadas de direitos).

Como as pessoas raramente gostam de ser obrigadas a abrir mão do que é seu, seja por meios claramente violentos, como o confisco, seja através de legislação supostamente progressiva destinada a financiar políticas públicas, elas (mais cedo ou mais tarde) reagem, e, assim, mesmo o Socialismo que começa brando termina violento. E como as pessoas raramente gostam de trabalhar quando o produto do seu trabalho é confiscado para distribuição aos outros, elas começam a trabalhar cada vez menos, em uma economia socialista, e, por fim, param de trabalhar para também viver dos frutos do trabalho alheio, em última instância equalizando apenas a pobreza e a miséria.

O resultado é igualdade na pobreza e na miséria, não igualdade na abastança e na riqueza. Como aptamente disse Mme. de Staël no século 18, os socialistas preferem a Igualdade do Inferno (em que todo mundo, sem exceção, só sofre, até os que se presumem espertos, como o Lula, que quer introduzir desigualdades no sistema presidiário) às Desigualdades do Céu (em que haverá, segundo dizem os entendidos, não igualdade, mas recompensas diferenciadas, chamadas de diferentes galardões pelos cristãos).

= II =

Tanto o Comunismo mais brutal, violento, e admitidamente totalitário, como os Socialismos supostamente mais mansos e suaves, e supostamente democráticos, foram tentados, sim — e fracassaram  em todas as tentativas. Fracassaram no sentido de que equalizaram todos (menos as lideranças) na pobreza e na miséria, bem como na servidão (ausência de liberdade, instituindo regimes totalitários e corruptos, ou então autoritários e corruptos, dos quais as pessoas só desejam fugir, mas são proibidas, presas, exterminadas, ou então deixadas para naufragar em embarcações precárias e superlotadas). O Muro de Berlin visava a impedir os cidadãos de sair da Alemanha Oriental Comunista e Autoritária para entrar na Alemanha Ocidental Liberal e Democrática, não os liberais de sair da Alemanha Ocidental para entrar na Alemanha Oriental. Quando o muro caiu, houve emigração em massa, mas numa só direção. O Pedro Bial que o diga. Ele estava lá, relatando o que acontecia para a GloboLixo. As chamadas “conquistas sociais” do Socialismo foram deixadas para trás na busca das desigualdades que só a liberdade propicia. O povo corria em uma direção só: do Comunismo para o Capitalismo, do Socialismo para o Liberalismo: enfim, da Servidão para a Liberdade.

= III =

Para concluir, faça um teste de bolso:

  • Se há um país do qual as pessoas tentam sair e são impedidas, até por muros ou cercas de arame farpado, pode ter certeza de que se trata de um país que oprime o seu povo, confisca seus bens ou os fruto de seu trabalho, e em que impera, portanto, o Socialismo (que só existe à sombra de um “Estado Grande e Forte”, que confisca boa parte da riqueza produzida na nação, país, ou região, sempre retendo um percentual significativo da receita nos bolsos de suas lideranças);
  • E se há um país no qual as pessoas tentam entrar em número tão elevado que o país tem de controlar, até por muros, a imigração (entrada), não a emigração (saída), pode ter certeza de que se trata de um país onde imperam a liberdade e os direitos individuais — ou seja, um país em que impera o Liberalismo (que só pode respirar quando não sufocado pelo Estado, e só realmente prospera à sombra de um Estado Mínimo).

É isso. No fundo, é extremamente fácil de entender — quando a doutrinação nas escolas e a visão única e prepotente da mídia não impede, atrapalha, ou dificulta.

Em São Paulo, 15.9.2019 (dia em que meu amigo Rubem Alves completaria 86 anos — escrevo em memória dele. Ele faz muita falta, especialmente na educação, na política e na religião)

Liberalismo, Progressivismo e Conservadorismo

Ao mesmo tempo que este, estou a escrever um outro texto que não é uma História do Liberalismo, mas, sim, uma Visão Geral dos Liberalismos — aquilo que os americanos chamam de “a bird’s eye view” — uma visão do alto, como se fosse através do olho de um pássaro que passa por cima da coisa e vê o todo, mas de longe, perdendo a maior parte dos detalhes…

Esse artigo era para ser diferente dos meus artigos de sempre, que geralmente são demasiado longos, meio prolixos, recheados de pequenos detalhes que eu considero interessantes e curiosos mas que a maioria dos leitores acha supérfluos. (Em regra, pelo menos 20% dos meus livros consistem de Notas de Rodapé ou de Fim de Texto — não chego ao extremo de Popper que geralmente alcançava um texto balanceado: Fifty-Fifty – metade texto normal, metade notas explicativas e referências).

Mas à medida que a coisa progrediu, e eu mapeei os Liberalismos, resolvi mapear também (nada mais do que isso) as tendências com as quais os Liberalismos se degladiam, e até mesmo aquelas tendências que, mesmo não sendo parte integrante do Liberalismo, são parentes próximos, às vezes amigos, às vezes inimigos, como é o caso dos Libertarianismos. E cheguei a doze tendências ao todo, a saber:

  • Liberalismos
    • O Liberalismo Clássico
    • O Liberalismo Americano
    • O Liberalismo Social
    • O Neoliberalismo
    • A Democracia Liberal
  • Socialismos
    • O Socialismo Liberal
    • O Socialismo Democrático
    • O Socialismo Marxista
    • O Comunismo
    • A Social Democracia
  • Libertarianismos
    • O Libertarianismo Comunitário
    • O Libertarianismo Anárquico

Mas, apesar de a lista já ser excessiva, senti que me faltava ainda algo: esclarecer a relação entre Liberalismo e Progressivismo, de um lado, e Liberalismo e Conservadorismo, do outro.

Assim o artigo que eu pretendia enxuto foi crescendo. Terminei apenas o Capítulo 1, sobre o Liberalismo Clássico, e parte do Capítulo 2, e o texto já tem 25 páginas (15% de Notas). A continuar nesse ritmo, provavelmente não será um simples artigo, mas um livrinho — e demorará muito mais tempo para ser concluído.

Mas eu sou um crente na Provincidência — aquela coisa que a gente não sabe direito se é Providência ou Coincidência…

Hoje recebi uma propaganda da Amazon (todo dia recebo umas cinco) anunciando o lançamento de um livro novo, de George F. Will, com o título de The Conservative Sensibility, publicado agorinha, no dia 4 deste mês de Junho (Hachette Books, New York). Li aquele material que a Amazon fornece de graça, para fazer com que a gente morda o anzol: Índice, Prefácio, Apresentação, um pedaço da Introdução, e Resenhas — e resolvi morder o anzol: fui fisgado. O livro trata exatamente do assunto que eu queria acrescentar ao artigo/livrinho que vinha escrevendo. Resolvi deixa-lo de lado por um dia e escrever este artiguete.

A tese geral de Will é que o Liberalismo Clássico, aquele que está na base da fundação da nação americana pelos seus “Pais Fundantes” (Founding Fathers), era, naquela época, segunda metade do século 18, algo profundamente inovador e revolucionário como base teórica para a construção de uma nova nação. Ele foi integrado à Declaração de Independência (redigida por Thomas Jefferson em 1776 e apresentada ao mundo em 4 de Julho de 1776) e à versão original da Constituição Americana, que foi criada e apresentada em Setembro de 1787, ratificada pelas treze colônias (futuros estados) em Junho de 1788, entrando em vigor em Março de 1789.

Foi por causa desse caráter inovador e revolucionário, que dá ênfase à liberdade e aos direitos individuais, e que busca limitar as atribuições do estado, impedindo que este aprove legislação que elimine, viole ou restrinja a liberdade e os direitos individuais, ou mesmo interfira com eles, que eu, que aceito esse postulado, desde 1966, nunca me considerei um conservador.

O que o livro de George F. Will mostra, porém, é que esse postulado básico do Liberalismo Clássico foi virtualmente abandonado pelo Progressivismo que assaltou os Estados Unidos em especial no período de 1870-1920, que vai do final da Guerra Civil até os chamados “Roaring Twenties“, depois da Primeira Guerra Mundial — e antes da Grande Depressão Econômica iniciada em com a Quebra da Bolsa em 1929. Foi esse clima de decepção com a política que fez com que os pobres — os velhos pobres e aqueles que se tornaram pobres com a Depressão — acabaram por eleger para a Presidência (não só uma, mas quatro vezes seguidas) um milionário podre de rico que, entretanto, adotava um discurso e uma plataforma progressista. Nesse clima, o New Deal americano, introduzido por Franklin D. Roosevelt (FDR), a partir de 1933, em uma tentativa de livrar o país da Depressão, acabou por liquidar (por um bom tempo, quase cinquenta anos, até 1980, com a eleição de Ronald Reagan, por aí) o Liberalismo Clássico (que, na época, ainda era simplesmente Liberalismo, sem qualificativo).

Usando um rolo compressor político, e fazendo uso máximo do clima de desespero que havia se implantado no país quando ele foi eleito, FDR, inspirado pelos princípios progressistas — que representavam  uma tendência político-econômica (com reflexos sociais na educação, na religião, etc.) que veio a aumentar radicalmente as atribuições e funções do estado, deixando lá atrás, a perder de vista, o Estado Mínimo dos Pais Fundantes, que desejavam um estado que interferisse o mínimo necessário (indispensável) na vida do cidadão.

“Melhor é o governo que menos governa” é a frase atribuída a Thomas Jefferson. Contudo, Jefferson e seus colegas sabiam que um estado / governo era necessário — eles não aceitavam o possível corolário anárquico de que, se melhor é o governo que menos governa, então melhor ainda é uma sociedade sem nenhum governo… Para eles um estado / governo é necessário, mas ele não pode ir além das atribuições de legislar (através do seu mecanismo Legislativo, nas esferas em que isso lhe é permitido pela Constituição) e de manter a ordem, interna e externa (através dos seu mecanismo Judiciário e de seu mecanismo Executivo, este com funções policiais e militares). Enfim: Law and Order.

Esses postulados básicos do Liberalismo foram abandonados claramente a partir do New Deal, com Emendas Constitucionais aprovadas a toque de caixa, bem como com um trabalho jurisprudencial de reinterpretar os preceitos constitucionais em uma direção progressista, etc. Na verdade, sob pressão do Progressivismo já haviam sido aprovadas Emendas Constitucionais contrárias ao espírito liberal, como, por exemplo, a Emenda 16, aprovada em 1913, criando o Imposto de Renda (que até então inexistia), a Emenda 18, aprovada em 1919, proibindo a produção e a venda de bebidas alcoólicas, etc. (Essa Emenda chegou a tamanho exagero que foi revogada pela Emenda 26, aprovada em 1933, já no governo de FDR, que gostava muito de uma bebidinha — importada da Escócia, naturalmente).

Hoje, os Estados Unidos estão longe de ser um país que adota o Liberalismo Clássico. O país adota uma versão de Social Democracia, que, entretanto, seus defensores insistem em chamar de Liberalismo, em um sentido sui generis, só adotado nos Estados Unidos. Para eles, se você não revoga a Carta de Direitos (Emendas 1-10 à Constituição), você é liberal, não importa o que você acrescente às atribuições clássicas do estado / governo… Foi por causa desse confisco do termo que os Liberais originais foram constrangidos a se denominar “Liberais Clássicos”: para diferenciar dos “Liberais Progressistas” de FDR, acampados no Partido Democrata. Mas como haviam sido bem sucedidos no confisco do termo, os sociais democratas americanos se viram no direito de se chamar simplesmente de “Liberais”, criando uma confusão enorme dentro e principalmente fora dos Estados Unidos.

Enfim, hoje, os Liberais Clássicos, nos Estados Unidos, diante do assalto de que o Liberalismo Original tem sido vítima, lá e alhures, acabaram se tornando, na defesa do Liberalismo Clássico, Conservadores, porque desejam voltar ao Liberalismo Original defendido pelos Pais Fundantes. Progressistas, lá nos Estados Unidos, bem como aqui e em todo lugar, são hoje considerados os esquerdizantes, entre os quais estão sociais democratas (Clinton lá, FHC aqui). O PT se pretendia uma opção mais à esquerda ainda, Socialista, embora à direita dos Comunistas. Preferiu roubar a implantar o Socialismo, e se viu desacreditado e defenestrado. Espero que para sempre.

Isso explica, em parte, as diversas alianças, nos Estados Unidos, entre Liberais Clássicos e Conservadores (Políticos e até mesmo Religiosos) nos Estados Unidos para conseguir derrotar candidatos que se denominam Liberais (sendo, na verdade, “Liberais” Progressistas, ou Esquerdizantes), como, por exemplo, os dois Clintons (Bill e Hilary), o Obama (Barak), etc. Foi assim, com base nessas alianças meio esquisitas, que se elegeram candidatos como o Nixon (Richard), o Reagan (Ronald), os dois Bushes (George Sr e Jr), e o Trump (Donald).

No Brasil, os Liberais (como os do Partido Novo) ficaram meio constrangidos de se aliar aos Conservadores (entre os quais os Evangélicos) e quase colocaram a perder a eleição do Bolsonaro (Jair). Felizmente, na última hora deu certo. E se os Liberais deixarem de ser frescos, vai continuar a dar certo. A política é a arte do possível. Não podemos deixar que o outro lado torne impossível o nosso avanço e o nosso progresso. Os Liberais precisam perceber que, com a Esquerda no poder, especialmente a Esquerda corrupta e corrompedora, eles só podem retroceder. Eles só vão avançar se aliando a quem comunga de alguns de seus princípios, mesmo que não totalmente, nem de todos. Enquanto mantiverem a postura de virgens vestais, que não se aliam com quem não concorda 100% com eles, vão pastar.

É isso — por enquanticamente, como dizia um conhecido meu que gostava de usar um linguajar parecido com o do Odorico Paraguaçu.

Em Salto, 24 de Junho de 2019 (dia em que minha neta mais nova, Madeline Kay Mathews, faz 14 anos).

O Direito de Possuir e Portar Armas de Fogo

Mais de treze anos atrás, em 2005, publiquei, neste blog, três artigos meus e dois de terceiros sobre o plebiscito que se avizinhava acerca do desarmamento total do brasileiro. A esquerda, acompanhada pelos perfumados e cheirosos, era a favor do voto SIM. Também as emissoras de TV, em especial a Globo. Achavam, os esquerdosos perfumosos que já haviam ganham. Perderam: o NÃO ganhou.

Agora, segundo consta, o Presidente Jair Bolsonaro vai publicar um decreto que autoriza a posse (propriedade) de armas, nas condições que especifica — isto é, amplia o alcançe da legislação que permite que algumas categorias de brasileiros tenham posse de arma (algo que não confunde com o porte de armas nas ruas).

O PT já vomitou a informação de que vai tentar bloquear o Decreto que, por enquanto, nem existe ainda. A Folha de S. Paulo, através do seu DataFolha, um suposto serviço de pesquisa de opinião, diz que 61% dos brasileiros agora são contra o decreto que o ainda a ser empossado Presidente afirmou que vai baixar.

Neste contexto, resolvi republicar os meus três artigos (que estão nos endereços abaixo) e dois outros artigos que o meu terceiro artigo comentou. Fiz pequenas modificações no texto para corrigir expressões que deixavam a desejar ou tentar melhorar a qualidade do texto.

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São estes os três artigos meus:

1) As Falácias da Campanha do Desarmamento (20/08/2005)

As falácias da campanha pelo desarmamento

2) Amanhã, Voto NÃO! (22/10/2005)

Amanhã, voto NÃO

3) A Tentativa de Desconstruir o NÃO já Começou! (24/10/2005)

A tentativa de “desconstruir” a Vitoria do NÃO já Começou

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1) As Falácias da Campanha do Desarmamento (20/08/2005) 

As falácias da campanha pelo desarmamento

Estamos em plena campanha para votar “Sim” ou “Não” no plebiscito do desarmamento. Eu vou votar “Não” por uma série de razões, que vou explicitar aqui.

A razão básica para o meu voto negativo está no fato de que sou um liberal e, como tal, só aprovaria uma interferência do governo em minha vida no caso de ela ser muitíssimo bem justificada. No caso da proibição da posse e do porte de armas de fogo, os que pretendem que o governo os proíba não me parecem ter nem mesmo uma justificativa fraca.

Ou vejamos.

Como liberal defendo a tese de que a única justificativa defensável da existência de um governo é a garantia, defesa e proteção dos direitos individuais à vida, à liberdade e à propriedade dos cidadãos. Para o liberal, a única função que o governo deve ter é prover a segurança de seus cidadãos – contra quem não respeita esses seus direitos individuais. Mas não é preciso ser liberal como eu para concordar que, ainda que não seja a única, essa função do governo é essencial.

Assim, quando o crime aumenta significativamente, em especial o crime contra a pessoa e a sua propriedade, o governo está falhando em sua função essencial – ou em uma de suas funções essenciais: a de prover a segurança de seus cidadãos.

Essa falha pode ter uma série de causas, das quais as três principais são:

*   A legislação contra o crime é fraca ou omissa;

*   O aparato policial não consegue dissuadir ou reprimir o crime;

*   O sistema judicial não pune de forma certa, adequada e exemplar o crime cometido;

Em suma, a causa da falha ou é legislativa, ou é policial, ou é judicial – ou abrange uma combinação dessas causas.

Em vez, porém, de pressionar o governo para que se equipe melhor para o exercício da sua função essencial de combater o crime e prover segurança para os cidadãos, grupos de esquerda tentam hoje, aqui no Brasil, criar uma cortina de fumaça alegando que a verdadeira causa da criminalidade não está na incompetência do governo, está na conduta das vítimas. . . . Segundo essa absurda tese, a criminalidade tem aumentado descontroladamente no Brasil, não porque o governo (incidentalmente, de esquerda) é incompetente, inapto e inepto, mas porque parte da população insiste em manter armas de fogo em casa e em carrega-las consigo quando sai. Logo, a posse e o porte de armas de fogo deve ser proibido.

Que essa tese é absurda se revela com facilidade.

Em primeiro lugar, a principal razão por que parte da população insiste em possuir e portar armas de fogo é, exatamente, para se defender do crime, porque o governo não cumpre a contento a função de protegê-la adequadamente. Se aqueles que se opõem à posse e ao porte de armas de fogo não gostam de saber que alguns cidadãos possuem armas de fogo em casa ou as portam na rua, que façam uma campanha para que o governo melhore a segurança pública. Essa medida sozinha faria mais para reduzir a posse e o porte de armas de fogo do que a campanha que a esquerda vem conduzindo.

Em segundo lugar, admito, sem problemas, que há um percentual pequeno de crimes contra a pessoa que se cometem no calor do momento e que, se não houvesse uma arma de fogo à mão, provavelmente não seriam cometidos com outro tipo de arma. Mas o número desses crimes é, relativamente falando, estatisticamente insignificante. A maior parte dos crimes contra a pessoa e contra a propriedade é cometido por pessoas que os planejam e, nesse processo, buscam os meios necessários para perpetrá-los – entre os quais estão as armas de fogo. A maior parte dos que perpetram crimes nessas condições são criminosos profissionais, pessoas frias que não hesitam em matar, com qualquer arma que tenham à mão. Sabem que, ao fazer o que tencionam, estão quebrando leis importantes que já proíbem atacar, assaltar, ferir, roubar, estuprar, sequestrar, matar – sem que essa proibição os detenha ou iniba. As armas de fogo que usam no momento não foram compradas com Nota Fiscal numa casa de armas nem muito menos registradas na polícia. É crível imaginar que o número desses criminosos seria reduzido pela existência de uma lei adicional que proíba a posse e o porte de armas de fogo???

A ingenuidade da proposta da esquerda é evidente. O criminoso profissional, que fez uma opção pela vida de crime, ou a pessoa fria que planeja cometer um crime, se não tiver a arma à mão vai procura-la: vai roubá-la (ou até mesmo compra-la!) de um policial corrupto, adquiri-la no mercado negro, contrabandeá-la do Paraguai ou da Bolívia… O que certamente NÃO vai fazer é comprar uma arma numa casa autorizada a vendê-la. As armas de fogo hoje usadas não são adquiridas legalmente no mercado e registradas na Polícia. Por que imaginar que uma lei idiota como a que se propõe vai alterar esse quadro?

Em terceiro lugar, a experiência de outros países mostra que a proibição da posse e do porte de armas de fogo pela população produz um aumento da criminalidade. Os livros de Thomas Sowell estão cheios de estatísticas a esse respeito. Mas um mero exercício de reflexão comprova isso. Ponha-se no lugar de quem contempla realizar, digamos, um roubo. Se eu sei que a pessoa que pretendo roubar pode estar armada, vou pensar duas vezes. O fato de que a vítima pode estar armada claramente funciona como um dissuasor. Agora, se eu sou um criminoso contemplando um determinado crime, e eu estou seguro de que minha vítima prospectiva vai estar desarmada (porque a punição por andar armado é pior do que a perspectiva de um assalto!), fico muito mais tranqüilo.

Isso tudo parece tão evidente que até me sinto constrangido em afirmá-lo.

A legislação hoje em vigência não obriga ou incentiva nenhum cidadão cumpridor da lei a comprar e portar uma arma. Ela preserva a liberdade de quem não quer comprar e portar e de quem pensa diferente. Os esquerdistas, que têm ojeriza à liberdade, querem, como sempre, remover essa liberdade, tornando a nossa sociedade menos livre.

Em Campinas, 20 de Agosto de 2005

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2) Amanhã, Voto NÃO! (22/10/2005) 

Amanhã, voto NÃO

Quem me dá a honra de acompanhar este blog sabe que sou uma pessoa argumentativa. Gosto de discutir os prós e os contras de várias questões que me afetam ou interessam. Chego a ser até chato nas minhas firulas argumentativas. Muito cedo (durante o Ensino Médio, antigamente chamado de Clássico, na modalidade que cursei) me apaixonei pela filosofia e pela lógica. Sempre tive um certo desprezo pela retórica. Pareceu-me, desde sempre, que a retórica (a velha ou a nova) só é chamada quando a lógica não encontra argumentos convincentes… Por isso, resolvi ficar com o que realmente importa.

Por que digo isso? Porque vou apresentar, adiante, meus argumentos para votar NÃO amanhã, 23 de outubro, no referendo inventado por políticos que não têm o que fazer e ficam procurando jeito de interferir com os direitos da gente, a duras penas conquistados.

Antes de entrar nos meus argumentos, porém, devo confessar que desenvolvi algo que os americanos chamam de “rule of thumb” (literalmente, “regra de polegar” ou “regra de bolso” – uma regra prática) que me permite firmar um posicionamento inicial, sempre provisório, é verdade, acerca de questões sobre as quais não estou tão bem informado como desejaria. Conforme a questão, depois me informo melhor e tomo uma posição mais bem fundada em fatos e argumentos. Mas para um posicionamento inicial provisório a “regra de bolso” em questão é quase infalível. Ei-la: “Se um desses, Marilena Chaui, Emir Sader, ou Rubem César Fernandes, for a favor, eu me inclino a ser contra. Se os três forem a favor, não tenho dúvida nenhuma de que, levantados os fatos e analisados os argumentos, serei contra”. Como disse, essa regra me tem sido quase infalível. (Poderia tentar explicar por quê, mas isso me levaria muito longe do tópico deste artigo).

Na questão objeto do plebiscito, os três são unânimes: vão votar sim. Logo, eu, mesmo antes de estudar a questão com maior profundidade, tinha certeza de que iria votar NÃO. O estudo da questão apenas confirmou essa “intuição original”.

Diferentemente do Reynaldo Azevedo, editor da revista Primeira Leitura, que, no último número da revista, escreveu magistral artigo sobre o assunto, justificando o seu voto NÃO, e disse que iria votar assim apesar de ter muitos amigos cuja opinião ele respeitava que iriam votar sim, eu praticamente não tenho amigos cuja opinião eu realmente respeite que vão votar sim. Encontrei, isto sim, várias pessoas cuja opinião eu não respeito que vão votar NÃO – o que significa que várias pessoas vão fazer a coisa certa pelas razões erradas…

Vou iniciar com meus argumentos mais fracos – progredindo para os mais fortes.

Primeiro, ressalto a forma meio sem-vergonha, malandra (ou então totalmente inapta) com que foi formulada a pergunta do referendo. “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?” A pergunta correta teria sido algo assim: “A aquisição de armas de fogo e munição para a defesa pessoal, para a caça, e para o lazer deve continuar a ser um direito individual no Brasil?” Ninguém teria dúvidas ou faria confusão com essa segunda pergunta – como tem e faz com aquela.

É verdade que os defensores do NÃO exploraram bem a redação ruim (ou mal intencionada) da pergunta do referendo. Imagino que os defensores da proibição tenham imaginado que o povo diria mais facilmente sim do que NÃO. Acabaram por enganar-se redondamente. Os defensores do NÃO convenceram o povo de que o governo estava querendo engana-lo, para roubar-lhe mais um direito. Capitalizaram no clima anti-governo que os escândalos no Congresso vem gerando: o NÃO soa como um não ao governo e à corrupção que grassa no governo e no PT, partido que lhe dá sustentação. Aproveitaram para deixar claro que a segurança pública é a função número um do governo e que este não vem dando a mínima atenção a essa questão – preferindo prender espalhafatosamente a dona da Daslu e os Malufes que, com certeza, nunca deram um tiro em ninguém durante toda sua vida. Mostraram que a proibição do comércio de armas de fogo e munição não iria desarmar os bandidos, que obtêm suas armas no mercado negro (inclusive roubando ou comprando do Exército e da polícia).

Com isso, a frente do NÃO, com programas de TV e rádio muito bem feitos pela equipe de Chico Santa Rita, pode criar anúncios rápidos bem eficazes, como este, no rádio: “Sinceramente, você acha que esse governo está investindo o suficiente em segurança pública? NÃO!!! Você acha que a polícia tem condições de proteger a população? NÃO!!!! Você acha que os bandidos vão ser desarmados? NÃO!!! Então dia 23 diga: NÃO!!!”. Habilidade marqueteira, é verdade – mas muito eficaz, e que só foi possível porque alguém tentou formular a pergunta do referendo de forma meio malandra.

