Comentário sobre a Palestra do Prof. Luiz Carlos Santana Acerca do Liberalismo

1. Apresentação

O presente artigo, “Comentário sobre a Palestra do Prof. Luiz Carlos Santana Acerca do Liberalismo”, é, de certo modo, uma continuação do meu artigo anterior.

O artigo anterior, no caso, para evitar confusão, é “Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo“, também publicado aqui neste blog Liberal Space na URL https://liberal.space/2018/03/19/uma-discussao-academica-meio-acalorada-sobre-o-liberalismo/  .

Meu artigo original, “O Liberalismo na Política, Economia e Sociedade e suas Implicações para a Educação: Uma Defesa“, também foi publicado aqui neste blog Liberal Space em 18/03/2018 na URL https://liberal.space/2018/03/18/o-liberalismo-na-politica-economia-e-sociedade-e-suas-implicacoes-para-a-educacao-uma-defesa/, Embora só publicado aqui no blog agora, ele foi inicialmente apresentado em um conjunto de seminários organizado pelo Grupo de Pesquisa HISTEDBR (História da Educação Brasileira), da Faculdade de Educação da UNICAMP, no ano de 2001 (ou seja: dezessete anos atrás), sobre o tema Liberalismo e Educação. Meu seminário foi o primeiro a ser apresentado na série. Em datas subsequentes vários outros seminários foram realizados, outros professores, em geral de fora da UNICAMP, apresentando seus trabalhos.

Oportunamente, os Professores José Claudinei Lombardi e José Luís Sanfelice, do HISTEDBR, organizadores do conjunto de seminários, resolveram publicar em forma de livro as diversas contribuições submetidas nos diversos encontros e me pediram para revisar o texto inicial de minha apresentação, incorporando, tanto quanto possível, questões levantadas na discussão oral que se seguiu. O resultado da revisão foi a texto que agora, em 18/03/2018, publiquei no meu blog Liberal Space, cujo link é fornecido no início do parágrafo anterior. Esse texto é basicamente idêntico ao texto que foi publicado no livro Liberalismo e Educação em Debate (Autores Associados, Campinas, 2007), pp.1-60, editado pelos Professores Lombardi e Sanfelice, que, por sinal, são meus colegas de longa data no Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP.

Minha participação nos seminários não se limitou, porém, à apresentação do texto republicado aqui neste blog a que acabei de fazer referência. Movido pelo amor ao debate, também fiz comentários escritos, alguns deles bastante extensos e detalhados, à apresentação de dois outros professores: o Prof. Gilberto Luiz Alves e o Prof. Luiz Carlos Santana.

O Prof. Gilberto Luiz Alves, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), dignou-se a redigir duas respostas aos meus comentários iniciais sobre a sua palestra, que, por sua vez, geraram uma longa réplica minha. É essa discussão que agora está disponível neste blog Liberal Space, sob o título “Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo“, na URL https://liberal.space/2018/03/19/uma-discussao-academica-meio-acalorada-sobre-o-liberalismo/. O texto correspondente à palestra original do Prof. Gilberto se encontra nas pp. 61-76 do livro Liberalismo e Educação em Debate (acrescido de um Anexo, pp. 77-86, que não foi apresentado oralmente nem é exatamente igual às duas respostas que redigiu aos meus comentários iniciais sobre sua palestra.

O texto que segue contém os meus comentários à palestra original do Prof. Luiz Carlos Santana, que se encontra nas pp. 87-114  do livro Liberalismo e Educação em Debate. Que eu saiba, o Prof. Luiz Carlos Santana não respondeu aos meus comentários — ou, se o fez, sua resposta nunca me chegou às mãos.

Aqui vão, portanto, meus comentários.

2. Comentários

A. Quanto à Conceituação do Liberalismo

Contrariamente ao que afirmou, no hora das perguntas, a colega da UNESP de Presidente Prudente, pareceu-me haver uma clara conceituação de Liberalismo na palestra feita – clara mas, a meu ver, errônea.

O Prof. Santana conceituou Liberalismo como ideologia criada para defender os interesses do capital (i.e., da propriedade privada) que coloca o Estado como o principal mecanismo nessa defesa. O Estado, nessa conceituação, existiria fundamentalmente para defender os interesses do capital (i.e., da propriedade privada).

Nesse contexto, o Prof. Santana citou, com aparente aprovação, a tese de Miriam Warde, em que ela, segundo ele, afirma que o Liberalismo seria a expressão do Capitalismo.

