Free flow of consciousness

São 20h, horário de Tóquio — 8h, horáro do Brasil. O dia é 15/4, terça-feira, o ano é 2008, em ambos os lugares. Estou no vôo UA 884 da United, que me leva de Tóquio para Chicago.

Desde criança me fascino com o fato de que o Brasil (Leste – São Paulo, Rio) e o Japão estão exatamente doze fusos horários a parte. São Paulo fica três horas atrás do horário do meridiano de Greenwich — ou GMT -03, GMT querendo dizer Greenwich Meridian Time. Tóquio fica nove horas na frente do horário do meridiano de Greenwich — ou GMT +09. Ao todo, doze fusos horários separam as duas cidades. Sempre achei curioso que, quando era meio-dia em São Paulo, já fosse meia-noite em Tóquio — ou seja, que quando estivéssemos almoçando em Santo André (cidade em que cresci, na Grande São Paulo) os toquianos já estivessem entrando num novo dia, provavelmente em pleno sono. No meu imaginário infantil a idéia se alimentava de que os japoneses eram o oposto de nós — idéia que, em seu extremo, resultava na imagem de que, se a gente cavasse um buraco suficientemente fundo na superfície da Terra na região de São Paulo, iria acabar saindo, no lado oposto, na região de Tóquio — imagem que não levava em conta o fato de que nós estávamos no Hemisfério Sul, Tóquio no Hemisfério Norte. Para o experimento dar certo o buraco teria de ser furado meio na diagonal…

Saí de Tóquio, em direção a Chicago, às 18h de hoje, 15/4 Vamos estar no ar por aproximadamente doze horas, e vou chegar a Chicago por volta das 16h do mesmo dia — duas horas antes do horário em que saí de Tóquio, porque Chicago está 14 horas atrás de Tóquio… Esse é o tipo de coisa que me fascina. Ou seja, vamos estar no ar durante doze horas, apenas para tirar parte da diferença, em fusos horários, que separa Chicago de Tóquio. Se estivéssemos indo de Tóquio para São Paulo, direto, e a viagem levasse as mesmas doze horas, chegaríamos exatamente no mesmo horário em que havíamos saído… Fascinante. Para onde teria ido o tempo que evaporou?

Saí de Hanói — que fica duas horas atrás de Tóquio — às 23h30 de ontem, 14/4, segunda-feira, em direção a Seoul, que está no mesmo fuso horário de Tóquio. O vôo era da Asiana, empresa aérea coreana que faz parte do sistema Star Alliance, liderado pela United. O embarque em Hanói  foi tranqüilo, porque com os cartões especiais de Frequent Flyer da United fomos direto para a frente da fila, o Les Foltos e eu. Depois de fazermos o check-in, ficamos na Sala VIP da Asiana em Hanói, até o horário de embarque. Pobrinha a sala VIP deles — mas tinha computadores e Internet de graça para quem quisesse usar.