Em segundo lugar, não gosto de ver a Rede Globo usando seu poder de fogo (desculpem o trocadilho) e seus artistas globais – que andam todos com seguranças armados – para defender o sim. Lembrei-me da reação do povo quando a Globo tentou fazer de conta que a campanha das Diretas Já não existia: “O povo não é bobo, fora a Rede Globo!” Os próprios coordenadores da campanha do sim perceberam que não foi uma boa botar todos os artistas globais falando a favor do sim. Caiu mal. O povo não é trouxa… E a frente do NÃO explorou bem a brecha: “Nosso artista é o povo…”

Em terceiro lugar, a frente do sim e a Rede Globo procuraram, desde o início, caracterizar a questão enfocada no referendo como sendo o desarmamento – até que a Justiça os proibiu de fazer isso. Sabidamente, a questão não é o desarmamento, e os defensores do sim sabem disso. Mas tentaram enganar a população. Foram em parte impedidos de fazê-lo – mas ainda assim a frente parlamentar continuou a se denominar “Frente Brasil Sem Armas”. Deveria ter sido impedida de fazer isso. Mas mesmo assim, o povo, que não é trouxa, não se deixou enganar.

Em quarto lugar, os programas da frente do sim mentiram deslavadamente – tanto que a Justiça Eleitoral os proibir de dizer certas coisas com a maior cara lavada. Diziam, por exemplo, como se fosse evidente, que habitantes de áreas isoladas não seriam proibidos de comprar armas e munição. Isso sabidamente não é verdade. O que o Estatuto do Desarmamento diz é que habitantes de áreas isoladas, que provem que precisam de armas para sua sobrevivência (que vivam da caça, portanto), podem ser autorizados a adquiri-las.

Em quinto lugar, os programas da frente do sim exploraram o sentimentalismo, os casos de gente que foi morta por disparos acidentais, ou em assaltos, ou em balas perdidas… Tentaram dar a impressão que, eliminando essas mortes pela proibição da comercialização de armas de fogo e munições, o problema da violência estaria eliminado e o da segurança pública resolvido…

Em sexto lugar, achei de uma baixeza sem igual a tentativa da frente do sim de caracterizar os que pretendiam votar NÃO como sendo fascitoides, ou gente que estava a mando da indústria de armamentos, ou, então, de patetas. Aquela atitude petista de que só nós somos bons, o resto é picareta ou corrupto, não pega mais. O problema, durante toda a campanha, foi colocado como se fosse simplesmente uma questão de lucro vs vida. A questão da liberdade e do direito à legítima defesa foram sumariamente ignoradas. Deu-se a impressão, em alguns programas da frente do sim, que a maioria dos assassinatos no Brasil se dá com armas de fogo usadas descuidadamente, ou com armas de fogo usadas numa situação passional, ou, então, com armas de fogo roubadas por bandidos de quem tentou se defender de um assalto no trânsito. Nem o Márcio Thomaz Bastos, soi-disant ministro da Justiça do governo, acredita nisso.

Em sétimo lugar, o referendo está previsto no Estatuto do Desarmamento – mas a data do referendo, não. O referendo poderia ter esperado um pouco, mas não: o governo e sua base no Congresso e na sociedade tentaram, a todo custo, aprovar uma data ainda este ano. As razões foram, no fundo, duas: (a) aproveitar o que parecia ser um clima favorável à aprovação da posição favorecida pelo governo, o sim; (b) colocar uma outra questão na pauta dos jornais e das conversas de botequim em substituição à corrupção no governo e à ladroagem do PT. Quem tem pressa, come cru.

Passo agora aos argumentos mais fortes. Os apresentados até aqui são corroborativos. São os argumentos que apresentarei daqui para a frente que dão sustentação à minha posição.

Primeiro argumento: Não é segredo para ninguém que sou um liberal radical, “laissez faire”, daqueles à moda antiga. Para mim, a única função do governo é garantir os direitos da população, zelando pela sua segurança, mantendo a ordem pública. Para o bom funcionamento da sociedade, os cidadãos delegam ao governo o monopólio na iniciação do uso da força. Reservam para si, entretanto, o direito de defesa, caso alguém use, ou tencione usar, a força contra eles, numa situação em que não seja possível ou viável chamar a polícia. De nada adianta, porém, ter o direito de defesa se me são proibidos obter os meios de me defender. A proibição do comércio de armas de fogo e de munições é, portanto, um atentado ao meu direito de defesa contra a agressão alheia. Este o meu primeiro argumento principal.

Segundo argumento: Se o argumento anterior já faz sentido em uma sociedade em que o governo cumpre com a sua função de garantir os direitos dos cidadãos, zelando pela sua segurança e mantendo a ordem pública, faz muito mais sentido em uma sociedade, como a nossa, em que o governo é totalmente omisso na questão da segurança pública, em que a polícia (e mesmo o Exército) do governo têm medo de subir nos territórios (especialmente morros) controlados por bandidos profissionais. Nossa sociedade não corresponde ao estado da natureza de Locke, em que não há governo mas há ordem, em respeito a uma lei natural: ela corresponde ao estado da natureza de Hobbes, em que todos estão em guerra contra todos. Nessa guerra, o governo, para dar a impressão de que está finalmente fazendo alguma coisa, e já que não consegue desarmar os bandidos, quer desarmar a gente de bem. As armas dos bandidos não vão ser afetadas mesmo que o sim ganhe. Eles não compram armas e munição em lojas autorizadas. Eles não carregam porte de arma. Eles compram suas armas no contrabando ou as roubam (ou compram!) da polícia e do Exército. Ainda que o sim viesse a ganhar (o que parece improvável no momento, a levar a sério as pesquisas do Ibope e do Datafolha), os bandidos continuariam a ter acesso a armas e munições – só nós, os cidadãos de bem, é que seríamos impedidos de adquiri-las, para nos defender deles. Na verdade, se o sim ganhar, e viermos a obter uma arma no mercado paralelo, provavelmente seremos considerados pelas autoridades como mais bandidos do que os próprios bandidos. Este o meu segundo argumento principal.

Terceiro argumento: Muita gente não tem arma em casa hoje. E muita gente não quer nunca ter. Mas os bandidos não sabem quem tem e quem não tem. Essa dúvida os faz pensar duas vezes antes de invadir a casa de alguém. Se o sim vier a ser aprovado, essa dúvida dos bandidos estará eliminada: eles saberão que virtualmente ninguém terá armas em casa. O voto sim lhes dará um tranquilo “salvo conduto” para entrar na minha e na sua casa, sabendo que não teremos com que reagir. Isso explica porque, em todos virtualmente os países em que houve uma proibição de comércio de armas e munições, como o que agora se pretende aqui, os crimes (especialmente os roubos) envolvendo violência contra a pessoa aumentaram. Este o meu terceiro argumento principal.

Quarto argumento: Mas não serão só os crimes de violência contra a pessoa que aumentarão. O contrabando e o mercado paralelo também aumentará, porque agora não serão apenas os bandidos que terão de recorrer a eles (como, de resto, já fazem), mas, sim, toda a população que não concordar com à restrição ao seu direito de defesa que a eventual vitória do voto sim lhe imporá. O governo não consegue controlar o contrabando e o mercado paralelo de nada no Brasil – controlaria o de armas e munições? Este o meu quarto argumento principal.

Quinto argumento: Matar ou tentar matar uma pessoa, sem que seja em legítima defesa, já é crime no Brasil (como em qualquer outra nação do mundo). A aquisição de uma arma de fogo, em si, nada tem de criminoso. A arma pode ser usada para caçar, para lazer (tiro ao alvo) e, naturalmente, para a legítima defesa – todas atividades perfeitamente legítimas e não criminosas. Se o governo não consegue impedir que se cometam inúmeros crimes de assassinato ou tentativa de assassinato, algo que já é claramente proibido por lei, por que proibir o comércio de armas de fogo, que têm usos legítimos, a não ser que seja para criar uma cortina de fumaça que impeça a população de ver o seu fracasso na tarefa de garantir nosso direito à vida e à integridade pessoal, zelando por nossa segurança e mantendo a ordem pública? O governo quer nos fazer crer que essa criminalidade toda que está por aí decorre do fato de que alguns babacas insistem em comprar armas de fogo para se defender, só conseguindo, assim, segundo diz, aumentar o estoque de armas que os bandidos vão roubar… Este o meu quinto argumento principal.

Sexto argumento: O Estatuto do Desarmamento já é uma lei extremamente severa no controle de quem pode legalmente adquirir e portar armas. Faz pouco tempo que ele entrou em vigor. Na realidade, não foi nem testado ainda. Por que proibir, adicionalmente, e com tanta pressa, o comércio em si de armas e munições? Este o meu sexto argumento principal.

Poderia acrescentar alguns outros argumentos. Mas estes já são suficientes para justificar, no domingo, o meu voto NÃO.

Em Campinas, 22 de outubro de 2005

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3) A Tentativa de Desconstruir o NÃO já Começou! (24/10/2005) 

A tentativa de “desconstruir” a Vitoria do NÃO já Começou

O que salva a Folha de S. Paulo [veja a data do artigo acima] é ter o Demétrio Magnoli como colunista… Vide, abaixo, o texto completo de seu artigo na edição de hoje. Mas transcrevo o início aqui:

“Agora, os santarrões têm de substituir a festa por uma narrativa política e já começam a manufaturar uma nova mentira: inspirados num Pelé de 30 anos atrás, dizem que o povo não sabe votar. Que o povo é ‘conservador’ e vota contra seus próprios interesses. E que eles, os ‘esclarecidos’ e ‘progressistas’ isto é, Lula, Márcio Thomaz Bastos, Chico Alencar, Sarney, ACM Neto, Raul Jungmann, Marco Maciel e Renan Calheiros continuarão a lutar ‘pela paz’, explicando ao povinho burro que a culpa pela criminalidade não é do Estado mas dos cidadãos ávidos por armas e sempre prontos a atirar uns nos outros. Eles destilaram uma santimônia pegajosa, abraçaram lagoas e cristos, mas não conseguiram falar em nome do povo. Agora, precisam sequestrar a mensagem do povo e torcer seu significado.”

O mais importante da coluna do Magnoli é isto: a denúncia de que está em curso a elaboração de uma “narrativa política”, mentirosa, que “sequestra a mensagem do povo e torce seu significado”.

Ontem à noite ouvi no Canal 40 da Net (Canal de Notícias da Globo) um cara de São Paulo (esqueço seu nome), que mal disfarçava a sua irritação com o resultado do referendo, dizer que, na verdade, o voto havia sido a favor do Estatuto do Desarmamento, e contra apenas um de seus artigos, e que a “voz do povo” era no sentido de que o governo, agora, deveria aplicar com toda a seriedade os demais 34 artigos do citado Estatuto… Bela reconstrução do resultado, não?

Hoje a própria Folha diz, no seu Editorial, continuando a mentiragem:

“A vitória do ‘não’ no referendo de ontem foi um triunfo publicitário. A frente parlamentar contrária à proibição do comércio de armas e munições mostrou-se mais competente do que os partidários do ‘sim’. Conseguiu pespegar a idéia de que restrições mais severas à comercialização desses itens violaria o direito à autodefesa dos cidadãos. Uma vitória do ‘sim’ não teria suprimido direitos, tampouco teria implicado a proibição total do comércio de armas, o qual permaneceria lícito para os que possuem porte.”

Está certo. Não nego que a campanha do NÃO tenha sido infinitamente superior à do sim. Mas caracterizar a vitória do NÃO como mera manobra publicitária é dar uma de avestruz — e avestruz de elite, porque acha que o povão é facilmente enganado… É verdade que o exemplo da eleição de Lulla em 2002 está aí pra provar que o povão e até mesmo as elites políticas podem ser vítimas de propagandas e publicidades que resultam em estelionato eleitoral. Mas no referendo, o povo, que inicialmente tendia para o sim, conseguiu ver que estavam tentando fazê-lo de trouxa de novo e reagiu à altura.

E a mentira da Folha, de que “Uma vitória do ‘sim’ não teria suprimido direitos”… OK, estou acreditando… Se a Folha não tivesse se declarado a favor do sim, quando o parecia que o sim iria ganhar, soaria mais plausível…

Também na Folha de hoje vem o Jânio de Freitas anunciando que, a despeito das aparências, “nem o ‘sim’ nem o não’ venceram o referendo . . . O vencedor do referendo foi o Grande Medo”… Quem foi que explorou o medo na campanha??? Foi a campanha do sim, que insistiu em trazer fotos e depoimentos de gente que tinha perdido parente por assassinato a bala. O sim explorou o medo da população — e perdeu feio, em todos os estados da Federação. A vitória do NÃO é a vitória do anti-medo.

Na rádio, hoje cedo, se dizia “Venceu o medo, perdeu a paz”… Venceu o anti-medo. Ganhou a paz. No Rio Grande do Sul, o estado mais armado do país (proporcionalmente ao número de habitantes), o NÃO ganhou a maior das lavadas. Isso porque o Rio Grande do Sul, apesar de ser o estado mais armado do país, é, segundo Lúcia Hypólito na TV ontem, o estado em que há o menor número de homicídios por arma de fogo (proporcionalmente ao número de habitantes). Mais armas, menos crimes…

Triste mesmo é ler as entrevistas com os intelectuais partidários do sim (a “burritsia”, não a “intelligentsia”). Para a maioria deles, ganhou o país, que provou que a democracia direta pode funcionar… Se o Jânio de Freitas acha que nem o sim nem o não ganharam, esses intelectuais acham que todo mundo ganhou… Tentativas vãs de desconstruir a vitória do NÃO…

Agora (dois anos depois de instituído o referendo, período em que eles imaginavam que iriam ganhar fácil) a burritsia partidária do sim critica o referendo em si, que foi “mal posto”, “inoportuno”, “um equívoco”, “um erro de enfoque”, “totalmente descabido”… Vide, abaixo, “Para intelectuais, referendo errou alvo”, matéria da Folha de hoje que transcrevo depois do artigo do Magnoli. Culpam o governo por ter “confundido os votantes”. ERRADO: o governo TENTOU confundir os votantes — mas não conseguiu… O resultado do referendo não decorre de confusão dos votantes, mas, sim, de clareza de visão.

Prossigo citando a matéria sobre a burritsia. “O cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), vê a vitória do ‘não’ como ‘resultado de um eleitorado desinformado e pouco atento’. Para Reis, que votou no ‘sim’ [precisava dizer???], não havia razão para levar o tema a consulta popular”.

O povo não sabe votar, diz a elite da esquerda. É desinformado, desatento, facilmente manipulável. Para ela a campanha do NÃO “confundiu o eleitor”. Num raro momento de certa candura, porém, o professor Fábio Wanderley Reis não esconde o que pensa. Ele acha que foi um erro ter feito uma consulta popular sobre essa questão… Diz com todas as letras que se a gente (i.e., a burritsia) tivesse resolvido esse problema aqui entre nós, a solução teria sido muito mais adequada…

José de Souza Martins, professor de sociologia da USP, afirma que a população foi “enganada, como se estivesse decidindo entre marcas de cigarro ou marcas de salsicha”, por “uma concepção mercantil de disputa”… Dá vontade de rir.

Roberto Romano, meu colega na UNICAMP, “ataca o pouco respeito à ‘inteligência da cidadania’, que é manipulada ‘com propaganda ou carismas pré-fabricados'”. Parece-me que quem tem pouco respeito para com a inteligência da cidadania é ele, que acha que ela pode ser facilmente manipulada… É verdade que, numa admissão que parece pouco coerente com o que acabei de citar, ele afirme, corretamente, que “o eleitorado . . . percebeu as manobras dos seus representantes oficiais” — e que “muitos políticos [juízes, advogados, promotores] brasileiros insistem em tratar a cidadania como fossem seus tutores, considerando-se os únicos adultos num país de crianças”.

É isso. Por enquanto.

Em Campinas, 24 de outubro de 2005

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Segue transcrição de matérias da Folha

Folha de S. Paulo

24 de outubro de 2005

ARTIGO

A mensagem dos cidadãos

DEMÉTRIO MAGNOLI

Colunista da Folha

Eles armaram o circo, instalaram a confusão e fabricaram uma pergunta capciosa. Contrataram os fogos e a fanfarra. Programaram a comemoração. Mas o povo disse “NÃO!”.

No referendo de ontem, o povo derrotou o governo, a maioria absoluta da elite política, a organização hegemônica de mídia e as ONGs milionárias.

Agora, os santarrões têm de substituir a festa por uma narrativa política e já começam a manufaturar uma nova mentira: inspirados num Pelé de 30 anos atrás, dizem que o povo não sabe votar. Que o povo é “conservador” e vota contra seus próprios interesses. E que eles, os “esclarecidos” e “progressistas” isto é, Lula, Márcio Thomaz Bastos, Chico Alencar, Sarney, ACM Neto, Raul Jungmann, Marco Maciel e Renan Calheiros continuarão a lutar “pela paz”, explicando ao povinho burro que a culpa pela criminalidade não é do Estado mas dos cidadãos ávidos por armas e sempre prontos a atirar uns nos outros.

Eles destilaram uma santimônia pegajosa, abraçaram lagoas e cristos, mas não conseguiram falar em nome do povo. Agora, precisam sequestrar a mensagem do povo e torcer seu significado. Indiferentes ao ridículo, chegam a sugerir que os cidadãos votaram contra o “mensalão”, não contra a proibição, como se a quadrilha dos corruptores já não estivesse exposta dois meses atrás, quando o “sim” tinha dois terços das intenções de voto.

O povo não é burro: decifrou a pergunta, desarmou a armadilha e enviou uma série de mensagens claras e nítidas.

1 – A esmagadora maioria dos brasileiros não tem armas. Mesmo assim, os eleitores disseram que o Estado não pode tomar-lhes um direito natural, que é o direito de defender a sua casa e a sua vida;

2 – Os eleitores disseram que o Estado não pode dividir os cidadãos em duas classes jurídicas, permitindo a proliferação de empresas de segurança privada enquanto proíbe a autodefesa armada dos homens de poucas posses;

3 – Os eleitores votaram contra o governo, mas com pertinência. Eles exigiram o fim da empulhação e do papo furado. Disseram que o culpado pela liberdade do crime é o governo, que não cumpriu a promessa de elaborar um plano nacional de segurança pública e não reformou, unificou e limpou as polícias.

Que ninguém se engane. Ficou registrado na memória coletiva que, em dezembro passado, os ministros do Trabalho, Ricardo Berzoini, e da Cultura, Gilberto Gil, negociaram com os traficantes do Complexo da Maré as condições da visita à favela da Vila São João, onde lançaram um programa de qualificação profissional. Por imposição do tráfico, as autoridades subiram o morro sem segurança armada, protegidos pela milícia dos bandidos.

Os cidadãos disseram “não!” exatamente a isso. Os brasileiros não correram atrás dos brucutus armados que têm saudade da ditadura. Simplesmente, estão fartos das autoridades que “são da paz”. Querem guerra à corrupção e à violência policial. Querem guerra às prerrogativas dos traficantes, não uma hipócrita “guerra às drogas” que criminaliza os usuários e provoca chacinas de crianças. Querem a restauração da ordem pública e dos direitos das pessoas. Os candidatos a presidente deveriam tomar nota.

(Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo e colunista da Folha)

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Folha de S. Paulo

24 de outubro de 2005

Para intelectuais, referendo errou alvo

De acordo com eles, há questões muito mais importantes a serem discutidas no país no que diz respeito à questão da segurança

MARCOS FLAMÍNIO PERES

Editor do Mais!

O referendo sobre a proibição de vendas de armas de fogo foi um instrumento legítimo da democracia, mas errou o alvo, conforme apontam cinco intelectuais ouvidos pela Folha.

Para a antropóloga Alba Zaluar, professora do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e referência no estudo da violência urbana no país, o referendo foi um “equívoco”.

Para ela, que votou no “sim”, há questões muito mais importantes a serem discutidas no país no que diz respeito à segurança, como a corrupção policial e o controle dos arsenais das Forças Armadas e das polícias. Ela avalia a vitória do “não” como um voto de protesto, um claro recado ao governo de que a população está insatisfeita com a política de segurança”.

Autora de livros como Integração Perversa – Pobreza e Tráfico de Drogas (ed. FGV), Zaluar cita dados de várias pesquisas para afirmar que o “Brasil não tem uma população armada”: menos de 5% dos domicílios brasileiros possuem armas de fogo, enquanto nos Estados Unidos esse índice atinge 34%.

Em cidades consideradas violentas, como São Paulo e Rio de Janeiro, esses índices são de 2,5% e 4,5%, respectivamente.

Portanto, não é daí que provêm as armas utilizadas pelos criminosos, conclui, mas do exterior e de arsenais da polícia e das Força Armadas. Nesse sentido, o referendo foi “um erro de enfoque”, diz.

É essa também a opinião de Roberto Romano, professor titular de ética e filosofia política na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), para quem “as armas continuarão a penetrar no território brasileiro por meio do contrabando”, além de poderem ser adquiridas “por meio de furto de integrantes das polícias e das forças armadas”. O problema da segurança no Brasil “sofre com a incompetência governamental”, diagnostica Romano.

Para José de Souza Martins, professor de sociologia da USP, o “governo propôs uma questão grande e fez uma pergunta pequena, o que confundiu os votantes”.

Embora considere o referendo um instrumento legítimo, ele foi “mal utilizado”.

Eleitorado desinformado

É legítimo “porque representa um alargamento das alternativas democráticas na expressão do ponto de vista do povo”. Foi mal utilizado “porque o legislador não levou em conta a complexidade do problema da violência e circunscreveu a pergunta ao comércio legal de armas, que é só uma parte da questão”. Mas Martins, autor de Exclusão Social e a Nova Desigualdade (ed. Paulus), pondera que o referendo contribuiu “para alargar nossa restrita concepção de democracia”.

Menos entusiasta, o cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), vê a vitória do “não” como “resultado de um eleitorado desinformado e pouco atento”. Para Reis, que votou no “sim”, não havia razão para levar o tema a consulta popular.

É da mesma opinião Ronaldo Vainfas, professor de história na Universidade Federal Fluminense (UFF), que considera “totalmente descabido” submeter o comércio de armas e munições a voto popular. Trata-se de uma “ilusão de cidadania”, afirma o historiador, que é especialista em Brasil Colônia e no estudo nas formas de coerção utilizadas pela Igreja e pelo Estado.

Para ele, “o “sim” ou o “não” pouco importam: a violência continuará, as mortes também continuarão, com armas de fogo comercializadas sobretudo no contrabando, pois o percentual de armas legais vendidas no país é mínimo. Todos sabiam disso, mesmo os que defendiam o sim na base do “paz e amor'”.

A banalização da campanha também é alvo de duras críticas.

Para Reis, o grupo que apoiava o “não” contrapôs de maneira “muito maniqueísta o bandido ao indivíduo desarmado”, confundindo o eleitor.

Já para Martins, o referendo foi alvo de “uma concepção mercantil de disputa” que levou a população a ser “enganada, como se estivesse decidindo entre marcas de cigarro ou marcas de salsicha”.

Ele culpa os tribunais eleitorais por terem tratado o referendo “de modo tão primário”.

Romano, autor de “O Caldeirão de Medéia” (ed. Perspectiva), entre outros, vai na mesma direção e ataca o pouco respeito à “inteligência da cidadania”, que é manipulada “com propaganda ou carismas pré-fabricados”.

Ele vê a vitória do “não” como um “alerta”, pois “o eleitorado amadureceu nos últimos 20 anos e percebeu as manobras dos seus representantes oficiais”. Para ele, “muitos políticos [juízes, advogados, promotores] brasileiros insistem em tratar a cidadania como fossem seus tutores, considerando-se os únicos adultos num país de crianças”.

Pois, arremata, “os representantes sabem que, em duas palavras, nenhuma verdade concreta é obtida em questões complexas. As duas respostas exigem árduas razões jurídicas e técnicas”.

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Os cinco artigos, três meus e dois de terceiros, foram transcritos aqui novamente em 31 de Dezembro de 2018, véspera da posse do Presidente Jair Messias Bolsonaro.

Salto, SP, 31 de Dezembro de 2018

A Importância de Viver Desentribado: Uma Defesa do Liberalismo

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Mario Vargas Llosa
[Credit: Christopher Anderson/Magnum, for The New York Times]

Acabei de ler o capítulo inicial do mais recente livro de Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura de 2010, e um dos meus escritores favoritos. O nome completo dele é Jorge Mario Pedro Vargas Llosa. O livro, que ganhei de presente de minha mulher pelo meu aniversário de 75 anos (que será no dia Sete de Setembro, mas a semana inteira é de comemoração), tem o título sugestivo de La llamada de la tribuA chamada da tribo, The call of the tribe. Poderia bem se chamar, alternativamente, A atração do entribamento, embora a palavra “entribamento” soe meio feio. Se a palavra “entribamento” não existe (e parece que não existe), acabo de cria-la, com o verbo correspondente, com o sentido de “ato de entribar (-se)”, “condição de pertencimento a uma tribo”. “Entribar”, ou, talbez melhor, “entribar-se”, teria o sentido, naturalmente, de “tornar-se membro de uma tribo”, ou mesmo de “pertencer a uma tribo”.

Mário Vargas Llosa sabe do que fala. Pertenceu à tribo vermelha dos comunistas, em sua juventude, à tribo rosa escuro dos socialistas, logo depois, e à tribo rosa claro dos sociais democratas, ainda um pouco mais tarde. Depois, desiludido com as tribos da esquerda, desentribou-se (esse verbo também fica criado).

