Novas Gerações Mimadas e “Estragadas”

Um livro interessante, de autoria conjunta de Jonathan Haidt e Greg Lukianoff, discute um problema sério que existe nos Estados Unidos hoje: a sensibilidade das duas últimas gerações (por aí) está se tornando por demais exacerbada, porque essas gerações foram mimadas demais – e o excesso de mimo as “estragou” (da mesma forma que o excesso de atenção, cuidado e liberalidade pelos avós “estraga” os nossos filhos).

O americano mais antigo, que livros e filmes costumavam chamar de “The Ugly American” (O Americano Feio), tipificado por Marlon Brando, no filme de 1954 On the Waterfront (Sindicato de Ladrões, no Brasil, Há Lodo no Cais, em Portugal), era um sujeito de “casca dura”, que aguentava bastante bem um bate-boca pesado, e, no mais das vezes, se saía vencedor dele. O americano das novas gerações, ao contrário, é o que os autores chamam de “The Coddled American” (O Americano Mimado), um sujeito de “casca fina”, extremamente delicada, supersensível, protegido ao extremo, tratado com excesso de indulgência, que foi “estragado” por excesso de mimo… Qualquer coisa o magoa ou ofende – e sua reação não é revidar, partir para o bate-boca pesado, de gente grande… Sua reação é buscar a proteção da autoridade – em última instância, do governo (que, por sinal, tem atendido a maior parte de suas demandas – o que torna a situação ainda pior, porque mostra que, de certa forma, dá certo e vale a pena se passar por vítima). Os Estados Unidos viraram uma nação de vítimas.

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Haidt e Lukianoff deram ao seu livro o título de The Coddling of the American Mind: How Good Intentions and Bad Ideas are Setting Up a Generation for Failure. O verbo “coddle” quer dizer mimar, superproteger, “estragar” uma criança por excesso de atenção e cuidado (como em geral o fazem, do ponto de vista dos pais, os avós, como mencionado atrás). A tradução (admitidamente difícil) do título poderia ser Excesso de Indulgência para com a Mente do Americano: Como Boas Intenções e Ideias Ruins Estão Preparando uma Geração para o Fracasso. O livro foi publicado neste ano de 2018 pela Penguin Press (New York). Ambos os autores têm livros importantes que, de certo modo, prepararam o caminho para este. Jonathan Haidt é autor de The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (A Mente Justa: Por que Pessoas Boas São Divididas pela Política e pela Religião) e Greg Lukianoff de Unlearning Liberty: Campus Censorship and the End of American Debate (Desaprendendo a Liberdade: Censura no Campus e o Fim do Debate nos Estados Unidos).

A tese dos autores (um, Haidt, é psicólogo na linha da Psicologia Positiva de Martin Seligman, o outro, Lukianoff, é advogado que concentra sua atenção na defesa do direito de pensar livremente e expressar com igual liberdade o pensamento através da linguagem) é relativamente simples. Essa sensibilidade exacerbada prejudica as pessoas e enfraquece a nação.

Haidt e Lukianoff começam o seu livro discutindo “Três Grandes Inverdades” – algo que poderia ser mais bem descrito como “Três Grandes Tendências Prejudiciais aos Indivíduos e à Sociedade”.

A primeira dessas tendências pode ser introduzida, pela via negativa, por um ditado que existe, em variante, aqui no Brasil. Aqui o ditado é “O que não mata, engorda”. Nos Estados Unidos é “O que não mata, fortalece” (versão, na minha opinião, bem mais adequada). Esse ditado expressa uma grande verdade (não uma inverdade). A ideia do ditado, em sua versão americana, evidentemente é que debate, a discussão, o bate-boca, ainda que acirrado e pesado (desde que não chegue às vias de fato, em que um debatedor silencia o outro na porrada e, em casos extremos, matando-o), só torna as pessoas mais fortes. Os autores lamentam o fato de que o ditado acabou se tornando diferente, na realidade o seu oposto, na vida acadêmica americana, onde vigora hoje o seguinte princípio: “Mesmo que não mate, a linguagem que usamos pode machucar e, assim, enfraquecer as pessoas com quem dialogamos, ou a quem nos dirigimos, ou a quem nos referimos”. Essa a primeira tendência, que os autores chamam de primeira grande inverdade.

A coisa começou na universidade, que, com (talvez) a boa intenção de não permitir que pessoas de raça, sexo e orientação sexual diferente fossem ofendidas pelas demais (de raça “majoritária”, de sexo “forte”, de orientação sexual “dominante”), criaram Speech Codes (Códigos de Fala), proibindo determinados tipos de palavras e expressões em debate, em discussão ou mesmo em conversa informal e corriqueira no campus. Da universidade a coisa se expandiu para a mídia e de lá para a sociedade em geral. Determinados termos, determinadas expressões, e mesmo determinados conteúdos (ainda que expressos em linguagem inatacável) se tornaram tabus. Com isso surgiu o que poderia ser chamada de uma polícia linguística (que, na realidade, é uma “polícia do pensamento”, que se incumbiu (e em muitos casos foi oficialmente incumbida) de punir linguagem “politicamente incorreta”. O politicamente correto acabou por ir além de temas como raça, sexo e orientação sexual.

O fenômeno já chegou ao Brasil. Talvez o exemplo mais chocante tenha sido o do crítico de cinema Rubens Ewald Filho, na transmissão do Oscar de 2018 pela TNT. A apresentação da canção “Mystery of Love“, trilha sonora do filme que em Português se chama “Me Chame Pelo Seu Nome”, foi feita por uma pessoa chilena que é “transgender” e que é conhecida pelo nome de Daniela Vega. Ela, que foi a protagonista do filme  “Uma Mulher Fantástica” (título em Português), premiado como o melhor filme estrangeiro, em que representa uma pessoa “transgender”, estava linda, maquiada como mulher e vestida de mulher. Com o intuito de informar os telespectadores – era para isso que ele ali estava, não é verdade? – Rubens Ewald Filho disse no ar algo como: “Apesar da aparência e do nome, ela é um rapaz”. Foi crucificado. Houve abaixo-assinados para que ele fosse imediatamente demitido de sua função de crítico do Oscar pela TNT – que não o demitiu mas o censurou publicamente, levando-o a pedir desculpas também publicamente, não se sabe muito bem a quem: provavelmente aos que se ofenderam com sua insensibilidade. Foi execrado como sexista e transfóbico. Esse tratamento em geral é chamado de “public shaming” (envergonhamento publico, execração pública). (Vide https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2018/03/05/tnt-reprova-comentarios-de-rubens-ewald-filho-no-oscar-critico-se-desculpa.htm).

A segunda dessas tendências (ou inverdades) é que as pessoas se dividem, naturalmente, em dois grupos: as pessoas do bem (que aceitam sem problema a nova sensibilidade) e as pessoas do mal (que se recusam a aceita-la): em geral, “nós”, a gente do bem, e “eles”, a gente do mal.

Os do mal, nos Estados Unidos, são facilmente identificados por seu uso de linguagem politicamente incorreta – ainda que esse uso seja não-intencional, como frequentemente acontece com pessoas para quem o Inglês é uma segunda ou terceira língua. Apesar de aparências e mesmo afirmações ao contrário, o Inglês é complicado. O artigo “the” pode significar “o”, “a”, “os” e “as” – e certas palavras, como “professor”, “teacher”, “doctor”, etc. podem se referir tanto a alguém do sexo masculino como do sexo feminino. Tradicionalmente, era normal e aceitável (parte da norma culta) dizer “I asked a doctor and he told me that…”, usando o pronome em concordância com o gênero masculino, independentemente do sexo da pessoa. Isso não mais se admite na universidade. É necessário usar uma linguagem que, a muitos, em especial aos estrangeiros, parece canhestra: “I asked a doctor and he/she told me that…” ou “I asked a doctor and s/he told me that…” ou, hoje mais comum, “I asked a doctor and they told me that…”. No último caso, tornou-se uma praxe do politicamente correto usar o pronome no plural (em que they significa tanto eles como elas). Alguns autores preferem alternar, usando ora “he / his”, ora “she / her / hers”, quando não se revela o sexo do referente. Usar a forma tradicional de concordar uma referência a alguém de sexo não definido com o pronome masculino é incorrer no grande pecado de “sexismo”.

Algo parecido se dá com o uso de termos que passaram a ser considerados tabus.

A forma de se referir a alguém de outra raça (ou mesmo etnia) também se complicou. Tradicionalmente se referia a alguém da raça negra como “a negro”. (Nunca “a nigger”, que sempre demonstrou preconceito, exceto quando usado por um negro / uma negra (!) para se referir a si próprio / própria (!). Depois que os próprios / as próprias (!) começaram a se referir a si próprios / próprias (!) como “blacks”, esse termo se tornou mais ou menos padrão, embora haja quem prefira usar “people of color” como uma expressão supostamente mais neutra, que inclui negros, vermelhos (índios ou aborígenes – os tradicionais “peles vermelhas”, expressão hoje condenada), marrons (hispânicos – que em regra incluem os portugueses e brasileiros), amarelos (orientais, em geral), etc. A expressão tradicional “colored people” para se referir aos negros /negras / pretos / pretas (!) foi anatematizada, porque coloridos / coloridas somos todos / todas  (embora a expressão “people of color” exclua os brancos / as brancas (!), que, supostamente, são “sem cor”…). Não ser sensível a essas nuances de linguagem pode fazer com que alguém seja acusado de usar linguagem racista – talvez um pecado mais grave do que ser chamado de sexista. (No Brasil, ser racista dá cadeia. Ser sexista, ainda não.) Reflita-se se é possível compor um texto estilisticamente decente com todas essas precauções. Jorge Amado que o diga.

A forma de se referir a alguém que é homossexual também se complicou. O termo “gay” se tornou razoavelmente padrão (embora haja dúvida se ele se aplica a todos os homossexuais, independentemente de seu sexo, ou se o termo “lesbian” deve ser preferido para homossexuais do sexo feminino). As variações de comportamento sexual mais recentemente admitidas, como “bisexual” (em Inglês com um “s” só) e “transsexual” (este com dois “s” em Inglês) acabou por levar à sigla LGBT (Lesbian, Gay, Bisexual, Transsexual), hoje amplamente usada, inclusive no Brasil, onde algumas letrinhas são acrescentadas, que só os ultra-especializados conseguem explicar (embora, no caso do último termo, hoje se prefira “Transgender” a “Transsexual”).

A preocupação de Haidt e Lukianoff não é com os detalhes da linguagem politicamente correta, mas com o fato de que a sua adoção é usada como critério para demarcar “a turma do bem” da “turma do mal”, entre “nós” e “eles”.

Isso já se dá também no Brasil.

Se alguém inicia uma palestra dizendo “Boa noite a todos e todas”, em vez do convencional “Boa noite a todos” (que inclui todas as pessoas e todos os pessoos (!), independentemente de seu sexo), ele ou ela (!) está dizendo que faz parte da turma do bem… (Se quem está falando for mulher, é de rigueur que diga “Boa noite a todas e todos” – pondo o pronome feminino antes. Quem não segue essa praxe é considerado insensível à questão do gênero (expressão aqui preferível à expressão “questão do sexo” ou “questão sexual”, porque é de palavras, vale dizer, de linguagem que se trata, não de biologia).

Aqui no Brasil já se começa ver, na televisão, negros se referirem a si mesmos como pretos. (Alguns negros / pretos sempre usaram os termos “crioulo / crioula” para se referirem a si próprios, mesmo depois desses termos serem considerados pejorativos se usados por um branco / uma branca (!) para se referir a alguém da outra raça. (Mesmo falar em “raça” se tornou problemático, havendo “cientistas” que afirmam que raças não existem). Quando eu era adolescente havia um jogador de futebol do Fluminense cujo apelido era “Escurinho”. Esse apelido era considerado tão normal quanto apelidos como Japonês / Japa, Português / Portuga, Alemão, Gringo (para Americano), etc. Houve época em que, em formulários, ao preencher ao campo “Cor”, alguns, hoje denominados pardos, informavam: “Escurinho / Escurinha” (ou, então, “Moreno  / Morena”). Hoje, não mais.

Como é que se designa alguém nascido / nascida (!) nos Estados Unidos ou que é cidadão / cidadã (!) daquele país. Tradicionalmente se dizia “americano / americana” (!). O nome oficial do país é “United States of America”, ou, na prática, simplesmente “America”. Nosso país, quando se tornou independente, e por muito tempo, se denominou “Estados Unidos do Brazil” (assim com “z” na grafia antiga). Embora a gente também vivesse numa das Américas, a gente se designava simplesmente “brasileiro / brasileira” (!).

Hoje a gente encontra no Brasil toda forma de absurdos: “norte-americano / norte-americana” (como se os canadenses e mexicanos / mexicanas (!) não o fossem; “estadunidense”, embora ninguém nascido / nascida (!) no Brazil / Brasil de antigamente se denominasse “estadunidense”, em vez de brasileiro / brasileira (!), etc.

A terceira das três tendências (ou inverdades) é que essas questões de sensibilidade / insensibilidade nada têm que ver com a razão, mas, sim, com o sentimento (identificado pela intuição e não pela razão). Assim se elimina toda uma área, a importante área da linguagem, da fala, da escrita, do discurso, do âmbito da análise racional, deixando-a à mercê dos sentimentos e da intuição – que é algo que, supõe-se, não se discute ou debate, simplesmente se reconhece.

Como já observado, muitas dessas questões se aplicam ao Brasil de hoje, dividido entre dois grupos: a esquerda e a direita, os petistas e os antipetistas. É forçoso reconhecer que há antipetistas que se reconhecem como de esquerda, e que, entre os restantes, há muitos que não se reconhecem como de direita, preferindo se identificar como liberais. Eu, por exemplo, sou antipetista radical, mas sou a favor do aborto, em várias situações, não sou contra o reconhecimento legal de uma sociedade conjugal entre pessoas do mesmo sexo, defendo uma educação libertária, não tradicional, e desescolarizada (vista a escola como ela é hoje), isto é, sem currículo, sem ensino, sem professor, sem avaliação, etc.

Para que algumas dessas questões se resolvam, concordo com os autores que, antes de mais nada, a nossa sensibilidade deve se tornar menos exacerbada. Devemos reconhecer, entre outras coisas, que a linguagem, excetuados os casos claros de calúnia, difamação e real injúria objetiva (não a injúria subjetiva frequentemente alegada hoje), não fere ou machuca, embora, dependendo de quem venha, possa irritar e e até mesmo magoar. Reconheço que as linhas demarcatórias entre um xingamento e uma calúnia, entre uma ofensa absorvível e uma difamação, entre um abuso (chamar alguém de vagabundo, estrupício, canalha, mau caráter, etc.) e uma real injúria, que cause danos e prejuízos à pessoa, são difíceis de definir – mas é preciso tentar, desde que o Judiciário tenha bom senso e saiba analisar os fatos e as normas com neutralidade e isenção.

Nos séculos 16 e 17 houve várias guerras motivadas por questões religiosas. Hoje o clima de opinião e sentimento é tão aguçado, em especial nos Estados Unidos e no Brasil, que não é difícil imaginar que possa haver guerras por questões políticas. Brigas e assassinatos por causa de futebol já são comuns. Neste contexto, recomendo a leitura deste livro e do livro anterior de Haidt, mencionado atrás.

Em São Paulo, 20 de Outubro de 2018.

A Controvérsia Acerca do “Escola Sem Partido” Continua: PL 867/2015

A controvérsia acerca do movimento “Escola sem Partido” continua…

Os educadores, políticos e jornalistas de esquerda estão se sentindo acuados porque o projeto do “Escola sem Partido” progride na Câmara Federal.

Na Folha de S. Paulo de hoje (14/5/2018) um jornalista chamado RANIER BRAGON, que se descreve como “Repórter da Sucursal de Brasília da FSP” e afirma que foi correspondente em Belo Horizonte e São Luís, depois de se formar em jornalismo pela PUC-MG, chama o projeto de “uma aberração”, em uma uma matéria assinada. Diz ele, em sua peroração:

“Um projeto desses não é só ‘polêmico’ ou ‘controverso’. É uma aberração. Nada menos do que isso.”

Na parte inicial de sua matéria, ele descreveu o projeto do “Escola sem Partido” como

“um dos projetos mais vergonhosos da atualidade”.

Afirmou, em seu segundo parágrafo, que o projeto é

“capitaneado pela bancada religiosa e por toda ordem de conservadores aparentemente saídos de uma fenda ligada à Idade Média”.

Continuou, afirmando que

“o projeto quer fazer crer que o mundo educacional está infestado de comunistas travestidos de pedagogos, prontos a catequizar uma legião de novos Ches e derrubar o capitalismo”.

Chamou o grupo que defende as ideias por trás do projeto de “neocarolismo” e afirmou que,

“mesmo com apenas seis artigos, o projeto é um acinte às bases humanistas da regulação educacional brasileira, que preconiza o pluralismo de ideias, o apreço à tolerância e a ‘liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber’”.

Ele contestou a posição do relator do projeto numa comissão da Câmara, quando este afirmou o  “direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.

Rotulou de “os talibãs da moral” aqueles que se opõem à chamada “ideologia do gênero” e que acreditam que, na espécie humana, os termos  “macho” e “fêmea” equivalem a “homem” e “mulher”.

Bem na parte central do artigo apresentou sua “pièce de resistance”:

“O Ministério Público já se insurgiu contra a escalada obscurantista. Em 2017, o ministro do Supremo Luís Roberto Barroso suspendeu lei alagoana. ‘Pais não podem pretender limitar o universo informacional de seus filhos ou impor à escola que não veicule conteúdo com o qual não estejam de acordo. A liberdade de ensinar é mecanismo essencial para provocar o aluno e estimula-lo a produzir seus próprios pontos de vista. Só pode ensinar a liberdade quem dispõe de liberdade’, disse.”.

Esquecendo-se, mais de uma vez, dos princípios do bom jornalismo, Bragon nem explica aos leitores o que é a “lei alagoana”. Se, porém, o leitor deste blog estiver interessado em saber, pode consultar meu artigo “Doutrinação e Educação: A Esquerda Pretende Argumentar que Doutrinar não Passa de um Jeito ‘Crítico’ de Educar”, no qual, na Seção 2-A, discuto a Lei 7800/16 do Estado de Alagoas. Vide https://liberal.space/2016/05/28/doutrinacao-e-educacao-a-esquerda-pretende-argumentar-que-doutrinar-nao-passa-de-um-jeito-critico-de-educar/.

Embora esse artigo de 28/05/2016 (dois anos atrás, no mês) seja longo, sugiro que seja lido pelos interessados, pois ele refuta, uma a uma, as cinco principais críticas feitas ao Projeto do Alagoas, a saber:

  1. A suposta negação do pluralismo de ideias e da diversidade de pensamento, saberes e práticas
  2. A suposta negação da liberdade do professor em sala de aula (liberdade de cátedra) e até mesmo o cerceamento de sua liberdade de expressão
  3. A suposta negação da liberdade de aprender do aluno, em especial de conhecer as divergências e contradições existentes em e entre disciplinas acadêmicas
  4. A suposta confusão entre discutir questões e autores controvertidos e doutrinar ou fazer proselitismo
  5. A alegação de que os proponentes do Escola sem Partido não teriam qualificação para propor essa tese.

Cito, a seguir, um resumo, feito no artigo anterior, de minhas “críticas às críticas”.

“Analisarei, agora, de forma resumida, as críticas feitas às propostas do movimento Escola Sem Partido, seja no episódio do Estado de Alagoas, seja em relação à visita de Alexandre Frota e o pessoal do Revoltados Online ao atual Ministro da Educação.