A propósito, li na Newsweek desta semana (Edição Internacional com data de 14/4) que, enquanto os governos de alguns países (como a Arábia Saudita) censuram sites pornográficos da Internet, impedindo os seus cidadãos de visualizarem material com conteúdo sexual, digamos, explícito, o governo comunista do Vietnam censura sites cujo conteúdo político possa interferir com os seus propósitos. Aliás, vale a pena ler o artigo inteiro, que tem o curioso título de “Repression 2.0”. A tese principal é de que, nos tempos da Internet tradicional (a Internet 1.0), a repressão era menos sofisticada: sites eram simplesmente bloqueados. Às vezes extensões “top level” inteiras eram bloqueadas. Lembro-me de que, uma vez, quando estive em Perth, na Austrália, dando uma série de palestras a convite da Associação Australiana de Escolas Particulares, fiquei hospedado na Saint Hilda’s Anglican School for Girls, uma escola chiquérrima que tem um excelente apartamente para (professores) visitantes. Descobri, muito a contragosto, que, de dentro da escola, a extensão “top level” .br inteira era censurada para as alunas (não para os professores, descobri depois). Qualquer site que eu digitasse que terminasse em .br, como o site do UOL, por exemplo, me trazia uma mensagem na tela de que o acesso àquele site estava proibido. Só no dia seguinte, depois que eu reclamei, me deram uma senha de professor, que não tinha a restrição. Ou seja, professor podia até ver as meninas seminuas do Paparazzi — mas as aluninhas da escola, mulheres como as outras, não… Mas, voltando ao assunto do artigo da Newsweek. Na Internet 2.0 (a Internet dos webmails, dos sites de relacionamento, como o Orkut, é mais difícil fazer esse tipo de censura “no atacado”. O problema é sintonizar o filtro: restrinja-se demais o filtro e se impede o usuário de ver coisas perfeitamente inócuas até do ponto de vista do censor (como ler a Folha de S. Paulo de dentro de Saint Hulda’s); flexibilize-se demais o filtro e ele vai permitir que conteúdos considerados impróprios sejam exibidos. Censurar o Orkut inteiro porque há algum material impróprio lá dentro? Isso pode impedir os usuários de fazer bom uso do Orkut. Não censurar o Orkut? Os usuários, neste caso, poderão a aceder a materiais — de natureza sexual ou política — que o censor considera profundamente inconvenientes. A solução que os novos censores acharam, segundo o artigo da Newsweek, foi agir de forma mais sutil, não “no atacado”. Os censores hoje dão a impressão (nos países que praticam esse tipo de censura) de que eles lêem, ou pelo menos gravam, tudo o que se passa na Internet, de modo que se você entrar num site considerado impróprio, mais cedo ou mais tarde eles vão descobrir. Se os usuários acharem que os censores de fato fazem isso, eles nem precisam fazê-lo: os próprios usuários se censuram!!! Terrível, não? É COMO SE os censores governamentais — ou, o que seria equivalente, os pais, ou o cônjuge, ou os próprios filhos — estivessem sempre atrás da gente, observando, por cima do nosso ombro, o que a gente faz, escreve, lê na Internet… Quando a gente está absolutamente seguro de que ninguém está olhando, a gente faz coisas que nunca faria quando sabe — ou suspeita — que alguém está nos observando… É esse o princípio da “Repression 2.0”: dar a impressão de que os censores do governo, os censores da empresa, os censores do lar estão por todo lado e que tudo o que você faz é devidamente observado, classificado, registrado e arquivado para uso futuro. Um dia, quando você tiver algum problema com o governo (ou com seu chefe) ele pode lembrá-lo de que, você, sessentão, pai e avô, respeitado na comunidade, etc., andou bisbilhotando umas fotinhos inocentes da Britney Spears sem calcinha… Ou andou demonstrando interesse num vídeo do Alexandre Frota (antes da conversão) ou da Rita Cadillac. O princípio básico é o de que não é nem necessário montar toda uma estrutura para fazer esse tipo de censura: basta convencer os “súditos” de que você a possui — e eles próprios se encarregam de se censurar. O seu próprio superego faz o trabalho sujo dos censores.

Nessa época de debate sobre a China, o Tibet, os Jogos Olímpicos, consta que a governo chinês, com a colaboração das companhias de telefonia celular, de vez em quando envia uma mensagem sem remetente, totalmente anônima, a todos os usuários dos telefones, dizendo coisas como “Obedeça a lei”, “Siga as regras”… Está feito o serviço. O pobre usuário, que provavelmente aqui ou ali desobedeceu uma leizinha idiota, ou quebrou uma regrinha imbecil, fica matutando: os fdps sabem que eu fiz isso, por isso estão me mandando esse recado. E, assim, da vez seguinte em que a oportunidade se apresentar, ele não faz: seu superego o censura…

Mas voltemos à minha viagem de volta para o Brasil. O bom filho à casa torna.

O vôo de Hanói a Seoul levou apenas três horas e meia (na ida foram quase cinco horas) — e chegamos a Seoul às 5h (não se esqueçam de que Seoul está duas horas na frente de Hanói). Em Seoul, fomos direto para a Sala VIP da Asiana,  A sala estava quase vazia quando ali chegamos, Les Foltos e eu. Eu belisquei alguma coisinha, para servir de acompanhamento para um café do tipo Latte. Mas o Les, que, na minha opinião, está totalmente orientalizado, tomou chá com sopa de macarrão e verduras cozidas — isso antes das seis da manhã, pode? Entre as verduras cozidas havia repolho, couve-flor e outras coisas que só os orientais conseguem comer a essas horas da manhã. Ficamos na Sala VIP perto de seis horas, trabalhando nos nossos computadores. A sala tem uma rede wireless razoável — e gratuita. Um pouco antes das 11h rumamos para o portão 45 do interminável aeroporto de Incheon (Incheon está para Seoul como Guarulhos para São Paulo, em termos de localização dos respectivos aeroportos), de onde sairia o vôo da United para Tóquio, porque em Hanói só nos deram o cartão de embarque até Seoul: os demais cartões, disseram-nos, deveríamos obtê-los em Seoul (e de fato os obtivemos).