Engana-se quem pensa que, tendo se desentribado das tribos da esquerda, Vargas Llosa simplesmente mudou de tribo, passando a pertencer à tribo liberal clássica (com alguns ajustes aqui e ali). Ele se desentribou de vez, “überhaupt”. Decidiu não mais pertencer a nenhuma tribo. Tornou-se o que os americanos chamam de “rugged individualist”, um individualista vigoroso e resistente. O livro, que é, em grande medida, uma autobiografia, procura mostrar por que o entribamento é um perigo para a liberdade, para a autonomia, para o ser dono do próprio nariz, para o viver “my way”, “à mi manera”, “de ma façon”, “auf meine Weise”, do meu jeito, à minha moda, sem precisar dar satisfações a quem seja… (exceto no caso daqueles deveres que o afeto e respeito impõe).

Como disse, li apenas o primeiro capítulo, até agora. O livro tem oito. Os outros sete discutem sete influências liberais sobre a vida do autor (os nomes estando ordenados pela data do nascimento): Adam Smith (1723-1790), José Ortega y Gasset (1883-1955), Friedrich August von Hayek (1899-1992), Sir Karl Popper (1902-1994), Raymond Aaron (1905-1983), Sir Isaiah Berlin (1909-1997), Jean-François Revel (1924-2006). Todos estes estão entre meus autores favoritos. Deles, Ortega y Gasset é o que menos li. Dos demais, tenho e já li de dez livros para cima, de cada um.

Confesso que sinto falta de alguns nomes, em especial dos de (ordenando pelo mesmo critério) Ludwig von Mises (1881-1973), Ayn Rand (1905-1982), e de Milton Friedman (1912-2006) nessa lista. Eu completaria a lista com esses três nomes, deixando-a com dez – com, além do próprio Vargas Llosa, dois Prêmios Nobel de Economia, von Hayek (1974) e Friedman (1976), e dois Sirs, Karl Popper e Isaiah Berlin. Nada mal.

Voltemos, porém, ao primeiro capítulo do livro. Ali Vargas Llosa esclarece, com precisão e rara felicidade, a diferença entre o Liberalismo (estilo clássico) e o Conservadorismo, o Liberalismo e o Libertarianismo, o Liberalismo e o Anarquismo, etc. Discute ainda por que o Liberalismo (desse matiz) não é uma Ideologia. E defende, com cuidado, no final do capítulo, a importância da Educação para o Liberalismo – para que, na corrida da vida, todos possam ter uma linha de largada mais ou menos comparável, e se possível equivalente – certamente não intolerantemente desigual. A busca por uma linha de largada exata e impecável, igualíssima para todos, é uma utopia não liberal.

Recomendo. É uma excelente análise do Liberalismo Clássico — e é uma defesa, também. No processo, é uma interessante autobiografia intelectual. E, por fim, é uma discussão, importante e pertinente, da questão da atração, em alguns casos quase que irresistível, que tem sobre nós o entribamento.  Muitos anseiam por uma tribo que, fazendo-os sentir aceitos e devidamente entribados e enturmados, os dispense de buscar / construir sua identidade pessoal individual, própria e única e de pensar por si próprios. Passam a se ver apenas como membros de uma tribo, daquela tribo, que pensa por eles. Esta é a essência do “group think“. Os entribados precisam esperar que o pajé da tribo revele o que ele pensa para saber o que eles próprios pensam.

Não creio que o livro já esteja em Português. Saiu no primeiro semestre deste ano.

Em 5 de Setembro de 2018.

As Batalhas Internas de Trump neste Fim de Ano

Começa hoje, 4 de Setembro de 2018, mais uma batalha de Donald Trump no Senado Americano: a de manter, numericamente, e incrementar, em radicalidade, a pequena vantagem de 5×4 a favor dos liberais-clássicos e seus aliados conservadores na Suprema Corte Americana.

No ano passado, em 7 de abril de 2017, Donald Trump teve a oportunidade de preservar e incrementar o perfil majoritariamente liberal-clássico e conservador da Suprema Corte Americana. Nessa ocasião, foi aprovado pelo Senado Americano, o nome de Neil Gorsuch, de 51 anos, e, portanto, razoavelmente jovem, para substituir Antony Scalia, que faleceu em 2016, aos 80 anos. Scalia era, também, liberal-clássico e conservador, mas bem mais moderado. Os leitores se lembrarão que Barack Obama, no último ano de seu mandato, declinou de indicar o substituto de Scalia, por achar, num raro gesto nobre (mas só aparente), que o próximo presidente o fizesse. Só que ele imaginava que o presidente seguinte seria Hilary Clinton. Danou-se.

Esse perfil liberal-clássico e conservador que a Suprema Corte Americana tem tido nos últimos tempos é alinhado com os Republicanos, que, nos EUA, agrupam, de um lado, os liberais clássicos, estilo laissez-faire na política (estado pequeno), na economia (ausência de controle pelo estado) e na vida privada (visão libertária, beirando ao anarquismo), e, de outro lado, os culturalmente conservadores, que incluem a direita religiosa, que não é nada laissez-faire na vida privada (são contra o aborto, o casamento gay e outros costumes mais favorecidos pela esquerda, como o feminismo, a identidade de gênero, a diversidade racial e cultural, etc. .), que defende um estado forte (quando se trata de defender costumes tradicionais e a religião), etc.

Antes de alcançar a maioria de 5×4, com Juizes-Ministros indicados por Reagan e pelos dois Bushes (pai e filho, George H. W. e George W., respectivamente), a Suprema Corte Americana, teve um perfil majoritariamente social-democrata e progressista por um bom tempo, alinhado com os Democratas, que, nos EUA, apesar de se chamarem liberais, ficam entre, de um lado, os social-democratas, e, do outro lado, os socialistas soft, defendendo causas parecidas com as defendidas aqui no Brasil pelas forças de esquerda.

Em 30 de Julho deste ano de 2018 aposentou-se Anthony Kennedy, de 82 anos, nomeado por Ronald Reagan, em 1987, e que passou nada menos do que 31 anos na Suprema Corte. Kennedy, embora alinhado com os Republicanos, também era razoavelmente moderado. Trump indicou para o seu lugar Brett Kavanaugh, bem mais conservador e bem mais jovem (nasceu em 1965, e, portanto, tem 53 anos). É a batalha de sua confirmação pelo Senado que se inicia hoje, 4 de Setembro.

Joseph Kennedy, que era um Republicano moderado, foi, muitas vezes o fiel da balança da Suprema Corte, ora ficando para cá, ora indo para lá… Se Kavanaugh for aprovado, os Republicanos terão um Juiz/Ministro mais consistente em seu liberalismo-clássico e conservadorismo do que Kennedy.

Daí a importância de mais esta batalha no Senado. Se Trump ganha-la, manterá, numericamente, a vantagem de 5×4 na Suprema Corte e a tornará mais radicalmente liberal-clássica e conservadora.

Os Republicanos, desde a eleição de Trump, controlam as duas casas do Congresso, mas, no Senado, a maioria republicana, originalmente de 51×49, tem sido precária, pois alguns senadores republicanos têm votado, de vez em quando, contra o Trump. Isso se deu, em especial, com Joseph McCain, falecido há poucos dias (falecimento que deve ter alegrado o Trump sobremaneira, apesar da cara compungida que teve de exibir em público).

Assim sendo, sem McCain, que não foi ainda substituído, a maioria republicana está reduzida a 50×49. Os Democratas, na verdade, também têm suas dificuldades. Democratas mesmo são só 47: os dois outros que geralmente se coaligam com eles, se declaram Independentes, e, portanto, podem oscilar.

Para complicar a situação, para os dois partidos, no final deste ano de 2018, 33 dos atuais mandatos expirarão, havendo eleições para eles em 6 de Novembro – que será uma eleição decisiva para que Trump mantenha (ou mesmo aumente) a sua maioria, hoje precária, no Senado, mas que, mesmo precária, ele pode vir a perder.

Em geral, o presidente cujo partido ganha maioria no Congresso durante a eleição presidencial, tem essa maioria reduzida ou mesmo perdida na eleição para o Congresso que tem lugar na metade do mandato presidencial. Isso acontece, em geral, porque apoiadores do Presidente que acham que ele não está sendo suficientemente alinhado com sua plataforma resolvem lhe mandar um “recado” para tomar jeito e mostrar mais serviço…

Eu diria que, apesar das críticas a Trump que a gente lê e ouve na mídia, ele está bem posicionado para, pelo menos, manter a sua base de apoio na eleição de Novembro de 2018.

Assim, nos próximos meses, além das eleições brasileiras, temos de prestar atenção à batalha pelo controle da Suprema Corte Americana no Senado Americano, bem como ao resultado das eleições americanas para o Congresso, eleições essas que terão lugar, como foi dito, daqui a basicamente dois meses, em 6 de Novembro deste ano.

Em 4 de Setembro de 2018

Comentário sobre a Palestra do Prof. Luiz Carlos Santana Acerca do Liberalismo

1. Apresentação

O presente artigo, “Comentário sobre a Palestra do Prof. Luiz Carlos Santana Acerca do Liberalismo”, é, de certo modo, uma continuação do meu artigo anterior.

O artigo anterior, no caso, para evitar confusão, é “Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo“, também publicado aqui neste blog Liberal Space na URL https://liberal.space/2018/03/19/uma-discussao-academica-meio-acalorada-sobre-o-liberalismo/  .

Meu artigo original, “O Liberalismo na Política, Economia e Sociedade e suas Implicações para a Educação: Uma Defesa“, também foi publicado aqui neste blog Liberal Space em 18/03/2018 na URL https://liberal.space/2018/03/18/o-liberalismo-na-politica-economia-e-sociedade-e-suas-implicacoes-para-a-educacao-uma-defesa/, Embora só publicado aqui no blog agora, ele foi inicialmente apresentado em um conjunto de seminários organizado pelo Grupo de Pesquisa HISTEDBR (História da Educação Brasileira), da Faculdade de Educação da UNICAMP, no ano de 2001 (ou seja: dezessete anos atrás), sobre o tema Liberalismo e Educação. Meu seminário foi o primeiro a ser apresentado na série. Em datas subsequentes vários outros seminários foram realizados, outros professores, em geral de fora da UNICAMP, apresentando seus trabalhos.

Oportunamente, os Professores José Claudinei Lombardi e José Luís Sanfelice, do HISTEDBR, organizadores do conjunto de seminários, resolveram publicar em forma de livro as diversas contribuições submetidas nos diversos encontros e me pediram para revisar o texto inicial de minha apresentação, incorporando, tanto quanto possível, questões levantadas na discussão oral que se seguiu. O resultado da revisão foi a texto que agora, em 18/03/2018, publiquei no meu blog Liberal Space, cujo link é fornecido no início do parágrafo anterior. Esse texto é basicamente idêntico ao texto que foi publicado no livro Liberalismo e Educação em Debate (Autores Associados, Campinas, 2007), pp.1-60, editado pelos Professores Lombardi e Sanfelice, que, por sinal, são meus colegas de longa data no Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP.

Minha participação nos seminários não se limitou, porém, à apresentação do texto republicado aqui neste blog a que acabei de fazer referência. Movido pelo amor ao debate, também fiz comentários escritos, alguns deles bastante extensos e detalhados, à apresentação de dois outros professores: o Prof. Gilberto Luiz Alves e o Prof. Luiz Carlos Santana.

O Prof. Gilberto Luiz Alves, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), dignou-se a redigir duas respostas aos meus comentários iniciais sobre a sua palestra, que, por sua vez, geraram uma longa réplica minha. É essa discussão que agora está disponível neste blog Liberal Space, sob o título “Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo“, na URL https://liberal.space/2018/03/19/uma-discussao-academica-meio-acalorada-sobre-o-liberalismo/. O texto correspondente à palestra original do Prof. Gilberto se encontra nas pp. 61-76 do livro Liberalismo e Educação em Debate (acrescido de um Anexo, pp. 77-86, que não foi apresentado oralmente nem é exatamente igual às duas respostas que redigiu aos meus comentários iniciais sobre sua palestra.

O texto que segue contém os meus comentários à palestra original do Prof. Luiz Carlos Santana, que se encontra nas pp. 87-114  do livro Liberalismo e Educação em Debate. Que eu saiba, o Prof. Luiz Carlos Santana não respondeu aos meus comentários — ou, se o fez, sua resposta nunca me chegou às mãos.

Aqui vão, portanto, meus comentários.

2. Comentários

A. Quanto à Conceituação do Liberalismo

Contrariamente ao que afirmou, no hora das perguntas, a colega da UNESP de Presidente Prudente, pareceu-me haver uma clara conceituação de Liberalismo na palestra feita – clara mas, a meu ver, errônea.

O Prof. Santana conceituou Liberalismo como ideologia criada para defender os interesses do capital (i.e., da propriedade privada) que coloca o Estado como o principal mecanismo nessa defesa. O Estado, nessa conceituação, existiria fundamentalmente para defender os interesses do capital (i.e., da propriedade privada).

Nesse contexto, o Prof. Santana citou, com aparente aprovação, a tese de Miriam Warde, em que ela, segundo ele, afirma que o Liberalismo seria a expressão do Capitalismo.

Diante de inúmeras referências a essa conceituação do Liberalismo, estranhou-me a observação da colega da UNESP de que o Prof. Santana não teria deixado claro qual conceito de Liberalismo estaria utilizando.

O que não ficou claro, isto é verdade, foi quais seriam as outras conceituações de Liberalismo que o Prof. Santana disse que existiam e nunca explicitou.

Não tendo ele as apresentado, aproveito para apresentar uma outra (que, naturalmente, ja expus na minha própria palestra).

No meu entender a ideia central do Liberalismo é a ideia de liberdade (como eu procurei mostrar na minha palestra, especialmente em minha resposta a pergunta do Prof. Saviani, que, como o Prof. Santana, coloca a  propriedade privada como a ideia central do Liberalismo, e como eu procurei ressaltar em minha segunda pergunta ao Prof. Santana, ontem).

Se o Liberalismo for analisado no contexto do século XVIII, sem o uso de uma ótica marxista, ficará claro que a ideia central do Liberalismo é a de liberdade — ideia tão central que lhe deu o nome. Os liberais clássicos, embora tenham sempre defendido a propriedade privada, sempre deixaram claro que a defesa da propriedade privada era uma conseqüência da defesa incondicional da liberdade. Para eles, contrariamente ao que pretende (segundo se alegou) Miriam Warde, o Capitalismo é uma expressão necessária do Liberalismo (NÃO vice-versa).

A razão pela qual pessoas que adotam a ótica marxista tendem a ver as coisas de forma inversa está, a meu ver, no axioma de que é a infra-estrutura que determina a super-estrutura. Assim, seriam fatores econômicos, ou seja, o Capitalismo, que produziriam ideias políticas, ou seja o Liberalismo. Liberais nunca concederam aos marxistas e simpatizantes esse axioma. Para eles, o Liberalismo surgiu num contexto em que várias liberdades eram importantes: liberdade política, contra um estado quase absoluto; liberdade religiosa, contra uma igreja monopolista e intolerante; e liberdade econômica — apenas uma entre várias liberdades. Foi a ênfase na liberdade, como princípio, que os levou, inter alia, a defender o direito de propriedade privada e, assim, a criar o que veio a ser chamado (nunca, que me conste, no século XVIII, pelos próprios liberais) de Capitalismo.

No século XVIII não havia o Marxismo. Creio que uma interpretação do surgimento do Liberalismo que lhe faça justiça histórica não pode, usando uma ótica caracteristicamente marxista, inverter o que era realmente importante para os liberais do século XVIII. Seria um anacronismo.

B. Quanto ao “Estado Mínimo”

Surpreendeu-me o fato de que o Prof. Santana tenha sentido a necessidade de enfatizar duas vezes que a ideia do “Estado Mínimo” não era invenção dos chamados neo-liberais de meados do século XX mas que tinha raizes no século XVIII. Isso me parece tão óbvio que a repetida tentativa de demonstrá-lo sugere pouca intimidade com as ideias liberais do século XVIII, que inventaram a frase “that government is best that governs the least” (“o melhor governo é o que menos governa”).

A ideia do “Estado Mínimo” é uma decorrência necessária da colocação da liberdade como pedra angular da filosofia política. Todos os liberais clássicos (e também os posteriores) enfatizaram o fato de que ameaças à nossa liberdade não aparecem apenas de nossos co-cidadãos (donde a necessidade de o Estado exercer a função policial e judicial) e dos cidadãos de países estrangeiros (donde a necessidade de o Estado exercer a função militar), mas, também, do próprio Estado. Para conter o Estado dentro de limites gerenciáveis, os liberais clássicos defenderam a tese de que o Estado, embora necessário, deve ser o menor possível e exercer apenas as funções necessárias para a manutenção da ordem e o exercício dos direitos individuais básicos (integridade da pessoa, expressão, locomocação, associação, e propriedade).

É desta ideia do “Estado Minimo” que decorrem a defesa, de um lado, o Capitalismo, e, de outro, da tese de que o provimento de serviços de educação, saúde, etc. deve ser feito pela iniciativa privada, não pelo Estado.

C. A Questão da Privatização

Por isso, outro fato que me surpreendeu na palestra do Prof. Santana foi ele parecer sentir necessário mostrar (à semelhança do que havia feito com o “Estado Mínimo”)  que a privatização da educação (ou, como ele prefere, do Ensino) é coisa antiga, com raizes no século XVIII. Novamente, isso me parece tão óbvio para qualquer pessoa que tenha conhecimento ainda que superficial da história da educação e da filosofia que insistir nisso parece mostrar pouca familiaridade com as ideias e os desenvolvimentos da era moderna. Ora, não foi a campanha pela educação pública um desenvolvimento histórico relativamente recente, tipicamente do século XIX? O que precisaria ser mostrado para o tipo de audiência presente na palestra, interessado na História da Educação, mas formado dentro de uma visão de esquerda e predominantemente marxista, é que o que é um desenvolvimento relativamente recente é a defesa da escola pública, não a ênfase no caráter privado que a educação sempre teve e que, no entender dos liberais como eu, deve voltar a ter (e não só no nível universitário).

O Prof. Santana deu a impressão, em uma observação que fez, de que a defesa da escola pública é algo tão hegemônico hoje, pelo menos no que diz respeito à educação básica (não superior), que nem mesmo os liberais ousariam, hoje, defender a total privatização da educação. Está errado. Eu defendo — e muitos outros também (embora haja liberais, hoje, como Charles Murray, que abrem uma exceção para a educação na sua defesa do “Estado Mínimo”).

Se as coisas forem vistas desta ótica, bem mais fiel à história do que aquela que o Prof. Santana procurou impor aos fatos, o que surpreende não é (como ele parece crer) que Adam Smith tenha defendido o caráter privado dos serviços educacionais, mas que ele tenha feito alguma concessão em relação a essa questão, admitindo que o Estado deva atentar para a educação dos desvalidos, para que não aconteça o seu total emburrecimento (uso o termo do Prof. Santana). No entanto, o Prof. Santana manifestou-se “surpreso” de encontrar em Adam Smith argumentos em favor do que hoje chamamos de “privatização do ensino”. O que me surpreende é a surpresa do Prof. Santana, que se explica, talvez, por ele ter vivido sua vida acadêmica tão imerso em contextos não-liberais.

Para os liberais mais recentes, o onus probandi é sempre de quem propõe uma extensão das funções do Estado. O caráter privado dos serviços privados seria o normal (o “default”). O que precisaria ser justificado é a defesa da intervenção do Estado nessa área. É por isso que Charles Murray, ao abrir a exceção mencionada atrás, se sente obrigado a justificar sua concessão.

Para os liberais, não causa nenhuma estranheza, muito menos escândalo, dizer-se que a educação é um serviço como qualquer outro – uma “commodity”. É mesmo.

D. É Lord Keynes um Liberal?

As opções conceituais equivocadas do Prof. Santana culminam na sua inclusão de Lord Keynes como liberal. Lord Keynes seria, segundo ele, o mais importante liberal do entre-guerra e, talvez, até do após-guerra (segunda), constituindo-se o ideólogo da fase “monopolista” do Capitalismo (como Adam Smith teria sido de sua fase “concorrencial”).

Em resposta à minha pergunta sobre como ele justificava a inclusão, em um mesmo cesto, de Lord Keynes, Milton Friedman e Friedrich von Hayek, quando Friedman e Hayek se opuseram ferrenhamente às ideias de Lord Keynes, contradizendo sua tese (de Lord Keynes) de que o Estado deve, por razões teóricas e/ou práticas (evitar o desemprego, por exemplo), regular (regulamentar) e mesmo intervir na economia, o Prof. Santana deixou evidente uma distorção grave em sua ótica. Ele reconheceu a existência de importantes divergências entre Lord Keynes, de um lado, e Friedman e von Hayek, de outro, mas enfatizou que todos eles defendiam a propriedade privada dos meios de produção. Ora, isso é evidente. Ninguém jamais afirmou que Lord Keynes fosse um marxista ou mesmo um socialista. Isso não quer dizer, porém, que ele fosse um liberal — a menos que se acredite, como o Prof. Santana parece acreditar, que quem não é socialista-marxista (defendendo a propriedade estatal dos meios de produção) tem, forçosamente, que ser liberal. Tertium non datur.

Mas existe uma alternativa (ou várias outras): a defesa do estado previdenciário (“welfare state”), ou seja, a Social-Democracia.

A completa ausência, na palestra do Prof. Santana, de qualquer referência à Social-Democracia como uma real alternativa à Democracia Liberal (e ao Socialismo de Orientação Marxista), é que o leva a se equivocar totalmente na colocação de Lord Keynes como liberal. Lord Keynes foi um típico defensor do “welfare state” — e, conseqüentemente, um anti-liberal, como claramente o perceberam Friedman e von Hayek (bem como Ludwig von Mises, outro grande ausente da palestra do Prof. Santana).

E. O Liberalismo e a Educação

Se o que caracteriza o Liberalismo é a defesa da liberdade e, conseqüentemente, a oposição à interferência indevida do governo nas ações dos indivíduos, que resultou no slogan de que o governo deveria, exceto pela manutenção da ordem, deixar que os indivíduos façam o que bem entendam (“laissez faire”), então suas implicações para a educação devem ser pelo menos três — das quais o Prof. Santana só mencionou duas.

Em primeiro lugar, a educação deve se localizar estritamente na esfera privada, não na esfera estatal (ou do governo). O Estado (ou o governo) deve, também na área da educação, “laissez faire” — deixar que a iniciativa privada atue livremente.

Em segundo lugar, a educação não deve ser obrigatória. Obrigar alguém a se educar ou a educar os filhos é uma interferência indevida com a sua liberdade — por mais importante que seja a educação para o indivíduo e até mesmo para a sociedade. Os liberais sempre defenderam a tese de que o Estado (ou o governo) não tem o direito de obrigar alguém a fazer algo mesmo quando pode ser demonstrado que fazer esse algo é no seu melhor interesse — nem mesmo o direito de impedir que alguém se mate.

Em terceiro lugar, e deixando os aspectos mais “macros” da educação, os liberais sempre defenderam a liberdade das crianças contra interferências indevidas dos adultos – aí incluídos seus pais e seus eventuais professores. Da mesma forma que o Estado (ou o governo) deve deixar a sociedade agir livremente (“laissez faire”) no limite máximo (só restringível pelas necessidades da segurança), os pais ou os professores devem respeitar ao máximo a liberdade da criança, respeitando ao máximo os seus interesses e procurando interferir com o seu livre desenvolvimento o mínimo possível. Jean-Jacques Rousseau, que, em muitos aspectos, está longe de ser um liberal, foi, na sua teoria educacional, talvez o mais radical dos liberais, ao propor uma “Educação Negativa” (versão pedagógica do “Estado Mínimo”). John Dewey, que, em alguns momentos, colocou os interesses da sociedade (“formação para a cidadania”) na frente dos interesses dos indivíduos, não deixou, porém, de enfatizar a necessidade de respeitar a liberdade e os interesses das crianças. Está aí a principal característica da educação liberal (quando a educação é encarada da ótica “micro” do que se passa na casa ou na sala de aula).

E essa visão “micro” é perfeitamente coerente com a visão “macro” representada pelos dois primeiros aspectos: em todos os aspectos a ênfase está na liberdade.

F. Voltando ao Conceito de Liberalismo: o Papel do Estado

No final de sua palestra, o Prof. Santana mencionou que, para liberais como Milton Friedman, o Estado é árbitro, não participante. Apenas mencionou, “en passant”.

Ora, essa tese, perfeitamente liberal, contradiz totalmente a visão do Liberalismo proposta pelo Prof. Santana, segundo o qual o Estado não é árbitro, mas é o defensor dos interesses do capital. No entanto, o Prof. Santana nem por meio minuto se deteve para analisar essa afirmação que contradiz frontalmente a visão de Liberalismo que ele procurou expor.

Embora o Prof. Santana tenha aparentemente ficado “em cima do muro” sobre se é liberal ou não, sobre se defende a privatização do ensino ou a escola pública, mesmo quando fustigado pelo Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo), a sua conceituação de Liberalismo mostrou que ele adotou uma visão do Liberalismo que é tipicamente marxista — e não a visão do Liberalismo que os próprios liberais, antigos e modernos, adotam e explicitamente defendem. Em nenhum lugar isso ficou mais evidente do que na sua rejeição, a priori, e sem qualquer argumento, da tese do Estado árbitro (e, portanto, imparcial).

G. Uma pergunta final

Se os liberais, que defendem a liberdade, estão defendendo os interesses do capital, como afirma o Prof. Santana, seria necessário, para defender os interesses dos trabalhadores, defender a anti-liberdade (como a história recente tem mostrado)?

Desculpe-me ter me alongado.