A esquerda é mestre em acusar os outros dos pecados que lhe são mais caros… O liberalismo, que está por trás do movimento ‘Escola sem Partido’ é o mais tradicional defensor da liberdade de pensamento, da liberdade de crença, da liberdade de expressão – no campo religioso, político ou qualquer outro. A lei alagoana, que é objeto desse tipo de crítica (que supostamente negaria o pluralismo de ideias e a diversidade de pensamento, saberes e práticas), afirma claramente, nos Incisos II, III e IV do Art. 1o, a importância de que, na escola, se respeitem o pluralismo de ideias, a liberdade de aprender e a liberdade de crença.

O conceito de ‘liberdade de cátedra’ foi concebido e instituído para impedir que, em regimes ditatoriais ou autoritários, o governo pudesse determinar ao professor exatamente o que e como ele deveria abordar em sua disciplina, impondo-lhe, assim, um ‘catecismo’ ou uma ‘vulgata’ e não lhe deixando espaço para a livre apresentação e discussão de ideias que pudesse ensejar que o aluno não fosse doutrinado. É totalmente ilegítimo, numa situação em que é o próprio professor que tenta limitar o que acontece em sala de aula, em termos de conteúdo e de método, ao que está prescrito em um ‘catecismo’ ideológico que ele aceita (independentemente de o governo também aceita-lo ou não), invocar a sua liberdade de cátedra para fazer exatamente aquilo que o conceito e a instituição da liberdade de cátedra não queriam que acontecesse em sala de aula, a saber, doutrinação. O professor continua a ter seu direito à liberdade de expressão intato, fora da sala de aula. Lá dentro, tem obrigações que ele deve cumprir, entre as quais está a de respeitar a integridade mental do aluno, não lhe impondo, ou não o constrangendo a aceitar, crenças que ele não tem condições de avaliar exatamente em decorrência da abordagem usada pelo professor.

A liberdade de cátedra do professor não é absoluta: ela é limitada e restringida pela liberdade de aprender do aluno, e a liberdade de aprender do aluno significa exatamente isso, que ele tem o direito de não lhe serem tolhidas, por omissão do professor ou por sua ação deliberada, alternativas e opções que podem lhe ser mais aceitáveis, depois de examinar as evidências e os argumentos disponíveis, opções e alternativas essas que o professor se recusou a apresentar em sala de aula, ou apresentou de forma parcial e distorcida, para promover sua agenda partidária (partisane). ‘Partidária’, aqui, não se refere a partido político, mas, sim, ao fato de o professor tomar partido na discussão, privilegiando uma posição sobre as demais, em vez de assumir a atitude recomendada de isenção e neutralidade, em que todas as opções e alternativas são apresentadas de forma igualmente convincente e persuasiva, como o faria alguém que fosse delas partidário.

Se há divergências e contradições entre essas opções e alternativas, essas divergências e contradições devem ser apresentadas e esclarecidas, não omitidas ou apresentadas de forma tendenciosa, que favorece apenas uma delas.

Os defensores da doutrinação ideológica em sala de aula querem nos fazer crer que não estão proselitizando, mas apenas discutindo, ‘de forma crítica’, questões e autores controvertidos, cuja aceitação está longe de ser pacífica e generalizada fora da sala de aula (nos lares dos alunos, por exemplo). Basta ouvir o que dizem em sala de aula ou ler o que escrevem para perceber quão falta é sua pretensão. Seu objetivo é proselitizar mesmo, não hesitando eles em defender o voto em um candidato e criticar o voto em outro, em insistir que alunos devem participar de marchas e manifestações defendendo um ponto de vista e se recusar a participar de outras que defendem pontos de vista opostos.

Não se pretende impedir que os professores apresentem e discutam em sala de aula questões e autores controvertidos, desde que o façam de forma isenta, neutra, objetiva. O que se pretende impedir é que apresentem e discutam, de forma partidária, apenas um lado da questão, aquele que eles favorecem e privilegiam, com o intuito de ganhar para o seu a adesão dos alunos. Em suma, o que se pretende impedir é que doutrinem com intenção proselitista.

A alegação de que os proponentes da Escola sem Partido não teriam qualificação para propor sua tese é um argumento ad hominem que adeptos de um Presidente da República apedeuta deveriam ter vergonha de utilizar.

É isso, por enquanto.”

 Continuo hoje.

A Constituição Federal afirma, em seu Artigo 205, que

“a educação [é] direito de todos e dever do Estado e da família…”.

Durante a discussão dessa constituição, a esquerda fez de tudo para que ela afirmasse que a educação é dever exclusivo do estado – isto é, um monopólio estatal e que qualquer organização não-estatal (uma ONG ou uma confissão religiosa, por exemplo) só pudesse educar mediante concessão do estado (que poderia ser cassada a qualquer momento).

Essa tese da esquerda perdeu em 1988. Perdeu para a tese de que a educação é direito dos pais, e que o estado, quando se põe a educar, o faz in loco parentis – no lugar dos pais. Mas a esquerda quer fazer de conta que quem ganhou foi ela. Só isso explica que ela ainda tente implantar no Brasil uma educação escolar, como a que havia na defunta União Soviética e nos demais países comunistizados na marra (não existe outro jeito), em que cabe exclusivamente ao estado decidir o que e como se ensina em sala de aula, contestando a tese, totalmente legítima e verdadeira, de que existe o “direito dos pais a que seus filhos recebam educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. E educação política também, que é uma forma de educação moral aplicada à vida social.

O fofo Ministro do Supremo Luís Roberto Barroso, esquerdista notório, está totalmente errado quando afirma, na passagem que o autor da matéria na Folha cita, que “Pais não podem pretender limitar o universo informacional de seus filhos ou impor à escola que não veicule conteúdo com o qual não estejam de acordo.” Podem, sim, e devem. E é isso que fazem quando colocam os filhos em escolas particulares de sua esolha – ou tentam educa-los em casa, algo que o estado, absurdamente, se recusa a admitir, chegando ao ponto de prender os pais que assim agem.

Os pais podem pretender limitar o que é veiculado na educação escolar estatal porque a educação de seus filhos é direito e dever deles, e, para a imensa maioria das famílias, sendo a educação escolar obrigatória, e não tendo elas recursos financeiros para escolher uma escola particular do seu agrado, a escola pública é a única alternativa de educação escolar que lhe resta — e a educação não-escolar, em casa, lhes é proibida. Todos sabemos que, assim que uma família consegue pagar uma escola particular, de sua escolha, ela tira os filhos da escola pública e os coloca na escola particular. Isso acontece até mesmo no caso de famílias de professores esquerdistas, como eu cansei de ver em quase 35 anos de Faculdade de Educação da UNICAMP. No caso da educação escolar privada, os pais têm escolha: basta tirar os filhos de uma escola e colocar em outra. Os que são obrigados, por sua condição financeira, a manter seus filhos em escola pública, não têm essa possibilidade de mudar os filhos de escola.

Ao criticar o Escola Sem Partido, a esquerda quer que o Estado lhes forneça, na escola pública, uma audiência cativa para que ela possa catequisa-la de acordo com suas convicções ultrapassadas. Mesmo que fosse para catequisa-la de acordo com suas convicções atualizadas seria errado.

A Constituição Federal determina, em seu Artigo 206, que haja “liberdade de aprender” do aluno – e o faz antes de dizer que deve haver também “liberdade de ensinar” do professor. Este tem liberdade de ensinar DESDE QUE respeite os princípios do “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas” que é essencial para a liberdade de aprender do aluno. A liberdade de ensinar do professor termina onde começa a liberdade de aprender do aluno.

Monsieur Ranier Bragon afirma que “o projeto [em tramitação na Câmara] quer fazer crer que o mundo educacional está infestado de comunistas travestidos de pedagogos, prontos a catequizar uma legião de novos Ches e derrubar o capitalismo”.

E não está? E não está? E não está?

Os educadores de esquerda não fazem nenhum segredo de suas convicções comunistas e da necessidade de derrubar o capitalismo. E usam a sala de aula para apregoar essas ideias, para convencer seus alunos a participar de passeatas e protestos, para votar assim ou assado (quando eles já podem votar).

Felizmente, a não-esquerda (que não é composta só de direitistas, no sentido convencional, mas também de liberais e libertários anárquicos) tem reagido. A matéria do Bragon tem, no momento (14/5/2018, 9h), dois comentários. Cito os dois:

MARCOS SERRA (Há 2 horas):

“É Sr. Ranier, impor freios à covardia praticada por um enorme número de professores que ao invés de conteúdos das disciplinas insistem em pregar suas ideologias dói aos supostos defensores da liberdade de ideias. A esquerda tem usado e abusado desse artifício para catequizar crianças, jovens e universitários para sua causa, mesmo que isso represente abandonar o que deveria ser o maior objetivo de qualquer professor: ensinar para a vida, racionalizar diferentes correntes, ser liberto. Duro, não?”

PAULO ANTONIO DE FIGUEIREDO (Há 4 horas):

“Contaminar e fazer a cabeça dos jovens nas escolas é uma velha tática para arrigementar zumbis e criar falsos líderes, veja o L(indbergh) Faria, G(uilherme) Boulos, etc. Escola não foi feita para doutrinar política,mas disseminar o conhecimento. Temos que formar cientistas, médicos, engenheiros, técnicos para que o país cresça, e não revolucionários. Exemplo, a UNE serve pra que mesmo? Professores ideológicos perseguem aqueles que são contra sua ideologia. A escola da não deve ter partidos.”

[https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ranier-bragon/2018/05/camara-quer-impor-mordaca-obscurantista-a-professores-do-pais.shtml]

Antes de terminar, um link para um outro artigo meu, mais antigo, mas totalmente relevante no contexto, com o título “Educação sem Doutrinação e Escolas sem Partido”, publicado aqui neste blog, na URL

https://liberal.space/2010/04/10/educacao-sem-doutrinacao-e-escolas-sem-partido/

No Anexo, o Projeto de Lei 867/2015

Em São Paulo, 14 de Maio de 2018

ANEXO ao artigo: PROJETO DE LEI Nº 867, DE 2015

Inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional,
o “Programa Escola sem Partido”.

O Congresso Nacional decreta:

Art.1º. Esta lei dispõe sobre a inclusão entre as diretrizese bases da educação nacional do “Programa Escola sem Partido”.

Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios:

I – neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;

II – pluralismo de ideias no ambiente acadêmico;

III – liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência;

IV – liberdade de crença;

V – reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;

VI – educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;

VII – direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.

1º. As escolas confessionais e as particulares cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos, deverão obter dos pais ou responsáveis pelos estudantes, no ato da matrícula, autorização expressa para a veiculação de conteúdos identificados com os referidos princípios, valores e concepções.

2º. Para os fins do disposto no § 1º deste artigo, as escolas deverão apresentar e entregar aos pais ou responsáveis pelos estudantes material informativo que possibilite o conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques adotados.

Art. 4º. No exercício de suas funções, o professor:

I – não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária;

II – não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;

III – não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;

IV – ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito;

V – respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções;

VI – não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.

Art. 5º. Os alunos matriculados no ensino fundamental e no ensino médio serão informados e educados sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de crença assegurada pela Constituição Federal, especialmente sobre o disposto no art. 4º desta Lei.

1º. Para o fim do disposto no caput deste artigo, as escolas afixarão nas salas de aula, nas salas dos professores e em locais onde possam ser lidos por estudantes e professores, cartazes com o conteúdo previsto no Anexo desta Lei, com, no mínimo, 70 centímetros de altura por 50 centímetros de largura, e fonte com tamanho compatível com as dimensões adotadas.

2º. Nas instituições de educação infantil, os cartazes referidos no § 1º deste artigo serão afixados somente nas salas dos professores.

Art. 6º. Professores, estudantes e pais ou responsáveis serão informados e educados sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que tange aos princípios referidos no art. 1º desta Lei.

Art. 7º. As secretarias de educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato.

Parágrafo único. As reclamações referidas no caput deste artigo deverão ser encaminhadas ao órgão do Ministério Público incumbido da defesa dos interesses da criança e do adolescente, sob pena de responsabilidade.

Art. 8º. O disposto nesta Lei aplica-se, no que couber:

I – aos livros didáticos e paradidáticos;

II – às avaliações para o ingresso no ensino superior;

III – às provas de concurso para o ingresso na carreira docente;

IV – às instituições de ensino superior, respeitado o disposto no art. 207 da Constituição Federal.

Art. 9º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.

ANEXO ao PROJETO DE LEI

DEVERES DO PROFESSOR

I – O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária.

II – O Professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.

III – O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.

IV – Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa –isto é, com a mesma profundidade e seriedade–, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito.

V – O Professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

VI – O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.

 JUSTIFICAÇÃO

Esta proposição se espelha em anteprojeto de lei elaborado pelo movimento “Escola sem Partido” (www.escolasempartido.org), que é “uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis — do ensino básico ao superior”, cuja robusta justificativa subscrevemos: [1]

“É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral especialmente moral sexual incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis.

Diante dessa realidade conhecida por experiência direta de todos os que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos , entendemos que é necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

Trata-se, afinal, de práticas ilícitas, violadoras de direitos e liberdades fundamentais dos estudantes e de seus pais ou responsáveis, como se passa a demonstrar:

1 – A liberdade de aprender assegurada pelo art. 206 da Constituição Federal compreende o direito do estudante a que o seu conhecimento da realidade não seja manipulado, para fins políticos e ideológicos, pela ação dos seus professores;

2 – Da mesma forma, a liberdade de consciência, garantida pelo art. 5º, VI, da Constituição Federal, confere ao estudante o direito de não ser doutrinado por seus professores;

3 – O caráter obrigatório do ensino não anula e não restringe a liberdade de consciência do indivíduo. Por isso, o fato de o estudante ser obrigado a assistir às aulas de um professor implica para esse professor o dever de não utilizar sua disciplina como instrumento de cooptação político-partidária ou ideológica;

4 – Ora, é evidente que a liberdade de aprender e a liberdade de consciência dos estudantes restarão violadas se o professor puder se aproveitar de sua audiência cativa para promover em sala de aula suas próprias concepções políticas, ideológicas e morais;

5 – Liberdade de ensinar assegurada pelo art. 206, II, da Constituição Federal – não se confunde com liberdade de expressão; não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa;

6 – De forma análoga, não desfrutam os estudantes de liberdade de escolha em relação às obras didáticas e paradidáticas cuja leitura lhes é imposta por seus professores, o que justifica o disposto no art. 8º, I, do projeto de lei;

7 – Além disso, a doutrinação política e ideológica em sala de aula compromete gravemente a liberdade política do estudante, na medida em que visa a induzi-lo a fazer determinadas escolhas políticas e ideológicas, que beneficiam, direta ou indiretamente as políticas, os movimentos, as organizações, os governos, os partidos e os candidatos que desfrutam da simpatia do professor;

8 – Sendo assim, não há dúvida de que os estudantes que se encontram em tal situação estão sendo manipulados e explorados politicamente, o que ofende o art. 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), segundo o qual “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de exploração”;

9 – Ao estigmatizar determinadas perspectivas políticas e ideológicas, a doutrinação cria as condições para o bullying político e ideológico que é praticado pelos próprios estudantes contra seus colegas. Em certos ambientes, um aluno que assuma publicamente uma militância ou postura que não seja a da corrente dominante corre sério risco de ser isolado, hostilizado e até agredido fisicamente pelos colegas. E isso se deve, principalmente, ao ambiente de sectarismo criado pela doutrinação;

10 – A doutrinação infringe, também, o disposto no art. 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que garante aos estudantes “o direito de ser respeitado por seus educadores”. Com efeito, um professor que deseja transformar seus alunos em réplicas ideológicas de si mesmo evidentemente não os está respeitando;

11 – A prática da doutrinação política e ideológica nas escolas configura, ademais, uma clara violação ao próprio regime democrático, na medida em que ela instrumentaliza o sistema público de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de determinados competidores;

12 – Por outro lado, é inegável que, como entidades pertencentes à Administração Pública, as escolas públicas estão sujeitas ao princípio constitucional da impessoalidade, e isto significa, nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 15ª ed., p. 104), que “nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie.”;

13 – E não é só. O uso da máquina do Estado que compreende o sistema de ensino– para a difusão das concepções políticas ou ideológicas de seus agentes é incompatível com o princípio da neutralidade política e ideológica do Estado, com o princípio republicano, com o princípio da isonomia (igualdade de todos perante a lei) e com o princípio do pluralismo político e de ideias, todos previstos, explícita ou implicitamente, na Constituição Federal;

14 – No que tange à educação moral, referida no art. 2º, VII, do projeto de lei, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vigente no Brasil, estabelece em seu art. 12 que “os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”;

15 – Ora, se cabe aos pais decidir o que seus filhos devem aprender em matéria de moral, nem o governo, nem a escola, nem os professores têm o direito de usar a sala de aula para tratar de conteúdos morais que não tenham sido previamente aprovados pelos pais dos alunos;

16 – Finalmente, um Estado que se define como laico e que, portanto deve ser neutro em relação a todas as religiões– não pode usar o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade, já que a moral é em regra inseparável da religião;

17. Permitir que o governo de turno ou seus agentes utilizem o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade é dar-lhes o direito de vilipendiar e destruir, indiretamente, a crença religiosa dos estudantes, o que ofende os artigos 5º, VI, e 19, I, da Constituição Federal.

Ante o exposto, entendemos que a melhor forma de combater o abuso da liberdade de ensinar é informar os estudantes sobre o direito que eles têm de não ser doutrinados por seus professores.

Nesse sentido, o projeto que ora se apresenta está em perfeita sintonia com o art. 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que prescreve, entre as finalidades da educação, o preparo do educando para o exercício da cidadania. Afinal, o direito de ser informado sobre os próprios direitos é uma questão de estrita cidadania.

Urge, portanto, informar os estudantes sobre o direito que eles têm de não ser doutrinados por seus professores, a fim de que eles mesmos possam exercer a defesa desse direito, já que, dentro das salas de aula, ninguém mais poderá fazer isso por eles.

Note-se por fim, que o projeto não deixa de atender à especificidade das instituições confessionais e particulares cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, às quais reconhece expressamente o direito de veicular e promover os princípios, valores e concepções que as definem, exigindo-se, apenas, a ciência e o consentimento expressos por parte dos pais ou responsáveis pelos estudantes.

Frisamos mais uma vez que projetos de lei semelhantes ao presente – inspirados em anteprojeto de lei elaborado pelo Movimento Escola sem Partido (www.escolasempartido.org) – já tramitam nas Assembleias Legislativas dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Espírito Santo, e na Câmara Legislativa do Distrito Federal; e em dezenas de Câmaras de Vereadores (v.g., São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ, Curitiba-PR, Vitória da Conquista-BA, Toledo-PR, Chapecó-SC, Joinville-SC, Mogi Guaçu-SP, Foz do Iguaçu-PR, etc.), tendo sido já aprovado nos Municípios de Santa Cruz do Monte Carmelo-PR e Picuí-PB.

Pelas razões expostas, esperamos contar com o apoio dos Nobres Pares para aprovação deste Projeto de Lei.

Sala das Sessões, em 23 de março de 2015.

Deputado IZALCI LUCAS
PSDB/DF
ESP.MFUN.NGPS.2015.03.18

[1]  http://escolasempartido.org/component/content/article/2-uncategorised/484-anteprojeto-de-lei-estadual-e-minuta-de-justificativa

NOTA de 11/5/2018

Este artigo é parte de uma série de cinco artigos que começou há quase dez anos neste blog Liberal Space e que defende o Liberalismo Clássico e uma Educação Liberal, que leve o Liberalismo Clássico a sério, combatendo uma educação que não merece o nome, pois é mais doutrinação do que educação, que foi moldada para combater o Liberalismo Clássico e para promover uma educação de viés socialista, quando não comunistizante.

São estes os cinco artigos:

O mais antigo dos artigos, “Dogmatismo e Doutrinação“, foi publicado em 3/4/2009, há quase dez anos, no endereço https://liberal.space/2009/04/03/dogmatismo-e-doutrinacao/.