Diante de inúmeras referências a essa conceituação do Liberalismo, estranhou-me a observação da colega da UNESP de que o Prof. Santana não teria deixado claro qual conceito de Liberalismo estaria utilizando.

O que não ficou claro, isto é verdade, foi quais seriam as outras conceituações de Liberalismo que o Prof. Santana disse que existiam e nunca explicitou.

Não tendo ele as apresentado, aproveito para apresentar uma outra (que, naturalmente, ja expus na minha própria palestra).

No meu entender a ideia central do Liberalismo é a ideia de liberdade (como eu procurei mostrar na minha palestra, especialmente em minha resposta a pergunta do Prof. Saviani, que, como o Prof. Santana, coloca a  propriedade privada como a ideia central do Liberalismo, e como eu procurei ressaltar em minha segunda pergunta ao Prof. Santana, ontem).

Se o Liberalismo for analisado no contexto do século XVIII, sem o uso de uma ótica marxista, ficará claro que a ideia central do Liberalismo é a de liberdade — ideia tão central que lhe deu o nome. Os liberais clássicos, embora tenham sempre defendido a propriedade privada, sempre deixaram claro que a defesa da propriedade privada era uma conseqüência da defesa incondicional da liberdade. Para eles, contrariamente ao que pretende (segundo se alegou) Miriam Warde, o Capitalismo é uma expressão necessária do Liberalismo (NÃO vice-versa).

A razão pela qual pessoas que adotam a ótica marxista tendem a ver as coisas de forma inversa está, a meu ver, no axioma de que é a infra-estrutura que determina a super-estrutura. Assim, seriam fatores econômicos, ou seja, o Capitalismo, que produziriam ideias políticas, ou seja o Liberalismo. Liberais nunca concederam aos marxistas e simpatizantes esse axioma. Para eles, o Liberalismo surgiu num contexto em que várias liberdades eram importantes: liberdade política, contra um estado quase absoluto; liberdade religiosa, contra uma igreja monopolista e intolerante; e liberdade econômica — apenas uma entre várias liberdades. Foi a ênfase na liberdade, como princípio, que os levou, inter alia, a defender o direito de propriedade privada e, assim, a criar o que veio a ser chamado (nunca, que me conste, no século XVIII, pelos próprios liberais) de Capitalismo.

No século XVIII não havia o Marxismo. Creio que uma interpretação do surgimento do Liberalismo que lhe faça justiça histórica não pode, usando uma ótica caracteristicamente marxista, inverter o que era realmente importante para os liberais do século XVIII. Seria um anacronismo.

B. Quanto ao “Estado Mínimo”

Surpreendeu-me o fato de que o Prof. Santana tenha sentido a necessidade de enfatizar duas vezes que a ideia do “Estado Mínimo” não era invenção dos chamados neo-liberais de meados do século XX mas que tinha raizes no século XVIII. Isso me parece tão óbvio que a repetida tentativa de demonstrá-lo sugere pouca intimidade com as ideias liberais do século XVIII, que inventaram a frase “that government is best that governs the least” (“o melhor governo é o que menos governa”).

A ideia do “Estado Mínimo” é uma decorrência necessária da colocação da liberdade como pedra angular da filosofia política. Todos os liberais clássicos (e também os posteriores) enfatizaram o fato de que ameaças à nossa liberdade não aparecem apenas de nossos co-cidadãos (donde a necessidade de o Estado exercer a função policial e judicial) e dos cidadãos de países estrangeiros (donde a necessidade de o Estado exercer a função militar), mas, também, do próprio Estado. Para conter o Estado dentro de limites gerenciáveis, os liberais clássicos defenderam a tese de que o Estado, embora necessário, deve ser o menor possível e exercer apenas as funções necessárias para a manutenção da ordem e o exercício dos direitos individuais básicos (integridade da pessoa, expressão, locomocação, associação, e propriedade).

É desta ideia do “Estado Minimo” que decorrem a defesa, de um lado, o Capitalismo, e, de outro, da tese de que o provimento de serviços de educação, saúde, etc. deve ser feito pela iniciativa privada, não pelo Estado.