Transcrito aqui neste blog em Salto, 18 de Março de 2018

Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo

Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo

Eduardo Chaves e Gilberto Luiz Alves

 Conteúdo

Apresentação

Comentários Iniciais de Eduardo Chaves à Palestra do Prof. Gilberto

Duas Respostas do Prof. Gilberto aos Comentários de Eduardo Chaves

Réplica de Eduardo Chaves às Respostas do Prof. Gilberto

Anexo: Passagens de Adam Smith

I. Apresentação

Meu artigo “O Liberalismo na Política, Economia e Sociedade e suas Implicações para a Educação: Uma Defesa”, publicado aqui neste blog Liberal Space na URL https://liberal.space/2018/03/18/o-liberalismo-na-politica-economia-e-sociedade-e-suas-implicacoes-para-a-educacao-uma-defesa/, foi inicialmente apresentado em um conjunto de seminários organizado pelo Grupo de Pesquisa HISTEDBR, da Faculdade de Educação da UNICAMP, em 2001, sobre o tema Liberalismo e Educação. Meu seminário foi o primeiro a ser apresentado. Em datas subsequentes vários outros seminários foram apresentados. Oportunamente, os Professores José Claudinei Lombardi e José Luís Sanfelice, do HISTEDBR, resolveram publicar em forma de livro as diversas contribuições apresentadas no seminário e me pediram para revisar o texto de minha apresentação, incorporando, tanto quanto possível, questões levantadas na discussão. O resultado da revisão foi a versão que agora, em Março de 2018, publiquei no meu blog Liberal Space e que é basicamente idêntico ao texto que foi publicado no livro Liberalismo e Educação em Debate (Autores Associados, Campinas, 2007), pp.1-60.

Minha participação nos seminários não se limitou à apresentação do texto que republiquei hoje aqui neste blog. Fiz comentários escritos às apresentações de dois outros professores. Um deles, o Prof. Gilberto Luiz Alves, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), redigiu duas respostas aos meus comentários iniciais sobre a sua palestra, que, por sua vez, geraram uma longa réplica minha.

É esse material que agora transcrevo aqui, e que foi originalmente distribuído na lista de discussão do HISTEDBR.

O texto correspondente à palestra original do Prof. Gilberto está nas pp. 61-76 do livro Liberalismo e Educação em Debate. Ao receber o livro impresso, fui surpreendido pelo fato de que o texto do Prof. Gilberto publicado no livro tem um “Anexo”, impresso nas pp. 76-84. Esse “Anexo” incorpora parte do material das duas respostas que o professor enviou aos meus comentários originais, mas leva em conta, igualmente, minha réplica – tudo isso sem mencionar a discussão que tivemos. Tudo isso foi feito sem que eu tivesse ciência e, pior, sem que eu tivesse condições de responder. Cabe ao leitor avaliar como organizadores de livros se comportam em relação a autores que contribuíram para a elaboração da obra que organizaram. Das 224 páginas do livro, nada menos do que sessenta (mais de um quarto) foram redigidas por mim.

Eduardo Chaves

18 de Março de 2018

II. Comentários Iniciais de Eduardo Chaves à Palestra do Prof. Gilberto

Em 29 de Junho de 2001 encaminhei ao Prof. José Claudinei Lombardi (conhecido como Zezo) o seguinte e-mail:

“Caro Zezo,

Ontem tive que sair da palestra imediatamente após o término da apresentação, sem acompanhar, ou, como eu desejava, participar, da discussão.

Como já fiz em ocasião anterior, porém, teci alguns comentários sobre a palestra, que coloco adiante, que, peço, sejam distribuidos e ao autor da palestra e aos demais participantes.

Eduardo”

——————————

Minha principal crítica à palestra do Prof. Gilberto, que teve como título e tema “O Liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”, está na falta de clareza e coerência conceitual na sua caracterização, seja de Liberalismo, seja de Escola Pública.

O tema da palestra sugeria que o palestrante iria explicar a participação do Liberalismo na produção da Escola Pública Moderna (i.e., imagino, a Escola Pública que hoje conhecemos). Se, como pretendo demonstrar, faltou clareza e coerência conceitual na caracterização tanto do Liberalismo como da Escola Pública, a palestra ficou seriamente prejudicada – embora tenha contido um bom número de observações interessantes e até mesmo verdadeiras.

1. A Conceituação do Liberalismo

A principal falha da palestra esteve na conceituação do Liberalismo. Na verdade, não houve sequer uma tentativa de conceituar o Liberalismo. O palestrante pareceu pressupor que todo mundo na audiência soubesse exatamente o que era o Liberalismo. No entanto, ele próprio pareceu pressupor que o Liberalismo é um conjunto de ideias vago e às vezes até mesmo incoerente.

Exemplifico.

A. Tópicos em Destaque na Palestra do Prof. Gilberto

O tema da palestra era mostrar o papel do Liberalismo na “produção” da Escola Pública Moderna.

Primeiro, o autor começou por esclarecer (?) que o Liberalismo surgiu na Idade Média – por volta do século X – quando a classe burguesa procurou se livrar do que ele chamou de “entraves feudais” (especialmente pagamento de impostos aos senhores feudais).

Segundo, ele mencionou o papel da Reforma Protestante na proposição da tese de que a educação deve ser universal, isto é, de que todo mundo deve saber ler e escrever para poder, por si só, ter acesso à Bíblia.

Terceiro, ele mencionou o papel da Contra-Reforma, em especial dos Jesuítas, na construção da ideia (pareceu-me) de que o conhecimento é especializado e, consequentemente, sua transmissão deve ser realizada através de disciplinas por preceptores especializados (divisão do trabalho docente). [Essa ideia não ficou muito clara, tendo sido tratada meio en passant].

Quarto, ele mencionou o papel da Universidade de Paris na divisão dos alunos em turmas, por nível de adiantamento no domínio dos conteúdos disciplinares.

Quinto, ele mencionou o papel de Comenius, que teria sistematizado as ideias mestras da Escola Moderna (não necessariamente da Escola Pública Moderna, que deveria ter sido o tema – fato em si já significativo), na qual o trabalho didático fica organizado em disciplinas e séries e o trabalho docente é dividido, ficando a cargo de professores especializados nas disciplinas e preparados para atuar numa determinada série (ou num determinado conjunto de séries).

Sexto, ele mencionou, em seguida, o papel de Adam Smith e dos enciclopedistas franceses, em especial de Condorcet.

Paro por aqui – embora outros movimentos e autores tenham sido mencionados na tentativa de mostrar como se “produziu” a Escola Pública Moderna.

B. Observações sobre Esses Tópicos

Faço sobre esse relato apenas as observações que me parecem mais importantes.

Primeiro, o palestrante, em nenhum momento, sequer tentou justificar o que pareceu ter sido um pressuposto básico seu, a saber, que o movimento de combate ao Feudalismo, a Reforma Protestante, a Contra-Reforma, a Universidade de Paris, Comenius, Adam Smith, os “Philosophes” Franceses do século XVIII, tudo isso é parte do Liberalismo! O que é que o palestrante entende por Liberalismo que lhe permite incluir como exemplos da evolução do Liberalismo tanto a Reforma Protestante quanto a Contra-Reforma Católica?

Segundo, a colocação da origem do Liberalismo na Oposição e no Combate ao Feudalismo – na crítica ao que ele chamou de “entraves feudais” – confunde (de forma até bastante lisonjeira para o Liberalismo) a luta pela liberdade, em si, com a teoria liberal, que é uma teoria normativa, bastante específica, que defende a maior liberdade possível do indivíduo face ao governo e às demais instituições da sociedade e que, portanto, contém uma visão muito clara sobre qual deve ser o papel (extemamente limitado) do Estado na sociedade.

Terceiro, a ausência de uma conceituação clara do Liberalismo impede o palestrante de apreciar adequadamente o fato de que alguns não-liberais (como os Reformadores Protestantes), na sua luta para quebrar o monopólio que a Igreja Católica exerceu sobre a educação durante a Idade Média, valeram-se do poder de um Estado que tinha interesses que se contrapunham aos da Igreja Católica (como, no caso de Lutero, claramente um não-liberal, e os príncipes saxões). Nessa luta contra a Igreja Católica, muitos dos reformadores protestantes (quase todos eles não-liberais) não se importaram em manter o vínculo entre a Igreja Protestante e o Estado (caso de vários territórios na Alemanha, da Inglaterra, ou mesmo da Genebra calvinista, por exemplo). Os liberais, entretanto, logo perceberam o risco de, ao escapar do monopólio da educação pela Igreja Católica, cair no monopólio da educação pelo Estado (ainda que esse estado não estivesse ligado à Igreja Católica), e, na defesa da liberdade do indivíduo, se opuseram a que a educação ficasse sob o controle do Estado (ainda que protestante).

Quarto, o palestrante jogou com a imprecisão de certos conceitos básicos extremamente importantes para uma discussão do tema que se propôs discutir.

C. Uso Impreciso e Obscuro de Certos Conceitos pelo Palestrante

Ilustro.

  1. Ao falar dos Reformadores Protestantes, disse que eles defenderam a tese da educação universal. Mesmo que isso tenha sido verdade (o que não vale a pena discutir aqui), essa tese da universalidade da educação não equivale (como o palestrante pareceu pressupor) à tese de que a educação é um direito inerente à pessoa humana. Uma coisa é dizer que toda pessoa deve (por prudência, isto é, condicionalmente) aprender a ler e a escrever, porque, SE não aprender, será (entre outras coisas) presa fácil de padres ignorantes desejosos de manipula-la, os quais poderão leva-la a “perder a sua alma”. Outra coisa é dizer que a educação é um direito básico das pessoas e que, portanto, alguém (em geral o Estado) tem o dever incondicional de prover-lhes a educação necessária.
  2. Ao falar de Adam Smith (que foi apresentado aos presentes como um crítico da divisão do trabalho!), o palestrante deixou a impressão de que Adam Smith defendia a tese de que a educação é um direito do indivíduo e que cabe ao Estado prover a educação da população (até mesmo gratuitamente). Adam Smith, entretanto, não defendeu a tese de que a educação é um direito da pessoa, muito menos de que o Estado devesse provê-la diretamente à população, muito menos ainda de que, em o fazendo, devesse fazê-lo de forma gratuita. Em geral, os autores liberais, entre os quais Smith certamente se encontra, ao defenderam a tese de que todo mundo devesse se educar ou ser educado, não advogaram a gratuidade da educação e apelaram à iniciativa privada para a ajuda àqueles que, não podendo pagar pela sua educação, tinham, entretanto, condições (aptidão, capacidade, motivação, etc.) de se educar ou de serem educados. O palestrante, entretanto, ao mencionar o assunto de “bolsas de estudo” pareceu estar sugerindo que bolsas de estudo seriam necessariamente governamentais, custeadas obrigatoriamente por impostos, desconsiderando o fato óbvio e inconteste de que até muito recentemente bolsas de estudo eram dadas apenas a pessoas carentes e merecedoras e exclusivamente por entidades privadas filantrópicas.

2. A Conceituação da Escola Pública

Mas aqui as questões relativas à conceituação do Liberalismo já se misturam com as questões relativas à conceituação da Escola Pública.

O palestrante sugeriu que a escola pública seria, “no discurso liberal clássico”, uma escola que atendesse, simultaneamente, a cinco critérios básicos:

  • Laicidade
  • Universalidade
  • Obrigatoriedade
  • Gratuidade
  • Unicidade (não diferenciação)

A. Laicidade

Certamente os liberais clássicos defenderam uma escola leiga. Isso, no entanto, só quer dizer que defendiam uma escola não controlada (muito menos monopolizada) pela igreja (em especial pela Igreja Católica). Ao defender uma escola leiga, não estavam defendendo, de forma alguma, uma escola controlada pelo Estado. Isso seria simplesmente substituir um monopólio, o eclesiástico, por outro, o estatal, e os liberais não se chamam liberais por acaso: chamam-se liberais porque defendem a liberdade, e não apenas contra aquilo que o palestrante chamou de “entraves feudais”, mas contra todo e qualquer entrave, até mesmo, e em especial, os “entraves estatais”. A defesa da laicidade da escola é, portanto, no discurso liberal clássico, uma defesa da iniciativa privada na educação – uma defesa da tese de que a educação deva ser aberta à iniciativa de quem quer que se interesse em provê-la (até mesmo as igrejas que, na visão liberal, estariam total e cabalmente separadas do Estado).

B. Universalidade

Certamente os liberais clássicos defenderam, em termos, a tese de que todos devem procurar se educar até os limites de seus interesses e de sua capacidade. Isso não quer dizer, entretanto, de modo algum, que o Estado devesse se ocupar do oferecimento de educação a todos, ou mesmo que o Estado devesse se ocupar em garantir que todos tenham educação ou acesso à educação.

C. Obrigatória

Muito menos ainda defenderam os liberais clássicos a tese de que a educação deva ser obrigatória para as pessoas! Não se pode esquecer de que o liberalismo é uma defesa da liberdade dos indivíduos e que, portanto, seria extremamente incoerente imaginar que os liberais clássicos colocassem, sobre as pessoas (ou seus responsáveis, no caso de crianças) a obrigatoriedade da educação. Para eles, educa-se quem quer, até os limites de seus interesses e de sua capacidade – e capacidade, no caso, inclui capacidade intelectual e financeira.’

D. Gratuidade

Não vendo a educação como obrigatória, não haveria porque os liberais clássicos  concluíssem que devesse ser gratuita.

E. Unicidade

Por fim, sendo defensores radicais da liberdade individual, é um contrasenso imaginar que os liberais defendessem uma escola única para todos. Pelo contrário, sua defesa da liberdade na educação pressupõe a importância da diversidade, da diferenciação.

Mas, se isso é assim, de onde surgiu a ideia de uma escola laica, universal, obrigatória, gratuita e única?

Uma coisa é clara. Embora os liberais tenham tido uma importante participação na quebra da ordem tradicional no século XVIII, e, consequentemente, na destituição de todo uma ordem política, social e econômica que beneficiava a nobreza e seus aliados (como o clero), e, nesse processo, tenham, no tocante à educação, tido um importante papel na quebra do monopólio eclesiástico sobre a educação, a ideia de uma escola universal, obrigatória, gratuita, e muito menos ainda de uma escola única (não diferenciada), certamente não é um produto do ideário liberal, muito menos do ideário liberal clássico.

Os liberais, em especial os clássicos, defendiam, radicalmente, a liberdade do indivíduo – contra todo e qualquer entrave, em especial os entraves estatais. Não colocariam, como, em geral, não colocaram:

  1. sobre o indivíduo “consumidor” da educação a obrigatoriedade de se educar ou de educar seus filhos;
  2. sobre o indivíduo “produtor” da educação a obrigatoriedade de oferecê-la, muito menos a todos, e muito menos ainda de forma gratuita;
  3. sobre o Estado a tarefa de prover a educação ou a tarefa de custear, normatizar ou inspecionar a educação oferecida pela iniciativa privada;
  4. sobre toda a Sociedade o imperativo de uma escola única, que não atendesse às peculiaridades da clientela – peculiaridades essas de gosto, de interesse, de aptidão, de talento, de capacidade intelectual, e de busca de diferenciação em termos de qualidade.

3. Escola Pública e Escola Moderna

Por fim, cabe-me observar que o palestrante tratou, em sua palestra, de desenvolvimentos importantes (como a evolução das disciplinas especializadas, a seriação do trabalho escolar, etc.) como se esses desenvolvimentos caracterizassem unicamente a escola publica. Na verdade, esses desenvolvimentos são característicos da escola moderna, qualquer que seja o seu financiador e controlador, público ou privado.

Foi nesse contexto que o palestrante disse algumas coisas interessantes, e até mesmo verdadeiras, acerca da evolução da escola moderna. Mas, ao sugerir que esses desenvolvimentos tenham que ver especialmente com a escola pública, e, mais especificamente, com o papel do Liberalismo na construção de uma escola laica, universal, obrigatória, gratuita, e única (indiferenciada), o palestrante prestou um desserviço aos que assistiam à sua palestra e que não tinham, como ele, a obrigação de conhecer melhor os fatos e de ter mais clareza e precisão conceitual – mesmo falando, como admitidamente falou, como um marxista.

É isso.

III. Duas Respostas do Prof. Gilberto aos Comentários de Eduardo Chaves

O Prof. Gilberto submeteu duas respostas aos comentários que fiz. A segunda de suas respostas chegou às minhas mãos antes da primeira, por razões que não consegui elucidar.

Como se verá a seguir, eu respondi a essas respostas em uma Réplica.

Um Anexo de autoria do Prof. Gilberto acabou sendo publicada no livro impresso. Nem os meus Comentários Iniciais (aos quais suas respostas supostamente se contrapunham), nem minha réplica foram publicados no livro impresso – embora os organizadores do livro tivessem pleno acesso a eles, pois os comentários, as respostas e a réplica foram encaminhados através deles.

Aqui estão as duas respostas do Prof. Gilberto.

1. Primeira Resposta do Prof. Gilberto

Em 1 de Julho de 2001 o Prof. Gilberto encaminhou ao Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo), respondendo aos meus comentários.

Diz ele:

“Caro Zezo:

Transmita ao Prof. Eduardo Chaves os meus agradecimentos pelos comentários.

Eu gostaria de um pouco de tempo para discutir os pontos levantados por ele. Farei isso proximamente e enviarei a vocês.

De imediato, não posso me furtar ao reconhecimentro de que deixei de conceituar o liberalismo. Também não posso deixar de reconhecer que a ênfase, entre os liberais, é a de que a marca do liberalismo é a defesa da liberdade, o que não acentuei em minha exposição. Mas a questão assim colocada é abstrata. Daí eu ter procurado evidenciar o elemento distintivo do liberalismo, na fase de transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista, que encontrei na permanente luta da burguesia por liberar-se dos entraves feudais. A luta era dirigida contra o passado, encarnado nos obstáculos postos pelas tradições, pelos costumes, pelas instituições e pelas normas estabelecidas. Após a emergência do Estado burguês mudou o discurso, que tornou adversários a serem combatidos a ‘ignorância’ e os ‘vícios’, remetendo para o futuro a possibilidade de destruição das desigualdades sociais. Eu disse que esse meu entendimento não nasceu da leitura de estudos de especialistas do liberalismo, mas de minha leitura de documentos clássicos.

Há questões muito ricas, dentre as apontadas pelo Prof. Eduardo Chaves. A necessidade de distinção entre escola moderna e escola pública é um fato. A meu favor se coloca o tema da palestra, centrado na escola pública, a forma de realização mais importante e desenvolvida da escola moderna.

Sobre Adam Smith eu gostaria até de saber se outras pessoas da assistência tiveram o mesmo entendimento do Prof. Chaves. Fiquei surpreso com o comentário, pois o que eu disse foi muito distinto do que ele entendeu. Aliás, a leitura que ele pessoalmente faz de Adam Smith está mais próxima da que eu faço. Eu disse que Smith não pode ser somado entre os defensores da escola para todos, pois afirmou a necessidade de educação, exclusivamente, para os filhos dos trabalhadores das indústrias, visando combater os resultados da divisão do trabalho manufatureira sobre as ‘faculdades intelectuais e marciais’ daqueles que a ela estavam submetidos. Defendia ele, ainda, uma escola suficientemente barata que permitisse até as famílias trabalhadores pagarem pelos estudos de seus filhos. Só isso.

A incorporação da unicidade entre os atributos identificadores da escola pública, no âmbito do discurso liberal clássico, também não a fiz. Fiz questão de afirmar, também, de que esse atributo transformou-se numa bandeira de luta do escolanovismo, no último terço do século XIX, por força do combate exercido contra a escola dualista burguesa, por ele denominada escola tradicional. A unicidade seria o recurso para a superação do dualismo escolar, nesse momento visto pela leitura liberal dos escolanovistas, falsamente, como elemento determinante das próprias classes sociais.

Por ora, fico por aqui. Mas essas informações já iniciam uma interlocução que, acredito, será muito positiva para todos.

Mais uma vez, não posso deixar sem registro a atenção do Prof. Eduardo Chaves, a quem agradeço mais uma vez. Oportunamente, comento em detalhes suas observações.

Um abraço a todos.

Gilberto L. Alves”

2. Segunda Resposta do Prof. Gilberto

Em 3 de Julho de 2001 o Prof. Gilberto encaminhou ao Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo), o seguinte e-mail, com um anexo.

“Caro Zezo:

Segue, em anexo, a minha análise dos Comentários do Prof. Eduardo Chaves.

Um grande abraço a todos.

Gilberto Luiz Alves”

O Anexo continha o seguinte documento:

Análise dos Comentários do Prof. Eduardo Chaves à Palestra “O liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”

Como anunciei no e-mail de 01.julho, estou remetendo aos colegas que participaram da palestra em referência a minha análise dos Comentários tecidos pelo Prof. Eduardo Chaves. Dispenso-me de fazer maiores citações de seu texto, pois todos dispõem do material. Infelizmente, como o e-mail do Prof. Chaves foi colocado na rede do HISTEDBR, sinto por aqueles que não estiveram na palestra e, assim, ficaram sem referências maiores sobre os pontos levantados. Acredito que o debate iniciado, contudo, possa ajudar um pouco na contextualização das questões apresentadas pelo comentarista.

Eu gostaria de afirmar, inicialmente, a minha tranquilidade em relação ao tom dos Comentários. Aprendi na vida acadêmica, e muito disso devo à UNICAMP, de que os aspectos da crítica que não somam devem ser desprezados. Assim, procurei ler os comentários desarmadamente. Sob o primeiro impacto, escrevi o e-mail já referido, no qual prometia uma resposta mais sistemática, o que procuro fazer agora.

Concordo que a palestra não foi fluente como eu gostaria. Eu não consegui elaborar um texto sintético que me permitisse seguir rigorosamente todos os passos do roteiro previsto. Mas, depois de ter lido e relido os Comentários do Prof. Eduardo Chaves, a minha preocupação centrou-se na quantidade de mal entendidos que constam de seu escrito. A “falta de clareza” de minha palestra pode ter levado, em certo grau, a esse resultado, mas sei, também, que as diferenças teóricas pesam muito no entendimento do ouvinte. Caso fossem consistentes todos os julgamentos do comentarista, eu não teria outro alternativa senão reconhecer a “falta de clareza” de toda a palestra e o seu comprometimento total. A minha exposição, então, não teria sido digna de ser qualificada como palestra, mas sim, como uma versão do “samba do crioulo doido”.

Comecemos pela consideração de “falta de clareza e coerência conceitual” quanto ao liberalismo. Como afirmei, no meu primeiro e-mail, ao iniciar a exposição não fiz uma conceituação do liberalismo enquanto doutrina. Afirmei, inclusive, que esse não era o meu caminho, pois não me sensibiliza a forma pela qual o liberalismo é vendido pelos seus apologetas e pelos seus especialistas. Por outro lado, há a questão da ambiguidade que cerca a sua conceituação. Para confirmar, basta ler o verbete correspondente no Dicionário de Política, de Bobbio. Para mim, o importante era resgatar o conteúdo do liberalismo, enquanto a “visão de mundo” por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe. É claro que ao discutir o liberalismo, enquanto doutrina, essa visão de mundo também se manifesta, mas essa doutrina é só uma de suas expressões e tem, por isso, uma acepção muito mais restrita. Portanto, vi o liberalismo no sentido mais lato possível, como visão de mundo da classe burguesa.

A partir daí, não pode encontrar eco em meu entendimento a afirmação de que a questão central do liberalismo é a liberdade, segundo o Prof. Eduardo Chaves, pois assim posta é abstrata e, portanto, ahistórica. Para mim, o liberalismo ganha significados históricos diferentes em distintos momentos, desde a fase de transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa, independente de uma certa unidade e homogeneidade do discurso liberal em todas as épocas. Ele pode, concretamente, ter tudo a ver com a liberdade, mas pode, também, negar-se e expressar o seu contrário. Eu coloco o meu entendimento da visão de mundo burguesa no âmbito da contradição. Não basta que o discurso pleiteie a liberdade; importa ver se, concretamente, a liberdade está pleiteada. Por isso, ao buscar situar a visão de mundo burguesa, tendo como referência as lutas da classe correspondente, procurei chamar a atenção para o fato de que, na fase de transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista, e só nessa fase, o que marcou a atuação política da burguesia foi a permanente busca de superação dos “entraves feudais”, que tolhiam a liberdade de trocar e a liberdade de produzir. A luta era dirigida contra o passado, encarnado nos obstáculos postos pelas tradições, pelos costumes, pelas instituições e pelas normas estabelecidas. Inclusive no caso da educação, quem analisa os revolucionários franceses verifica que a preocupação era a de superar o controle até então exercido pela Igreja Católica sobre a educação. A Igreja Católica, nesse contexto, era um daqueles “entraves feudais” do passado, do qual desejava a burguesia se ver liberada. Nessa fase, a visão de mundo burguesa foi marcada por uma grandiosidade tal que, “mesmo falando como um marxista”, não posso negar tal evidência histórica. Considero, inclusive, que o ideário produzido nesse instante pela burguesia hoje figura como um rico patrimônio da humanidade. Daí não ser essa uma consideração “lisongeira para o Liberalismo”, mas sim, uma consideração histórica. Após a emergência do Estado burguês mudou o discurso da classe dominante, logo do próprio liberalismo, entendido no seu sentido restrito, que tornou adversários a serem combatidos não mais classes sociais e sim distorções como a “ignorância” e os “vícios”. Isso teve grande importância para a educação, que passou a ser celebrada como a instância mais própria à superação desses obstáculos e à construção de um futuro sem desigualdades sociais. Desde então, a tendência do discurso liberal, na educação, foi o de remeter para o futuro a possibilidade de superação dos problemas sociais, originados naquelas distorções, por meio de plataformas educacionais apropriadas: as “reformas”. Se as reformas não dão certo, basta afirmar que houve equívoco de suas plataformas e que, para colocar tudo nos trilhos, são necessárias outras reformas. Isso se tornou reiterativo. Eu disse, ainda, que esse tipo de discurso teve nas suas origens Horace Mann, o reformador norte-americano, e que, progressivamente, foi sendo universalizado, expandindo-se inclusive pela Europa. Reafirmo que meu entendimento não nasceu da leitura de estudos de especialistas do liberalismo, mas de minha leitura de documentos clássicos. Reconheço, por fim, que ao privilegiar o entendimento do liberalismo como visão de mundo da burguesia, por excelência, abri-me para críticas como a do Prof. Eduardo Chaves, que procura impor-me a necessidade de explicitação do liberalismo como doutrina. Como eu disse, esse não foi o meu caminho. Por outro lado, não vejo a possibilidade de destacar o liberalismo, enquanto doutrina, da forma de existência da burguesia e da visão de mundo que construiu a partir de suas lutas históricas. O liberalismo, enquanto doutrina, é uma forma de elaboração erudita dessa visão de mundo, que procura legitimar a forma de existência da burguesia a partir de bandeiras que “um marxista” julga abstratas e ahistóricas. A liberdade, tal como a considera o Prof. Eduardo Chaves é uma dessas bandeiras.