Em seguida, “‘Educação Sem Doutrinação’ e ‘Escolas Sem Partido’“, que foi publicado em 10/4/2010, no endereço https://liberal.space/2010/04/10/educacao-sem-doutrinacao-e-escolas-sem-partido/.

O terceiro artigo, “Doutrinação e Educação: A Esquerda Pretende Argumentar que Doutrinar não Passa de um Jeito ‘Crítico’ de Educar“, que foi publicado em 28/5/2016, no endereço https://liberal.space/2016/05/28/doutrinacao-e-educacao-a-esquerda-pretende-argumentar-que-doutrinar-nao-passa-de-um-jeito-critico-de-educar/.

O quarto artigo, “A Controvérsia Acerca do ‘Escola Sem Partido’ Continua: PL 867/2015“, publicado em 14/5/2018, no endereço https://liberal.space/2018/05/14/a-controversia-acerca-do-escola-sem-partido-continua/.

Por fim, o quinto artigo, “A Escola e a Liberdade”, publicado em 10/11/2018, no endereço https://liberal.space/2018/11/10/a-escola-e-a-liberdade/.

Eduardo CHAVES

 

Comentário sobre a Palestra do Prof. Luiz Carlos Santana Acerca do Liberalismo

1. Apresentação

O presente artigo, “Comentário sobre a Palestra do Prof. Luiz Carlos Santana Acerca do Liberalismo”, é, de certo modo, uma continuação do meu artigo anterior.

O artigo anterior, no caso, para evitar confusão, é “Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo“, também publicado aqui neste blog Liberal Space na URL https://liberal.space/2018/03/19/uma-discussao-academica-meio-acalorada-sobre-o-liberalismo/  .

Meu artigo original, “O Liberalismo na Política, Economia e Sociedade e suas Implicações para a Educação: Uma Defesa“, também foi publicado aqui neste blog Liberal Space em 18/03/2018 na URL https://liberal.space/2018/03/18/o-liberalismo-na-politica-economia-e-sociedade-e-suas-implicacoes-para-a-educacao-uma-defesa/, Embora só publicado aqui no blog agora, ele foi inicialmente apresentado em um conjunto de seminários organizado pelo Grupo de Pesquisa HISTEDBR (História da Educação Brasileira), da Faculdade de Educação da UNICAMP, no ano de 2001 (ou seja: dezessete anos atrás), sobre o tema Liberalismo e Educação. Meu seminário foi o primeiro a ser apresentado na série. Em datas subsequentes vários outros seminários foram realizados, outros professores, em geral de fora da UNICAMP, apresentando seus trabalhos.

Oportunamente, os Professores José Claudinei Lombardi e José Luís Sanfelice, do HISTEDBR, organizadores do conjunto de seminários, resolveram publicar em forma de livro as diversas contribuições submetidas nos diversos encontros e me pediram para revisar o texto inicial de minha apresentação, incorporando, tanto quanto possível, questões levantadas na discussão oral que se seguiu. O resultado da revisão foi a texto que agora, em 18/03/2018, publiquei no meu blog Liberal Space, cujo link é fornecido no início do parágrafo anterior. Esse texto é basicamente idêntico ao texto que foi publicado no livro Liberalismo e Educação em Debate (Autores Associados, Campinas, 2007), pp.1-60, editado pelos Professores Lombardi e Sanfelice, que, por sinal, são meus colegas de longa data no Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP.

Minha participação nos seminários não se limitou, porém, à apresentação do texto republicado aqui neste blog a que acabei de fazer referência. Movido pelo amor ao debate, também fiz comentários escritos, alguns deles bastante extensos e detalhados, à apresentação de dois outros professores: o Prof. Gilberto Luiz Alves e o Prof. Luiz Carlos Santana.

O Prof. Gilberto Luiz Alves, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), dignou-se a redigir duas respostas aos meus comentários iniciais sobre a sua palestra, que, por sua vez, geraram uma longa réplica minha. É essa discussão que agora está disponível neste blog Liberal Space, sob o título “Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo“, na URL https://liberal.space/2018/03/19/uma-discussao-academica-meio-acalorada-sobre-o-liberalismo/. O texto correspondente à palestra original do Prof. Gilberto se encontra nas pp. 61-76 do livro Liberalismo e Educação em Debate (acrescido de um Anexo, pp. 77-86, que não foi apresentado oralmente nem é exatamente igual às duas respostas que redigiu aos meus comentários iniciais sobre sua palestra.

O texto que segue contém os meus comentários à palestra original do Prof. Luiz Carlos Santana, que se encontra nas pp. 87-114  do livro Liberalismo e Educação em Debate. Que eu saiba, o Prof. Luiz Carlos Santana não respondeu aos meus comentários — ou, se o fez, sua resposta nunca me chegou às mãos.

Aqui vão, portanto, meus comentários.

2. Comentários

A. Quanto à Conceituação do Liberalismo

Contrariamente ao que afirmou, no hora das perguntas, a colega da UNESP de Presidente Prudente, pareceu-me haver uma clara conceituação de Liberalismo na palestra feita – clara mas, a meu ver, errônea.

O Prof. Santana conceituou Liberalismo como ideologia criada para defender os interesses do capital (i.e., da propriedade privada) que coloca o Estado como o principal mecanismo nessa defesa. O Estado, nessa conceituação, existiria fundamentalmente para defender os interesses do capital (i.e., da propriedade privada).

Nesse contexto, o Prof. Santana citou, com aparente aprovação, a tese de Miriam Warde, em que ela, segundo ele, afirma que o Liberalismo seria a expressão do Capitalismo.

Diante de inúmeras referências a essa conceituação do Liberalismo, estranhou-me a observação da colega da UNESP de que o Prof. Santana não teria deixado claro qual conceito de Liberalismo estaria utilizando.

O que não ficou claro, isto é verdade, foi quais seriam as outras conceituações de Liberalismo que o Prof. Santana disse que existiam e nunca explicitou.

Não tendo ele as apresentado, aproveito para apresentar uma outra (que, naturalmente, ja expus na minha própria palestra).

No meu entender a ideia central do Liberalismo é a ideia de liberdade (como eu procurei mostrar na minha palestra, especialmente em minha resposta a pergunta do Prof. Saviani, que, como o Prof. Santana, coloca a  propriedade privada como a ideia central do Liberalismo, e como eu procurei ressaltar em minha segunda pergunta ao Prof. Santana, ontem).

Se o Liberalismo for analisado no contexto do século XVIII, sem o uso de uma ótica marxista, ficará claro que a ideia central do Liberalismo é a de liberdade — ideia tão central que lhe deu o nome. Os liberais clássicos, embora tenham sempre defendido a propriedade privada, sempre deixaram claro que a defesa da propriedade privada era uma conseqüência da defesa incondicional da liberdade. Para eles, contrariamente ao que pretende (segundo se alegou) Miriam Warde, o Capitalismo é uma expressão necessária do Liberalismo (NÃO vice-versa).

A razão pela qual pessoas que adotam a ótica marxista tendem a ver as coisas de forma inversa está, a meu ver, no axioma de que é a infra-estrutura que determina a super-estrutura. Assim, seriam fatores econômicos, ou seja, o Capitalismo, que produziriam ideias políticas, ou seja o Liberalismo. Liberais nunca concederam aos marxistas e simpatizantes esse axioma. Para eles, o Liberalismo surgiu num contexto em que várias liberdades eram importantes: liberdade política, contra um estado quase absoluto; liberdade religiosa, contra uma igreja monopolista e intolerante; e liberdade econômica — apenas uma entre várias liberdades. Foi a ênfase na liberdade, como princípio, que os levou, inter alia, a defender o direito de propriedade privada e, assim, a criar o que veio a ser chamado (nunca, que me conste, no século XVIII, pelos próprios liberais) de Capitalismo.

No século XVIII não havia o Marxismo. Creio que uma interpretação do surgimento do Liberalismo que lhe faça justiça histórica não pode, usando uma ótica caracteristicamente marxista, inverter o que era realmente importante para os liberais do século XVIII. Seria um anacronismo.

B. Quanto ao “Estado Mínimo”

Surpreendeu-me o fato de que o Prof. Santana tenha sentido a necessidade de enfatizar duas vezes que a ideia do “Estado Mínimo” não era invenção dos chamados neo-liberais de meados do século XX mas que tinha raizes no século XVIII. Isso me parece tão óbvio que a repetida tentativa de demonstrá-lo sugere pouca intimidade com as ideias liberais do século XVIII, que inventaram a frase “that government is best that governs the least” (“o melhor governo é o que menos governa”).

A ideia do “Estado Mínimo” é uma decorrência necessária da colocação da liberdade como pedra angular da filosofia política. Todos os liberais clássicos (e também os posteriores) enfatizaram o fato de que ameaças à nossa liberdade não aparecem apenas de nossos co-cidadãos (donde a necessidade de o Estado exercer a função policial e judicial) e dos cidadãos de países estrangeiros (donde a necessidade de o Estado exercer a função militar), mas, também, do próprio Estado. Para conter o Estado dentro de limites gerenciáveis, os liberais clássicos defenderam a tese de que o Estado, embora necessário, deve ser o menor possível e exercer apenas as funções necessárias para a manutenção da ordem e o exercício dos direitos individuais básicos (integridade da pessoa, expressão, locomocação, associação, e propriedade).

É desta ideia do “Estado Minimo” que decorrem a defesa, de um lado, o Capitalismo, e, de outro, da tese de que o provimento de serviços de educação, saúde, etc. deve ser feito pela iniciativa privada, não pelo Estado.

C. A Questão da Privatização

Por isso, outro fato que me surpreendeu na palestra do Prof. Santana foi ele parecer sentir necessário mostrar (à semelhança do que havia feito com o “Estado Mínimo”)  que a privatização da educação (ou, como ele prefere, do Ensino) é coisa antiga, com raizes no século XVIII. Novamente, isso me parece tão óbvio para qualquer pessoa que tenha conhecimento ainda que superficial da história da educação e da filosofia que insistir nisso parece mostrar pouca familiaridade com as ideias e os desenvolvimentos da era moderna. Ora, não foi a campanha pela educação pública um desenvolvimento histórico relativamente recente, tipicamente do século XIX? O que precisaria ser mostrado para o tipo de audiência presente na palestra, interessado na História da Educação, mas formado dentro de uma visão de esquerda e predominantemente marxista, é que o que é um desenvolvimento relativamente recente é a defesa da escola pública, não a ênfase no caráter privado que a educação sempre teve e que, no entender dos liberais como eu, deve voltar a ter (e não só no nível universitário).

O Prof. Santana deu a impressão, em uma observação que fez, de que a defesa da escola pública é algo tão hegemônico hoje, pelo menos no que diz respeito à educação básica (não superior), que nem mesmo os liberais ousariam, hoje, defender a total privatização da educação. Está errado. Eu defendo — e muitos outros também (embora haja liberais, hoje, como Charles Murray, que abrem uma exceção para a educação na sua defesa do “Estado Mínimo”).

Se as coisas forem vistas desta ótica, bem mais fiel à história do que aquela que o Prof. Santana procurou impor aos fatos, o que surpreende não é (como ele parece crer) que Adam Smith tenha defendido o caráter privado dos serviços educacionais, mas que ele tenha feito alguma concessão em relação a essa questão, admitindo que o Estado deva atentar para a educação dos desvalidos, para que não aconteça o seu total emburrecimento (uso o termo do Prof. Santana). No entanto, o Prof. Santana manifestou-se “surpreso” de encontrar em Adam Smith argumentos em favor do que hoje chamamos de “privatização do ensino”. O que me surpreende é a surpresa do Prof. Santana, que se explica, talvez, por ele ter vivido sua vida acadêmica tão imerso em contextos não-liberais.

Para os liberais mais recentes, o onus probandi é sempre de quem propõe uma extensão das funções do Estado. O caráter privado dos serviços privados seria o normal (o “default”). O que precisaria ser justificado é a defesa da intervenção do Estado nessa área. É por isso que Charles Murray, ao abrir a exceção mencionada atrás, se sente obrigado a justificar sua concessão.

Para os liberais, não causa nenhuma estranheza, muito menos escândalo, dizer-se que a educação é um serviço como qualquer outro – uma “commodity”. É mesmo.

D. É Lord Keynes um Liberal?

As opções conceituais equivocadas do Prof. Santana culminam na sua inclusão de Lord Keynes como liberal. Lord Keynes seria, segundo ele, o mais importante liberal do entre-guerra e, talvez, até do após-guerra (segunda), constituindo-se o ideólogo da fase “monopolista” do Capitalismo (como Adam Smith teria sido de sua fase “concorrencial”).

Em resposta à minha pergunta sobre como ele justificava a inclusão, em um mesmo cesto, de Lord Keynes, Milton Friedman e Friedrich von Hayek, quando Friedman e Hayek se opuseram ferrenhamente às ideias de Lord Keynes, contradizendo sua tese (de Lord Keynes) de que o Estado deve, por razões teóricas e/ou práticas (evitar o desemprego, por exemplo), regular (regulamentar) e mesmo intervir na economia, o Prof. Santana deixou evidente uma distorção grave em sua ótica. Ele reconheceu a existência de importantes divergências entre Lord Keynes, de um lado, e Friedman e von Hayek, de outro, mas enfatizou que todos eles defendiam a propriedade privada dos meios de produção. Ora, isso é evidente. Ninguém jamais afirmou que Lord Keynes fosse um marxista ou mesmo um socialista. Isso não quer dizer, porém, que ele fosse um liberal — a menos que se acredite, como o Prof. Santana parece acreditar, que quem não é socialista-marxista (defendendo a propriedade estatal dos meios de produção) tem, forçosamente, que ser liberal. Tertium non datur.

Mas existe uma alternativa (ou várias outras): a defesa do estado previdenciário (“welfare state”), ou seja, a Social-Democracia.

A completa ausência, na palestra do Prof. Santana, de qualquer referência à Social-Democracia como uma real alternativa à Democracia Liberal (e ao Socialismo de Orientação Marxista), é que o leva a se equivocar totalmente na colocação de Lord Keynes como liberal. Lord Keynes foi um típico defensor do “welfare state” — e, conseqüentemente, um anti-liberal, como claramente o perceberam Friedman e von Hayek (bem como Ludwig von Mises, outro grande ausente da palestra do Prof. Santana).

E. O Liberalismo e a Educação

Se o que caracteriza o Liberalismo é a defesa da liberdade e, conseqüentemente, a oposição à interferência indevida do governo nas ações dos indivíduos, que resultou no slogan de que o governo deveria, exceto pela manutenção da ordem, deixar que os indivíduos façam o que bem entendam (“laissez faire”), então suas implicações para a educação devem ser pelo menos três — das quais o Prof. Santana só mencionou duas.

Em primeiro lugar, a educação deve se localizar estritamente na esfera privada, não na esfera estatal (ou do governo). O Estado (ou o governo) deve, também na área da educação, “laissez faire” — deixar que a iniciativa privada atue livremente.

Em segundo lugar, a educação não deve ser obrigatória. Obrigar alguém a se educar ou a educar os filhos é uma interferência indevida com a sua liberdade — por mais importante que seja a educação para o indivíduo e até mesmo para a sociedade. Os liberais sempre defenderam a tese de que o Estado (ou o governo) não tem o direito de obrigar alguém a fazer algo mesmo quando pode ser demonstrado que fazer esse algo é no seu melhor interesse — nem mesmo o direito de impedir que alguém se mate.

Em terceiro lugar, e deixando os aspectos mais “macros” da educação, os liberais sempre defenderam a liberdade das crianças contra interferências indevidas dos adultos – aí incluídos seus pais e seus eventuais professores. Da mesma forma que o Estado (ou o governo) deve deixar a sociedade agir livremente (“laissez faire”) no limite máximo (só restringível pelas necessidades da segurança), os pais ou os professores devem respeitar ao máximo a liberdade da criança, respeitando ao máximo os seus interesses e procurando interferir com o seu livre desenvolvimento o mínimo possível. Jean-Jacques Rousseau, que, em muitos aspectos, está longe de ser um liberal, foi, na sua teoria educacional, talvez o mais radical dos liberais, ao propor uma “Educação Negativa” (versão pedagógica do “Estado Mínimo”). John Dewey, que, em alguns momentos, colocou os interesses da sociedade (“formação para a cidadania”) na frente dos interesses dos indivíduos, não deixou, porém, de enfatizar a necessidade de respeitar a liberdade e os interesses das crianças. Está aí a principal característica da educação liberal (quando a educação é encarada da ótica “micro” do que se passa na casa ou na sala de aula).

E essa visão “micro” é perfeitamente coerente com a visão “macro” representada pelos dois primeiros aspectos: em todos os aspectos a ênfase está na liberdade.

F. Voltando ao Conceito de Liberalismo: o Papel do Estado

No final de sua palestra, o Prof. Santana mencionou que, para liberais como Milton Friedman, o Estado é árbitro, não participante. Apenas mencionou, “en passant”.

Ora, essa tese, perfeitamente liberal, contradiz totalmente a visão do Liberalismo proposta pelo Prof. Santana, segundo o qual o Estado não é árbitro, mas é o defensor dos interesses do capital. No entanto, o Prof. Santana nem por meio minuto se deteve para analisar essa afirmação que contradiz frontalmente a visão de Liberalismo que ele procurou expor.

Embora o Prof. Santana tenha aparentemente ficado “em cima do muro” sobre se é liberal ou não, sobre se defende a privatização do ensino ou a escola pública, mesmo quando fustigado pelo Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo), a sua conceituação de Liberalismo mostrou que ele adotou uma visão do Liberalismo que é tipicamente marxista — e não a visão do Liberalismo que os próprios liberais, antigos e modernos, adotam e explicitamente defendem. Em nenhum lugar isso ficou mais evidente do que na sua rejeição, a priori, e sem qualquer argumento, da tese do Estado árbitro (e, portanto, imparcial).

G. Uma pergunta final

Se os liberais, que defendem a liberdade, estão defendendo os interesses do capital, como afirma o Prof. Santana, seria necessário, para defender os interesses dos trabalhadores, defender a anti-liberdade (como a história recente tem mostrado)?

Desculpe-me ter me alongado.

Transcrito aqui neste blog em Salto, 18 de Março de 2018

Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo

Uma Discussão Acadêmica (Meio Acalorada) sobre o Liberalismo

Eduardo Chaves e Gilberto Luiz Alves

 Conteúdo

Apresentação

Comentários Iniciais de Eduardo Chaves à Palestra do Prof. Gilberto

Duas Respostas do Prof. Gilberto aos Comentários de Eduardo Chaves

Réplica de Eduardo Chaves às Respostas do Prof. Gilberto

Anexo: Passagens de Adam Smith

I. Apresentação

Meu artigo “O Liberalismo na Política, Economia e Sociedade e suas Implicações para a Educação: Uma Defesa”, publicado aqui neste blog Liberal Space na URL https://liberal.space/2018/03/18/o-liberalismo-na-politica-economia-e-sociedade-e-suas-implicacoes-para-a-educacao-uma-defesa/, foi inicialmente apresentado em um conjunto de seminários organizado pelo Grupo de Pesquisa HISTEDBR, da Faculdade de Educação da UNICAMP, em 2001, sobre o tema Liberalismo e Educação. Meu seminário foi o primeiro a ser apresentado. Em datas subsequentes vários outros seminários foram apresentados. Oportunamente, os Professores José Claudinei Lombardi e José Luís Sanfelice, do HISTEDBR, resolveram publicar em forma de livro as diversas contribuições apresentadas no seminário e me pediram para revisar o texto de minha apresentação, incorporando, tanto quanto possível, questões levantadas na discussão. O resultado da revisão foi a versão que agora, em Março de 2018, publiquei no meu blog Liberal Space e que é basicamente idêntico ao texto que foi publicado no livro Liberalismo e Educação em Debate (Autores Associados, Campinas, 2007), pp.1-60.