Como isso aqui é “free flow of consciousness”, é esquisito que o principal aeroporto de São Paulo tenha, como código internacional de identificação, GRU. Essas três letrinhas vêm, naturalmente, de Guarulhos (como CGH vem de Congonhas e VCP de Viracopos). Minha bagagem está etiquetada para GRU. Na verdade, a etiqueta indica que saí de HAN (Hanói), passei por ICN (Incheon / Seoul), passei por NRT (Narita / Tóquio) e vou passar por ORD (Ohare / Chicago, que tem como código ORD porque o aeroporto, quando era um mero campinho de aviação, no meio de uma plantação de hortaliças, se chamada Orchard…), antes de chegar a GRU.

De Seoul a Tóquio o vôo foi de mais ou menos duas horas e meia. Dormi a maior parte do tempo (só tirando um tempinho para comer uma salada).

Em Tóquio, onde chegamos por volta das 14h30, mais espera. Ficamos no Red Carpet Club da United. O Les saiu para Seattle às 16h e eu para Chicago às 18h.

O meu vôo de Tóquio para Chicago saiu duas horas depois de um outro vôo da United com o mesmo destino. Resultado: o meu vôo está totalmente vazio. Na classe Executiva deste Boeing 777 há 45 lugares, e apenas dez passageiros — cada um dono de um pequeno feudo. Pude deixar minha maleta de mão em cima da poltrona do lado, posso pegar o computador quando quiser, uma beleza. 

Tomei duas taças de vinho e comi uma salada. Dispensei o filé mignon que seria o prato principal: fui direto para a sobremesa, um bolo gelado de chocolate delicioso, acompanhado de Vinho do Porto.

E agora estou aqui, batendo papo — ou, como diz o caipira do interior de São Paulo, jogando prosa fora… Como disse, ninguém está sentado do meu lado, de modo que posso esparramar minha tralha por duas poltronas enormes. Ali estão, além da maleta do computador, a Newsweek e o Time (com o Papa na capa), fones de ouvido, kit com escova de dentes, etc.

Com todo o vinho tomado, estou com sono. Vou guardar o computador e depois volto.

Pronto, estou de volta. Dentro de duas horas chegaremos a Chicago. Dormi bastante e bem, ouvindo dois CDs de hinos religiosos que povoaram a minha infância. O nome da coleção de dois CDs é “Thomas Kincade’s 32 Country Gospel Classics”. Uma beleza, para quem gosta do gênero, como eu. O cognitivo (a cabeça) faz a gente deixar de ser religioso, mas o emocional (o coração) mantém, escondidinho em algum lugar recôndito, resquícios do tempo em que a gente foi religioso, e a gente continua a gostar de hinos cujas letras são simplesmente horrorosas. Ou seja, o coração tem seus cantinhos que a própria razão desconhece — ou simplesmente ignora, por considerá-los inofensivos.

A aeromoça já veio trazer aquelas toalhinhas quentes que servem para a gente fingir que lava a cara quando acorda num vôo longo… Dispensei o café da manhã (só aceitei um suco de tomate gelado) — não estou com fome. Além disso, ficarei na Sala VIP da United, onde há comida boa, e, depois, pegarei o vôo para o Brasil, em que haverá um bom jantar. Isto significa que devemos chegar mais cedo do que previsto em Chicago.

No momento ouço “Near the Cross” (“Junto à Cruz”, em Português), cantado por Eddie Arnold. É curioso como quase todo cantor americano mais convencional (isto é, excluídos os roqueiros da pesada) que se preza mais cedo ou mais tarde grava um disco de hinos — ou, no mínimo, de músicas de Natal. Elvis Presley, Frank Sinatra, Perri Como, George Whitakker, Doris Day, Barbara Streisand, Anne Murray (que é canadense), you name it, todos gravaram. Os do Presley são maravilhosos: creio que os tenha todos.