A outra crítica de peso do Prof. Eduardo Chaves incide sobre “a falta de clareza e coerência conceitual” quanto à escola pública. Afirma ele, inclusive, que não houve uma necessária distinção entre escola pública e escola moderna. Nessa questão é mais difícil sustentar diferenças de interpretação no campo doutrinário e é exatamente nele que se revelam as inconsistências dos comentários. Os juízos neles contidos atribuem-me afirmações que, em absoluto, fiz, durante a palestra. Vamos às principais dessas inconsistências:

  1. Em nenhum momento afirmei que a escola pública que conhecemos e que pode ser sintetizada por seu ideário liberal clássico – escola pública, universal, gratuita, obrigatória e laica – teve existência até a época de emergência do estado burguês. Eu afirmei que inclusive Comenius não defendeu uma escola gratuita, logo nem obrigatória. Ele defendeu, sim, o barateamento dos serviços escolares. Por motivos óbvios, ele, que era um bispo protestante, não defendeu, também, uma escola laica. No interior da Reforma, o que se impôs foi a obrigação da família pela educação de seus filhos. Mas a origem da escola moderna está claramente fundada na obra Didática Magna, de Comenius, que concebeu essa instituição social como decorrência da necessidade de se “ensinar tudo a todos”. A divisão de trabalho que a particulariza, a organização do trabalho didático e as tecnologias que lhe são próprias, tudo isso já estava presente na concepção de Comenius.
  2. Ao chegar a esse ponto da exposição, afirmei que os colégios jesuíticos, ao incorporarem o modus parisiensis de ensinar, criaram as pré-condições necessárias à divisão do trabalho, no âmbito do trabalho didático, tal como se conformou, mais tarde, em Comenius. Comparei a divisão das turmas por níveis de adiantamento, central nesse modo de ensino, às manufaturas nascentes. Para aqueles que quiserem mais detalhes, encaminhei um texto sobre isso para o próximo Encontro Nacional do HISTEDBR. Só pode ser a partir disso que o Prof. Eduardo Chaves colocou na minha exposição a intenção de tomar a “Contra-Reforma Católica” como “exemplo da evolução do Liberalismo”.
  3. Ele considerou igualmente absurda a consideração da “Reforma Protestante” como um desses “exemplos”. Do ponto de vista da doutrina liberal, tudo bem. Mas, do ponto de vista da visão de mundo burguesa, a Reforma protestante foi fundamental e celebrou, entre as liberdades do indivíduo, a de interpretar livremente os livros sagrados. Isso foi central para a educação, pois motivou a defesa, pela vez primeira na história, da necessidade de que todos tivessem acesso à leitura e à escrita, o que explica o avanço da escola nas regiões dominadas pela Reforma protestante.
  4. Também não fiz de Adam Smith um defensor da escola pública para todos. Nem de longe, minha fala deixou sequer subentendidas as ideias de que o economista inglês defendeu a tese de que a “educação é um direito da pessoa”, de que o “Estado devesse provê-la diretamente à população” e “devesse fazê-lo de forma gratuita”. Aliás, eu nada teria entendido de Adam Smith se tivesse feito afirmações nesse sentido. Como já coloquei em meu primeiro e-mail, Smith não pode ser somado entre os defensores da escola para todos, pois afirmou, tão somente, a necessidade de educação para os filhos dos trabalhadores das indústrias, visando combater os resultados da divisão manufatureira do trabalho. Smith reconhecia que a divisão do trabalho estava comprometendo as “capacidades intelectuais e marciais” dos trabalhadores da indústria, daí propor para os filhos destes – e só para os filhos destes –, como um lenitivo, o acesso à educação. Para tanto, sugeria que o estado tornasse a educação pública e produzisse uma escola tão barata que até os trabalhadores pudessem pagar os custos de formação de seus filhos. Por reconhecer que a divisão do trabalho comprometia o desenvolvimentos dos trabalhadores, seria lícito concluir que Adam Smith foi um crítico da divisão do trabalho? Não, a essa insinuação do Prof. Eduardo Chaves eu respondo dizendo que esse efeito, para ele, era como se fosse um acidente de percurso e que a educação, tal como a preconizava, poderia, pelo menos, minorá-lo. Adam Smith considerava a divisão do trabalho uma conquista fundamental da humanidade, pois criou uma nova força produtiva, encarnada no caráter social do trabalho.
  5. No processo revolucionário francês, pela vez primeira, se apresentou a reivindicação de uma escola pública, universal, obrigatória, gratuita e laica. Considerei isso a expressão fundamental do ideário liberal clássico sobre a escola. Mas não afirmei que esse ideário se realizou imediatamente. Pelo contrário, eu disse que ele só começou a se realizar no último terço do século XIX. Uma legislação comprometida com esses princípios só a partir da década de setenta do século XIX começou a ser produzida na Alemanha, na França e na Inglaterra. Nos Estados Unidos, as primeiras iniciativas, nessa direção, surgiram na década de trinta do século XIX com reformadores como Horace Mann, mas, mesmo assim, circunscritas a estados como o de Massachusetts.
  6. Também em relação às bolsas de estudo, o Prof. Eduardo Chaves contesta o conteúdo de minha exposição e afirma que representam um mecanismo muito recente para assegurar educação às crianças pobres. Afirma, ainda, que esse mecanismo esteve atrelado à ação de entidades filantrópicas e não do estado. O texto de sua afirmação é o seguinte: as bolsas de estudos “até muito recentemente (…) eram dadas a pessoas carentes e merecedoras exclusivamente por entidades privadas e filantrópicas.” Essa argumentação categórica desconsidera, pelo menos, a longa luta de pensadores burgueses de porte, como um Diderot ou um Cordorcet. No século XVIII eles faziam a defesa desse mecanismo e entendiam que o estado deveria prover, também, bolsas para as escolas. Como não é um texto disponível em português, transcrevo um extrato de Mémoires pour Catherine II: “(…), numa escola geral e pública deve haver três tipos de alunos: os internos, os bolsistas e os externos. (…) Os Bolsistas – Serão os filhos daqueles que não são suficientemente abastados para prover a educação e a subsistência de seus filhos, razão pela qual o colégio os adota. (…) As bolsas serão sustentadas pela munificência do soberano ou pelo patriotismo dos grandes senhores ou das pessoas ricas, a quem eu não daria, contudo o direito de intervir na seleção.”[1]
  7. Por fim a questão da unicidade, um atributo da escola pública moderna e que eu, segundo o Prof. Eduardo Chaves, teria incluído entre os atributos que lhe foram conferidos pelo liberalismo clássico. Não, no contexto de minha exposição, o liberalismo clássico foi identificado com o pensamento burguês do século XVIII. A unicidade, como já expus no primeiro e-mail, transformou-se numa bandeira de luta do escolanovismo, no último terço do século XIX, por força do combate exercido contra a escola dualista burguesa, por ele denominada escola tradicional. A unicidade seria o recurso para a superação do dualismo escolar, nesse momento visto pela leitura liberal dos escolanovistas, falsamente, como elemento determinante das classes sociais. É digno de nota que o pensamento escolanovista, nesse instante, nem de longe revelava a grandeza do discurso liberal clássico. Pelo contrário, afundava-se na má consciência. Portanto, toda a leitura do Prof. Eduardo Chaves, quanto à questão da escola moderna e da escola pública moderna foi comprometida pelos reiterados mal entendidos expostos. Pelo menos quanto a esse aspecto, eu não posso responder pelos problemas de entendimento do autor dos Comentários.

Após a conclusão de minha palestra, o Prof. Eduardo Chaves necessitou sair e não acompanhou, infelizmente, os debates. Lastimo que isso tenha ocorrido, pois impediu a troca de informações e de reflexões ao final. No debate, constatei que, em pelo menos um caso, o que eu havia falado exigia uma problematização maior para evidenciar melhor como vejo a escola presentemente. Retomei, com níveis de desenvolvimento variados, os pensadores clássicos, bem como Horace Mann, o escolanovismo e  vertentes contemporâneas do pensamento liberal. Sem considerar as diferenças de ordem doutrinária, um bom número das questões do Prof. Eduardo Chaves poderia ter sido superado nessa oportunidade.

Espero que as questões colocadas possam contribuir ao aprofundamento do debate. Mas, desde já, eu gostaria de renovar aos meu colegas, que se colocam no campo do marxismo, a necessidade de afastarmos um vício acadêmico que pouca contribuição tem dado à troca de ideias. Não podemos fazer das ideias dos adversários caricaturas. É fácil criticar as caricaturas, mas isso não revela as fragilidades de outras posturas nem enriquece teoricamente o nosso campo. Esse não tem sido um problema só dos marxistas. Como eu disse, isso está difundido no mundo acadêmico. Daí eu entender que, hoje, está colocada, para nós, uma tarefa importante, qual seja a de participar construtivamente das condições que propiciem o debate acadêmico num patamar mais estimulante, do ponto de vista intelectual, e menos castrador. Nesse sentido eu me dirijo, ainda, ao Prof. Eduardo Chaves, já como um estudioso com o qual não tive a oportunidade de conviver mais assiduamente na UNICAMP, mas com quem, a partir de agora, espero estreitar relações: nos Comentários, foi feita uma caricatura de minha palestra, muito fácil de ser combatida, mas que não espelha as ideias que realmente defendi. Sei que o senhor terá a grandeza moral e intelectual de reconhecê-lo. Também tumultua o ambiente acadêmico a utilização de termos pouco apropriados à ética que deve presidir nossas relações. Eu nunca consideraria um “desserviço” aos estudantes que assistem às suas aulas o fato de, nela, serem veiculadas ideias com as quais não comungo. Na nossa atividade, o desserviço de uma ação existe quando se sustenta na má fé ou no erro. Não enquadro o que apresentei na palestra referida em nenhum dos dois casos. Como norma de convivência intelectual, tenho procurado me colocar na posição do oponente para melhor entendê-lo e até para compreender melhor os seus fortes e as suas fragilidades. Esse é o segredo da tolerância, aliás uma ideia burguesa muito cara ao liberalismo, incluída entre aquelas hoje celebradas como integrantes do patrimônio humano e que merece ser preservada por todos e, com muito mais motivos, pelos liberais.

Um abraço a todos.

Gilberto Luiz Alves

IV. Réplica de Eduardo Chaves às Respostas do Prof. Gilberto

Em 9 de Julho de 2001 escrevi ao Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo) o seguinte e-mail:

“Caro Zezo:

Eu recebi primeiro a segunda resposta do Prof. Gilberto Luiz Alves aos meus comentários iniciais sobre a sua palestra, que me foi enviada em 3/7/01 (. . .). Ao constatar que havia uma resposta anterior, de 1/7/01, que eu não havia recebido, solicitei-a a você, que teve a gentileza de a enviar a mim. (. . .).

Incluo, aqui, o texto de minha réplica às respostas do Prof. Luiz Carlos Santana. (. . .) Atenho-me, mais de perto, em minha réplica, à segunda resposta do Prof. Gilberto, não só porque a recebi primeiro, e, portanto, pude lhe dedicar mais atenção, mas, principalmente, porque é nela que nossas divergências ficam mais evidentes.

Presto meu tributo a todos os que estão tendo a paciência de acompanhar esta discussão, em especial ao Prof. Gilberto por ter honrado meus comentários iniciais com sua atenção, e a você, por estar conduzindo todo o processo e por ter me honrado com o convite para ministrar a primeira palestra da série.

Como o Prof. Gilberto se referiu, em sua segunda resposta, ao tom de minha mensagem, deixando implicito que haveria algo inusitado sobre ele (o tom), gostaria de esclarecer que esse é o tom que normalmente uso quando estou escrevendo, especialmente quando estou envolvido em polêmica.

Gostaria de deixar claro que, ao usar esse tom (inclusive nesta réplica), não me move, de forma alguma, animosidade contra o Prof. Gilberto. Creio que é possível combater ideias com dureza, ao mesmo tempo que se tem respeito e consideração por quem as sustenta – embora seja inegável que, sendo nossas ideias uma importante parte de nosso eu, sintamo-nos muitas vezes pessoalmente atingidos quando nossas ideias são atacadas.

Eduardo Chaves”

1. Algumas Considerações Preliminares

a) A palestra do Prof. Gilberto Luiz Alves foi apresentada numa série de Seminários sobre Liberalismo e Educação, promovida pelo HISTEDBR, que, segundo entendo, tem por intuito contribuir para que os estudantes de História da Educação possam entender melhor o Liberalismo, a partir de seus clássicos (do Liberalismo) – até porque, os estudantes de História da Educação da UNICAMP, e de outras universidades brasileiras dominadas pelo Marxismo, metodológico ou doutrinário, raramente têm condições de ver o Liberalismo caracterizado por aqueles que de fato o defendem, conhecendo-o, quando muito, através de seus críticos.

b) Sendo o Liberalismo uma filosofia política que, por incorporar a defesa do Liberalismo Econômico (na prática conhecido como Capitalismo), ficou transformada no grande adversário do Marxismo, seria de esperar que o Prof. Gilberto, que, em sua segunda resposta, conclama seus colegas marxistas a “não . . . fazer das ideias dos adversários caricaturas”, não fizesse exatamente isso.

c) Tendo em vista o observado nos dois ítens anteriores, seria de esperar, em outras palavras, que o Prof. Gilberto, ao falar sobre o Liberalismo, numa série de palestras voltadas para entender o Liberalismo a partir de seus clássicos, e como historiador marxista preocupado em não caricaturar a posição dos adversários, fizesse pelo menos alguma menção do fato de que os liberais não só NÃO SE RECONHECEM no Liberalismo que ele descreve, mas não reconhecem como liberais (e, portanto, como “fellow travellers”) a maioria das pessoas e dos movimentos que ele, de alguma forma (e reconhecidamente sem muita clareza), associou ao Liberalismo em sua palestra.

d) Em sua primeira resposta, o Prof. Gilberto observa: “De imediato, não posso me furtar ao reconhecimentro de que deixei de conceituar o liberalismo. Também não posso deixar de reconhecer que a ênfase, entre os liberais, é a de que a marca do liberalismo é a defesa da liberdade, o que não acentuei em minha exposição. Mas a questão assim colocada é abstrata”. Sem dúvida que a questão é abstrata: afinal de contas trata-se de conceituar um movimento filosófico que teve, e continua a ter, enormes implicações práticas. Mesmo que fosse um movimento apenas prático, sem um ideário filosófico, conceitua-lo ainda assim seria uma questão abstrata. O que é a questão que o Prof. Gilberto se propõe a discutir, “O Liberalismo na Produção da Escola Pública Moderna”, se não uma questão abstrata? Recuso-me, portanto, a aceitar o tom aparentemente pejorativo que o Prof. Gilberto atribui à discussão de questões abstratas.

e) Tendo “despachado” como abstrata a forma em que os liberais se enxergam, o Prof. Gilberto, na palestra e nas suas respostas aos meus comentários iniciais, insiste em não conceituar o Liberalismo, descrevendo-o apenas, de forma vaga, como “a ‘visão de mundo’ por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe”. Fazendo uso parcial de uma expressão utilizada pelo próprio Prof. Gilberto em sua segunda resposta, não me sensibiliza a forma pela qual o Liberalismo é apresentado pelo seus críticos e por especialistas em ideias que lhe são adversárias, entre os quais o próprio Prof. Gilberto. Mas mesmo assim, totalmente não sensibilizado, estou disposto a admitir, “ad argumentandum”, e temporariamente, que o Liberalismo seja a “visão de mundo” da burguesia (daqui por diante tiro as aspas da expressão). O que cobrei do Prof. Gilberto, em minhas observações iniciais, foi exatamente uma explicitação clara e coerente dessa visão de mundo. Aqui, diante da conclamação a posteriori feita pelo Prof. Gilberto a seus colegas marxistas, acrescento mais uma cobrança: a de que a explicitação dessa visão de mundo, sob pena de ser rechaçada como caricatura, seja, além de clara e coerente, reconhecida pelos próprios liberais como sendo a SUA visão de mundo.

f) Parece-me evidente que, a menos que marxistas desejem continuar falando sobre Liberalismo exclusivamente com outros marxistas, o Liberalismo que eles apresentam deve ser reconhecível pelos liberais como a SUA visão de mundo. Ou seja, a menos que o diálogo dos marxistas se pretenda exclusivamente intra-marxista, os marxistas, ao descrever (antes de criticar) o Liberalismo, deveriam fazê-lo de tal forma que os liberais dissessem: “É exatamente isso que eu defendo – agora vamos ver quais são as críticas”. Mas não, os marxistas (não só o Prof. Gilberto) insistem em descrever sumariamente o que só posso descrever como um “Pseudo-Liberalismo Marxista”, isto é, um Liberalismo que só existe em sua própria mente, porque nenhum liberal o reconhece como a sua visão de mundo. Esse Pseudo-Liberalismo Marxista só foi criado e continua a existir para servir de alvo nos exercícios de tiro de intelectuais marxistas. Eles até podem acertar alguns tiros – mas o alvo é falso, e, portanto, os liberais reais, não os de palha, não se sentem atingidos, pela razão simples de que não são atingidos.

g) Pergunto: teria eu alguma chance de diálogo com marxistas se me propusesse a fazer uma palestra sobre “Marxismo e Educação” e me recusasse a conceituar o Marxismo, dizendo apenas que o Marxismo é, “por excelência”,  a religião escatológica de indivíduos que se autoproclamam profetas da iminente implantação de uma versão secular do reino de Deus na terra sob a liderança dos pobres não só de espírito?

2. Estranhos Liberais

a) O tema da palestra do Prof. Gilberto era: “O Liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”. Infelizmente não gravei a palestra, mas anotei, com razoável cuidado, as observações que me causaram mais espécie. Depois das respostas do Prof. Gilberto aos meus comentários iniciais à sua palestra, procurei encontrar uma explicação plausível para o fato de que duas pessoas adultas, intelectualmente maduras, professores universitários, possam ter se desencontrado tanto na interpretação de uma palestra que durou uma hora, se tanto. Achei uma explicação que, pelo menos para mim, lançou alguma luz sobre o problema. Quando vou assistir a uma palestra, imagino que o título que o autor lhe deu procure resumir o que ele de fato vai discutir na palestra. No caso, o Prof. Gilberto poderia ter escolhido vários outros títulos para a sua palestra: “Raizes da Escola Pública Moderna”, “A Gênese da Escola Pública Moderna”, etc. Na verdade, nem mesmo esses títulos corresponderiam exatamente ao que o Prof. Gilberto discutiu, porque entre as questões que ele enfatizou está a da matriz curricular composta de disciplinas e séries que, a meu ver, caracteriza, hoje, não apenas a escola pública, mas toda a escola moderna (com raríssimas exceções que eu cada vez prezo mais). Assim, títulos como “Raizes da Escola Moderna”, “A Gênese da Escola Moderna”, etc. talvez fossem mais adequados do que os anteriormente mencionados. Mas o Prof. Gilberto optou por dar à sua palestra o título: “O Liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”. Ao escolher esse título, o Prof. Gilberto gerou, em mim, a expectativa de que, a menos que claramente ressalvado, os fatores que ele considerou constitutivos da escola pública moderna fossem ligados ao Liberalismo. Por isso achei, e continuo achando, estranho que numa palestra sobre o papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna tenha sido dada tanta ênfase a pessoas e movimentos não liberais (Reforma Protestante, Contra-Reforma Católica, Comenius, Horace Mann, a Escola Nova) e tão pouca ênfase aos liberais. Na verdade, os únicos liberais mencionados foram Adam Smith e, até certo ponto, os dois philosophes franceses (Diderot e Condorcet). Como vai ficar claro desta minha exposição, não considero a Reforma Protestante, a Contra-Reforma, Comenius, Horace Mann e a Escola Nova movimentos ou pessoas liberais. Foi por isso que tantas de suas considerações me causaram espécie.

b) A primeira delas foi uma observação em que o Prof. Gilberto colocou o início do Liberalismo na Idade Média, por volta do século X, quando a classe burguesa estaria procurando se livrar do que ele chamou de “entraves feudais” (especialmente pagamento de impostos aos senhores feudais). Como mencionei essa tese em meus comentários iniciais, e o Prof. Gilberto não a rejeitou, presumo que ela reflita o que ele de fato pensa. Foi em relação a essa observação do Prof. Gilberto que comentei que ele parece identificar o Liberalismo com “a luta pela liberdade” contra os mais variegados tipos de opressão, luta essa na qual se uniram pessoas de diversos matizes teóricos, e com uma variedade de interesses práticos – amantes e guerreiros da liberdade, talvez, todos eles, mas certamente não necessariamente liberais, no sentido mais técnico do termo. Como, porém, o Prof. Gilberto não discutiu e nem mesmo levantou esse sentido mais técnico do termo “Liberalismo”, permaneceu, a meu ver, essa identificação tácita do Liberalismo com “a luta pela liberdade”.

c) Se não houve tal identificação entre Liberalismo e “a luta pela liberdade”, como é que se explica que, ao procurar esclarecer o papel do Liberalismo na “Produção da Escola Pública Moderna”, o Prof. Luiz invoque, primeiro, os Reformadores Protestantes, depois a Contra-Reforma, depois Comenius, depois Adam Smith, depois os philosophes do século XVIII, depois Horace Mann e, finalmente, a Escola Nova?

d) Entrando em mais detalhe na questão, aos Reformadores Protestantes estou até disposto a conceder que tenham contribuído para a luta pela liberdade, ao enfrentar o monopólio autoritário da Igreja Católica no Ocidente. Mas de que forma pode sua contribuição ser entendida como parte do papel que o Liberalismo teria exercido na “Produção da Escola Pública Moderna”? Creio que os Reformadores Protestantes contribuíram não só para a luta pela liberdade (embora tenham também contribuído, significativamente em alguns casos, para suprimir a liberdade – haja vista Lutero / Münzer e Calvino / Michel de Servetus), mas também para o surgimento da escola moderna – mas não vejo como tenham contribuído para a construção da escola pública moderna nem, muito menos, como alguma contribuição que possam ter dado seja caracterizável como parte do papel do Liberalismo na construção dessa escola (pois era disso que tratava a palestra). Estou genuinamente interessado em entender isso, como liberal, como educador, como ex-protestante, e como ex-estudioso da Reforma Protestante. [Nota de 18/3/2018: removam-se os dois “ex” na descrição de minha condição e de minha situação atual, por favor.]

e) Se estou disposto a conceder aos Reformadores Protestantes uma participação na luta pela liberdade, o mesmo não o faço em relação à Contra-Reforma e aos Jesuítas. Como eles vieram parar numa palestra sobre o papel do Liberalismo na “Produção da Escola Pública Moderna” é, para mim, uma questão ainda mais difícil de entender. Note-se que estou sendo totalmente sincero aqui e não tentando ser o que em inglês se denomina de “facetious”.

f) No caso de Comenius, entendo perfeitamente o papel que desempenhou na construção da escola moderna – mas, novamente, não me fica claro o papel que teria tido na construção da escola pública moderna, nem como esse eventual papel possa ser caracterizável como parte da contribuição do Liberalismo à “Produção da Escola Pública Moderna”. Novamente, estou tentando entender. (Mais sobre isso adiante).

g) Quando o Prof. Gilberto começou a discutir Adam Smith, respirei aliviado, porque achei que finalmente o Liberalismo, como eu o entendo, iria começar a ser discutido. Tenho, de Adam Smith, livros totalizando perto de cinco mil páginas. O que é pinçado de Adam Smith? Uma frase, muito citada, em que ele reconhece que a divisão do trabalho pode levar ao emburrecimento do trabalhador (tema que outro palestrante, o Prof. Luiz Carlos Santana, também enfatizou em sua palestra, a segunda da série), e algumas afirmações (a meu ver incorretas) de que Adam Smith teria defendido a educação apenas dos filhos dos trabalhadores nas indústrias. Eis como o próprio  Prof. Gilberto resume, em sua primeira resposta, o que ele disse sobre Adam Smith: “Eu disse que Smith não pode ser somado entre os defensores da escola para todos, pois afirmou a necessidade de educação, exclusivamente, para os filhos dos trabalhadores das indústrias, visando combater os resultados da divisão do trabalho manufatureiro sobre as ‘faculdades intelectuais e marciais’ daqueles que a ela estavam submetidos. Defendia ele, ainda, uma escola suficientemente barata que permitisse até as famílias trabalhadores pagarem pelos estudos de seus filhos. Só isso”. Concedido que Adam Smith não tenha defendido a escola para todos. Mas é crível que ele tenha defendido “a necessidade de educação, exclusivamente, para os filhos dos trabalhadores das indústrias”? Registre-se que esta não é uma anotação que eu fiz de algo que o Prof. Gilberto disse, mas, sim, algo que ele próprio decidiu registrar, por escrito, na resposta aos meus comentários. Nela ele não faz referência à escola e, portanto, a fortiori, à escola pública: ele faz referência à educação, tout court. Onde é – eu gostaria de saber – que Adam Smith disse ou mesmo sugeriu que os filhos, digamos, dos proprietários de terra e dos “capitães da indústria nascente” não tinham necessidade de educação? Além disso, por que não trazer à baila uma enormidade de outras coisas importantes que Adam Smith disse e que são profundamente relevantes para a questão da escola pública, como, por exemplo, a frase final do trecho que cito mais generosamente adiante (como anexo a esta resposta), que diz: “É por isso que a melhor educação é aquela que se ministra em instituições não públicas”.

h) No tocante aos dois representantes do Iluminismo Francês (Diderot e Condorcet) mencionados pelo Prof. Gilberto, eu pela primeira vez não tenho maiores ressalvas. Minha única estranheza diz respeito à companhia em que eles (e Adam Smith), foram colocados no contexto da discussão do Prof. Gilberto.

i) O Prof. Gilberto diz, em sua segunda resposta: “Em nenhum momento afirmei que a escola pública que conhecemos e que pode ser sintetizada por seu ideário liberal clássico – escola pública, universal, gratuita, obrigatória e laica – teve existência até a época de emergência do estado burguês”. Eu certamente não disse que o Prof. Gilberto havia afirmado isso. Mas é estranho que, considerando que a escola pública, com esse ideário, tivesse surgido no século XVIII, o Prof. Gilberto tenha gasto tanto Latim falando do Feudalismo, dos Reformadores Protestantes, da Contra-Reforma e de Comenius, como se eles todos fossem relevantes para o entendimento do papel que o Liberalismo teria tido no surgimento dessa escola. A estranheza aumenta quando o Prof. Gilberto esclarece que “Comenius, não defendeu uma escola gratuita, logo nem obrigatória”, e que, “por motivos óbvios, ele, que era um bispo protestante, não defendeu, também, uma escola laica”. Ora, Comenius não era liberal (era um pastor, e depois um bispo moraviano), não defendeu uma escola gratuita, nem obrigatória, nem laica – o que faz ele, então, na discussão da “produção” da “escola pública que conhecemos e que pode ser sintetizada por seu ideário liberal clássico – escola pública, universal, gratuita, obrigatória e laica” – ainda mais quando esse escola, segundo o Prof. Gilberto, só passou a existir a partir do final do século XVIII e Comenius viveu na primeira metade do século XVII? Fico me lembrando da piada: “Ora, pois: afinal de contas, o que estou fazendo aqui? Não me chamo Manuel…”.

j) O título desta seção da minha resposta, “Estranhos Liberais”, vindo, como vem, depois das explicações do Prof. Gilberto, pode ser considerado uma provocação desnecessária. Não penso assim. A razão para manter o título é levantar a questão: se os reformadores protestantes, os contra-reformadores católicos, e Comenius, não são liberais, e em alguns casos defenderam ideias contrárias às do ideário da escola pública (ideário que o Prof. Gilberto chama de liberal, mas que não é liberal, como se verá), o que eles estão fazendo numa palestra sobre o papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna? Minha perplexidade tem sua explicação aí, nesta questão.