Minha participação nos seminários não se limitou à apresentação do texto que republiquei hoje aqui neste blog. Fiz comentários escritos às apresentações de dois outros professores. Um deles, o Prof. Gilberto Luiz Alves, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), redigiu duas respostas aos meus comentários iniciais sobre a sua palestra, que, por sua vez, geraram uma longa réplica minha.

É esse material que agora transcrevo aqui, e que foi originalmente distribuído na lista de discussão do HISTEDBR.

O texto correspondente à palestra original do Prof. Gilberto está nas pp. 61-76 do livro Liberalismo e Educação em Debate. Ao receber o livro impresso, fui surpreendido pelo fato de que o texto do Prof. Gilberto publicado no livro tem um “Anexo”, impresso nas pp. 76-84. Esse “Anexo” incorpora parte do material das duas respostas que o professor enviou aos meus comentários originais, mas leva em conta, igualmente, minha réplica – tudo isso sem mencionar a discussão que tivemos. Tudo isso foi feito sem que eu tivesse ciência e, pior, sem que eu tivesse condições de responder. Cabe ao leitor avaliar como organizadores de livros se comportam em relação a autores que contribuíram para a elaboração da obra que organizaram. Das 224 páginas do livro, nada menos do que sessenta (mais de um quarto) foram redigidas por mim.

Eduardo Chaves

18 de Março de 2018

II. Comentários Iniciais de Eduardo Chaves à Palestra do Prof. Gilberto

Em 29 de Junho de 2001 encaminhei ao Prof. José Claudinei Lombardi (conhecido como Zezo) o seguinte e-mail:

“Caro Zezo,

Ontem tive que sair da palestra imediatamente após o término da apresentação, sem acompanhar, ou, como eu desejava, participar, da discussão.

Como já fiz em ocasião anterior, porém, teci alguns comentários sobre a palestra, que coloco adiante, que, peço, sejam distribuidos e ao autor da palestra e aos demais participantes.

Eduardo”

——————————

Minha principal crítica à palestra do Prof. Gilberto, que teve como título e tema “O Liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”, está na falta de clareza e coerência conceitual na sua caracterização, seja de Liberalismo, seja de Escola Pública.

O tema da palestra sugeria que o palestrante iria explicar a participação do Liberalismo na produção da Escola Pública Moderna (i.e., imagino, a Escola Pública que hoje conhecemos). Se, como pretendo demonstrar, faltou clareza e coerência conceitual na caracterização tanto do Liberalismo como da Escola Pública, a palestra ficou seriamente prejudicada – embora tenha contido um bom número de observações interessantes e até mesmo verdadeiras.

1. A Conceituação do Liberalismo

A principal falha da palestra esteve na conceituação do Liberalismo. Na verdade, não houve sequer uma tentativa de conceituar o Liberalismo. O palestrante pareceu pressupor que todo mundo na audiência soubesse exatamente o que era o Liberalismo. No entanto, ele próprio pareceu pressupor que o Liberalismo é um conjunto de ideias vago e às vezes até mesmo incoerente.

Exemplifico.

A. Tópicos em Destaque na Palestra do Prof. Gilberto

O tema da palestra era mostrar o papel do Liberalismo na “produção” da Escola Pública Moderna.

Primeiro, o autor começou por esclarecer (?) que o Liberalismo surgiu na Idade Média – por volta do século X – quando a classe burguesa procurou se livrar do que ele chamou de “entraves feudais” (especialmente pagamento de impostos aos senhores feudais).

Segundo, ele mencionou o papel da Reforma Protestante na proposição da tese de que a educação deve ser universal, isto é, de que todo mundo deve saber ler e escrever para poder, por si só, ter acesso à Bíblia.

Terceiro, ele mencionou o papel da Contra-Reforma, em especial dos Jesuítas, na construção da ideia (pareceu-me) de que o conhecimento é especializado e, consequentemente, sua transmissão deve ser realizada através de disciplinas por preceptores especializados (divisão do trabalho docente). [Essa ideia não ficou muito clara, tendo sido tratada meio en passant].

Quarto, ele mencionou o papel da Universidade de Paris na divisão dos alunos em turmas, por nível de adiantamento no domínio dos conteúdos disciplinares.

Quinto, ele mencionou o papel de Comenius, que teria sistematizado as ideias mestras da Escola Moderna (não necessariamente da Escola Pública Moderna, que deveria ter sido o tema – fato em si já significativo), na qual o trabalho didático fica organizado em disciplinas e séries e o trabalho docente é dividido, ficando a cargo de professores especializados nas disciplinas e preparados para atuar numa determinada série (ou num determinado conjunto de séries).

Sexto, ele mencionou, em seguida, o papel de Adam Smith e dos enciclopedistas franceses, em especial de Condorcet.

Paro por aqui – embora outros movimentos e autores tenham sido mencionados na tentativa de mostrar como se “produziu” a Escola Pública Moderna.

B. Observações sobre Esses Tópicos

Faço sobre esse relato apenas as observações que me parecem mais importantes.

Primeiro, o palestrante, em nenhum momento, sequer tentou justificar o que pareceu ter sido um pressuposto básico seu, a saber, que o movimento de combate ao Feudalismo, a Reforma Protestante, a Contra-Reforma, a Universidade de Paris, Comenius, Adam Smith, os “Philosophes” Franceses do século XVIII, tudo isso é parte do Liberalismo! O que é que o palestrante entende por Liberalismo que lhe permite incluir como exemplos da evolução do Liberalismo tanto a Reforma Protestante quanto a Contra-Reforma Católica?

Segundo, a colocação da origem do Liberalismo na Oposição e no Combate ao Feudalismo – na crítica ao que ele chamou de “entraves feudais” – confunde (de forma até bastante lisonjeira para o Liberalismo) a luta pela liberdade, em si, com a teoria liberal, que é uma teoria normativa, bastante específica, que defende a maior liberdade possível do indivíduo face ao governo e às demais instituições da sociedade e que, portanto, contém uma visão muito clara sobre qual deve ser o papel (extemamente limitado) do Estado na sociedade.

Terceiro, a ausência de uma conceituação clara do Liberalismo impede o palestrante de apreciar adequadamente o fato de que alguns não-liberais (como os Reformadores Protestantes), na sua luta para quebrar o monopólio que a Igreja Católica exerceu sobre a educação durante a Idade Média, valeram-se do poder de um Estado que tinha interesses que se contrapunham aos da Igreja Católica (como, no caso de Lutero, claramente um não-liberal, e os príncipes saxões). Nessa luta contra a Igreja Católica, muitos dos reformadores protestantes (quase todos eles não-liberais) não se importaram em manter o vínculo entre a Igreja Protestante e o Estado (caso de vários territórios na Alemanha, da Inglaterra, ou mesmo da Genebra calvinista, por exemplo). Os liberais, entretanto, logo perceberam o risco de, ao escapar do monopólio da educação pela Igreja Católica, cair no monopólio da educação pelo Estado (ainda que esse estado não estivesse ligado à Igreja Católica), e, na defesa da liberdade do indivíduo, se opuseram a que a educação ficasse sob o controle do Estado (ainda que protestante).

Quarto, o palestrante jogou com a imprecisão de certos conceitos básicos extremamente importantes para uma discussão do tema que se propôs discutir.

C. Uso Impreciso e Obscuro de Certos Conceitos pelo Palestrante

Ilustro.

  1. Ao falar dos Reformadores Protestantes, disse que eles defenderam a tese da educação universal. Mesmo que isso tenha sido verdade (o que não vale a pena discutir aqui), essa tese da universalidade da educação não equivale (como o palestrante pareceu pressupor) à tese de que a educação é um direito inerente à pessoa humana. Uma coisa é dizer que toda pessoa deve (por prudência, isto é, condicionalmente) aprender a ler e a escrever, porque, SE não aprender, será (entre outras coisas) presa fácil de padres ignorantes desejosos de manipula-la, os quais poderão leva-la a “perder a sua alma”. Outra coisa é dizer que a educação é um direito básico das pessoas e que, portanto, alguém (em geral o Estado) tem o dever incondicional de prover-lhes a educação necessária.
  2. Ao falar de Adam Smith (que foi apresentado aos presentes como um crítico da divisão do trabalho!), o palestrante deixou a impressão de que Adam Smith defendia a tese de que a educação é um direito do indivíduo e que cabe ao Estado prover a educação da população (até mesmo gratuitamente). Adam Smith, entretanto, não defendeu a tese de que a educação é um direito da pessoa, muito menos de que o Estado devesse provê-la diretamente à população, muito menos ainda de que, em o fazendo, devesse fazê-lo de forma gratuita. Em geral, os autores liberais, entre os quais Smith certamente se encontra, ao defenderam a tese de que todo mundo devesse se educar ou ser educado, não advogaram a gratuidade da educação e apelaram à iniciativa privada para a ajuda àqueles que, não podendo pagar pela sua educação, tinham, entretanto, condições (aptidão, capacidade, motivação, etc.) de se educar ou de serem educados. O palestrante, entretanto, ao mencionar o assunto de “bolsas de estudo” pareceu estar sugerindo que bolsas de estudo seriam necessariamente governamentais, custeadas obrigatoriamente por impostos, desconsiderando o fato óbvio e inconteste de que até muito recentemente bolsas de estudo eram dadas apenas a pessoas carentes e merecedoras e exclusivamente por entidades privadas filantrópicas.

2. A Conceituação da Escola Pública

Mas aqui as questões relativas à conceituação do Liberalismo já se misturam com as questões relativas à conceituação da Escola Pública.

O palestrante sugeriu que a escola pública seria, “no discurso liberal clássico”, uma escola que atendesse, simultaneamente, a cinco critérios básicos:

  • Laicidade
  • Universalidade
  • Obrigatoriedade
  • Gratuidade
  • Unicidade (não diferenciação)

A. Laicidade

Certamente os liberais clássicos defenderam uma escola leiga. Isso, no entanto, só quer dizer que defendiam uma escola não controlada (muito menos monopolizada) pela igreja (em especial pela Igreja Católica). Ao defender uma escola leiga, não estavam defendendo, de forma alguma, uma escola controlada pelo Estado. Isso seria simplesmente substituir um monopólio, o eclesiástico, por outro, o estatal, e os liberais não se chamam liberais por acaso: chamam-se liberais porque defendem a liberdade, e não apenas contra aquilo que o palestrante chamou de “entraves feudais”, mas contra todo e qualquer entrave, até mesmo, e em especial, os “entraves estatais”. A defesa da laicidade da escola é, portanto, no discurso liberal clássico, uma defesa da iniciativa privada na educação – uma defesa da tese de que a educação deva ser aberta à iniciativa de quem quer que se interesse em provê-la (até mesmo as igrejas que, na visão liberal, estariam total e cabalmente separadas do Estado).

B. Universalidade

Certamente os liberais clássicos defenderam, em termos, a tese de que todos devem procurar se educar até os limites de seus interesses e de sua capacidade. Isso não quer dizer, entretanto, de modo algum, que o Estado devesse se ocupar do oferecimento de educação a todos, ou mesmo que o Estado devesse se ocupar em garantir que todos tenham educação ou acesso à educação.

C. Obrigatória

Muito menos ainda defenderam os liberais clássicos a tese de que a educação deva ser obrigatória para as pessoas! Não se pode esquecer de que o liberalismo é uma defesa da liberdade dos indivíduos e que, portanto, seria extremamente incoerente imaginar que os liberais clássicos colocassem, sobre as pessoas (ou seus responsáveis, no caso de crianças) a obrigatoriedade da educação. Para eles, educa-se quem quer, até os limites de seus interesses e de sua capacidade – e capacidade, no caso, inclui capacidade intelectual e financeira.’

D. Gratuidade

Não vendo a educação como obrigatória, não haveria porque os liberais clássicos  concluíssem que devesse ser gratuita.

E. Unicidade

Por fim, sendo defensores radicais da liberdade individual, é um contrasenso imaginar que os liberais defendessem uma escola única para todos. Pelo contrário, sua defesa da liberdade na educação pressupõe a importância da diversidade, da diferenciação.

Mas, se isso é assim, de onde surgiu a ideia de uma escola laica, universal, obrigatória, gratuita e única?

Uma coisa é clara. Embora os liberais tenham tido uma importante participação na quebra da ordem tradicional no século XVIII, e, consequentemente, na destituição de todo uma ordem política, social e econômica que beneficiava a nobreza e seus aliados (como o clero), e, nesse processo, tenham, no tocante à educação, tido um importante papel na quebra do monopólio eclesiástico sobre a educação, a ideia de uma escola universal, obrigatória, gratuita, e muito menos ainda de uma escola única (não diferenciada), certamente não é um produto do ideário liberal, muito menos do ideário liberal clássico.

Os liberais, em especial os clássicos, defendiam, radicalmente, a liberdade do indivíduo – contra todo e qualquer entrave, em especial os entraves estatais. Não colocariam, como, em geral, não colocaram:

  1. sobre o indivíduo “consumidor” da educação a obrigatoriedade de se educar ou de educar seus filhos;
  2. sobre o indivíduo “produtor” da educação a obrigatoriedade de oferecê-la, muito menos a todos, e muito menos ainda de forma gratuita;
  3. sobre o Estado a tarefa de prover a educação ou a tarefa de custear, normatizar ou inspecionar a educação oferecida pela iniciativa privada;
  4. sobre toda a Sociedade o imperativo de uma escola única, que não atendesse às peculiaridades da clientela – peculiaridades essas de gosto, de interesse, de aptidão, de talento, de capacidade intelectual, e de busca de diferenciação em termos de qualidade.

3. Escola Pública e Escola Moderna

Por fim, cabe-me observar que o palestrante tratou, em sua palestra, de desenvolvimentos importantes (como a evolução das disciplinas especializadas, a seriação do trabalho escolar, etc.) como se esses desenvolvimentos caracterizassem unicamente a escola publica. Na verdade, esses desenvolvimentos são característicos da escola moderna, qualquer que seja o seu financiador e controlador, público ou privado.

Foi nesse contexto que o palestrante disse algumas coisas interessantes, e até mesmo verdadeiras, acerca da evolução da escola moderna. Mas, ao sugerir que esses desenvolvimentos tenham que ver especialmente com a escola pública, e, mais especificamente, com o papel do Liberalismo na construção de uma escola laica, universal, obrigatória, gratuita, e única (indiferenciada), o palestrante prestou um desserviço aos que assistiam à sua palestra e que não tinham, como ele, a obrigação de conhecer melhor os fatos e de ter mais clareza e precisão conceitual – mesmo falando, como admitidamente falou, como um marxista.

É isso.

III. Duas Respostas do Prof. Gilberto aos Comentários de Eduardo Chaves

O Prof. Gilberto submeteu duas respostas aos comentários que fiz. A segunda de suas respostas chegou às minhas mãos antes da primeira, por razões que não consegui elucidar.

Como se verá a seguir, eu respondi a essas respostas em uma Réplica.

Um Anexo de autoria do Prof. Gilberto acabou sendo publicada no livro impresso. Nem os meus Comentários Iniciais (aos quais suas respostas supostamente se contrapunham), nem minha réplica foram publicados no livro impresso – embora os organizadores do livro tivessem pleno acesso a eles, pois os comentários, as respostas e a réplica foram encaminhados através deles.

Aqui estão as duas respostas do Prof. Gilberto.

1. Primeira Resposta do Prof. Gilberto

Em 1 de Julho de 2001 o Prof. Gilberto encaminhou ao Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo), respondendo aos meus comentários.

Diz ele:

“Caro Zezo:

Transmita ao Prof. Eduardo Chaves os meus agradecimentos pelos comentários.

Eu gostaria de um pouco de tempo para discutir os pontos levantados por ele. Farei isso proximamente e enviarei a vocês.

De imediato, não posso me furtar ao reconhecimentro de que deixei de conceituar o liberalismo. Também não posso deixar de reconhecer que a ênfase, entre os liberais, é a de que a marca do liberalismo é a defesa da liberdade, o que não acentuei em minha exposição. Mas a questão assim colocada é abstrata. Daí eu ter procurado evidenciar o elemento distintivo do liberalismo, na fase de transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista, que encontrei na permanente luta da burguesia por liberar-se dos entraves feudais. A luta era dirigida contra o passado, encarnado nos obstáculos postos pelas tradições, pelos costumes, pelas instituições e pelas normas estabelecidas. Após a emergência do Estado burguês mudou o discurso, que tornou adversários a serem combatidos a ‘ignorância’ e os ‘vícios’, remetendo para o futuro a possibilidade de destruição das desigualdades sociais. Eu disse que esse meu entendimento não nasceu da leitura de estudos de especialistas do liberalismo, mas de minha leitura de documentos clássicos.

Há questões muito ricas, dentre as apontadas pelo Prof. Eduardo Chaves. A necessidade de distinção entre escola moderna e escola pública é um fato. A meu favor se coloca o tema da palestra, centrado na escola pública, a forma de realização mais importante e desenvolvida da escola moderna.

Sobre Adam Smith eu gostaria até de saber se outras pessoas da assistência tiveram o mesmo entendimento do Prof. Chaves. Fiquei surpreso com o comentário, pois o que eu disse foi muito distinto do que ele entendeu. Aliás, a leitura que ele pessoalmente faz de Adam Smith está mais próxima da que eu faço. Eu disse que Smith não pode ser somado entre os defensores da escola para todos, pois afirmou a necessidade de educação, exclusivamente, para os filhos dos trabalhadores das indústrias, visando combater os resultados da divisão do trabalho manufatureira sobre as ‘faculdades intelectuais e marciais’ daqueles que a ela estavam submetidos. Defendia ele, ainda, uma escola suficientemente barata que permitisse até as famílias trabalhadores pagarem pelos estudos de seus filhos. Só isso.

A incorporação da unicidade entre os atributos identificadores da escola pública, no âmbito do discurso liberal clássico, também não a fiz. Fiz questão de afirmar, também, de que esse atributo transformou-se numa bandeira de luta do escolanovismo, no último terço do século XIX, por força do combate exercido contra a escola dualista burguesa, por ele denominada escola tradicional. A unicidade seria o recurso para a superação do dualismo escolar, nesse momento visto pela leitura liberal dos escolanovistas, falsamente, como elemento determinante das próprias classes sociais.

Por ora, fico por aqui. Mas essas informações já iniciam uma interlocução que, acredito, será muito positiva para todos.

Mais uma vez, não posso deixar sem registro a atenção do Prof. Eduardo Chaves, a quem agradeço mais uma vez. Oportunamente, comento em detalhes suas observações.

Um abraço a todos.

Gilberto L. Alves”

2. Segunda Resposta do Prof. Gilberto

Em 3 de Julho de 2001 o Prof. Gilberto encaminhou ao Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo), o seguinte e-mail, com um anexo.

“Caro Zezo:

Segue, em anexo, a minha análise dos Comentários do Prof. Eduardo Chaves.

Um grande abraço a todos.

Gilberto Luiz Alves”

O Anexo continha o seguinte documento:

Análise dos Comentários do Prof. Eduardo Chaves à Palestra “O liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”

Como anunciei no e-mail de 01.julho, estou remetendo aos colegas que participaram da palestra em referência a minha análise dos Comentários tecidos pelo Prof. Eduardo Chaves. Dispenso-me de fazer maiores citações de seu texto, pois todos dispõem do material. Infelizmente, como o e-mail do Prof. Chaves foi colocado na rede do HISTEDBR, sinto por aqueles que não estiveram na palestra e, assim, ficaram sem referências maiores sobre os pontos levantados. Acredito que o debate iniciado, contudo, possa ajudar um pouco na contextualização das questões apresentadas pelo comentarista.