Estou cansado. Por mais confortável que seja a classe Executiva da United, uma viagem que mantém você no ar por cerca de 32 horas, ainda que em quatro segmentos, especialmente para quem vai fazer 65 anos esse ano.

Por falar nisso, vou comentar rapidamente o sistema que tenho (em Excel) para me lembrar de tomar todos os meus remédios na hora certa. Tomo cinco remédios de manhã, dois na hora do almoço, e cinco de novo na hora do jantar. Doze comprimidos, ao todo. Quando viajo e atravesso vários fusos horários, tenho de fazer uma tabelinha que me diz quando devo tomar cada conjunto de remédios. Há várias soluções para o problema, mas optei por manter o horário do Brasil. Como a maioria dos países da Ásia está cerca de 12 horas, mais ou menos duas, do Brasil, simplesmente inverto a hora de tomar os remédios: os que tomaria na hora do café da manhã tomo no jantar; os que tomaria na hora do almoço, tomo antes de ir dormir; e os que tomaria na hora do jantar, tomo ao me levantar. Funciona bem. O problema maior é a hora de tomar os remédios em trânsito, quando estou indo de um lugar para outro. Tomei há pouco os remédios da hora do almoço — porque já estou operando no fuso horário de Chicago, que, no momento, está só duas horas atrás do de São Paulo. Um coisinha dessas dá trabalho, quando você sai da rotina.

Antes de terminar, lembrei-me de uma notícia curiosa que li no International Herald Tribune, Edição Ásia, enquanto estava em Seoul. Em algum lugar do mundo em que mudanças de sexo são legalmente permitidas, uma mulher, que nunca havia se sentido confortável no seu corpo de mulher, conseguiu permissão para mudar legalmente de sexo e sofrer os procedimentos médicos, cirúrgicos e medicamentosos, necessários para adequar seu corpo à sua nova identidade legal. Ou seja, legalmente virou homem, mudando de nome e de sexo (que os politicamente corretos preferem chamar de gênero, porque não gostam de falar de sexo). Tomou hormônios, cresceu barba e bigode, removeu cirurgicamente os seios, etc. E, como de certo modo pareceria inevitável, se casou (legalmente — estamos falando de um país prafrentex) com uma mulher. Passado algum tempo, quiseram ter um filho. A lei e a medicina podem ir até certo ponto, mas não conseguem (hoje) fazer com que um homem construído de um corpo de mulher consiga engravidar a esposa (Dani: uso o termo aqui apenas por falta de maiores recursos lingüísticos, dado o contexto). Resultado, optaram por comprar esperma de um banco de esperma para que a esposa pudesse ser impregnada artificialmente. Na hora de fazer isso, descobriram que ela tinha um problema e não poderia ficar grávida. Solução? Foram verificar se o corpo do marido, a despeito da barba e do bigode, e da falta dos seios, ainda teria condições de ser impregnado artificialmente — e tinha, pois o útero não havia sido removido e, aparentemente, estava em pleno funcionamento. Resultado: hoje quem passar pela cidadezinha onde mora o casal pode ser que veja um distinto senhor, de terno, barba e bigode, tremendamente grávido, ao lado de sua mulher magrinha e esbelta. Ironias do mundo moderno.

Estamos chegando.

ET: Chego aos Estados Unidos ao mesmo tempo que o Papa.

No ar, entre Tóquio e Chicago, 15 de Abril de 2008

3 responses

  1. Muito legal seu "diário a bordo", tio! Por curiosidade, você acessa a internet de dentro de aviões já?Eu conheço Eddie Arnold. É bem legal. Mas tenho pouca coisa dele… Você comenta que os cantores convencionais norte americanos que se prezam acabam cantando música religiosa ou hinos de Natal. Havia uma de rock pesado nos EUA chamada Savatage que mudou de som totalmente para uma mistura de rock mais leve com música lcassiva. O som de "antes" deles não era aquela grande coisa (como sempre foi o Elvis), mas hoje eles são bem bacanas, e só gravam música de Natal. Tem um clipe deles aqui: http://www.youtube.com/watch?v=jA9DmSfufSQNão sabia que você tomava tantos remédios, tio… são para o que?Eu já estou com uma lente "telezoom" fantástica. Vamos marcar um dia para "capturar" umas corujas?Tenha um bom retorno! Abração!-Vitor.

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