3. Importantes Liberais Omitidos na Discussão

a) A inclusão dos Reformadores Protestantes, da Contra-Reforma e de Comenius na discussão que o Prof. Gilberto fez do papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna é ainda mais estranha face à não-inclusão de pessoas que certamente podem ser consideradas como tendo feito uma contribuição importante para o ideário liberal e para a teoria da educação, como John Locke, no século XVII, e Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII (embora, dos dois, não tenha dúvida de que Locke tenha contribuído mais para o Liberalismo e Rousseau mais para a teoria da educação).

b) Conforme observei nos meus comentários à palestra do Prof. Luiz Carlos Santana, é estranho que os marxistas, ao discutir a escola moderna (pública ou não) se atenham muito mais aos aspectos formais e macros da laicidade, universalidade, obrigatoriedade, gratuidade, e unicidade, deixando de dar atenção aos aspectos mais substantivos e micros da relação professor/aluno e do binômio ensino/aprendizagem (coisas que interessavam muito de perto a Locke e a Rousseau).

c) Embora Adam Smith tenha sido mencionado na discussão e eu não tenha dúvida de que o Prof. Gilberto esteja plenamente familiarizado com suas ideias, repito o que já disse, a saber, que aquilo que o Prof. Gilberto escolheu dizer sobre Adam Smith dificilmente pode ser considerado como a contribuição mais importante de Adam Smith à discussão do tema que o Prof. Gilberto se propôs.  Cito, ao final desta minha réplica às respostas do Prof. Gilberto aos meus comentários originais sobre sua palestra, algumas passagens de Adam Smith que me parecem muito mais relevantes ao tema do que aquilo que ele resolveu pinçar, dando aos alunos, uma impressão bastante distorcida da posição de Adam Smith. Foi por causa de distorções como esta que disse que o Prof. Gilberto prestou um desserviço aos alunos presentes à sua palestra: podendo esclarecê-los sobre a real contribuição de Adam Smith para a discussão da escola pública moderna, preferiu se omitir sobre aspectos importantes, ressaltando alguns bem mais secundários. (Mais sobre a questão do “desserviço” adiante).

4. A Conceituação do Liberalismo

a) Isso posto, é preciso voltar à questão da conceituação do Liberalismo. Em sua segunda resposta, o Prof. Gilberto avança um pouco em relação à sua palestra. Diz ele:

“Ao iniciar a exposição não fiz uma conceituação do liberalismo enquanto doutrina. Afirmei, inclusive, que esse não era o meu caminho, pois não me sensibiliza a forma pela qual o liberalismo é vendido pelos seus apologetas e pelos seus especialistas. Por outro lado, há a questão da ambiguidade que cerca a sua conceituação. . . . Para mim, o importante era resgatar o conteúdo do liberalismo, enquanto a ‘visão de mundo’ por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe. É claro que ao discutir o liberalismo, enquanto doutrina, essa visão de mundo também se manifesta, mas essa doutrina é só uma de suas expressões e tem, por isso, uma acepção muito mais restrita. Portanto, vi o liberalismo no sentido mais lato possível, como visão de mundo da classe burguesa. A partir daí, não pode encontrar eco em meu entendimento a afirmação de que a questão central do liberalismo é a liberdade, segundo o Prof. Eduardo Chaves, pois assim posta é abstrata e, portanto, ahistórica. Para mim, o liberalismo ganha significados históricos diferentes em distintos momentos, desde a fase de transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa, independente de uma certa unidade e homogeneidade do discurso liberal em todas as épocas. Ele pode, concretamente, ter tudo a ver com a liberdade, mas pode, também, negar-se e expressar o seu contrário. Eu coloco o meu entendimento da visão de mundo burguesa no âmbito da contradição. Não basta que o discurso pleiteie a liberdade; importa ver se, concretamente, a liberdade está pleiteada.”

b) Gostaria de destacar os elementos que me parecem mais importantes nessa passagem. O Prof. Gilberto afirma não desejar conceituar o Liberalismo “enquanto doutrina”. Ele gostaria de resgatar (sic) “o conteúdo do Liberalismo enquanto a ‘visão de mundo’ por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe”. Ele reconhece, porém, que a “doutrina” é uma das manifestações dessa visão de mundo. Ele, no entanto, considera que a “doutrina” é apenas uma das expressões possíveis do Liberalismo, e, que, portanto, enfocar o Liberalismo “enquanto doutrina” seria adotar uma “acepção . . . restrita” do Liberalismo. Por isso preferiu ver o Liberalismo “como visão de mundo da classe burguesa”. Assim, diz ele, não pode concordar comigo que a questão central do liberalismo é a liberdade, considerando minha posição como “abstrata” e “ahistórica”. Para mim, que não sou nem concretista nem historicista, esses termos não são termos de opróbrio, como, em parte [em relação à natureza abstrata da discussão], já observei.

c) Mas o que é uma “visão de mundo” – e qual é a “visão de mundo” que caracteriza os liberais? No meu entender, uma visão de mundo se manifesta, não através de uma série de imagens, mas, sim, através de uma série de conceitos, valores e juízos que, integrando-se de forma coerente, nos permitem, de um lado, descrever e explicar a realidade e, de outro, agir na busca de nossos objetivos, na defesa de nossos interesses, e na promoção de nossos valores. Se um conjunto integrado de conceitos, valores e juízos é uma doutrina (ou uma teoria), não há como uma visão de mundo possa não ser doutrinária (ou se expressar como uma teoria). A visão de mundo dos liberais é, por conseguinte, eminentemente doutrinária (nesse sentido – eu prefiro caracterizá-la como teórica – especificamente, como uma teoria filosófica).

d) O que é o Liberalismo? O Liberalismo é, basicamente, uma filosofia política que tomou forma no final do século XVII e, principalmente, no século XVIII. Por mais que seja possível colocar o surgimento da burguesia no século X, o Liberalismo só tomou forma a partir do século XVII. A filosofia liberal se sustenta no PRINCÍPIO FUNDAMENTAL de que A LIBERDADE DO INDIVÍDUO É O BEM SUPREMO, que, enquanto tal, tem preponderância sobre qualquer outro que possa ser imaginado. A liberdade é importante especialmente no contexto da relação do indivíduo com o estado e com seus semelhantes na sociedade. Para o Liberalismo, é imperativo, na vida em sociedade, buscar a maior liberdade possível para cada um que seja compatível com igual liberdade para todos. O termo “Liberalismo” vem daí: tem a mesma raiz que o termo “liberdade”. O historiador (ou o sociólogo do conhecimento) pode procurar explicar porque essas ideias só emergiram com clareza no final do século XVII e se fortaleceram no século XVIII. Mas isso não altera a natureza do Liberalismo, que é uma filosofia política, nem afirma-lo enquanto tal é caracteriza-lo de forma “abstrata” e “ahistórica”.

e) O vínculo essencial do Liberalismo é, portanto, com a liberdade – não com a propriedade privada, como, em geral, entendem e pretendem os marxistas. A defesa do direito do indivíduo à propriedade privada é um corolário do Liberalismo na ÁREA ECONÔMICA, não o conceito principal que o define. Este lugar pertence à liberdade, um conceito bem mais amplo, que abrange, além dos econômicos, elementos políticos e sociais.

f) Mesmo na área econômica, a defesa do direito à propriedade privada não esgota o que o Liberalismo defende. O chamado Liberalismo Econômico, geralmente denominado Capitalismo, é uma decorrência lógica do princípio básico do Liberalismo, a saber, que em sociedade é desejável buscar a maior liberdade possível para cada um que seja compatível com igual liberdade para todos. Aplicando esse princípio à área econômica, o Liberalismo defende a tese de que o estado (ou o governo) deve se abster de toda e qualquer tentativa de atuar diretamente na economia (como empresário) ou mesmo de regular, fiscalizar ou de qualquer forma intervir na economia. Na economia o princípio básico do Liberalismo é geralmente resumido na expressão francesa de que o estado, em relação à iniciativa privada, deve “LAISSEZ FAIRE”, isto é, deixar fazer, ou, melhor, “sair da frente e deixar a iniciativa privada agir”.

g) É esse princípio fundamental que sustenta o corolário, agora na ÁREA POLÍTICA, de que melhor estado é aquele que governa menos, deixando, portanto, aos indivíduos mais liberdade. O melhor estado, assim, é o ESTADO MÍNIMO, que deixa aos indivíduos o máximo de liberdade compatível com as exigências da vida em sociedade. Este princípio do estado mínimo é, assim, uma decorrência do princípio da liberdade do indivíduo como bem supremo.

h) Sendo a liberdade o conceito mais importante do Liberalismo, é importante ter clareza sobre como esse conceito é entendido pelo Liberalismo. Ser livre, para o Liberalismo, é não ser coagido a agir (a fazer ou a deixar de fazer) – é não ser obrigado a fazer, nem impedido de fazer – por terceiros. Ser livre, portanto, não deve ser confundido com “ter condições materiais de fazer”, “ter poder de fazer”, alguma coisa.

i) Esse conceito de liberdade é freqüentemente descrito como um conceito negativo ou formal de liberdade. Negativo, porque a liberdade é definida em termos negativos, como não-coação, sendo livre a pessoa que não é obrigada a fazer, nem impedida de fazer, alguma coisa. Formal, porque uma pessoa livre para fazer algo (porque não coagida ou obrigada a deixar de fazê-lo) pode não conseguir fazê-lo, por lhe faltarem condições materiais para tanto (capacidade intelectual, competências cognitivas, conhecimentos, motivação, persistência, recursos, etc.).

j) Conceituado o Liberalismo, como o entendem os liberais, é fácil de entender o profundo mal-estar que causa a um liberal a associação do Liberalismo à Reforma Protestante e especialmente à Contra-Reforma e aos Jesuítas.

5. A Trajetória do Liberalismo

a) Uma vez formulada com clareza essa visão do mundo – e a obra de Adam Smith representa, sem sombra de dúvida, sua formulação mais consistente e sistemática, antes do século XX – aqueles que ajudaram a formula-la, ou que foram por ela sensibilizados (coisa que nunca aconteceu com o Prof. Gilberto), puseram-se a lutar para que ela transformasse a realidade que eles viviam. É uma notável coincidência que o ano de 1776 marca a data da publicação de An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, de Adam Smith, oportunamente traduzido para o Português como A Riqueza das Nações, e da Revolução Americana, que resultou na Declaração da Independência dos Estados Unidos – nação de imigrantes que, oprimidos na Inglaterra, fugiram para a América, e, sentindo, mesmo na América, o peso da opressão, se propuseram a criar, a partir do zero, uma nova nação, em cima de princípios basicamente liberais, o que se deu no final do século XVIII. (1776 é também a data da morte de David Hume, sobre quem escrevi, trinta anos atrás, minha tese de doutoramento – outro liberal e o maior amigo de Adam Smith).

b) O século XIX foi, nos Estados Unidos, o século em que o Liberalismo foi colocado em prática – não, naturalmente, forma perfeita e não, é evidente, sem oposição. Ironicamente, o Liberalismo, em sua versão clássica, a única que merece o nome, acabou sendo abandonado nos Estados Unidos de forma gradualista, por pressão daqueles que, sob influência de ideias socialistas ou socializantes, concluíram que, não sendo o estado americano um estado opressor, seria muito difícil promover o socialismo mediante o confronto, sendo melhor estratégia a conquista gradual de pequenas vitórias que fossem, pouco a pouco, inflacionando as atribuições do governo e, assim, afastando-o do Estado Mínimo liberal. Esse movimento ganhou grande força com o “New Deal” de Franklin Delano Roosevelt (década de 30 e 40 deste século) mas se cristalizou mesmo com “The Great Society” de Lyndon Baynes Johnson, na década de 60, em pleno século XX. [Numa rara concessão a referências bibliográficas, sugiro, aqui, a leitura dos livros: Por que não Vingou? História do Socialismo nos Estados Unidos, de Seymour Martin Lipset e Gary Marks, e  A Social-Democracia nos Estados Unidos, de Sidney Hook, Leszek Kolakowski, Seymour Martin Lipset e Michael Harrington, ambos publicados pelo Instituto Teotônio Vilela, Brasília, 2000 e 1999, respectivamente. A posição liberal (no sentido em que eu emprego o termo) está bem apresentada em A Life of One’s Own: Individual Rights and the Welfare State, de David Kelley, CATO Institute, Washington, 1998].

c) A consequência mais irônica desse movimento está no fato de que nos Estados Unidos os termos “liberal” e “Liberalism” foram usurpados por essas tendências socializantes, hoje representadas pelos social-democratas (como Edward “Ted” Kennedy e William “Bill” Clinton e, em geral, os membros do Partido Democrata, desde a época do New Deal de Franklin D. Roosevelt), que se rotulam, e, nos Estados Unidos, são rotulados, de liberais. Os que são realmente liberais nos Estados Unidos hoje se viram forçados a se chamar de libertários. (John Rawls, por exemplo, bastante conhecido hoje em dia no Brasil, não é um liberal, estando muito mais perto da Social-Democracia do que do Liberalismo, embora ele próprio se rotule de liberal – mas no sentido “americano” do termo. Tradutores profissionais frequentemente desconhecem esse fato, e traduzem os termos ingleses “liberal” e “liberalism” por “liberal” e “liberalismo”, sem qualquer ressalva ou explicação, assim confundindo leitores menos avisados – isso também é um desserviço, no caso aos leitores brasileiros).

d) Horace Mann, que recebeu algum destaque na palestra do Prof. Gilberto, se inclui, como defensor da escola pública, obrigatória e gratuita, no campo OPOSTO ao do Liberalismo – embora, por causa das questões terminológicas assinaladas no item anterior, tenha ficado conhecido, aqui no Brasil, como liberal, fato que induz muitas pessoas a equívocos lastimáveis. O Liberalismo defende uma escola que não é nem pública, nem obrigatória, nem gratuita.

e) O mesmo se pode dizer de todo o movimento da Escola Nova, que só pode ser considerado liberal no sentido em que os americanos passaram a usar o termo, sentido esse que é fundamentalmente CONTRÁRIO ao sentido que o termo tinha quando da criação da nação americana, que é hoje preservado, nos Estados Unidos, pelo termo “libertário”. Quanto equívoco teria sido eliminado se essa infeliz usurpação de uma palavra não tivesse ocorrido.

f) Em suma, eu não nego a importância de Horace Mann e da Escola Nova na construção da escola pública moderna. Longe disso. Minha tese é de que a contribuição de ambos não foi caracteristicamente liberal e, em alguns aspectos, foi eminentemente anti-liberal – e eu posso fazer uma afirmação dessas de forma absolutamente coerente porque não hesito em conceituar o Liberalismo com clareza e precisão.

g) Especificamente sobre a Escola Nova, a réplica do Prof. Gilberto me deixa ainda mais perplexo. Ele diz:

“A unicidade, como já expus no primeiro e-mail, transformou-se numa bandeira de luta do escolanovismo, no último terço do século XIX, por força do combate exercido contra a escola dualista burguesa, por ele denominada escola tradicional. A unicidade seria o recurso para a superação do dualismo escolar, nesse momento visto pela leitura liberal dos escolanovistas, falsamente, como elemento determinante das classes sociais.”

Aqui a Escola Nova é caracterizada como liberal. A Escola Nova, esclarece-se, teve como bandeira de luta a unicidade da escola. Ao mesmo tempo, afirma-se que a Escola Nova combateu “a escola dualista burguesa”. No entanto, o Prof. Gilberto caracteriza o Liberalismo como a visão de mundo da burguesia. De que há uma contradição aqui não tenho dúvida. Suspeito que o Prof. Gilberto, para se safar dela, diria que a contradição é uma contradição interna do Liberalismo. Mas não é. Primeiro, porque a Escola Nova não é liberal. Segunda, porque o Liberalismo não defende nem a unicidade nem o dualismo da escola: defende uma escola plural. Terceiro, e entrando aqui no cerne da questão, que, atrás, concedi apenas por amor à argumentação, porque o Liberalismo não é a visão de mundo da classe burguesa, da mesma forma que o Marxismo (ou Socialismo) não é a visão de mundo da classe trabalhadora.

h) A tese de que estamos divididos, hoje, basicamente em duas classes, a classe burguesa e a classe trabalhadora, e de que cada uma dessas classes tem UMA visão de mundo determinada ou condicionada por seu papel no processo produtivo, e que o Liberalismo seria a visão de mundo da burguesia, está basicamente ultrapassada (se é que algum dia teve alguma validade). Se formos ainda falar em classe como categoria determinada pelo papel de seus membros no processo produtivo, temos bem mais do que duas classes. Mesmo que, num esforço redutivo, elegêssemos concentrar nossa análise apenas nas duas classes privilegiadas pelo Marxismo, encontramos hoje uma boa parcela dos membros da classe dita burguesa (incluindo intelectuais, empresários e profissionais liberais) optando por um Socialismo de sabor marxista, como encontramos membros da classe dita trabalhadora optando por valorizar a liberdade e procurando afastar o governo de seu caminho.

i) O que diferencia liberais e socialistas não é sua vinculação a classes diferentes e antagônicas, caracterizadas pelo seu papel no processo produtivo, mas, sim, o tipo de sociedade em que cada um prefere viver e pelo qual se dispõe a lutar: se uma sociedade em que a liberdade é o valor fundamental ou se uma sociedade em que a igualdade é o valor fundamental. Encontramos, hoje, membros das duas classes que o Marxismo privilegia defendendo tanto uma como outra dessas sociedades. Os que defendem a primeira alternativa lutam pela ampliação do papel do indivíduo e da iniciativa privada na sociedade e pela redução do papel do estado ou do governo. Os que defendam a segunda alternativa parecem acreditar que só se alcança uma sociedade mais igualitária reduzindo o espaço da liberdade dos indivíduos e da iniciativa privada e ampliando o espaço da ação governamental – espaço este que iria desde a propriedade total dos meios de produção defendida por um Comunismo hoje, espero, definitivamente ultrapassado, até o exercício de funções regulatórias e distributivas hoje tão favorecidas pelos comunistas de ontem.

j) Mas quero, antes de concluir, voltar à questão da escola, para que fique evidente quais são minhas discordâncias com uma palestra que se propunha a discutir o papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna. Essa escola pública moderna, que o Liberalismo teria ajudado a criar, segundo entendi da apresentação do Prof. Gilberto, seria laica, universal, gratuita, obrigatória, e única (indiferenciada). O que sobretudo me chocou na palestra foi o fato de que a escola defendida pelo Liberalismo NÃO TEM NENHUMA DESSAS CINCO CARACTERÍSTICAS: não é necessariamente laica, porque o Liberalismo admite escolas confessionais; não é universal, porque o Liberalismo, ao propugnar por uma escola não estatal e não controlada pelo Estado, deixa aberta a possibilidade de que, em determinados contextos, não haja escola nenhuma (e que, por exemplo, a educação seja feita em casa ou por tutores privados); não é gratuita para o usuário, porque o Liberalismo não inclui a educação entre serviços custeados por impostos que o Estado deve prover à população (vide o texto de Adam Smith); não é obrigatória, porque o Liberalismo, defendendo, como de fato defende, a liberdade dos indivíduos, é contra a obrigatoriedade da frequência à escola; não é, por fim, única, porque o Liberalismo defende a existência de uma escola tão plural quanto possível. Diante disso, não é de admirar que eu ache que a palestra apresentou uma caricatura do Liberalismo, para poder colocá-lo como responsável, ainda que não solitariamente, pela escola pública moderna.

6. Sobre o Restante

a) O Prof. Gilberto me conclama a ter a “grandeza moral e intelectual” de reconhecer que eu teria caricaturado a palestra dele. Eu, infelizmente, não vejo como possa fazer isso em sã consciência. Se a palestra foi gravada e eu, ouvindo-a novamente, perceber que me equivoquei, não hesitarei em admitir. Ou, não tendo sido, seria útil se fosse possível ter acesso ao texto que o Prof. Gilberto tinha consigo no dia da palestra (e que, embora não o tenha lido, aparentemente serviu de base para sua palestra).

b) Na minha opinião, que espero ter esclarecido e fundamentado aqui, e independentemente de eu ter caricaturado a sua palestra, o Liberalismo foi, intencionalmente ou não, por má fé ou por desconhecimento de como os liberais vêem o Liberalismo, caricaturado na palestra do Prof. Gilberto.

c) O Prof. Gilberto, ao final de suas respostas, faz ressalvas ao meu uso do termo “desserviço”, que esclareci nesta resposta. Ao fazê-las, insinua que eu deixei a ética de lado, reivindica tê-la de seu lado, e afirma: “Eu nunca consideraria um ‘desserviço’ aos estudantes que assistem às suas [no caso, minhas, de Eduardo Chaves] aulas o fato de, nela, serem veiculadas ideias com as quais não comungo”. Mas eu em nenhum momento disse que o Prof. Gilberto prestou um desserviço aos alunos presentes simplesmente por ter veiculado em sua palestra ideias com as quais não comungo. Felizmente, o Prof. Gilberto neste caso esclarece que “o desserviço de uma ação existe quando se sustenta [o quê?] na má fé ou no erro”. Tirante a falta de objeto direto na frase, concordo. Não afirmei que ele prestou um desserviço aos alunos presentes por má fé, porque não o conheço o suficiente para fazer uma afirmação desse tipo e duvido que, conhecendo-o melhor, tivesse base para fazê-lo – mas estou convicto de que está errado na sua visão do Liberalismo e do seu papel na construção da escola pública moderna (embora consiga entender perfeitamente porque ele acha que não está).

d) Seguem, após a assinatura, as passagens de Adam Smith a que fiz referência.

Eduardo Chaves

V. Anexo: Passagens de Adam Smith

Algumas passagens de Adam Smith, em A Riqueza das Nações, Livro V, traduzidas do inglês por mim, que são profundamente relevantes, eu diria, para uma análise da Educação Superior Brasileira atual. Esse livro foi originalmente publicado em 1776, ou seja, 225 anos atrás. Sua relevância para hoje, porém, no essencial, ainda é total – e nesse essencial se inclui o que ele diz sobre a educação (em especial a superior).

Os trechos são retirados de várias passagens e foram traduzidos meio livremente. Entre um parágrafo e outro podem ter sido omitidos vários parágrafos não tão relevantes ao que quero registrar.

As passagens foram retiradas das pp.758-764 da edição de An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of the Nations, organizada por R. H. Campbell, A. S. Skinner e W. B. Todd, publicada pelo Liberty Fund, Indianapolis, 1981, na serie Liberty Classics, reimpressão da edição publicada em 1976, data do bicentenário da publicação inicial da obra, pela Oxford University.

“Artigo II – Do Custeio das Instituições Dedicas à Educação da Juventude

As instituições dedicadas à educação da juventude podem gerar receita suficiente para cobrir suas próprias despesas, através de taxas que os estudantes pagam à instituição e honorários que pagam aos mestres.