Eu gostaria de afirmar, inicialmente, a minha tranquilidade em relação ao tom dos Comentários. Aprendi na vida acadêmica, e muito disso devo à UNICAMP, de que os aspectos da crítica que não somam devem ser desprezados. Assim, procurei ler os comentários desarmadamente. Sob o primeiro impacto, escrevi o e-mail já referido, no qual prometia uma resposta mais sistemática, o que procuro fazer agora.

Concordo que a palestra não foi fluente como eu gostaria. Eu não consegui elaborar um texto sintético que me permitisse seguir rigorosamente todos os passos do roteiro previsto. Mas, depois de ter lido e relido os Comentários do Prof. Eduardo Chaves, a minha preocupação centrou-se na quantidade de mal entendidos que constam de seu escrito. A “falta de clareza” de minha palestra pode ter levado, em certo grau, a esse resultado, mas sei, também, que as diferenças teóricas pesam muito no entendimento do ouvinte. Caso fossem consistentes todos os julgamentos do comentarista, eu não teria outro alternativa senão reconhecer a “falta de clareza” de toda a palestra e o seu comprometimento total. A minha exposição, então, não teria sido digna de ser qualificada como palestra, mas sim, como uma versão do “samba do crioulo doido”.

Comecemos pela consideração de “falta de clareza e coerência conceitual” quanto ao liberalismo. Como afirmei, no meu primeiro e-mail, ao iniciar a exposição não fiz uma conceituação do liberalismo enquanto doutrina. Afirmei, inclusive, que esse não era o meu caminho, pois não me sensibiliza a forma pela qual o liberalismo é vendido pelos seus apologetas e pelos seus especialistas. Por outro lado, há a questão da ambiguidade que cerca a sua conceituação. Para confirmar, basta ler o verbete correspondente no Dicionário de Política, de Bobbio. Para mim, o importante era resgatar o conteúdo do liberalismo, enquanto a “visão de mundo” por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe. É claro que ao discutir o liberalismo, enquanto doutrina, essa visão de mundo também se manifesta, mas essa doutrina é só uma de suas expressões e tem, por isso, uma acepção muito mais restrita. Portanto, vi o liberalismo no sentido mais lato possível, como visão de mundo da classe burguesa.

A partir daí, não pode encontrar eco em meu entendimento a afirmação de que a questão central do liberalismo é a liberdade, segundo o Prof. Eduardo Chaves, pois assim posta é abstrata e, portanto, ahistórica. Para mim, o liberalismo ganha significados históricos diferentes em distintos momentos, desde a fase de transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa, independente de uma certa unidade e homogeneidade do discurso liberal em todas as épocas. Ele pode, concretamente, ter tudo a ver com a liberdade, mas pode, também, negar-se e expressar o seu contrário. Eu coloco o meu entendimento da visão de mundo burguesa no âmbito da contradição. Não basta que o discurso pleiteie a liberdade; importa ver se, concretamente, a liberdade está pleiteada. Por isso, ao buscar situar a visão de mundo burguesa, tendo como referência as lutas da classe correspondente, procurei chamar a atenção para o fato de que, na fase de transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista, e só nessa fase, o que marcou a atuação política da burguesia foi a permanente busca de superação dos “entraves feudais”, que tolhiam a liberdade de trocar e a liberdade de produzir. A luta era dirigida contra o passado, encarnado nos obstáculos postos pelas tradições, pelos costumes, pelas instituições e pelas normas estabelecidas. Inclusive no caso da educação, quem analisa os revolucionários franceses verifica que a preocupação era a de superar o controle até então exercido pela Igreja Católica sobre a educação. A Igreja Católica, nesse contexto, era um daqueles “entraves feudais” do passado, do qual desejava a burguesia se ver liberada. Nessa fase, a visão de mundo burguesa foi marcada por uma grandiosidade tal que, “mesmo falando como um marxista”, não posso negar tal evidência histórica. Considero, inclusive, que o ideário produzido nesse instante pela burguesia hoje figura como um rico patrimônio da humanidade. Daí não ser essa uma consideração “lisongeira para o Liberalismo”, mas sim, uma consideração histórica. Após a emergência do Estado burguês mudou o discurso da classe dominante, logo do próprio liberalismo, entendido no seu sentido restrito, que tornou adversários a serem combatidos não mais classes sociais e sim distorções como a “ignorância” e os “vícios”. Isso teve grande importância para a educação, que passou a ser celebrada como a instância mais própria à superação desses obstáculos e à construção de um futuro sem desigualdades sociais. Desde então, a tendência do discurso liberal, na educação, foi o de remeter para o futuro a possibilidade de superação dos problemas sociais, originados naquelas distorções, por meio de plataformas educacionais apropriadas: as “reformas”. Se as reformas não dão certo, basta afirmar que houve equívoco de suas plataformas e que, para colocar tudo nos trilhos, são necessárias outras reformas. Isso se tornou reiterativo. Eu disse, ainda, que esse tipo de discurso teve nas suas origens Horace Mann, o reformador norte-americano, e que, progressivamente, foi sendo universalizado, expandindo-se inclusive pela Europa. Reafirmo que meu entendimento não nasceu da leitura de estudos de especialistas do liberalismo, mas de minha leitura de documentos clássicos. Reconheço, por fim, que ao privilegiar o entendimento do liberalismo como visão de mundo da burguesia, por excelência, abri-me para críticas como a do Prof. Eduardo Chaves, que procura impor-me a necessidade de explicitação do liberalismo como doutrina. Como eu disse, esse não foi o meu caminho. Por outro lado, não vejo a possibilidade de destacar o liberalismo, enquanto doutrina, da forma de existência da burguesia e da visão de mundo que construiu a partir de suas lutas históricas. O liberalismo, enquanto doutrina, é uma forma de elaboração erudita dessa visão de mundo, que procura legitimar a forma de existência da burguesia a partir de bandeiras que “um marxista” julga abstratas e ahistóricas. A liberdade, tal como a considera o Prof. Eduardo Chaves é uma dessas bandeiras.

A outra crítica de peso do Prof. Eduardo Chaves incide sobre “a falta de clareza e coerência conceitual” quanto à escola pública. Afirma ele, inclusive, que não houve uma necessária distinção entre escola pública e escola moderna. Nessa questão é mais difícil sustentar diferenças de interpretação no campo doutrinário e é exatamente nele que se revelam as inconsistências dos comentários. Os juízos neles contidos atribuem-me afirmações que, em absoluto, fiz, durante a palestra. Vamos às principais dessas inconsistências:

  1. Em nenhum momento afirmei que a escola pública que conhecemos e que pode ser sintetizada por seu ideário liberal clássico – escola pública, universal, gratuita, obrigatória e laica – teve existência até a época de emergência do estado burguês. Eu afirmei que inclusive Comenius não defendeu uma escola gratuita, logo nem obrigatória. Ele defendeu, sim, o barateamento dos serviços escolares. Por motivos óbvios, ele, que era um bispo protestante, não defendeu, também, uma escola laica. No interior da Reforma, o que se impôs foi a obrigação da família pela educação de seus filhos. Mas a origem da escola moderna está claramente fundada na obra Didática Magna, de Comenius, que concebeu essa instituição social como decorrência da necessidade de se “ensinar tudo a todos”. A divisão de trabalho que a particulariza, a organização do trabalho didático e as tecnologias que lhe são próprias, tudo isso já estava presente na concepção de Comenius.
  2. Ao chegar a esse ponto da exposição, afirmei que os colégios jesuíticos, ao incorporarem o modus parisiensis de ensinar, criaram as pré-condições necessárias à divisão do trabalho, no âmbito do trabalho didático, tal como se conformou, mais tarde, em Comenius. Comparei a divisão das turmas por níveis de adiantamento, central nesse modo de ensino, às manufaturas nascentes. Para aqueles que quiserem mais detalhes, encaminhei um texto sobre isso para o próximo Encontro Nacional do HISTEDBR. Só pode ser a partir disso que o Prof. Eduardo Chaves colocou na minha exposição a intenção de tomar a “Contra-Reforma Católica” como “exemplo da evolução do Liberalismo”.
  3. Ele considerou igualmente absurda a consideração da “Reforma Protestante” como um desses “exemplos”. Do ponto de vista da doutrina liberal, tudo bem. Mas, do ponto de vista da visão de mundo burguesa, a Reforma protestante foi fundamental e celebrou, entre as liberdades do indivíduo, a de interpretar livremente os livros sagrados. Isso foi central para a educação, pois motivou a defesa, pela vez primeira na história, da necessidade de que todos tivessem acesso à leitura e à escrita, o que explica o avanço da escola nas regiões dominadas pela Reforma protestante.
  4. Também não fiz de Adam Smith um defensor da escola pública para todos. Nem de longe, minha fala deixou sequer subentendidas as ideias de que o economista inglês defendeu a tese de que a “educação é um direito da pessoa”, de que o “Estado devesse provê-la diretamente à população” e “devesse fazê-lo de forma gratuita”. Aliás, eu nada teria entendido de Adam Smith se tivesse feito afirmações nesse sentido. Como já coloquei em meu primeiro e-mail, Smith não pode ser somado entre os defensores da escola para todos, pois afirmou, tão somente, a necessidade de educação para os filhos dos trabalhadores das indústrias, visando combater os resultados da divisão manufatureira do trabalho. Smith reconhecia que a divisão do trabalho estava comprometendo as “capacidades intelectuais e marciais” dos trabalhadores da indústria, daí propor para os filhos destes – e só para os filhos destes –, como um lenitivo, o acesso à educação. Para tanto, sugeria que o estado tornasse a educação pública e produzisse uma escola tão barata que até os trabalhadores pudessem pagar os custos de formação de seus filhos. Por reconhecer que a divisão do trabalho comprometia o desenvolvimentos dos trabalhadores, seria lícito concluir que Adam Smith foi um crítico da divisão do trabalho? Não, a essa insinuação do Prof. Eduardo Chaves eu respondo dizendo que esse efeito, para ele, era como se fosse um acidente de percurso e que a educação, tal como a preconizava, poderia, pelo menos, minorá-lo. Adam Smith considerava a divisão do trabalho uma conquista fundamental da humanidade, pois criou uma nova força produtiva, encarnada no caráter social do trabalho.
  5. No processo revolucionário francês, pela vez primeira, se apresentou a reivindicação de uma escola pública, universal, obrigatória, gratuita e laica. Considerei isso a expressão fundamental do ideário liberal clássico sobre a escola. Mas não afirmei que esse ideário se realizou imediatamente. Pelo contrário, eu disse que ele só começou a se realizar no último terço do século XIX. Uma legislação comprometida com esses princípios só a partir da década de setenta do século XIX começou a ser produzida na Alemanha, na França e na Inglaterra. Nos Estados Unidos, as primeiras iniciativas, nessa direção, surgiram na década de trinta do século XIX com reformadores como Horace Mann, mas, mesmo assim, circunscritas a estados como o de Massachusetts.
  6. Também em relação às bolsas de estudo, o Prof. Eduardo Chaves contesta o conteúdo de minha exposição e afirma que representam um mecanismo muito recente para assegurar educação às crianças pobres. Afirma, ainda, que esse mecanismo esteve atrelado à ação de entidades filantrópicas e não do estado. O texto de sua afirmação é o seguinte: as bolsas de estudos “até muito recentemente (…) eram dadas a pessoas carentes e merecedoras exclusivamente por entidades privadas e filantrópicas.” Essa argumentação categórica desconsidera, pelo menos, a longa luta de pensadores burgueses de porte, como um Diderot ou um Cordorcet. No século XVIII eles faziam a defesa desse mecanismo e entendiam que o estado deveria prover, também, bolsas para as escolas. Como não é um texto disponível em português, transcrevo um extrato de Mémoires pour Catherine II: “(…), numa escola geral e pública deve haver três tipos de alunos: os internos, os bolsistas e os externos. (…) Os Bolsistas – Serão os filhos daqueles que não são suficientemente abastados para prover a educação e a subsistência de seus filhos, razão pela qual o colégio os adota. (…) As bolsas serão sustentadas pela munificência do soberano ou pelo patriotismo dos grandes senhores ou das pessoas ricas, a quem eu não daria, contudo o direito de intervir na seleção.”[1]
  7. Por fim a questão da unicidade, um atributo da escola pública moderna e que eu, segundo o Prof. Eduardo Chaves, teria incluído entre os atributos que lhe foram conferidos pelo liberalismo clássico. Não, no contexto de minha exposição, o liberalismo clássico foi identificado com o pensamento burguês do século XVIII. A unicidade, como já expus no primeiro e-mail, transformou-se numa bandeira de luta do escolanovismo, no último terço do século XIX, por força do combate exercido contra a escola dualista burguesa, por ele denominada escola tradicional. A unicidade seria o recurso para a superação do dualismo escolar, nesse momento visto pela leitura liberal dos escolanovistas, falsamente, como elemento determinante das classes sociais. É digno de nota que o pensamento escolanovista, nesse instante, nem de longe revelava a grandeza do discurso liberal clássico. Pelo contrário, afundava-se na má consciência. Portanto, toda a leitura do Prof. Eduardo Chaves, quanto à questão da escola moderna e da escola pública moderna foi comprometida pelos reiterados mal entendidos expostos. Pelo menos quanto a esse aspecto, eu não posso responder pelos problemas de entendimento do autor dos Comentários.

Após a conclusão de minha palestra, o Prof. Eduardo Chaves necessitou sair e não acompanhou, infelizmente, os debates. Lastimo que isso tenha ocorrido, pois impediu a troca de informações e de reflexões ao final. No debate, constatei que, em pelo menos um caso, o que eu havia falado exigia uma problematização maior para evidenciar melhor como vejo a escola presentemente. Retomei, com níveis de desenvolvimento variados, os pensadores clássicos, bem como Horace Mann, o escolanovismo e  vertentes contemporâneas do pensamento liberal. Sem considerar as diferenças de ordem doutrinária, um bom número das questões do Prof. Eduardo Chaves poderia ter sido superado nessa oportunidade.

Espero que as questões colocadas possam contribuir ao aprofundamento do debate. Mas, desde já, eu gostaria de renovar aos meu colegas, que se colocam no campo do marxismo, a necessidade de afastarmos um vício acadêmico que pouca contribuição tem dado à troca de ideias. Não podemos fazer das ideias dos adversários caricaturas. É fácil criticar as caricaturas, mas isso não revela as fragilidades de outras posturas nem enriquece teoricamente o nosso campo. Esse não tem sido um problema só dos marxistas. Como eu disse, isso está difundido no mundo acadêmico. Daí eu entender que, hoje, está colocada, para nós, uma tarefa importante, qual seja a de participar construtivamente das condições que propiciem o debate acadêmico num patamar mais estimulante, do ponto de vista intelectual, e menos castrador. Nesse sentido eu me dirijo, ainda, ao Prof. Eduardo Chaves, já como um estudioso com o qual não tive a oportunidade de conviver mais assiduamente na UNICAMP, mas com quem, a partir de agora, espero estreitar relações: nos Comentários, foi feita uma caricatura de minha palestra, muito fácil de ser combatida, mas que não espelha as ideias que realmente defendi. Sei que o senhor terá a grandeza moral e intelectual de reconhecê-lo. Também tumultua o ambiente acadêmico a utilização de termos pouco apropriados à ética que deve presidir nossas relações. Eu nunca consideraria um “desserviço” aos estudantes que assistem às suas aulas o fato de, nela, serem veiculadas ideias com as quais não comungo. Na nossa atividade, o desserviço de uma ação existe quando se sustenta na má fé ou no erro. Não enquadro o que apresentei na palestra referida em nenhum dos dois casos. Como norma de convivência intelectual, tenho procurado me colocar na posição do oponente para melhor entendê-lo e até para compreender melhor os seus fortes e as suas fragilidades. Esse é o segredo da tolerância, aliás uma ideia burguesa muito cara ao liberalismo, incluída entre aquelas hoje celebradas como integrantes do patrimônio humano e que merece ser preservada por todos e, com muito mais motivos, pelos liberais.

Um abraço a todos.

Gilberto Luiz Alves

IV. Réplica de Eduardo Chaves às Respostas do Prof. Gilberto

Em 9 de Julho de 2001 escrevi ao Prof. José Claudinei Lombardi (Zezo) o seguinte e-mail:

“Caro Zezo:

Eu recebi primeiro a segunda resposta do Prof. Gilberto Luiz Alves aos meus comentários iniciais sobre a sua palestra, que me foi enviada em 3/7/01 (. . .). Ao constatar que havia uma resposta anterior, de 1/7/01, que eu não havia recebido, solicitei-a a você, que teve a gentileza de a enviar a mim. (. . .).

Incluo, aqui, o texto de minha réplica às respostas do Prof. Luiz Carlos Santana. (. . .) Atenho-me, mais de perto, em minha réplica, à segunda resposta do Prof. Gilberto, não só porque a recebi primeiro, e, portanto, pude lhe dedicar mais atenção, mas, principalmente, porque é nela que nossas divergências ficam mais evidentes.

Presto meu tributo a todos os que estão tendo a paciência de acompanhar esta discussão, em especial ao Prof. Gilberto por ter honrado meus comentários iniciais com sua atenção, e a você, por estar conduzindo todo o processo e por ter me honrado com o convite para ministrar a primeira palestra da série.

Como o Prof. Gilberto se referiu, em sua segunda resposta, ao tom de minha mensagem, deixando implicito que haveria algo inusitado sobre ele (o tom), gostaria de esclarecer que esse é o tom que normalmente uso quando estou escrevendo, especialmente quando estou envolvido em polêmica.

Gostaria de deixar claro que, ao usar esse tom (inclusive nesta réplica), não me move, de forma alguma, animosidade contra o Prof. Gilberto. Creio que é possível combater ideias com dureza, ao mesmo tempo que se tem respeito e consideração por quem as sustenta – embora seja inegável que, sendo nossas ideias uma importante parte de nosso eu, sintamo-nos muitas vezes pessoalmente atingidos quando nossas ideias são atacadas.