C. A Questão da Privatização

Por isso, outro fato que me surpreendeu na palestra do Prof. Santana foi ele parecer sentir necessário mostrar (à semelhança do que havia feito com o “Estado Mínimo”)  que a privatização da educação (ou, como ele prefere, do Ensino) é coisa antiga, com raizes no século XVIII. Novamente, isso me parece tão óbvio para qualquer pessoa que tenha conhecimento ainda que superficial da história da educação e da filosofia que insistir nisso parece mostrar pouca familiaridade com as ideias e os desenvolvimentos da era moderna. Ora, não foi a campanha pela educação pública um desenvolvimento histórico relativamente recente, tipicamente do século XIX? O que precisaria ser mostrado para o tipo de audiência presente na palestra, interessado na História da Educação, mas formado dentro de uma visão de esquerda e predominantemente marxista, é que o que é um desenvolvimento relativamente recente é a defesa da escola pública, não a ênfase no caráter privado que a educação sempre teve e que, no entender dos liberais como eu, deve voltar a ter (e não só no nível universitário).

O Prof. Santana deu a impressão, em uma observação que fez, de que a defesa da escola pública é algo tão hegemônico hoje, pelo menos no que diz respeito à educação básica (não superior), que nem mesmo os liberais ousariam, hoje, defender a total privatização da educação. Está errado. Eu defendo — e muitos outros também (embora haja liberais, hoje, como Charles Murray, que abrem uma exceção para a educação na sua defesa do “Estado Mínimo”).

Se as coisas forem vistas desta ótica, bem mais fiel à história do que aquela que o Prof. Santana procurou impor aos fatos, o que surpreende não é (como ele parece crer) que Adam Smith tenha defendido o caráter privado dos serviços educacionais, mas que ele tenha feito alguma concessão em relação a essa questão, admitindo que o Estado deva atentar para a educação dos desvalidos, para que não aconteça o seu total emburrecimento (uso o termo do Prof. Santana). No entanto, o Prof. Santana manifestou-se “surpreso” de encontrar em Adam Smith argumentos em favor do que hoje chamamos de “privatização do ensino”. O que me surpreende é a surpresa do Prof. Santana, que se explica, talvez, por ele ter vivido sua vida acadêmica tão imerso em contextos não-liberais.

Para os liberais mais recentes, o onus probandi é sempre de quem propõe uma extensão das funções do Estado. O caráter privado dos serviços privados seria o normal (o “default”). O que precisaria ser justificado é a defesa da intervenção do Estado nessa área. É por isso que Charles Murray, ao abrir a exceção mencionada atrás, se sente obrigado a justificar sua concessão.

Para os liberais, não causa nenhuma estranheza, muito menos escândalo, dizer-se que a educação é um serviço como qualquer outro – uma “commodity”. É mesmo.

D. É Lord Keynes um Liberal?

As opções conceituais equivocadas do Prof. Santana culminam na sua inclusão de Lord Keynes como liberal. Lord Keynes seria, segundo ele, o mais importante liberal do entre-guerra e, talvez, até do após-guerra (segunda), constituindo-se o ideólogo da fase “monopolista” do Capitalismo (como Adam Smith teria sido de sua fase “concorrencial”).

Em resposta à minha pergunta sobre como ele justificava a inclusão, em um mesmo cesto, de Lord Keynes, Milton Friedman e Friedrich von Hayek, quando Friedman e Hayek se opuseram ferrenhamente às ideias de Lord Keynes, contradizendo sua tese (de Lord Keynes) de que o Estado deve, por razões teóricas e/ou práticas (evitar o desemprego, por exemplo), regular (regulamentar) e mesmo intervir na economia, o Prof. Santana deixou evidente uma distorção grave em sua ótica. Ele reconheceu a existência de importantes divergências entre Lord Keynes, de um lado, e Friedman e von Hayek, de outro, mas enfatizou que todos eles defendiam a propriedade privada dos meios de produção. Ora, isso é evidente. Ninguém jamais afirmou que Lord Keynes fosse um marxista ou mesmo um socialista. Isso não quer dizer, porém, que ele fosse um liberal — a menos que se acredite, como o Prof. Santana parece acreditar, que quem não é socialista-marxista (defendendo a propriedade estatal dos meios de produção) tem, forçosamente, que ser liberal. Tertium non datur.

Mas existe uma alternativa (ou várias outras): a defesa do estado previdenciário (“welfare state”), ou seja, a Social-Democracia.