Mesmo que o pagamento dos mestres não seja totalmente resultante de honorários pagos pelos estudantes, ainda assim não é necessário que ele seja derivado de impostos. [Ele vai mostrar, em seguida, que o os mestres podem ser pagos com fundos decorrentes de dotações de governos e doações de pessoas privadas, indivíduos ou instituições].

Em toda profissão, o esforço da maioria daqueles que a exercem é sempre proporcional à necessidade que eles têm de realizar esse esforço. Essa necessidade é maior quando os rendimentos de sua profissão são a única de fonte de renda que possuem. Neste caso, para obter os rendimentos necessários para viver, eles devem, ao longo de um ano, executar uma certa quantidade de trabalho que tenha um valor determinado. Quando a competição é livre, a rivalidade dos competidores obriga cada um a realizar seu trabalho com um alto grau de qualidade, para que possa se manter em concorrência.

Quando escolas ou universidades recebem dotações [de governos] ou doações [da iniciativa privada], [em vez de se manter através das taxas ou honorários pagos pelos alunos], a necessidade de esforço dos professores fica mais ou menos diminuída. Sua subsistência, à medida que é derivada de um salário fixo [pago pelas dotações ou doações], é evidentemente derivada de um  fundo que independe de seu sucesso como professor ou de sua reputação como mestre.

Em algumas universidades o salário do professor é apenas uma parte, freqüentemente pequena, dos rendimentos do professor, a maior parte se originando nos honorários pagos pelos alunos. A necessidade de esforço não é neste caso totalmente eliminada, mas apenas mais ou menos diminuída, dependendo do montante dos rendimentos que se origina de salário fixo. Sua reputação em sua profissão é, neste caso, ainda importante para ele, porque ele depende da afeição, da gratidão, e da opinião favorável daqueles aos quais ele presta serviços – e estas ele provavelmente não vai ganhar a menos que faça por merecê-las através da habilidade e da diligência com que executa os seus deveres.

Em outras universidades o professor é proibido de receber honorários dos alunos e seu salário fixo representa a totalidade dos rendimentos que ele aufere do exercício de sua profissão. Seu interesse, neste caso, fica desalinhado da qualidade com que ele exerce os seus deveres. É do interesse de qualquer homem viver de forma tão fácil quanto ele puder. Se seus rendimentos são exatamente os mesmos, exerça ele ou não, com grande diligência, deveres bastante trabalhosos, torna-se em seu interesse, pelo menos no entendimento vulgar desse termo, ou negligenciar os seus deveres inteiramente, ou, se ele estiver submetido a uma autoridade que não lhe permita fazer isso, exercê-los de uma forma tão descuidada e desleixada quanto o admita aquela autoridade. Se o professor é naturalmente ativo e gosta de trabalhar, ele vai perceber que é em seu interesse dedicar o melhor de seus esforços a uma atividade na qual a qualidade do esforço despendido é proporcionalmente recompensada – e não no desempenho de tarefas em que não faz diferença se o trabalho é bem feito ou não.

Se a autoridade à qual o professor está sujeito é uma autoridade corporativa e ele próprio faz parte da corporação, junto com outras pessoas que ou são professores ou aspiram a vir a sê-lo, eles todos encontrarão uma maneira de ser bastante indulgentes uns com os outros, e cada um vai consentir que seu próximo negligencie os seus deveres, desde que ele próprio possa negligenciar os seus. Na Universidade de Oxford, a maior parte dos professores pagos com recursos públicos abandonaram, já faz muitos anos, até mesmo qualquer aparência de que têm que ensinar seus alunos, quanto mais que o tenham que fazer com qualidade (razão pela qual se diz que se alguém perder a saúde em Oxford por ter estudado demais só pode culpar a si próprio, pois não terá sido por imposição de terceiros).

Se a autoridade à qual o professor está sujeito é estranha aos círculos universitários (como um bispo, o governador da província, ou um ministro, por exemplo), provavelmente não se admitirá que o professor negligencie o seu trabalho totalmente. Contudo, tudo o que seus superiores poderão fazer, neste caso, é obrigá-lo a dar um certo número de aula por semana ou por ano aos seus alunos. O conteúdo dessas aulas vai depender, quanto à sua pertinência e qualidade, inteiramente da diligência do professor – e essa diligência vai provavelmente ser proporcional aos motivos que ele tenha para exercê-la. Uma autoridade estranha à corporação dos professores provavelmente vá ser exercida de forma tão ignorante quanto caprichosa. A pessoa que exerce essa autoridade, sendo estranha aos círculos universitários, não vai assistir às aulas do professor, nem provavelmente as compreenderia se a elas assistisse. Por isso, acabam por exercer sua autoridade de forma caprichosa. Essa fato degrada o professor, pois este percebe que vai ser recompensado ou punido, não pela maior ou menor diligência com que exerça os seus deveres, mas, sim, pela forma que trate seus superiores, pelos favores que lhes preste, mesmo que, para isso, seja preciso sacrificar a honra da corporação a que pertence.

Quem quer que obrigue estudantes a freqüentar determinada universidade, independentemente dos méritos ou da reputação de seus professores, tende, também, em maior ou menor grau, a diminuir a necessidade de que aqueles professores tenham mérito ou boa reputação em seus ofícios.

Quando uma instituição concede, ela própria, bolsas de estudos aos seus alunos, ela os atrai, independentemente dos méritos e da reputação de seus professores.

Se houver recursos para a concessão de bolsas, melhor seria que elas fossem dispensadas aos alunos independentemente de vínculo com uma ou outra universidade específica, permitindo, assim, que os bolsistas escolham qual universidade preferem freqüentar. Assim as bolsas estimularão a concorrência e a melhoria da qualidade entre as universidades.

Se, em uma universidade, os professores cujos cursos o aluno vai freqüentar não forem livremente escolhidos pelos alunos, mas forem indicados por uma autoridade universitária, e os alunos não tiverem permissão para trocar de professores,  esse procedimento extinguirá toda e qualquer concorrência entre os professores e diminuirá, entre eles, a necessidade de exercer seus deveres com diligência e de dar aos seus alunos a devida atenção, podendo os professores até mesmo negligenciar totalmente os seus alunos, tanto quanto aqueles que não são pagos pelos alunos.

As regras que imperam nas universidades são em geral criadas, não em benefício dos alunos, mas para atender os interesses, ou, melhor dizendo, à tranqüilidade de seus mestres. Seu objetivo, em todos os casos, é preservar a autoridade dos professores, e, caso estes negligenciem os seus deveres, obrigar os alunos a se comportar como se os professores tivessem exercido seus deveres com a maior habilidade e a melhor diligência.

Quando os mestres cumprem com os seus deveres, não creio haver exemplos de que os alunos negligenciem os seus. Não é preciso impor nenhuma obrigatoriedade ou disciplina para que alunos freqüentem aulas a que realmente valha a pena assistir, como todos que já puderam observar essa situação estão prontos a testemunhar.

É por isso que a melhor educação é aquela que se ministra em instituições não públicas.”

[1] DIDEROT. Mémoires pour Catherine II. Paris: Éditions Garnier Frères, 1966, p. 131-2.

Transcrito aqui neste blog em Salto, 18 de Março de 2018

Preâmbulo a uma Defesa do Liberalismo

Preâmbulo a uma Defesa do Liberalismo [1]

Eduardo O C Chaves

A finalidade deste artigo é modesta. Não se trata, aqui, de defender o liberalismo, mas, sim, de preparar um terreno para uma defesa que virá em número subseqüente desta revista. Minha intenção é primeiro deixar claro o que se pretende defender para, só depois, me preocupar em defendê-lo.

O leitor com bom conhecimento da história da filosofia, em particular da filosofia política, não deixará de constatar, neste artigo, um tom bastante didático. O artigo, na sua feição atual, foi escrito para que alunos do Curso de Pedagogia se familiarizassem com esse ideário de uma forma razoavelmente neutra.

Na literatura filosófica e política brasileira o termo “liberalismo” virou termo de opróbrio, tendência que é mister contestar. Dada a natureza didática do texto, também não me preocupei em tornar a sua leitura mais complicada atravacando-o com citações e notas de rodapé.

Esclareço, inicialmente, que ao falar em liberalismo estarei me referindo, principalmente, ao liberalismo clássico, ou laissez faire. Não estou, portanto, preocupado em elucidar os vários significados atribuídos ao termo “neo-liberalismo”.

I. Conceituação Inicial

O liberalismo é, basicamente, uma filosofia política. Embora tenha se tornado famoso no final do século XVII e, principalmente, no século XVIII, o liberalismo tem uma nobre linhagem que remonta à antigüidade – aos gregos e mesmo aos hebreus (como bem demonstra Lord Acton).

A filosofia liberal se sustenta no princípio fundamental de que, no contexto da relação do indivíduo com o estado (e mesmo com a sociedade), a liberdade do indivíduo é o bem supremo, que, enquanto tal, tem preponderância sobre qualquer outro que possa ser imaginado. Defender o liberalismo, portanto, é defender a liberdade que lhe empresta o nome.

É esse princípio fundamental que sustenta o corolário de que melhor estado é aquele que governa menos, deixando, portanto, aos indivíduos mais liberdade. O melhor estado, assim, é o “estado mínimo”, que deixa aos indivíduos o máximo de liberdade compatível com a vida em sociedade. Este princípio do estado mínimo é, assim, uma decorrência do princípio da liberdade do indivíduo como bem supremo.

Poder-se-ia imaginar, porém, que o ordenamento social mais compatível com a preservação da maior liberdade possível do indivíduo fosse aquele em que não existisse estado – ou seja, o ordenamento social em que as pessoas se auto-governam sem necessidade de instituições políticas (governos). Essa alternativa, que podemos chamar de anarquista, tem sempre tido uma atração especial para os liberais. A única razão pela qual os liberais rejeitam a alternativa anarquista é que o liberalismo tem uma visão razoavelmente pessimista da natureza humana (em relação à visão da natureza humana pressuposta pelos anarquistas). Os liberais acreditam que, sendo a natureza humana o que é, não é possível preservar a liberdade dos indivíduos sem um estado que defenda o indivíduo contra violações de sua liberdade (de seus direitos) por outros indivíduos, que sirva de árbitro para julgar desavenças entre indivíduos, e que se ocupe em defender a liberdade dos seus cidadãos contra agressões externas.

Essas funções do estado, relacionadas com a proteção dos indivíduos uns contra os outros (função policial), com a arbitragem de desavenças (função judicial) e com a proteção dos indivíduos contra agressão externa (função militar), são, portanto, para os liberais, necessárias e legítimas, indispensáveis para a preservação de um máximo de liberdade para os indivíduos no ordenamento social. Sem um estado que as desempenhe, os indivíduos ficarão presa fácil dos mais fortes ou mais espertos, tanto dentro como fora da comunidade em que vivem.

Mas não sendo otimista em relação à natureza humana, o liberal também não o é em relação ao estado, e, assim, ao mesmo tempo que reconhece a sua necessidade, procura limitar drasticamente as suas funções e colocar um freio aos seus poderes (através de uma constituição que basicamente garanta os direitos básicos do indivíduo e terminantemente proíba o estado de, através de legislação, restringir esses direitos. Vide adiante.) Tendo, portanto, definido aquelas três como funções necessárias e legítimas do estado, os liberais vão além e sustentam que elas são as únicas funções que o estado deve exercer.

Assim, se o liberalismo se distingue, de um lado, do anarquismo, por defender a necessidade do estado, distingue-se, de outro, tanto da democracia social como do socialismo (que serão discutidos adiante), por negar, contra a primeira (democracia social), que o estado deva ter funções sociais (na área da educação, saúde, trabalho, seguridade social, infraestrutura, meio ambiente, etc.) ou funções reguladoras da atividade econômica (definindo normas que restrinjam ou ordenem a liberdade dos agentes econômicos), e, contra o segundo (socialismo), que o estado deva, ou possa, ter participação direta e ativa na economia (como detentor, total ou mesmo parcial, dos meios de produção). Assim, os liberais sustentam que o estado não deve ter funções sociais nem, muito menos, funções econômicas, na sociedade, restringindo-se suas funções às três apontadas atrás: a função policial, a função judicial e a função militar.

Resumindo:

(a) quando aplicado à chamada área social, o liberalismo sustenta a tese de que é a iniciativa privada que deve prover, com exclusividade, serviços e eventualmente bens na área da educação, da saúde, do trabalho, da seguridade social, de infraestrutura, do meio ambiente, etc. O estado deve se abster não só de prover serviços e bens nessas áreas como de regulamentar (através de legislação e normatização) as atividades que nelas são exercidas pela iniciativa privada;

(b) quando aplicado à economia, o liberalismo sustenta, com maior razão, a tese de que o mercado é o melhor regulador da atividade econômica, e que o estado deve, portanto, se abster de envolvimento na economia, tanto no que diz respeito à produção como no que diz respeito à distribuição de riquezas, ou mesmo à regulamentação do processo.

É preciso registrar, aqui, que tanto o liberalismo como o anarquismo são implacáveis defensores da liberdade do indivíduo. Para ambos a liberdade do indivíduo é o bem supremo. Ambos estão unidos, portanto, em relação ao objetivo final: a maximização da liberdade do indivíduo. Divergem, entretanto, quanto aos meios de alcançar esse objetivo maior. Os anarquistas acreditam que a não existência do estado é a melhor forma de maximizar a liberdade do indivíduo, visto que consideram possível a vida social regulada apenas pelos próprios indivíduos, voluntariamente, sem necessidade de um poder maior que os coaja ou coerça. Os liberais, menos otimistas (ou mais realistas) em relação à natureza humana, acreditam que, sem um estado que garanta a liberdade de todos os indivíduos, essa liberdade tende, facilmente, a se reduzir e, eventualmente, a desaparecer. Liberais e anarquistas concordam, portanto, em relação ao fim: divergem apenas em relação aos meios. Na luta contra as outras filosofias políticas tendem a ficar do mesmo lado.

Isto posto, deixarei de lado, em grande medida, na discussão que segue, o anarquismo, porque não há tantos defensores dessa tendência no cenário político de hoje. Vou concentrar a atenção, portanto, nos inimigos do liberalismo (e, a fortiori, do anarquismo) – que hoje, a despeito das aparências, são legião.

II. Os Inimigos do Liberalismo

Os grandes inimigos do liberalismo são as filosofias políticas que procuram aumentar a função do estado. Dentre estas, as duas principais são a democracia social e o socialismo (já mencionados).

Na verdade, é plausível argumentar que, do outro lado das trincheiras, o socialismo representa, em relação à democracia social, a mesma função que o anarquismo representa em relação ao liberalismo. Do lado do anarquismo o estado é reduzido a nada – do lado do socialismo sua função é inflada de tal forma que o estado passa a ser tudo (nada do que acontece na sociedade está fora da esfera de alcance do estado). Didaticamente, portanto, é mais fácil entender a democracia social depois de compreender o socialismo.

O socialismo, como o liberalismo, é uma filosofia política que se tornou popular principalmente no século XIX, embora tenha importantes antecedentes no século XVIII e mesmo antes. O socialismo defende a tese de que o estado deve controlar ao máximo a sociedade (“governar o máximo possível”), planejando, de forma centralizada, toda a atividade econômica, chegando até mesmo ao ponto de ser proprietário de todos os meios de produção, e, portanto, ficando na posição não só de planejador, mas, também, de executor da atividade econômica. Nesta formulação radical, a propriedade privada dos meios de produção seria terminantemente proibida: todo trabalhador seria, em princípio, um funcionário público que faria apenas aquilo que o estado determinasse. A remuneração dos trabalhadores seria fixada levando em conta as necessidades do indivíduo, não a sua capacidade, produtividade, ou mesmo o número de horas que dedicasse ao trabalho. O princípio consagrado na Crítica do Programa Gotha é: “De cada um segundo a sua habilidade; a cada um segundo as suas necessidades”. Como se supõe que as necessidades dos indivíduos sejam basicamente semelhantes, não haveria maiores diferenciais na escala salarial, não importa que trabalho o indivíduo fizesse nem qual fosse a sua habilidade ou produtividade ao realizá-lo.

Colocado, assim, nesta forma crua, o socialismo dificilmente seria atraente, porque parece plausível imaginar que, quanto mais se aumentem as funções do estado, tanto menor se torna o espaço reservado à liberdade dos indivíduos – e, normalmente, os indivíduos prezam a sua liberdade. A estratégia usada pelo socialismo para enfrentar essa dificuldade tem sido argumentar que há bens maiores do que a liberdade. Entre esses bens maiores destacam-se as chamadas igualdade e justiça social (que, na verdade, em última instância acabam sendo a mesma coisa para os socialistas [2]). Argumentam os socialistas que o liberalismo, ao enfatizar a liberdade, inclusive na área econômica, deixa a porta aberta para o surgimento de desigualdades econômicas e, conseqüentemente, sociais (algo que, de resto, nenhum verdadeiro liberal jamais negou). Sustentam, ainda, que essas desigualdades são injustas – colocando-se, portando, como defensores da justiça (que freqüentemente qualificam denominam de justiça social, para distingui-la da “velha justiça”, segundo a qual o justo seria dar a cada um o que lhe é devido em função de que fez).

Os liberais, embora admitam que sistemas políticos liberais produzem grandes desigualdades econômicas e sociais, negam que essas desigualdades sejam, por isso, necessariamente injustas – segundo o conceito tradicional de justiça. Assim, dourando a pílula, o socialismo defende a tese de que o estado, como detentor de todos os meios de produção, não poderia deixar de ser, também, o grande agente na área social, provendo aos cidadãos (gratuitamente) os serviços e bens necessários nas áreas da educação, da saúde, da seguridade social, do transporte, da moradia, da infraestrutura, etc. Assim todos os indivíduos teriam, basicamente, acesso aos mesmos serviços e bens na área social, havendo, portanto, além de igualdade econômica, igualdade social.

Além da força bruta, a única forma que o socialismo encontrou de persuadir os indivíduos a abrirem mão de suas liberdades, assim permitindo a implantação do ideário socialista, foi prometendo-lhes um bem supostamente maior: a igualdade (econômica e social) e, com ela, a justiça (qualificada de social). Historicamente, porém, todas as vezes que se tentou implantar o socialismo, a liberdade individual não foi apenas reduzida: foi totalmente eliminada (União Soviética a partir de 1917, Leste Europeu depois da Segunda Guerra Mundial, Cuba, a partir de 1960, etc.). A sede de liberdade, entretanto, parece ser maior, nos indivíduos, do que o desejo de igualdade. Os últimos dez anos parecem ter provado isso (escrevo em 1999).

A democracia social pretende ser uma forma mais branda de socialismo: um socialismo parcial e democrático, que, como tal, mantém uma quantidade módica de liberdade. A democracia social abre mão da propriedade de todos os meios de produção pelo estado e mesmo da tese do planejamento centralizado de toda a economia. A democracia social alega que deixa a produção, tanto quanto possível, nas mãos da iniciativa privada, só intervindo no setor produtivo para regulamentá-lo, em especial em seus aspectos distributivos, e para suprir lacunas ou omissões (áreas em que a iniciativa privada não teria interesse). O que realmente interessa à democracia social é a chamada distribuição das riquezas produzidas pela atividade econômica, ainda que privada, algo que a democracia social se propõe fazer através de legislação tributária que rotula de “progressista”. (É interessante notar que os democratas sociais geralmente falam em “redistribuição das riquezas”, como se o mercado houvesse feito uma primeira distribuição que agora, em nome da justiça social, é preciso corrigir).

O ideário da democracia social inventou um sem número de conceitos e mecanismos para convencer os indivíduos de que deveriam, democraticamente (isto é, agora sem força bruta), concordar em abrir mão de parte de seus bens (dinheiro) em benefício dos “desfavorecidos”, das vítimas das “injustiças sociais”, assim colaborando para a criação de uma sociedade mais igualitária e menos injusta. A democracia social inventou a tese de que ninguém é realmente livre enquanto é pobre e criou um sem número de “direitos sociais”: direito à educação, à saúde, ao trabalho, à seguridade social, ao transporte, à moradia, etc.

Registre-se, aqui, que a aceitação da democracia social pode até se fazer sem força bruta (tanques, fuzis, “Gulags”, “paredóns”, etc.), mas certamente não se faz sem força – como qualquer cidadão que decidir não pagar impostos destinados a funções estatais que ele considera indefensáveis facilmente descobrirá, como o fez Henry David Thoreau, no século passado, nos Estados Unidos.

III. O Chamado Neo-Liberalismo

E o chamado “neo-liberalismo”, o que é? Registre-se, primeiro, que esse termo, em regra, raramente é usado por liberais para se referir a si próprios. Ele normalmente é usado pelos socialistas e democratas sociais para designar toda e qualquer pessoa ou iniciativa voltada para “reduzir o tamanho do governo”. As pessoas ou iniciativas designadas como neo-liberais normalmente estão longe de ser liberais no sentido clássico do termo, que esboçamos atrás. O Presidente Fernando Henrique Cardoso, ex-socialista, têm sido rotulado de “neo-liberal” pela esquerda. Ele próprio fez uma tímida tentativa de negar, dizendo-se “neo-social”, não “neo-liberal”. Esta é uma das poucas afirmações do Presidente com a qual concordo. As iniciativas que lhe valeram o ódio da esquerda socializante foram, principalmente, as que envolveram a venda de empresas estatais. Ora, se a conceituação que fizemos está correta, o governo FHC, ao vender as estatais, está, na realidade, procurando dizer ao povo que o Presidente, anteriormente, socialista, está vindo para o mais para o centro, na direção da democracia social, em que a participação do estado na setor produtivo não é considerada essencial. Em nenhum momento, porém, o governo FHC deixou de propugnar por um ativo envolvimento do estado na área social e por sua ativa participação na distribuição das riquezas produzidas e na regulamentação do setor produtivo. Por isso, o rótulo de “neo-social” é muito mais apropriado do que o de “neo-liberal”. Liberal, sem qualificativos, é algo que o Presidente Fernando Henrique Cardoso absolutamente não é – nem vai ser.

IV. Liberalismo, Liberdade e Direitos Individuais

O liberalismo sempre foi um defensor ferrenho dos direitos individuais – que não devem ser confundidos com os chamados “direitos sociais” propugnados pela nossa Constituição (que, nisso, imitou a Declaração de Direitos Humanos da ONU, indo, porém, muito além do modelo). Como já assinalado, o liberalismo é zeloso defensor da liberdade dos indivíduos. Essa liberdade é sempre concebida, porém, de forma negativa: o indivíduo é tão mais livre quanto menos ele é impedido de realizar seus desejos e objetivos por fatores externos a ele. A única restrição legítima à liberdade do indivíduo que o liberalismo admite é aquela decorrente do princípio de que todos devem ser igualmente livres. A liberdade de um indivíduo só pode ser restringida, portanto, quando sua não restrição implique restrição indevida da liberdade de outros. Em suma, a liberdade de um termina onde começa a do outro.

Como definir isso? Em tese, usa-se um princípio (“regra de bolso”) bastante próximo da lei áurea negativa: não fazer aos outros o que não queremos que eles nos façam. Minha liberdade estará indevidamente interferindo com a liberdade de outrem, e, portanto, poderá ser restringida, se, estando nós em posição trocada, eu concluír que está havendo interferência indevida com a minha liberdade.

Digamos que eu resolva tocar pistão, sem surdina, à meia-noite, em um prédio de apartamento sem isolamento acústico. Seria essa ação uma interferência indevida com a liberdade dos meus vizinhos? Sim, se eu concluir que, fosse o tocador de pistão o meu vizinho, sua liberdade deveria ser restringida para não perturbar a minha liberdade de dormir sossegado. Na prática, esses comportamentos acabam sendo regulamentados de forma que todos consideram justa.

O liberalismo geralmente exprime sua defesa da liberdade dos indivíduos através de uma defesa dos chamados direitos individuais. Os direitos individuais básicos que o liberalismo reconhece são quatro:

  • O direito à vida, isto é, o direito de não ser morto por terceiros, e, naturalmente, de não ter minha vida, minha saúde e minha segurança colocadas em perigo por terceiros;
  • O direito à propriedade, isto é, o direito de não ser privado por terceiros, sem o meu consentimento, daquilo que é meu (inclusive dos meus rendimentos) e, naturalmente, de não ser obrigado por terceiros a dispor do que é meu;
  • O direito à expressão, isto é, o direito de não ser impedido por terceiros de dizer o que penso e de viver como acho mais interessante ou satisfatório e, naturalmente, de não ser obrigado, por terceiros, a dizer o que não pense nem a viver como não queira;
  • O direito à busca da felicidade, isto é, o direito de não ser impedido por terceiros de fazer o que queira fazer na busca do que me interessa, satisfaz e faz feliz e, naturalmente, de não ser obrigado por terceiros a fazer o que não queira.

É preciso observar, porém, que todos esses direitos também são concebidos de forma negativa, como prova o fato de que a expressão “não ser …” aparece em todos eles (tendo sido sublinhada para destaque).

Se o indivíduo tem direito à vida, por exemplo, isso implica apenas que nenhum outro indivíduo, ou nenhuma instituição, tem direito de lhe tirar a vida, ou de colocá-la em risco. (Só ele mesmo pode tirar sua vida ou colocá-la em risco). Esse direito, sendo negativo, não implica (exceto no caso de crianças) que alguém (indivíduo, instituição, ou o próprio estado) tenha o dever de lhe dar os meios de manter-se vivo (terra, emprego, alimentação, atenção médica, educação, conhecimento, treinamento, etc.). Esses meios de subsistência é o próprio indivíduo que tem que prover para si próprio através de seu trabalho. (No caso de crianças, é responsabilidade dos pais, ou dos parentes, prover esses meios de subsistência até que as crianças possam provê-los por si próprias — nunca do estado).

O direito à propriedade implica tão apenas que ninguém tem o direito de dispor dos bens de um indivíduo sem seu consentimento. Não implica que alguém tenha o dever de prover-lhe os bens de que necessita ou que deseja: essa é uma responsabilidade exclusivamente sua.