Eduardo Chaves”

1. Algumas Considerações Preliminares

a) A palestra do Prof. Gilberto Luiz Alves foi apresentada numa série de Seminários sobre Liberalismo e Educação, promovida pelo HISTEDBR, que, segundo entendo, tem por intuito contribuir para que os estudantes de História da Educação possam entender melhor o Liberalismo, a partir de seus clássicos (do Liberalismo) – até porque, os estudantes de História da Educação da UNICAMP, e de outras universidades brasileiras dominadas pelo Marxismo, metodológico ou doutrinário, raramente têm condições de ver o Liberalismo caracterizado por aqueles que de fato o defendem, conhecendo-o, quando muito, através de seus críticos.

b) Sendo o Liberalismo uma filosofia política que, por incorporar a defesa do Liberalismo Econômico (na prática conhecido como Capitalismo), ficou transformada no grande adversário do Marxismo, seria de esperar que o Prof. Gilberto, que, em sua segunda resposta, conclama seus colegas marxistas a “não . . . fazer das ideias dos adversários caricaturas”, não fizesse exatamente isso.

c) Tendo em vista o observado nos dois ítens anteriores, seria de esperar, em outras palavras, que o Prof. Gilberto, ao falar sobre o Liberalismo, numa série de palestras voltadas para entender o Liberalismo a partir de seus clássicos, e como historiador marxista preocupado em não caricaturar a posição dos adversários, fizesse pelo menos alguma menção do fato de que os liberais não só NÃO SE RECONHECEM no Liberalismo que ele descreve, mas não reconhecem como liberais (e, portanto, como “fellow travellers”) a maioria das pessoas e dos movimentos que ele, de alguma forma (e reconhecidamente sem muita clareza), associou ao Liberalismo em sua palestra.

d) Em sua primeira resposta, o Prof. Gilberto observa: “De imediato, não posso me furtar ao reconhecimentro de que deixei de conceituar o liberalismo. Também não posso deixar de reconhecer que a ênfase, entre os liberais, é a de que a marca do liberalismo é a defesa da liberdade, o que não acentuei em minha exposição. Mas a questão assim colocada é abstrata”. Sem dúvida que a questão é abstrata: afinal de contas trata-se de conceituar um movimento filosófico que teve, e continua a ter, enormes implicações práticas. Mesmo que fosse um movimento apenas prático, sem um ideário filosófico, conceitua-lo ainda assim seria uma questão abstrata. O que é a questão que o Prof. Gilberto se propõe a discutir, “O Liberalismo na Produção da Escola Pública Moderna”, se não uma questão abstrata? Recuso-me, portanto, a aceitar o tom aparentemente pejorativo que o Prof. Gilberto atribui à discussão de questões abstratas.

e) Tendo “despachado” como abstrata a forma em que os liberais se enxergam, o Prof. Gilberto, na palestra e nas suas respostas aos meus comentários iniciais, insiste em não conceituar o Liberalismo, descrevendo-o apenas, de forma vaga, como “a ‘visão de mundo’ por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe”. Fazendo uso parcial de uma expressão utilizada pelo próprio Prof. Gilberto em sua segunda resposta, não me sensibiliza a forma pela qual o Liberalismo é apresentado pelo seus críticos e por especialistas em ideias que lhe são adversárias, entre os quais o próprio Prof. Gilberto. Mas mesmo assim, totalmente não sensibilizado, estou disposto a admitir, “ad argumentandum”, e temporariamente, que o Liberalismo seja a “visão de mundo” da burguesia (daqui por diante tiro as aspas da expressão). O que cobrei do Prof. Gilberto, em minhas observações iniciais, foi exatamente uma explicitação clara e coerente dessa visão de mundo. Aqui, diante da conclamação a posteriori feita pelo Prof. Gilberto a seus colegas marxistas, acrescento mais uma cobrança: a de que a explicitação dessa visão de mundo, sob pena de ser rechaçada como caricatura, seja, além de clara e coerente, reconhecida pelos próprios liberais como sendo a SUA visão de mundo.

f) Parece-me evidente que, a menos que marxistas desejem continuar falando sobre Liberalismo exclusivamente com outros marxistas, o Liberalismo que eles apresentam deve ser reconhecível pelos liberais como a SUA visão de mundo. Ou seja, a menos que o diálogo dos marxistas se pretenda exclusivamente intra-marxista, os marxistas, ao descrever (antes de criticar) o Liberalismo, deveriam fazê-lo de tal forma que os liberais dissessem: “É exatamente isso que eu defendo – agora vamos ver quais são as críticas”. Mas não, os marxistas (não só o Prof. Gilberto) insistem em descrever sumariamente o que só posso descrever como um “Pseudo-Liberalismo Marxista”, isto é, um Liberalismo que só existe em sua própria mente, porque nenhum liberal o reconhece como a sua visão de mundo. Esse Pseudo-Liberalismo Marxista só foi criado e continua a existir para servir de alvo nos exercícios de tiro de intelectuais marxistas. Eles até podem acertar alguns tiros – mas o alvo é falso, e, portanto, os liberais reais, não os de palha, não se sentem atingidos, pela razão simples de que não são atingidos.

g) Pergunto: teria eu alguma chance de diálogo com marxistas se me propusesse a fazer uma palestra sobre “Marxismo e Educação” e me recusasse a conceituar o Marxismo, dizendo apenas que o Marxismo é, “por excelência”,  a religião escatológica de indivíduos que se autoproclamam profetas da iminente implantação de uma versão secular do reino de Deus na terra sob a liderança dos pobres não só de espírito?

2. Estranhos Liberais

a) O tema da palestra do Prof. Gilberto era: “O Liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”. Infelizmente não gravei a palestra, mas anotei, com razoável cuidado, as observações que me causaram mais espécie. Depois das respostas do Prof. Gilberto aos meus comentários iniciais à sua palestra, procurei encontrar uma explicação plausível para o fato de que duas pessoas adultas, intelectualmente maduras, professores universitários, possam ter se desencontrado tanto na interpretação de uma palestra que durou uma hora, se tanto. Achei uma explicação que, pelo menos para mim, lançou alguma luz sobre o problema. Quando vou assistir a uma palestra, imagino que o título que o autor lhe deu procure resumir o que ele de fato vai discutir na palestra. No caso, o Prof. Gilberto poderia ter escolhido vários outros títulos para a sua palestra: “Raizes da Escola Pública Moderna”, “A Gênese da Escola Pública Moderna”, etc. Na verdade, nem mesmo esses títulos corresponderiam exatamente ao que o Prof. Gilberto discutiu, porque entre as questões que ele enfatizou está a da matriz curricular composta de disciplinas e séries que, a meu ver, caracteriza, hoje, não apenas a escola pública, mas toda a escola moderna (com raríssimas exceções que eu cada vez prezo mais). Assim, títulos como “Raizes da Escola Moderna”, “A Gênese da Escola Moderna”, etc. talvez fossem mais adequados do que os anteriormente mencionados. Mas o Prof. Gilberto optou por dar à sua palestra o título: “O Liberalismo e a Produção da Escola Pública Moderna”. Ao escolher esse título, o Prof. Gilberto gerou, em mim, a expectativa de que, a menos que claramente ressalvado, os fatores que ele considerou constitutivos da escola pública moderna fossem ligados ao Liberalismo. Por isso achei, e continuo achando, estranho que numa palestra sobre o papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna tenha sido dada tanta ênfase a pessoas e movimentos não liberais (Reforma Protestante, Contra-Reforma Católica, Comenius, Horace Mann, a Escola Nova) e tão pouca ênfase aos liberais. Na verdade, os únicos liberais mencionados foram Adam Smith e, até certo ponto, os dois philosophes franceses (Diderot e Condorcet). Como vai ficar claro desta minha exposição, não considero a Reforma Protestante, a Contra-Reforma, Comenius, Horace Mann e a Escola Nova movimentos ou pessoas liberais. Foi por isso que tantas de suas considerações me causaram espécie.

b) A primeira delas foi uma observação em que o Prof. Gilberto colocou o início do Liberalismo na Idade Média, por volta do século X, quando a classe burguesa estaria procurando se livrar do que ele chamou de “entraves feudais” (especialmente pagamento de impostos aos senhores feudais). Como mencionei essa tese em meus comentários iniciais, e o Prof. Gilberto não a rejeitou, presumo que ela reflita o que ele de fato pensa. Foi em relação a essa observação do Prof. Gilberto que comentei que ele parece identificar o Liberalismo com “a luta pela liberdade” contra os mais variegados tipos de opressão, luta essa na qual se uniram pessoas de diversos matizes teóricos, e com uma variedade de interesses práticos – amantes e guerreiros da liberdade, talvez, todos eles, mas certamente não necessariamente liberais, no sentido mais técnico do termo. Como, porém, o Prof. Gilberto não discutiu e nem mesmo levantou esse sentido mais técnico do termo “Liberalismo”, permaneceu, a meu ver, essa identificação tácita do Liberalismo com “a luta pela liberdade”.

c) Se não houve tal identificação entre Liberalismo e “a luta pela liberdade”, como é que se explica que, ao procurar esclarecer o papel do Liberalismo na “Produção da Escola Pública Moderna”, o Prof. Luiz invoque, primeiro, os Reformadores Protestantes, depois a Contra-Reforma, depois Comenius, depois Adam Smith, depois os philosophes do século XVIII, depois Horace Mann e, finalmente, a Escola Nova?

d) Entrando em mais detalhe na questão, aos Reformadores Protestantes estou até disposto a conceder que tenham contribuído para a luta pela liberdade, ao enfrentar o monopólio autoritário da Igreja Católica no Ocidente. Mas de que forma pode sua contribuição ser entendida como parte do papel que o Liberalismo teria exercido na “Produção da Escola Pública Moderna”? Creio que os Reformadores Protestantes contribuíram não só para a luta pela liberdade (embora tenham também contribuído, significativamente em alguns casos, para suprimir a liberdade – haja vista Lutero / Münzer e Calvino / Michel de Servetus), mas também para o surgimento da escola moderna – mas não vejo como tenham contribuído para a construção da escola pública moderna nem, muito menos, como alguma contribuição que possam ter dado seja caracterizável como parte do papel do Liberalismo na construção dessa escola (pois era disso que tratava a palestra). Estou genuinamente interessado em entender isso, como liberal, como educador, como ex-protestante, e como ex-estudioso da Reforma Protestante. [Nota de 18/3/2018: removam-se os dois “ex” na descrição de minha condição e de minha situação atual, por favor.]

e) Se estou disposto a conceder aos Reformadores Protestantes uma participação na luta pela liberdade, o mesmo não o faço em relação à Contra-Reforma e aos Jesuítas. Como eles vieram parar numa palestra sobre o papel do Liberalismo na “Produção da Escola Pública Moderna” é, para mim, uma questão ainda mais difícil de entender. Note-se que estou sendo totalmente sincero aqui e não tentando ser o que em inglês se denomina de “facetious”.

f) No caso de Comenius, entendo perfeitamente o papel que desempenhou na construção da escola moderna – mas, novamente, não me fica claro o papel que teria tido na construção da escola pública moderna, nem como esse eventual papel possa ser caracterizável como parte da contribuição do Liberalismo à “Produção da Escola Pública Moderna”. Novamente, estou tentando entender. (Mais sobre isso adiante).

g) Quando o Prof. Gilberto começou a discutir Adam Smith, respirei aliviado, porque achei que finalmente o Liberalismo, como eu o entendo, iria começar a ser discutido. Tenho, de Adam Smith, livros totalizando perto de cinco mil páginas. O que é pinçado de Adam Smith? Uma frase, muito citada, em que ele reconhece que a divisão do trabalho pode levar ao emburrecimento do trabalhador (tema que outro palestrante, o Prof. Luiz Carlos Santana, também enfatizou em sua palestra, a segunda da série), e algumas afirmações (a meu ver incorretas) de que Adam Smith teria defendido a educação apenas dos filhos dos trabalhadores nas indústrias. Eis como o próprio  Prof. Gilberto resume, em sua primeira resposta, o que ele disse sobre Adam Smith: “Eu disse que Smith não pode ser somado entre os defensores da escola para todos, pois afirmou a necessidade de educação, exclusivamente, para os filhos dos trabalhadores das indústrias, visando combater os resultados da divisão do trabalho manufatureiro sobre as ‘faculdades intelectuais e marciais’ daqueles que a ela estavam submetidos. Defendia ele, ainda, uma escola suficientemente barata que permitisse até as famílias trabalhadores pagarem pelos estudos de seus filhos. Só isso”. Concedido que Adam Smith não tenha defendido a escola para todos. Mas é crível que ele tenha defendido “a necessidade de educação, exclusivamente, para os filhos dos trabalhadores das indústrias”? Registre-se que esta não é uma anotação que eu fiz de algo que o Prof. Gilberto disse, mas, sim, algo que ele próprio decidiu registrar, por escrito, na resposta aos meus comentários. Nela ele não faz referência à escola e, portanto, a fortiori, à escola pública: ele faz referência à educação, tout court. Onde é – eu gostaria de saber – que Adam Smith disse ou mesmo sugeriu que os filhos, digamos, dos proprietários de terra e dos “capitães da indústria nascente” não tinham necessidade de educação? Além disso, por que não trazer à baila uma enormidade de outras coisas importantes que Adam Smith disse e que são profundamente relevantes para a questão da escola pública, como, por exemplo, a frase final do trecho que cito mais generosamente adiante (como anexo a esta resposta), que diz: “É por isso que a melhor educação é aquela que se ministra em instituições não públicas”.

h) No tocante aos dois representantes do Iluminismo Francês (Diderot e Condorcet) mencionados pelo Prof. Gilberto, eu pela primeira vez não tenho maiores ressalvas. Minha única estranheza diz respeito à companhia em que eles (e Adam Smith), foram colocados no contexto da discussão do Prof. Gilberto.

i) O Prof. Gilberto diz, em sua segunda resposta: “Em nenhum momento afirmei que a escola pública que conhecemos e que pode ser sintetizada por seu ideário liberal clássico – escola pública, universal, gratuita, obrigatória e laica – teve existência até a época de emergência do estado burguês”. Eu certamente não disse que o Prof. Gilberto havia afirmado isso. Mas é estranho que, considerando que a escola pública, com esse ideário, tivesse surgido no século XVIII, o Prof. Gilberto tenha gasto tanto Latim falando do Feudalismo, dos Reformadores Protestantes, da Contra-Reforma e de Comenius, como se eles todos fossem relevantes para o entendimento do papel que o Liberalismo teria tido no surgimento dessa escola. A estranheza aumenta quando o Prof. Gilberto esclarece que “Comenius, não defendeu uma escola gratuita, logo nem obrigatória”, e que, “por motivos óbvios, ele, que era um bispo protestante, não defendeu, também, uma escola laica”. Ora, Comenius não era liberal (era um pastor, e depois um bispo moraviano), não defendeu uma escola gratuita, nem obrigatória, nem laica – o que faz ele, então, na discussão da “produção” da “escola pública que conhecemos e que pode ser sintetizada por seu ideário liberal clássico – escola pública, universal, gratuita, obrigatória e laica” – ainda mais quando esse escola, segundo o Prof. Gilberto, só passou a existir a partir do final do século XVIII e Comenius viveu na primeira metade do século XVII? Fico me lembrando da piada: “Ora, pois: afinal de contas, o que estou fazendo aqui? Não me chamo Manuel…”.

j) O título desta seção da minha resposta, “Estranhos Liberais”, vindo, como vem, depois das explicações do Prof. Gilberto, pode ser considerado uma provocação desnecessária. Não penso assim. A razão para manter o título é levantar a questão: se os reformadores protestantes, os contra-reformadores católicos, e Comenius, não são liberais, e em alguns casos defenderam ideias contrárias às do ideário da escola pública (ideário que o Prof. Gilberto chama de liberal, mas que não é liberal, como se verá), o que eles estão fazendo numa palestra sobre o papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna? Minha perplexidade tem sua explicação aí, nesta questão.

3. Importantes Liberais Omitidos na Discussão

a) A inclusão dos Reformadores Protestantes, da Contra-Reforma e de Comenius na discussão que o Prof. Gilberto fez do papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna é ainda mais estranha face à não-inclusão de pessoas que certamente podem ser consideradas como tendo feito uma contribuição importante para o ideário liberal e para a teoria da educação, como John Locke, no século XVII, e Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII (embora, dos dois, não tenha dúvida de que Locke tenha contribuído mais para o Liberalismo e Rousseau mais para a teoria da educação).

b) Conforme observei nos meus comentários à palestra do Prof. Luiz Carlos Santana, é estranho que os marxistas, ao discutir a escola moderna (pública ou não) se atenham muito mais aos aspectos formais e macros da laicidade, universalidade, obrigatoriedade, gratuidade, e unicidade, deixando de dar atenção aos aspectos mais substantivos e micros da relação professor/aluno e do binômio ensino/aprendizagem (coisas que interessavam muito de perto a Locke e a Rousseau).

c) Embora Adam Smith tenha sido mencionado na discussão e eu não tenha dúvida de que o Prof. Gilberto esteja plenamente familiarizado com suas ideias, repito o que já disse, a saber, que aquilo que o Prof. Gilberto escolheu dizer sobre Adam Smith dificilmente pode ser considerado como a contribuição mais importante de Adam Smith à discussão do tema que o Prof. Gilberto se propôs.  Cito, ao final desta minha réplica às respostas do Prof. Gilberto aos meus comentários originais sobre sua palestra, algumas passagens de Adam Smith que me parecem muito mais relevantes ao tema do que aquilo que ele resolveu pinçar, dando aos alunos, uma impressão bastante distorcida da posição de Adam Smith. Foi por causa de distorções como esta que disse que o Prof. Gilberto prestou um desserviço aos alunos presentes à sua palestra: podendo esclarecê-los sobre a real contribuição de Adam Smith para a discussão da escola pública moderna, preferiu se omitir sobre aspectos importantes, ressaltando alguns bem mais secundários. (Mais sobre a questão do “desserviço” adiante).

4. A Conceituação do Liberalismo

a) Isso posto, é preciso voltar à questão da conceituação do Liberalismo. Em sua segunda resposta, o Prof. Gilberto avança um pouco em relação à sua palestra. Diz ele:

“Ao iniciar a exposição não fiz uma conceituação do liberalismo enquanto doutrina. Afirmei, inclusive, que esse não era o meu caminho, pois não me sensibiliza a forma pela qual o liberalismo é vendido pelos seus apologetas e pelos seus especialistas. Por outro lado, há a questão da ambiguidade que cerca a sua conceituação. . . . Para mim, o importante era resgatar o conteúdo do liberalismo, enquanto a ‘visão de mundo’ por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe. É claro que ao discutir o liberalismo, enquanto doutrina, essa visão de mundo também se manifesta, mas essa doutrina é só uma de suas expressões e tem, por isso, uma acepção muito mais restrita. Portanto, vi o liberalismo no sentido mais lato possível, como visão de mundo da classe burguesa. A partir daí, não pode encontrar eco em meu entendimento a afirmação de que a questão central do liberalismo é a liberdade, segundo o Prof. Eduardo Chaves, pois assim posta é abstrata e, portanto, ahistórica. Para mim, o liberalismo ganha significados históricos diferentes em distintos momentos, desde a fase de transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa, independente de uma certa unidade e homogeneidade do discurso liberal em todas as épocas. Ele pode, concretamente, ter tudo a ver com a liberdade, mas pode, também, negar-se e expressar o seu contrário. Eu coloco o meu entendimento da visão de mundo burguesa no âmbito da contradição. Não basta que o discurso pleiteie a liberdade; importa ver se, concretamente, a liberdade está pleiteada.”

b) Gostaria de destacar os elementos que me parecem mais importantes nessa passagem. O Prof. Gilberto afirma não desejar conceituar o Liberalismo “enquanto doutrina”. Ele gostaria de resgatar (sic) “o conteúdo do Liberalismo enquanto a ‘visão de mundo’ por excelência da burguesia, a partir das lutas travadas por essa classe”. Ele reconhece, porém, que a “doutrina” é uma das manifestações dessa visão de mundo. Ele, no entanto, considera que a “doutrina” é apenas uma das expressões possíveis do Liberalismo, e, que, portanto, enfocar o Liberalismo “enquanto doutrina” seria adotar uma “acepção . . . restrita” do Liberalismo. Por isso preferiu ver o Liberalismo “como visão de mundo da classe burguesa”. Assim, diz ele, não pode concordar comigo que a questão central do liberalismo é a liberdade, considerando minha posição como “abstrata” e “ahistórica”. Para mim, que não sou nem concretista nem historicista, esses termos não são termos de opróbrio, como, em parte [em relação à natureza abstrata da discussão], já observei.

c) Mas o que é uma “visão de mundo” – e qual é a “visão de mundo” que caracteriza os liberais? No meu entender, uma visão de mundo se manifesta, não através de uma série de imagens, mas, sim, através de uma série de conceitos, valores e juízos que, integrando-se de forma coerente, nos permitem, de um lado, descrever e explicar a realidade e, de outro, agir na busca de nossos objetivos, na defesa de nossos interesses, e na promoção de nossos valores. Se um conjunto integrado de conceitos, valores e juízos é uma doutrina (ou uma teoria), não há como uma visão de mundo possa não ser doutrinária (ou se expressar como uma teoria). A visão de mundo dos liberais é, por conseguinte, eminentemente doutrinária (nesse sentido – eu prefiro caracterizá-la como teórica – especificamente, como uma teoria filosófica).