A completa ausência, na palestra do Prof. Santana, de qualquer referência à Social-Democracia como uma real alternativa à Democracia Liberal (e ao Socialismo de Orientação Marxista), é que o leva a se equivocar totalmente na colocação de Lord Keynes como liberal. Lord Keynes foi um típico defensor do “welfare state” — e, conseqüentemente, um anti-liberal, como claramente o perceberam Friedman e von Hayek (bem como Ludwig von Mises, outro grande ausente da palestra do Prof. Santana).

E. O Liberalismo e a Educação

Se o que caracteriza o Liberalismo é a defesa da liberdade e, conseqüentemente, a oposição à interferência indevida do governo nas ações dos indivíduos, que resultou no slogan de que o governo deveria, exceto pela manutenção da ordem, deixar que os indivíduos façam o que bem entendam (“laissez faire”), então suas implicações para a educação devem ser pelo menos três — das quais o Prof. Santana só mencionou duas.

Em primeiro lugar, a educação deve se localizar estritamente na esfera privada, não na esfera estatal (ou do governo). O Estado (ou o governo) deve, também na área da educação, “laissez faire” — deixar que a iniciativa privada atue livremente.

Em segundo lugar, a educação não deve ser obrigatória. Obrigar alguém a se educar ou a educar os filhos é uma interferência indevida com a sua liberdade — por mais importante que seja a educação para o indivíduo e até mesmo para a sociedade. Os liberais sempre defenderam a tese de que o Estado (ou o governo) não tem o direito de obrigar alguém a fazer algo mesmo quando pode ser demonstrado que fazer esse algo é no seu melhor interesse — nem mesmo o direito de impedir que alguém se mate.

Em terceiro lugar, e deixando os aspectos mais “macros” da educação, os liberais sempre defenderam a liberdade das crianças contra interferências indevidas dos adultos – aí incluídos seus pais e seus eventuais professores. Da mesma forma que o Estado (ou o governo) deve deixar a sociedade agir livremente (“laissez faire”) no limite máximo (só restringível pelas necessidades da segurança), os pais ou os professores devem respeitar ao máximo a liberdade da criança, respeitando ao máximo os seus interesses e procurando interferir com o seu livre desenvolvimento o mínimo possível. Jean-Jacques Rousseau, que, em muitos aspectos, está longe de ser um liberal, foi, na sua teoria educacional, talvez o mais radical dos liberais, ao propor uma “Educação Negativa” (versão pedagógica do “Estado Mínimo”). John Dewey, que, em alguns momentos, colocou os interesses da sociedade (“formação para a cidadania”) na frente dos interesses dos indivíduos, não deixou, porém, de enfatizar a necessidade de respeitar a liberdade e os interesses das crianças. Está aí a principal característica da educação liberal (quando a educação é encarada da ótica “micro” do que se passa na casa ou na sala de aula).

E essa visão “micro” é perfeitamente coerente com a visão “macro” representada pelos dois primeiros aspectos: em todos os aspectos a ênfase está na liberdade.

F. Voltando ao Conceito de Liberalismo: o Papel do Estado

No final de sua palestra, o Prof. Santana mencionou que, para liberais como Milton Friedman, o Estado é árbitro, não participante. Apenas mencionou, “en passant”.

Ora, essa tese, perfeitamente liberal, contradiz totalmente a visão do Liberalismo proposta pelo Prof. Santana, segundo o qual o Estado não é árbitro, mas é o defensor dos interesses do capital. No entanto, o Prof. Santana nem por meio minuto se deteve para analisar essa afirmação que contradiz frontalmente a visão de Liberalismo que ele procurou expor.

Embora o Prof. Santana tenha aparentemente ficado “em cima do muro” sobre se é liberal ou não, sobre se defende a privatização do ensino ou a escola pública, mesmo quando fustigado pelo Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo), a sua conceituação de Liberalismo mostrou que ele adotou uma visão do Liberalismo que é tipicamente marxista — e não a visão do Liberalismo que os próprios liberais, antigos e modernos, adotam e explicitamente defendem. Em nenhum lugar isso ficou mais evidente do que na sua rejeição, a priori, e sem qualquer argumento, da tese do Estado árbitro (e, portanto, imparcial).

G. Uma pergunta final

Se os liberais, que defendem a liberdade, estão defendendo os interesses do capital, como afirma o Prof. Santana, seria necessário, para defender os interesses dos trabalhadores, defender a anti-liberdade (como a história recente tem mostrado)?

Desculpe-me ter me alongado.

Transcrito aqui neste blog em Salto, 18 de Março de 2018

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