O direito à expressão só implica que ninguém deve impedir o indivíduo de pensar o que quer que seja (de resto algo impossível), de dizer o que pensa, de viver como queira, enfim, de exprimir seu modo de pensar, ser, e viver. Esse direito, sendo negativo, não implica que alguém tenha o dever de lhe fornecer os meios de se exprimir (um forum, um palanque, um microfone, uma coluna no jornal, etc.) ou de viver como queira (roupas, moradia, meios de transporte, etc.). Esses meios é o próprio indivíduo que tem que conquistar por si mesmo.

O direito à busca da felicidade, finalmente, implica apenas que o indivíduo não deve ser impedido de buscar a felicidade na forma que ele julgar mais adequada. Esse direito não implica que alguém tenha o dever de fazê-lo feliz ou garantir que ele esteja feliz. (Se o direito anterior é de mera expressão, algo que pode ser feito através da forma em que o indivíduo se veste, se penteia, se adorna, etc., aqui o direito é de ação efetiva, que envolve trabalhar no que queira, sozinho ou com outros, criar empresas e outras instituições, etc.).

V. Liberalismo e os Chamados “Direitos Sociais”

Por aí se vê que o liberalismo não reconhece como direitos os chamados “direitos sociais” que se infiltraram na nova Constituição Brasileira, como os supostos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à seguridade social, à moradia, ao transporte, etc. Esses supostos direitos não são negativos.

Quando alguém reclama um suposto direito à educação, não está reivindicando que ninguém o impeça de buscar a educação que deseja: está pretendendo, isto sim, que alguém (geralmente o estado) assuma a sua educação (em geral, em ônus para ele).

Quando alguém reclama um suposto direito à saúde, não está reivindicando que ninguém o impeça de cuidar de sua saúde como achar melhor: está pretendendo, isto sim, que alguém (geralmente o estado) cuide da saúde dele (novamente, sem ônus).

Da mesma forma com o trabalho, a seguridade social, a moradia, o transporte, etc.

Esses chamados direitos sociais não são reconhecidos como direitos pelo liberalismo porque eles impõem a terceiros deveres que estes não assumiram livremente, e, portanto, violam a liberdade daqueles que (se forem reconhecidos esses supostos direitos) eventualmente serão obrigados a arcar com o custo do seu atendimento.

Geralmente a responsabilidade (o “dever”) de atender a esses supostos direitos é atribuída ao estado (“Saúde/Educação/Transporte/etc.: direito do cidadão, dever do estado”). Dessa forma, atribuem-se ao estado funções além daquelas que o liberalismo reconhece como legítimas, das quais o estado só se desincumbe (geralmente mal) confiscando recursos dos cidadãos, através de impostos e taxas, obrigando-os, assim, a custear atividades que podem não desejar custear e, portanto, violando a sua liberdade.

No que diz respeito à educação, pode-se perceber, por esse breve resumo, que o liberalismo é, em princípio, contrário a teses como a da obrigatoriedade da educação e a do dever do estado de oferecer educação (mesmo que não gratuita). Para o liberalismo, não é função do estado oferecer nem mesmo regulamentar a educação, que só deve ser regulada pelo mercado. Por aí se vê que o liberalismo se contrapõe a alguns dos principais movimentos e tendências da educação atual. O progressivismo e o movimento chamado da escola nova, por exemplo, embora compatíveis com o liberalismo em vários aspectos, não são liberais na medida em que encampam a luta pela escola pública.

VI. O Liberalismo e o Atendimento aos Carentes e Necessitados

Os inimigos do liberalismo geralmente procuram pintá-lo de cores negras, afirmando que os liberais são desalmados, que deixariam os pobres morrer de fome, de frio, ao desabrigo, sem atendimento médico, e que deixariam os mais necessitados sem casa, sem escolas, etc. Nada mais falso. Liberais convictos têm estado entre os maiores filântropos que este mundo já conheceu. Os liberais se preocupam, e muito, com a sorte dos pobres e dos necessitados. Os orfanatos, os asilos de velhos, as Santas Casas, as Casas de Saúde, etc., que até há bem pouco tempo eram as únicas formas de atender aos carentes e necessitados, não foram instituídos pelo estado e só recentemente passaram a contar com alguma subvenção governamental. O Exército da Salvação, no mundo inteiro, e a Legião da Boa Vontade, aqui no Brasil, são iniciativas muito conhecidas para merecer destaque. (Se essas iniciativas têm diminuído, a causa mais óbvia deve ser vista na reivindicação dos governantes de que é o estado que deve cuidar de tudo e na criação desenfreada de impostos e encargos para fazer face a essas novas funções do estado).

Fica, portanto, claro que os liberais não se opõem ao atendimento dos carentes e necessitados. Muito pelo contrário. Opõem-se, isto sim, a que o estado faça isto. E a razão é simples: quando o estado atende aos carentes e necessitados, ele é obrigado a retirar dinheiro, mediante impostos e contribuições, dos indivíduos (e das empresas) para cumprir (e mal) suas funções. Assim obriga a todos, mesmo os que não desejam contribuir (ou não desejam contribuir com as quantidades impostas), a ajudar os outros. O liberalismo, partidário da liberdade, acredita que devemos ajudar os que precisam – mas voluntariamente.

Um exemplo que chamou a atenção de muita gente ilustra bem a diferença. O governo brasileiro fez passar uma lei, há algum tempo, que tornava todo indivíduo um doador de órgãos obrigatório, na hipótese de ser declarado legalmente morto. Os liberais, sem exceção, e mesmo muitos não liberais, se opuseram a essa lei. Isso não quer dizer que os opositores da lei fossem contra a doação de órgãos: muitos eram favoráveis, mas à doação voluntária. Opunham-se, corretamente, à obrigação de doar (caso não houvesse declaração em contrário). O certo teria sido a medida oposta, já em vigência por omissão: ninguém é doador – a menos que tenha expressamente declarado essa intenção, ou, na ausência, a menos que a família autorize.

A ajuda feita aos carentes e necessitados pela iniciativa privada geralmente é preferida, pela população, à suposta ajuda do governo. Ninguém que possa estudar na Fundação Bradesco prefere estudar na escola pública – embora em ambos os casos a pessoa nada pague.

VII. O Liberalismo e a Questão da Segurança

Mas se liberalismo defende que o atendimento a carentes e necessitados deve ser feito pela iniciativa privada, porque não a segurança interna e externa? Por que atribuir ao estado essas duas funções?

Alguns críticos do liberalismo têm procurado demonstrar que há uma incongruência na posição do liberal. Para ser coerente, afirmam, o liberal não deveria defender a tese de que é função do estado prover segurança aos seus cidadãos: deveria, isto sim, defender a tese de que também a segurança pode e deve ser prestada através de agentes privados.

A aceitação dessa sugestão acabaria reduzindo o liberalismo ao anarquismo. Não resta dúvida de que a tese é, de certo modo, atraente para o liberal. Todo liberal suspeita do estado, e, portanto, se conseguisse se convencer de que até mesmo o estado mínimo pode ser dispensado, o faria – e se tornaria um anarquista.

Para o liberal, os anarquistas, de um lado, e, de outro lado, em menor ou maior grau, os social-democratas e socialistas, têm algo em comum: a confiança na bondade natural do ser humano. Os anarquistas acham que todo ser humano possui essa inclinação natural para o bem, e que, deixados sós, sem estado, os seres humanos conseguirão resolver suas divergências pacificamente, sem recurso à força. Os social-democratas e os socialistas não acreditam na bondade natural de todos: acreditam apenas que aqueles no poder são dotados de inclinações altruístas, capazes de agir em benefício alheio. Por isso, confiam-lhes seu dinheiro (recolhido por impostos e taxas) para que os burocratas do estado previdenciário ou socialista o distribuam pelos carentes (sem embolsar nada).

O liberal não acredita na bondade natural do ser humano. Acredita, sim, que, para que os seres humanos vivam em sociedade, é necessário que se submetam a normas consensualmente aceitas (leis) que viabilizem a vida em sociedade e que algum órgão detenha o monopólio da iniciação do uso da força para prevenir e punir a violação dessas normas. O liberal acha que esse órgão que tem o monopólio da iniciação do uso da força não pode ser privado, porque, se o fosse, poderia haver vários deles, concorrendo entre si, e o que teríamos é uma série de milícias particulares que poderiam até mesmo chegar ao confronto. Por isso o liberal acredita que o estado deve existir, mas ser mínimo: deve prover segurança (função judicial, policial e militar) e nada mais. Sem segurança, não há convivência social livre – e é a liberdade que o liberal preza acima de tudo.

Por isso, é errado atribuir ao liberalismo a tese de que o estado é um mal necessário (como até mesmo um grande liberal como Roberto Campos de vez em quando faz). Para o liberal o estado, desde que corretamente concebido e dimensionado, é um bem.

VIII. A Garantia do Liberalismo

O liberalismo, como sistema político, requer uma garantia. Se o estado não tiver um freio, algo que eficaz e eficientemente o limite, sua tendência é acrescentar funções e, conseqüentemente, crescer até o ponto em que não tem mais nenhuma semelhança com o estado mínimo dos liberais. A grande maioria dos pensadores liberais vê essa garantia do liberalismo, que freia o crescimento do estado, numa constituição liberal.

A Constituição Brasileira está longe de ser liberal – talvez seja a mais anti-liberal de todas as constituições vigentes hoje em dia. A Constituição Americana é o melhor modelo de constituição liberal que temos – e mesmo ela não conseguiu impedir que o estado americano ficasse tão inflado a ponto de se tornar irreconhecível como estado liberal.

O que torna a Constituição Americana peculiar é que grande parte dela (a chamada “Carta de Direitos” [“Bill of Rights”], que apareceu inicialmente na Constituição do Estado de Virginia, redigida em 1776) é gasta limitando os poderes do estado diante do indivíduo – isto é, especificando um conjunto de áreas em que o estado (no caso, o governo) está terminantemente proibido de legislar. Assim, o Congresso Americano se vê impossibilitado de exercer sua fúria legislativa em inúmeras áreas. Se legislar, a legislação provavelmente será declarada inconstitucional com presteza pelo Judiciário americano.

Mas não pode o Congresso Americano alterar a Constituição? O processo de alteração constitucional nos Estados Unidos é extremamente complicado. A Constituição Americana levou cerca de 10 anos (de 1781 a 1791) para ser formulada, o período mais importante sendo o da Convenção Constitucional de Filadélfia (que durou quatro meses, de Maio a Setembro de 1787). Os quatro anos restantes, de 1787 a 1791, foram gastos tentando obter a ratificação dos 13 estados, o que só aconteceu em 1791 (embora a Constituição, em si, tenha entrado em vigor em 1789, quando ainda faltava a ratificação de North Carolina (ratificou em 1790) e Rhode Island (ratificou em 1791).

Para facilitar a ratificação dos estados, a Constituição aprovada pelo Congresso já veio com 10 emendas aprovadas pelo Congresso em Setembro de 1789 – que caracterizam a chamada “Carta de Direitos”. Todas elas foram aprovadas por pelo menos três quartos dos estados até Dezembro de 1791.

Uma pequena alteração na Constituição Americana pode levar anos e até décadas para entrar em vigor, porque, para ser considerada, a proposta de emenda constitucional deve vir referendada por dois terços dos estados ou por dois terços dos votos das duas casas do Congresso. Independentemente da forma em que é proposta, a emenda constitucional, caso aceita pelo Congresso, tem que ser referendada pelos legislativos ou por convenções constitucionais de três quartos dos estados americanos para entrar em vigor. Assim, a menos que haja absoluto consenso sobre a medida, é extremamente difícil alterar a Constituição Americana. Ela é a “lei acima da lei”, a norma através da qual as outras leis são julgadas, o conjunto de princípios básicos que nem o governo consegue alterar com facilidade.

E a Constituição Americana é relativamente simples (especialmente quando comparada com a nossa): tem apenas sete artigos, quando não se incluem as emendas, que, em papel impresso atual, compreendem cerca de onze páginas. Todas as emendas não compreendem mais do que outro tanto (as dez emendas originais compreendendo apenas duas páginas). Depois de um breve preâmbulo (“We the people…”), o primeiro artigo trata do Congresso, o segundo do Executivo, o terceiro do Judiciário, o quarto dos estados da federação, o quinto do procedimento a ser adotado no caso de emendas, o sexto de disposições gerais e transitórias e o sétimo do processo de ratificação da própria Constituição.

IX. O Liberalismo na Constituição Americana

A chamada “Carta de Direitos” da Constituição Americana (aprovada pelo Congresso em 25 de setembro de 1789 e ratificada pelos estados de 1789 a 1791) proibe o Congresso Americano de fazer leis nas seguintes áreas:

  • Criando uma religião oficial (Artigo I)
  • Proibindo o exercício da religião (Artigo I)
  • Limitando a liberdade de opnião e da imprensa (Artigo I)
  • Limitando o direito de o povo pacificamente se reunir (Artigo I)
  • Limitando o direito de o povo requerer ao governo a correção de erros (“redress of grievances”) (Artigo I)
  • Limitando o direito de o povo portar armas (Artigo II).

(O número dos artigos é o número não do corpo da constituição, mas do conjunto de emendas, em que os artigos começam a ser numerados a partir do primeiro, novamente.)

Os demais artigos garantem que:

  • Em tempo de paz, nenhum soldado será hospedado por nenhum indivíduo, exceto voluntariamente, prevendo que o mesmo se aplica em tempo de guerra, mas em forma que será regulamentada por lei (Artigo III).
  • O direito de a pessoa, as casas, os papéis e as propriedades dos indivíduos estarem seguros contra buscas e apreensões não razoáveis não será violado, devendo qualquer busca e apreensão ser precedida da competente autorização judicial, que se baseará em causa provável, garantida por juramento ou afirmação, e que especificará claramente o local em que se fará a busca e as pessoas ou objetos procurados (Artigo IV).
  • Exceto nas forças armadas, nenhum indivíduo terá que responder por crime capital ou infame a menos que seja indiciado por um “grande juri” (“grand jury”); ninguém será julgado pela mesma ofensa duas vezes; ninguém será forçado, em processo criminal, a testemunhar contra si próprio; ninguém será privado da vida, da liberdade ou da propriedade sem o competente processo judicial; nenhuma propriedade privada será tomada para uso público sem compensação justa (Artigo V).
  • Em processo criminal, o acusado terá o direito de ser julgado publicamente e com rapidez, através de juri, tendo o direito de confrontar as testemunhas contra ele e de intimar testemunhas em seu favor, sendo sempre auxiliado por advogado (Artigo VI).
  • Em processos civis cujo valor ultrapasse 20 dólares fica garantido o direito de julgamento por juri, direito esse que nenhum legislativo poderá restringir (Artigo VII).
  • Não se exigirão fianças exageradas nem se aplicarão multas excessivas nem punição cruel e incomum (Artigo VIII).
  • A enumeração pela Constituição destes direitos não implica inexistência ou restrição de outros direitos que o povo possa ter (Artigo IX).
  • Os poderes não atribuídos ao governo federal pela constituição, nem por ela proibidos aos estados, ficam reservados aos estados ou ao povo em geral (Artigo X).

Excluindo a “Carta de Direitos”, que foi aprovada junto com o texto do corpo da Constituição, apenas dezessete emendas foram feitas ao texto da Constituição Americana (e uma foi para repelir uma emenda anteriormente feita, proibindo a venda de bebidas alcoólicas).

X. O Liberalismo na Revolução Francesa

A chamada “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” da Revolução Francesa foi aprovada pela Assembléia Nacional nos meses de agosto a outubro de 1789 – ou seja, no mesmo tempo em que era aprovada a “Carta de Direitos” pelo Congresso Americano.

Ela faz as seguintes afirmações e assegura os seguintes direitos (tudo transcrito de forma resumida):

  • Os homens nascem e permanecem livres e iguais em seus direitos (Artigo I).
  • O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem, a saber, o direito à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão (Artigo II).
  • A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não perturba (“nuit”) a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada um não tem limites, exceto os impostos pela garantia de que todos tenham iguais direitos (Artigo IV).
  • A lei só tem o direito de proibir ações perturbatórias (“nuisables”) da sociedade, e tudo o que não for proibido pela lei não pode ser impedido, nem pode ser obrigado aquilo que a lei não ordena (Artigo V).
  • Todos os cidadãos têm o direito de, diretamente ou por seus representantes, participar da elaboração das leis e são iguais aos olhos da lei (Artigo VI).
  • Ninguém pode ser acusado, preso ou detido exceto nos casos previstos em lei e na forma por ela determinada, não cabendo direito de resistência, entretanto, quando tudo se processar na forma da lei (Artigo VII).
  • A lei deve estabelecer apenas as penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido exceto em função de uma lei homologada anteriormente ao presumido delito e legalmente aplicada (Artigo VIII).
  • Há que se presumir inocente todo indivíduo até que seja declarado culpado na forma da lei (Artigo IX).
  • Ninguém deve ser incomodado (“inquieté”) por suas opiniões, mesmo na área religiosa, desde que sua expressão não perturbe (“trouble”) a ordem pública, na forma estabelecida em lei (Artigo X).
  • A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem, podendo todo cidadão falar, escrever e imprimir livremente, respondendo, porém, por eventuais abusos na forma da lei (Artigo XI).
  • Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, exceto em caso de necessidade pública, constatada em lei, e mediante retribuição justa e antecipada (“préalable”) (Artigo XVII).

Como se pode facilmente constatar, há uma semelhança muito grande entre a “Carta de Direitos” da Constituição Americana e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” promulgada pela Revolução Francesa. Em ambos os casos os direitos são negativos. Os dois documentos podem, portanto, ser qualificados de plenamente liberais.

XI. A “Declaração Universal dos Direitos Humanos” da ONU

Um pouco mais de cinqüenta anos atrás, no dia 10 de Dezembro de 1948 (ou seja, cem anos depois da publicação do Manifesto Comunista) a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, que consagra os seguintes direitos (aqui transcritos de forma resumida e segundo a linguagem da tradução portuguesa [de Portugal] disponibilizada no site da ONU na Internet):

  • Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. (Artigo 1º).
  • Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. (Artigo 2º).
  • Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. (Artigo 3º).
  • Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão. (Artigo 4º).
  • Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. (Artigo 5º).
  • Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei. Todos têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. (Artigo 7º).
  • Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado. (Artigo 9º).
  • Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida. (Artigo 10).
  • Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas. (Artigo 11).
  • Ninguém será condenado por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam acto delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o acto delituoso foi cometido. (Artigo 11).
  • Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei. (Artigo 12).
  • Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado. (Artigo 13).
  • Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país. (Artigo 14).
  • Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países. (Artigo 14).
  • Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade e ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade. (Artigo 15).
  • A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos. (Artigo 16).
  • Toda a pessoa, individual ou colectiva, tem direito à propriedade. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade. (Artigo 17).
  • Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. (Artigo 18).
  • Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão. (Artigo 19).
  • Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. (Artigo 20).
  • Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto. (Artigo 21).

Até aqui a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” é razoavelmente liberal, apesar de bem mais verbosa do que os documentos anteriormente mencionados. A partir do Artigo 22, entretanto, a Declaração passa a ser social-democrata, enfatizando os chamados “direitos econômicos, sociais e culturais”, que impõem obrigações positivas ao estado ou aos membros da sociedade:

  • Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país. (Artigo 22).
  • Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de protecção social. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses. (Artigo 23).
  • Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e as férias periódicas pagas. (Artigo 24).
  • Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma protecção social. (Artigo 25).
  • Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. (Artigo 26)
  • Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam. Todos têm direito à protecção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria. (Artigo 27).
  • Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efectivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente Declaração. (Artigo 28).

XII. A Atual Constituição Brasileira

O Título II da Constituição Brasileira de 1988 trata “Dos Direitos e das Garantias Fundamentais”. Esse Título tem cinco capítulos, dos quais os mais importantes são o primeiro e o segundo. O Capítulo I, que se limita ao Artigo 5º, trata “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”. O Capítulo II, que compreende os Artigo 6º a 11, trata “Dos Direitos Sociais”. (Os outros três capítulos tratam, respectivamente, “Da Nacionalidade”, “Dos Direitos Políticos”, e “Dos Partidos Políticos”.

Como o texto da Constituição Brasileira é facilmente encontrável, não vou citá-lo aqui, exceto pelo caput do Artigo 5º, que é o seguinte:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
. . .”

Essa declaração seria plenamente liberal se não fosse a expressão “à igualdade”, inserida ali no meio. A razão pela qual essa inserção precisou ser feita foi para fundamentar, mais adiante, a concessão dos direitos sociais, não liberais.

XIII. As Linhas de Defesa do Liberalismo

Embora uma defesa plena do liberalismo precise ficar para um outro artigo, por limitações de espaço, é necessário esboçar aqui as linhas em que se fará essa defesa.

Pareceria ser desnecessário defender uma filosofia política que erige a liberdade individual como o bem maior. Tendo escolha, todos os indivíduos preferem a liberdade à servidão, mais liberdade a menos liberdade. A prova disso está no fato de que nenhum país não socialista jamais precisou fechar suas fronteiras para obrigar os seus cidadãos a permanecer no regime. Na verdade, países de tendência liberal (mesmo que seu sistema hoje esteja longe dos princípios liberais clássicos aqui delineados) freqüentemente precisam fechar parcialmente suas fronteiras para controlar o ingresso de pessoas de outros países. Enquanto isso, os países socialistas da antiga Cortina de Ferro criavam muros para impedir que seus cidadãos fugissem. Diante disso, pode parecer que o liberalismo não precisa de defesa.

Essa impressão é errônea. Arma-se um ataque de dimensões gigantescas contra os princípios liberais – só que, fracassado o socialismo, o ataque agora vem mascarado de democrático, escondendo-se em princípios social-democratas – às vezes erroneamente chamados de neo-liberais. Para se chegar ao liberalismo não basta privatizar empresas estatais: é preciso redefinir drasticamente as funções do estado, reduzindo-as às funções essenciais que os liberais clássicos defendiam.

Aqui no Brasil o estado, reconhecendo o seu fracasso, está vendendo sua participação em empresas siderúrgicas, energéticas, de telecomunicações e de transportes. Mas ainda mantém o direito de controlar essas áreas e as empresas privadas que estão adquirindo o que antes era estatal. As rodovias são cedidas em regime de concessão. Na área de telecomunicações a ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações) ainda mantém atribuições totalmente incompatíveis com a total liberalização do setor. O mesmo é verdade nas outras áreas em que tem havido privatização. Não basta privatizar: é preciso sair do caminho, não atrapalhar, não interferir. Não é possível comer o bolo e continuar a ter o bolo: um ou outro há que ceder.

Além disso, na área social, em que a atuação do estado revela ainda maior fracasso do que na área econômico-industrial, nada foi feito em termos de privatização. Temos que privatizar as universidades estatais, a educação fundamental e média, o sistema de saúde, o sistema previdenciário, o sistema de transportes, a área de energia e de infraestrutura, limpar a área trabalhista do entulho paternalista desses últimos cinqüenta anos, retirar das mãos do governo o direito de regular ou subsidiar cultura, esportes, artes, tornar a moeda nacional plenamente conversível, abrir os portos para entrada e saída de pessoas e produtos – de forma gradativa mas eventualmente total. Em nossa sociedade global não deve haver, entre os países, empecilhos para a entrada e saída de pessoas e produtos – certamente não mais do que os que eventualmente existam entre dois estados de uma mesma federação.

Quando o estado for realmente enxugado, a reforma do sistema tributário, que deve ser feita simultaneamente, deixará tanto mais dinheiro nas mãos das pessoas e das empresas que este país experimentará uma onda de crescimento econômico nunca antes vista.

NOTAS:

[1]   NOTA ACRESCENTADA EM 18/03/2018, quando da publicação deste artigo no blog do autor, intitulado Liberal Space, na URL https://liberal.space. A primeira versão deste artigo foi escrita ao longo dos anos 1996-1997. No ano de 1997 ele foi apresentado e aceito para publicação pela revista Pro-Posições, editada pela Faculdade de Educação da UNICAMP, instituição da qual eu tive o privilégio de ser Diretor, primeiro Associado, depois Titular, em seus primórdios, de 1976 a 1984, em dois mandatos de quatro anos. Depois de cerca de quatro anos, em Junho de 2001, ele foi publicado no vol. 8, nº 2 [23] da revista, pp. 43-57, mas com a data de Março de 1999. Uma versão bastante ampliada e aprofundada deste artigo foi publicada no livro editado por José Claudinei Lombardi e José Luís Sanfelice, Liberalismo e Educação em Debate (Autores Associados, Campinas, 2007), pp.1-60, com o título “O Liberalismo na Política, Economia e Sociedade e suas Implicações para a Educação: Uma Defesa”. Como o título artigo indica, aqui não se trata mais de um “Preâmbulo a uma Defesa do Liberalismo”, mas, sim, da própria defesa. O novo artigo está disponível em meu blog Liberal Space na seguinte URL: https://liberal.space/2018/03/18/o-liberalismo-na-politica-economia-e-sociedade-e-suas-implicacoes-para-a-educacao-uma-defesa/.

[2]   Compare-se, neste contexto, meu artigo “Justiça Social, Igualitarismo e Inveja: A Propósito do Livro de Gonzalo Fernández de la Mora”, publicado nessa mesma revista Pro-Posições, Vol. IV, Março de 1991, pp.26.40. [COMPLEMENTO ACRESCENTADO EM 2018: Há uma versão revisada e mais ampla desse artigo neste meu blog Liberal Space, URL https://liberal.space/2007/12/08/justica-social-igualitarismo-e-inveja-parte-1/ e URL https://liberal.space/2007/12/08/justica-social-igualitarismo-e-inveja-parte-2/.]

Transcrito neste blog em 18 de Março de 2018