d) O que é o Liberalismo? O Liberalismo é, basicamente, uma filosofia política que tomou forma no final do século XVII e, principalmente, no século XVIII. Por mais que seja possível colocar o surgimento da burguesia no século X, o Liberalismo só tomou forma a partir do século XVII. A filosofia liberal se sustenta no PRINCÍPIO FUNDAMENTAL de que A LIBERDADE DO INDIVÍDUO É O BEM SUPREMO, que, enquanto tal, tem preponderância sobre qualquer outro que possa ser imaginado. A liberdade é importante especialmente no contexto da relação do indivíduo com o estado e com seus semelhantes na sociedade. Para o Liberalismo, é imperativo, na vida em sociedade, buscar a maior liberdade possível para cada um que seja compatível com igual liberdade para todos. O termo “Liberalismo” vem daí: tem a mesma raiz que o termo “liberdade”. O historiador (ou o sociólogo do conhecimento) pode procurar explicar porque essas ideias só emergiram com clareza no final do século XVII e se fortaleceram no século XVIII. Mas isso não altera a natureza do Liberalismo, que é uma filosofia política, nem afirma-lo enquanto tal é caracteriza-lo de forma “abstrata” e “ahistórica”.

e) O vínculo essencial do Liberalismo é, portanto, com a liberdade – não com a propriedade privada, como, em geral, entendem e pretendem os marxistas. A defesa do direito do indivíduo à propriedade privada é um corolário do Liberalismo na ÁREA ECONÔMICA, não o conceito principal que o define. Este lugar pertence à liberdade, um conceito bem mais amplo, que abrange, além dos econômicos, elementos políticos e sociais.

f) Mesmo na área econômica, a defesa do direito à propriedade privada não esgota o que o Liberalismo defende. O chamado Liberalismo Econômico, geralmente denominado Capitalismo, é uma decorrência lógica do princípio básico do Liberalismo, a saber, que em sociedade é desejável buscar a maior liberdade possível para cada um que seja compatível com igual liberdade para todos. Aplicando esse princípio à área econômica, o Liberalismo defende a tese de que o estado (ou o governo) deve se abster de toda e qualquer tentativa de atuar diretamente na economia (como empresário) ou mesmo de regular, fiscalizar ou de qualquer forma intervir na economia. Na economia o princípio básico do Liberalismo é geralmente resumido na expressão francesa de que o estado, em relação à iniciativa privada, deve “LAISSEZ FAIRE”, isto é, deixar fazer, ou, melhor, “sair da frente e deixar a iniciativa privada agir”.

g) É esse princípio fundamental que sustenta o corolário, agora na ÁREA POLÍTICA, de que melhor estado é aquele que governa menos, deixando, portanto, aos indivíduos mais liberdade. O melhor estado, assim, é o ESTADO MÍNIMO, que deixa aos indivíduos o máximo de liberdade compatível com as exigências da vida em sociedade. Este princípio do estado mínimo é, assim, uma decorrência do princípio da liberdade do indivíduo como bem supremo.

h) Sendo a liberdade o conceito mais importante do Liberalismo, é importante ter clareza sobre como esse conceito é entendido pelo Liberalismo. Ser livre, para o Liberalismo, é não ser coagido a agir (a fazer ou a deixar de fazer) – é não ser obrigado a fazer, nem impedido de fazer – por terceiros. Ser livre, portanto, não deve ser confundido com “ter condições materiais de fazer”, “ter poder de fazer”, alguma coisa.

i) Esse conceito de liberdade é freqüentemente descrito como um conceito negativo ou formal de liberdade. Negativo, porque a liberdade é definida em termos negativos, como não-coação, sendo livre a pessoa que não é obrigada a fazer, nem impedida de fazer, alguma coisa. Formal, porque uma pessoa livre para fazer algo (porque não coagida ou obrigada a deixar de fazê-lo) pode não conseguir fazê-lo, por lhe faltarem condições materiais para tanto (capacidade intelectual, competências cognitivas, conhecimentos, motivação, persistência, recursos, etc.).

j) Conceituado o Liberalismo, como o entendem os liberais, é fácil de entender o profundo mal-estar que causa a um liberal a associação do Liberalismo à Reforma Protestante e especialmente à Contra-Reforma e aos Jesuítas.

5. A Trajetória do Liberalismo

a) Uma vez formulada com clareza essa visão do mundo – e a obra de Adam Smith representa, sem sombra de dúvida, sua formulação mais consistente e sistemática, antes do século XX – aqueles que ajudaram a formula-la, ou que foram por ela sensibilizados (coisa que nunca aconteceu com o Prof. Gilberto), puseram-se a lutar para que ela transformasse a realidade que eles viviam. É uma notável coincidência que o ano de 1776 marca a data da publicação de An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, de Adam Smith, oportunamente traduzido para o Português como A Riqueza das Nações, e da Revolução Americana, que resultou na Declaração da Independência dos Estados Unidos – nação de imigrantes que, oprimidos na Inglaterra, fugiram para a América, e, sentindo, mesmo na América, o peso da opressão, se propuseram a criar, a partir do zero, uma nova nação, em cima de princípios basicamente liberais, o que se deu no final do século XVIII. (1776 é também a data da morte de David Hume, sobre quem escrevi, trinta anos atrás, minha tese de doutoramento – outro liberal e o maior amigo de Adam Smith).

b) O século XIX foi, nos Estados Unidos, o século em que o Liberalismo foi colocado em prática – não, naturalmente, forma perfeita e não, é evidente, sem oposição. Ironicamente, o Liberalismo, em sua versão clássica, a única que merece o nome, acabou sendo abandonado nos Estados Unidos de forma gradualista, por pressão daqueles que, sob influência de ideias socialistas ou socializantes, concluíram que, não sendo o estado americano um estado opressor, seria muito difícil promover o socialismo mediante o confronto, sendo melhor estratégia a conquista gradual de pequenas vitórias que fossem, pouco a pouco, inflacionando as atribuições do governo e, assim, afastando-o do Estado Mínimo liberal. Esse movimento ganhou grande força com o “New Deal” de Franklin Delano Roosevelt (década de 30 e 40 deste século) mas se cristalizou mesmo com “The Great Society” de Lyndon Baynes Johnson, na década de 60, em pleno século XX. [Numa rara concessão a referências bibliográficas, sugiro, aqui, a leitura dos livros: Por que não Vingou? História do Socialismo nos Estados Unidos, de Seymour Martin Lipset e Gary Marks, e  A Social-Democracia nos Estados Unidos, de Sidney Hook, Leszek Kolakowski, Seymour Martin Lipset e Michael Harrington, ambos publicados pelo Instituto Teotônio Vilela, Brasília, 2000 e 1999, respectivamente. A posição liberal (no sentido em que eu emprego o termo) está bem apresentada em A Life of One’s Own: Individual Rights and the Welfare State, de David Kelley, CATO Institute, Washington, 1998].

c) A consequência mais irônica desse movimento está no fato de que nos Estados Unidos os termos “liberal” e “Liberalism” foram usurpados por essas tendências socializantes, hoje representadas pelos social-democratas (como Edward “Ted” Kennedy e William “Bill” Clinton e, em geral, os membros do Partido Democrata, desde a época do New Deal de Franklin D. Roosevelt), que se rotulam, e, nos Estados Unidos, são rotulados, de liberais. Os que são realmente liberais nos Estados Unidos hoje se viram forçados a se chamar de libertários. (John Rawls, por exemplo, bastante conhecido hoje em dia no Brasil, não é um liberal, estando muito mais perto da Social-Democracia do que do Liberalismo, embora ele próprio se rotule de liberal – mas no sentido “americano” do termo. Tradutores profissionais frequentemente desconhecem esse fato, e traduzem os termos ingleses “liberal” e “liberalism” por “liberal” e “liberalismo”, sem qualquer ressalva ou explicação, assim confundindo leitores menos avisados – isso também é um desserviço, no caso aos leitores brasileiros).

d) Horace Mann, que recebeu algum destaque na palestra do Prof. Gilberto, se inclui, como defensor da escola pública, obrigatória e gratuita, no campo OPOSTO ao do Liberalismo – embora, por causa das questões terminológicas assinaladas no item anterior, tenha ficado conhecido, aqui no Brasil, como liberal, fato que induz muitas pessoas a equívocos lastimáveis. O Liberalismo defende uma escola que não é nem pública, nem obrigatória, nem gratuita.

e) O mesmo se pode dizer de todo o movimento da Escola Nova, que só pode ser considerado liberal no sentido em que os americanos passaram a usar o termo, sentido esse que é fundamentalmente CONTRÁRIO ao sentido que o termo tinha quando da criação da nação americana, que é hoje preservado, nos Estados Unidos, pelo termo “libertário”. Quanto equívoco teria sido eliminado se essa infeliz usurpação de uma palavra não tivesse ocorrido.

f) Em suma, eu não nego a importância de Horace Mann e da Escola Nova na construção da escola pública moderna. Longe disso. Minha tese é de que a contribuição de ambos não foi caracteristicamente liberal e, em alguns aspectos, foi eminentemente anti-liberal – e eu posso fazer uma afirmação dessas de forma absolutamente coerente porque não hesito em conceituar o Liberalismo com clareza e precisão.

g) Especificamente sobre a Escola Nova, a réplica do Prof. Gilberto me deixa ainda mais perplexo. Ele diz:

“A unicidade, como já expus no primeiro e-mail, transformou-se numa bandeira de luta do escolanovismo, no último terço do século XIX, por força do combate exercido contra a escola dualista burguesa, por ele denominada escola tradicional. A unicidade seria o recurso para a superação do dualismo escolar, nesse momento visto pela leitura liberal dos escolanovistas, falsamente, como elemento determinante das classes sociais.”

Aqui a Escola Nova é caracterizada como liberal. A Escola Nova, esclarece-se, teve como bandeira de luta a unicidade da escola. Ao mesmo tempo, afirma-se que a Escola Nova combateu “a escola dualista burguesa”. No entanto, o Prof. Gilberto caracteriza o Liberalismo como a visão de mundo da burguesia. De que há uma contradição aqui não tenho dúvida. Suspeito que o Prof. Gilberto, para se safar dela, diria que a contradição é uma contradição interna do Liberalismo. Mas não é. Primeiro, porque a Escola Nova não é liberal. Segunda, porque o Liberalismo não defende nem a unicidade nem o dualismo da escola: defende uma escola plural. Terceiro, e entrando aqui no cerne da questão, que, atrás, concedi apenas por amor à argumentação, porque o Liberalismo não é a visão de mundo da classe burguesa, da mesma forma que o Marxismo (ou Socialismo) não é a visão de mundo da classe trabalhadora.

h) A tese de que estamos divididos, hoje, basicamente em duas classes, a classe burguesa e a classe trabalhadora, e de que cada uma dessas classes tem UMA visão de mundo determinada ou condicionada por seu papel no processo produtivo, e que o Liberalismo seria a visão de mundo da burguesia, está basicamente ultrapassada (se é que algum dia teve alguma validade). Se formos ainda falar em classe como categoria determinada pelo papel de seus membros no processo produtivo, temos bem mais do que duas classes. Mesmo que, num esforço redutivo, elegêssemos concentrar nossa análise apenas nas duas classes privilegiadas pelo Marxismo, encontramos hoje uma boa parcela dos membros da classe dita burguesa (incluindo intelectuais, empresários e profissionais liberais) optando por um Socialismo de sabor marxista, como encontramos membros da classe dita trabalhadora optando por valorizar a liberdade e procurando afastar o governo de seu caminho.

i) O que diferencia liberais e socialistas não é sua vinculação a classes diferentes e antagônicas, caracterizadas pelo seu papel no processo produtivo, mas, sim, o tipo de sociedade em que cada um prefere viver e pelo qual se dispõe a lutar: se uma sociedade em que a liberdade é o valor fundamental ou se uma sociedade em que a igualdade é o valor fundamental. Encontramos, hoje, membros das duas classes que o Marxismo privilegia defendendo tanto uma como outra dessas sociedades. Os que defendem a primeira alternativa lutam pela ampliação do papel do indivíduo e da iniciativa privada na sociedade e pela redução do papel do estado ou do governo. Os que defendam a segunda alternativa parecem acreditar que só se alcança uma sociedade mais igualitária reduzindo o espaço da liberdade dos indivíduos e da iniciativa privada e ampliando o espaço da ação governamental – espaço este que iria desde a propriedade total dos meios de produção defendida por um Comunismo hoje, espero, definitivamente ultrapassado, até o exercício de funções regulatórias e distributivas hoje tão favorecidas pelos comunistas de ontem.

j) Mas quero, antes de concluir, voltar à questão da escola, para que fique evidente quais são minhas discordâncias com uma palestra que se propunha a discutir o papel do Liberalismo na construção da escola pública moderna. Essa escola pública moderna, que o Liberalismo teria ajudado a criar, segundo entendi da apresentação do Prof. Gilberto, seria laica, universal, gratuita, obrigatória, e única (indiferenciada). O que sobretudo me chocou na palestra foi o fato de que a escola defendida pelo Liberalismo NÃO TEM NENHUMA DESSAS CINCO CARACTERÍSTICAS: não é necessariamente laica, porque o Liberalismo admite escolas confessionais; não é universal, porque o Liberalismo, ao propugnar por uma escola não estatal e não controlada pelo Estado, deixa aberta a possibilidade de que, em determinados contextos, não haja escola nenhuma (e que, por exemplo, a educação seja feita em casa ou por tutores privados); não é gratuita para o usuário, porque o Liberalismo não inclui a educação entre serviços custeados por impostos que o Estado deve prover à população (vide o texto de Adam Smith); não é obrigatória, porque o Liberalismo, defendendo, como de fato defende, a liberdade dos indivíduos, é contra a obrigatoriedade da frequência à escola; não é, por fim, única, porque o Liberalismo defende a existência de uma escola tão plural quanto possível. Diante disso, não é de admirar que eu ache que a palestra apresentou uma caricatura do Liberalismo, para poder colocá-lo como responsável, ainda que não solitariamente, pela escola pública moderna.

6. Sobre o Restante

a) O Prof. Gilberto me conclama a ter a “grandeza moral e intelectual” de reconhecer que eu teria caricaturado a palestra dele. Eu, infelizmente, não vejo como possa fazer isso em sã consciência. Se a palestra foi gravada e eu, ouvindo-a novamente, perceber que me equivoquei, não hesitarei em admitir. Ou, não tendo sido, seria útil se fosse possível ter acesso ao texto que o Prof. Gilberto tinha consigo no dia da palestra (e que, embora não o tenha lido, aparentemente serviu de base para sua palestra).

b) Na minha opinião, que espero ter esclarecido e fundamentado aqui, e independentemente de eu ter caricaturado a sua palestra, o Liberalismo foi, intencionalmente ou não, por má fé ou por desconhecimento de como os liberais vêem o Liberalismo, caricaturado na palestra do Prof. Gilberto.

c) O Prof. Gilberto, ao final de suas respostas, faz ressalvas ao meu uso do termo “desserviço”, que esclareci nesta resposta. Ao fazê-las, insinua que eu deixei a ética de lado, reivindica tê-la de seu lado, e afirma: “Eu nunca consideraria um ‘desserviço’ aos estudantes que assistem às suas [no caso, minhas, de Eduardo Chaves] aulas o fato de, nela, serem veiculadas ideias com as quais não comungo”. Mas eu em nenhum momento disse que o Prof. Gilberto prestou um desserviço aos alunos presentes simplesmente por ter veiculado em sua palestra ideias com as quais não comungo. Felizmente, o Prof. Gilberto neste caso esclarece que “o desserviço de uma ação existe quando se sustenta [o quê?] na má fé ou no erro”. Tirante a falta de objeto direto na frase, concordo. Não afirmei que ele prestou um desserviço aos alunos presentes por má fé, porque não o conheço o suficiente para fazer uma afirmação desse tipo e duvido que, conhecendo-o melhor, tivesse base para fazê-lo – mas estou convicto de que está errado na sua visão do Liberalismo e do seu papel na construção da escola pública moderna (embora consiga entender perfeitamente porque ele acha que não está).

d) Seguem, após a assinatura, as passagens de Adam Smith a que fiz referência.

Eduardo Chaves

V. Anexo: Passagens de Adam Smith

Algumas passagens de Adam Smith, em A Riqueza das Nações, Livro V, traduzidas do inglês por mim, que são profundamente relevantes, eu diria, para uma análise da Educação Superior Brasileira atual. Esse livro foi originalmente publicado em 1776, ou seja, 225 anos atrás. Sua relevância para hoje, porém, no essencial, ainda é total – e nesse essencial se inclui o que ele diz sobre a educação (em especial a superior).

Os trechos são retirados de várias passagens e foram traduzidos meio livremente. Entre um parágrafo e outro podem ter sido omitidos vários parágrafos não tão relevantes ao que quero registrar.

As passagens foram retiradas das pp.758-764 da edição de An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of the Nations, organizada por R. H. Campbell, A. S. Skinner e W. B. Todd, publicada pelo Liberty Fund, Indianapolis, 1981, na serie Liberty Classics, reimpressão da edição publicada em 1976, data do bicentenário da publicação inicial da obra, pela Oxford University.

“Artigo II – Do Custeio das Instituições Dedicas à Educação da Juventude

As instituições dedicadas à educação da juventude podem gerar receita suficiente para cobrir suas próprias despesas, através de taxas que os estudantes pagam à instituição e honorários que pagam aos mestres.

Mesmo que o pagamento dos mestres não seja totalmente resultante de honorários pagos pelos estudantes, ainda assim não é necessário que ele seja derivado de impostos. [Ele vai mostrar, em seguida, que o os mestres podem ser pagos com fundos decorrentes de dotações de governos e doações de pessoas privadas, indivíduos ou instituições].

Em toda profissão, o esforço da maioria daqueles que a exercem é sempre proporcional à necessidade que eles têm de realizar esse esforço. Essa necessidade é maior quando os rendimentos de sua profissão são a única de fonte de renda que possuem. Neste caso, para obter os rendimentos necessários para viver, eles devem, ao longo de um ano, executar uma certa quantidade de trabalho que tenha um valor determinado. Quando a competição é livre, a rivalidade dos competidores obriga cada um a realizar seu trabalho com um alto grau de qualidade, para que possa se manter em concorrência.

Quando escolas ou universidades recebem dotações [de governos] ou doações [da iniciativa privada], [em vez de se manter através das taxas ou honorários pagos pelos alunos], a necessidade de esforço dos professores fica mais ou menos diminuída. Sua subsistência, à medida que é derivada de um salário fixo [pago pelas dotações ou doações], é evidentemente derivada de um  fundo que independe de seu sucesso como professor ou de sua reputação como mestre.

Em algumas universidades o salário do professor é apenas uma parte, freqüentemente pequena, dos rendimentos do professor, a maior parte se originando nos honorários pagos pelos alunos. A necessidade de esforço não é neste caso totalmente eliminada, mas apenas mais ou menos diminuída, dependendo do montante dos rendimentos que se origina de salário fixo. Sua reputação em sua profissão é, neste caso, ainda importante para ele, porque ele depende da afeição, da gratidão, e da opinião favorável daqueles aos quais ele presta serviços – e estas ele provavelmente não vai ganhar a menos que faça por merecê-las através da habilidade e da diligência com que executa os seus deveres.

Em outras universidades o professor é proibido de receber honorários dos alunos e seu salário fixo representa a totalidade dos rendimentos que ele aufere do exercício de sua profissão. Seu interesse, neste caso, fica desalinhado da qualidade com que ele exerce os seus deveres. É do interesse de qualquer homem viver de forma tão fácil quanto ele puder. Se seus rendimentos são exatamente os mesmos, exerça ele ou não, com grande diligência, deveres bastante trabalhosos, torna-se em seu interesse, pelo menos no entendimento vulgar desse termo, ou negligenciar os seus deveres inteiramente, ou, se ele estiver submetido a uma autoridade que não lhe permita fazer isso, exercê-los de uma forma tão descuidada e desleixada quanto o admita aquela autoridade. Se o professor é naturalmente ativo e gosta de trabalhar, ele vai perceber que é em seu interesse dedicar o melhor de seus esforços a uma atividade na qual a qualidade do esforço despendido é proporcionalmente recompensada – e não no desempenho de tarefas em que não faz diferença se o trabalho é bem feito ou não.

Se a autoridade à qual o professor está sujeito é uma autoridade corporativa e ele próprio faz parte da corporação, junto com outras pessoas que ou são professores ou aspiram a vir a sê-lo, eles todos encontrarão uma maneira de ser bastante indulgentes uns com os outros, e cada um vai consentir que seu próximo negligencie os seus deveres, desde que ele próprio possa negligenciar os seus. Na Universidade de Oxford, a maior parte dos professores pagos com recursos públicos abandonaram, já faz muitos anos, até mesmo qualquer aparência de que têm que ensinar seus alunos, quanto mais que o tenham que fazer com qualidade (razão pela qual se diz que se alguém perder a saúde em Oxford por ter estudado demais só pode culpar a si próprio, pois não terá sido por imposição de terceiros).

Se a autoridade à qual o professor está sujeito é estranha aos círculos universitários (como um bispo, o governador da província, ou um ministro, por exemplo), provavelmente não se admitirá que o professor negligencie o seu trabalho totalmente. Contudo, tudo o que seus superiores poderão fazer, neste caso, é obrigá-lo a dar um certo número de aula por semana ou por ano aos seus alunos. O conteúdo dessas aulas vai depender, quanto à sua pertinência e qualidade, inteiramente da diligência do professor – e essa diligência vai provavelmente ser proporcional aos motivos que ele tenha para exercê-la. Uma autoridade estranha à corporação dos professores provavelmente vá ser exercida de forma tão ignorante quanto caprichosa. A pessoa que exerce essa autoridade, sendo estranha aos círculos universitários, não vai assistir às aulas do professor, nem provavelmente as compreenderia se a elas assistisse. Por isso, acabam por exercer sua autoridade de forma caprichosa. Essa fato degrada o professor, pois este percebe que vai ser recompensado ou punido, não pela maior ou menor diligência com que exerça os seus deveres, mas, sim, pela forma que trate seus superiores, pelos favores que lhes preste, mesmo que, para isso, seja preciso sacrificar a honra da corporação a que pertence.

Quem quer que obrigue estudantes a freqüentar determinada universidade, independentemente dos méritos ou da reputação de seus professores, tende, também, em maior ou menor grau, a diminuir a necessidade de que aqueles professores tenham mérito ou boa reputação em seus ofícios.

Quando uma instituição concede, ela própria, bolsas de estudos aos seus alunos, ela os atrai, independentemente dos méritos e da reputação de seus professores.

Se houver recursos para a concessão de bolsas, melhor seria que elas fossem dispensadas aos alunos independentemente de vínculo com uma ou outra universidade específica, permitindo, assim, que os bolsistas escolham qual universidade preferem freqüentar. Assim as bolsas estimularão a concorrência e a melhoria da qualidade entre as universidades.

Se, em uma universidade, os professores cujos cursos o aluno vai freqüentar não forem livremente escolhidos pelos alunos, mas forem indicados por uma autoridade universitária, e os alunos não tiverem permissão para trocar de professores,  esse procedimento extinguirá toda e qualquer concorrência entre os professores e diminuirá, entre eles, a necessidade de exercer seus deveres com diligência e de dar aos seus alunos a devida atenção, podendo os professores até mesmo negligenciar totalmente os seus alunos, tanto quanto aqueles que não são pagos pelos alunos.

As regras que imperam nas universidades são em geral criadas, não em benefício dos alunos, mas para atender os interesses, ou, melhor dizendo, à tranqüilidade de seus mestres. Seu objetivo, em todos os casos, é preservar a autoridade dos professores, e, caso estes negligenciem os seus deveres, obrigar os alunos a se comportar como se os professores tivessem exercido seus deveres com a maior habilidade e a melhor diligência.

Quando os mestres cumprem com os seus deveres, não creio haver exemplos de que os alunos negligenciem os seus. Não é preciso impor nenhuma obrigatoriedade ou disciplina para que alunos freqüentem aulas a que realmente valha a pena assistir, como todos que já puderam observar essa situação estão prontos a testemunhar.

É por isso que a melhor educação é aquela que se ministra em instituições não públicas.”

[1] DIDEROT. Mémoires pour Catherine II. Paris: Éditions Garnier Frères, 1966, p. 131-2.

Transcrito aqui neste blog em Salto, 18 de Março de 2018

A Celeuma Acerca das Mudanças no Ensino Médio

O Brasil é um país multiétnico e multicultural. E agora, mais livre, desde que se salvou a si mesmo, pela segunda vez, desta vez sem o auxílio dos militares, da ameaça representada pela esquerda mais retrógrada.

Quanto a grupos étnicos ou nacionais, nossa história foi construída com a participação dos índios que estavam aqui em 1500 mas que hoje são uma minoria numericamente insignificante, portugueses, franceses, holandeses, africanos (em sua maioria trazidos para cá como escravos), ingleses, alemães, americanos, italianos, japoneses, poloneses, ucranianos, russos, mais recentemente grupos oriundos de quase todos os países sul-americanos, para não mencionar os haitianos, grupos dos países árabes, e grupos de outros países asiáticos (além do Japão), como coreanos e chineses. Muita gente ficou de fora dessa lista, como europeus de outros países que não Portugal, França, Holanda, Inglaterra, Alemanha, Itália, Polônia, Ucrânia e Rússia. Até a Rainha da Suécia, pelo que consta, é meio brasileira: sua mãe era brasileira inteira.

Quanto a diferentes culturas, segmentos representativos de todas as etnias e nacionalidades mencionadas no parágrafo anterior coexistem tranquilamente aqui. Somos um país liberal. Tenho certeza de que, apesar de nossas praias serem agradavelmente escandalosas, nenhum brasileiro apoiaria proibir mulheres muçulmanas de nelas desfilar com seus burkínis, como tenta fazer a França iliberal. Do ponto de vista religioso, embora o país se considerasse, até bem pouco tempo atrás, o maior país católico do mundo, todas as grandes religiões do mundo estão aqui representadas, com predominância da cristã, representada pelos católicos e virtualmente centenas, se não milhares de denominações protestantes – e até os ortodoxos orientais. Judeus e árabes aqui convivem pacificamente em nossas mais famosas ruas de comércio popular. As diferentes religiões africanas se fazem presentes e têm uma influência significativa, em formas mais puras ou em formas sincretisticamente combinadas especialmente com o catolicismo. Temos um número elevado de artistas (sempre eles!) devotos de divindades africanas. Temos representantes das religiões seculares, também, como bem atesta o pequeno, mas barulhento remanescente de marxistas-comunistas (divididos em várias seitas, cada uma se pretendendo mais radical do que a outra).

Numa diversidade assim parece óbvio que o mais recomendável é liberdade, não é?

Mas não. Alguns desses grupos étnicos/nacionais e culturais possuem lobbies mais bem organizados do que os outros e, por isso, têm certa força política (política, vale dizer, no mau sentido, que envolve pressão de tipo não muito recomendável, compra de acesso a órgãos colegiados que mandam em uma determinada área da cultura nacional, como a educação, com seu Conselho Nacional da Educação, etc.). Alguns grupos étnicos e culturais também têm aliados que defendem seus interesses em decorrência de sua postura ideológica, como os índios.

Diante disso, vira e mexe nos vemos surpreendidos por determinações governamentais que estipulam que todos os brasileiros são obrigados a estudar e aprender, digamos, história e cultura indígena, história e cultura africana, etc. independentemente de serem descendentes de indígenas ou afrodescendentes ou, então, de terem algum interesse nessas áreas. Daqui a pouco algum político vai introduzir legislação que obrigue todos os brasileiros a aprender a falar tupi ou bantu.

Quem dá direito ao governo brasileiro de dizer o que os cidadãos brasileiros devem ser obrigados a estudar e aprender? Quem dá direito a qualquer governo de dizer o que os cidadãos de seus países devem ser obrigados a estudar ou aprender? Será que eu algum momento na história houve algum pacto social mediante o qual os cidadãos pactuantes delegaram aos seus governos o direito de determinar o que eles, cidadãos, seus filhos e netos, deveriam ser obrigados a estudar e aprender?

É compreensível que esses pactos sociais, explícitos ou tácitos, mediante os quais governos foram criados ou legitimados, tenham atribuído aos governos o dever de proteger seus cidadãos contra agressão externa e violência interna, e que criassem leis e normas que impedissem, dentro dos seus territórios, que os mais fortes ou mais espertos ou mais ricos abusassem dos mais fracos, menos espertos, menos favoravelmente dotados de bens e posses, etc.

Mas será que em algum lugar ficou caracterizado que os governos têm o direito de determinar o que eles, cidadãos, seus filhos e netos, são obrigados a estudar e aprender, e que estes têm o dever de obedecer a essas determinações? Ou até mesmo se os governos têm direito de determinar que os cidadãos são obrigados a estudar ou aprender alguma coisa, qualquer que seja, por algum tempo ou em alguma fase da vida, e que estes têm o dever de obedecer a essas determinações?

Posto que é sabido e notório que as pessoas, seja isso obrigatório ou não, acabam por estudar e aprender um monte de coisas, quem deu aos governos o direito de determinar que os cidadãos do país, em especial os menores de determinadas faixas etárias, são obrigados a estudar em instituições penais criadas para esse fim, inadequadamente denominadas escolas, e que, cumprissem nessas escolas sentenças que duram até 15 anos, durante as quais são obrigados a se submeter a rotinas de trabalhos forçados em que são obrigados a estudar e aprender todo tipo de inutilidade?

Quem deu aos governos o direito de decidir o que se estudará nesses estabelecimentos e o que não se estudará? Quem deu aos governos o direito de decretar que seus agentes nesses estabelecimentos (diretores, coordenadores, supervisores, professores, etc.) têm toda liberdade (chamada de expressão ex cathedra) de definir e escolher materiais didáticos que serão obrigatoriamente usados pelas vítimas para absorver, assimilar e incorporar ao seu mindset todo tipo de besteira que eles hão por bem valorizar, inclusive mentiras comprovadas – que eles novilinguisticamente chamam de verdades ou pós-verdades?

Por que é que, na hora em que um governo, usando a mesma estrutura legal e jurídica que deu aos governos anteriores o direito de poluir a mente da juventude brasileira com dejetos intelectuais de priscas eras, resolve reduzir as “obrigatoriedades” e as “compulsoriedades” existentes, introduzindo uma dose mínima de liberdade no sistema, levantam-se supostas autoridades político-pedagógicas, todas elas trajando a mesma cor, para alegar que esse governo não tem o direito de tornar facultativo o que governos anteriores tornaram obrigatório??? Porventura o estudo de filosofia e sociologia no Ensino Médio é uma cláusula pétrea de nossa Constituição?

Esquerda pedagógica: alô!!! Vocês me cansam.

O governo Temer deve ir em frente e reduzir ainda mais as “obrigatoriedades” e as “compulsoriedades”. E nada de aumenta-las, pensando que está a agir de forma progressista ao majorar o número de horas do Ensino Médio. Está nada.

Por mim, nem mesmo frequentar a escola deveria ser obrigatório. Quem quiser estudar e aprender que estude e aprenda. Muita gente ainda vai querer estudar e aprender em escola – mesmo não sendo obrigatório fazer isso nela. Mas quem quiser pode estudar e aprender em casa, com os parentes, com os amigos, na comunidade, na igreja, através de livros e revistas, pelos meios de comunicação de massa, via Internet, etc.

Se estudar e aprender é um direito, não um dever, é possível optar por não exercê-lo ou por exercê-lo quando, onde e da forma que o titular do direito, ou, no caso de menores, o seu responsável, achar melhor.

O governo brasileiro tem um enorme déficit orçamentário causado pela incompetência e pela roubalheira petralhista? Acabe com a educação obrigatória, primeiro, e, em seguida, com as escolas e universidades públicas. Vai sobrar uma dinheirama incrível que, além de permitir que o governo cuide de nossa segurança, algo que hoje não faz, embora este sim seja inequivocamente um dever seu, vai permitir que o governo reduza nossos impostos, dando aos brasileiros melhores condições de, querendo, pagar por uma educação que seja realmente de qualidade e que ajude seus filhos e netos a aprender o que é por eles realmente considerado importante e útil.

Vamos lá, Presidente e Ministro. Não há por que manter a matemática, o inglês e o português como matérias obrigatórias no Ensino Médio. Não há por que aumentar a carga horária do Ensino Médio. Não há por que recriar simulacros dos antigos cursos Clássico, Científico, Técnico, Normal, etc. Na verdade, não há por que ter um Ensino Médio oficial.

Na educação, MENOS É MAIS. Compreendam isso. Desde que seja um menos que realmente importa.

Em São Paulo, 23 de Setembro de 2016

PS. A reforma foi parcialmente aprovada pelo Senado em 8/2/2017 e vai agora à sanção presidencial.

Doutrinação e Educação: A Esquerda Pretende Argumentar que Doutrinar não Passa de um Jeito “Crítico” de Educar

Neste artigo vou discutir uma questão atual – que, no entanto, para mim tem sido atual desde 1974, quando comecei a pesquisar a questão, ao chegar à UNICAMP, em meados do ano.

1. Um Ano Atrás: A Doutrinação em Sala de Aula

Compartilhei, hoje, 27/05/2016, no Facebook, um post que foi publicado nesse aplicativo no mesmo dia, no ano de 2015, um ano atrás. Ele continua relevante. Talvez mais do que era um ano atrás.

No post que foi objeto hoje de minhas “Reminiscências” no Facebook, eu disse (com pequenas correções de linguagem e estilo):

“A esquerda fascista e reacionária está contra o projeto de remover das escolas a doutrinação ideológica – qualquer que seja a matriz ideológica dessa doutrinação (projeto este conhecido aqui no Brasil como ‘Escola Sem Partido’). Contra esse projeto a esquerda está defendendo um projeto que chama de ‘Escola Sem Censura’. Dentro da Novilíngua (NewSpeak) da esquerda, Escola Sem Censura significa uma escola em que ela pode continuar a doutrinar livremente, como o faz hoje.

A esquerda tenta nos fazer crer que a expressão“esquerda fascista” é uma expressão autocontraditória. Não é. Vide o livro Liberal Fascism: The Secret History of the American Left, From Mussolini to the Politics of Change, de Jonah Goldberg. O termo ‘liberal’, no título, significa liberal no sentido americano, isto é, esquerdista. O subtítulo deixa isso evidente quando esclarece que o livro vai denunciar o fascismo da esquerda americana – ‘American Left’”.

O que está sendo feito lá precisa ser feito também aqui – sempre com o respeitoso delay.

2. Hoje: A Doutrinação Volta à Baila

Dois eventos recentes têm atraído a atenção para o fenômeno da doutrinação ideológica esquerdista nas escolas brasileiras: uma lei do Estado de Alagoas e a visita, esta semana, de Alexandre Frota ao atual Ministro da Educação.

A. A Lei 7800/16 do Estado de Alagoas

No dia 10 de maio deste ano, um dia antes de ele ser tardiamente defenestrado do Ministério da Educação, o então ainda ministro tomou uma decisão surpreendente para um assim-chamado Ministro da Educação. A edição de O Globo do dia seguinte, 11 de maio, dia em que o Senado começou a votação que removeria Dilma Rousseff e seus ministros do governo – ainda que, por enquanto, apenas provisoriamente – relata, segundo diz o título, “Lei contra ‘doutrinação’ nas escolas de Alagoas é inconstitucional, diz MEC”. O subtítulo da matéria esclarece que “Professores são obrigados a manter ‘neutralidade’ nas salas de aula. Mercadante afirma que lei fere a liberdade de os alunos aprenderem”.

Dá impressão de confusão? Como dizia Grouch Marx, não se deixe enganar: o texto é de fato confuso.

“O Ministério da Educação enviou à Advocacia-Geral da União (AGU), na última terça-feira (10), argumentos contrários à lei que instituiu o programa Escola Livre em Alagoas.  Desde que a lei entrou em vigor, no dia 9 de maio de 2016, os professores das escolas estaduais são obrigados a manter a ‘neutralidade’ em sala de aula, em questões políticas, ideológicas e religiosas. De acordo com o MEC, é justificável entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade.”

[Vide a matéria em O Globo: http://g1.globo.com/educacao/noticia/lei-contra-doutrinacao-nas-escolas-de-alagoas-e-inconstitucional-diz-mec.ghtml]

Considero a matéria surpreendente, apesar das aspas colocadas pela matéria em termos e expressões como “doutrinação”, “neutralidade”, porque era de esperar que o então Ministro da Educação defendesse a tese da “neutralidade” dos professores em relação a questões ideológicas. Mas não: Mercadante não quer professores “neutros”: quer professores “partidários” (partisans) – desde que sejam favoráveis ao seu partido, a maior organização doutrinadora e, para não deixar por menos, criminosa que este país já viu.

Isto é feito da mesma forma, e com a mesma cara de pau, que a esquerda internacional defende uma “ciência partidária” (science partisane), não uma ciência neutra e objetiva. Vide Gérard Fourez, La Science Partisane (A Ciência Partidária).

Antes de continuar a comentar, vejamos o que diz a lei que o soi-disant Ministro tenta impugnar. Eis o texto da Lei 7.800/16 do Estado de Alagoas (impresso em azul, no original, e em itálico, para destacar):

LEI Nº 7.800, DE 05 DE MAIO DE 2016.
INSTITUI, NO ÂMBITO DO SISTEMA ESTADUAL DE ENSINO, O PROGRAMA “ESCOLA LIVRE”.

Art. 1º. Fica criado, no âmbito do sistema estadual de ensino, o Programa “Escola Livre”, atendendo os seguintes princípios:

  1. neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;
  2. pluralismo de ideias no âmbito acadêmico;
  3. liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência;
  4. liberdade de crença;
  5. reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;
  6. educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;
  7. direito dos pais a que seus filhos menores recebam educação moral livre de doutrinação política, religiosa ou ideológica.

Art. 2º.   São vedadas, em sala de aula, no âmbito do ensino regular no Estado de Alagoas, a prática de doutrinação política e ideológica, bem como quaisquer outras condutas por parte do corpo docente ou da administração escolar que imponham ou induzam aos alunos opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas.

  1. Par. 1º – Tratando-se de disciplina facultativa em que sejam veiculados os conteúdos referidos na parte final do caput deste artigo, a frequência dos estudantes dependerá de prévia e expressa autorização dos seus pais ou responsáveis.
  2. Par. 2º – As escolas confessionais, cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos, deverão [fazer] constar [esse fato] expressamente no contrato de prestação de serviços educacionais, documento este que será imprescindível para o ato da matrícula, sendo a assinatura deste a autorização expressa dos pais ou responsáveis pelo aluno para veiculação de conteúdos identificados como os referidos princípios, valores e concepções.
  3. Par. 3º – Para os fins do disposto no § 2º deste artigo, as escolas confessionais deverão apresentar e entregar aos pais ou responsáveis pelos estudantes, material informativo que possibilite o conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques adotados.

Art. 3º.  No exercício de suas funções, o professor:

  1. não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para qualquer tipo de corrente específica de religião, ideologia ou político-partidária;
  2. não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;
  3. não fará propaganda religiosa, ideológica ou político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas;
  4. ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, com a mesma profundidade e seriedade, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas das várias concorrentes a respeito, concordando ou não com elas;
  5. salvo nas escolas confessionais, deverá abster-se de introduzir, em disciplina ou atividade obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito com os princípios desta lei.

Art. 4º.  As escolas deverão educar e informar os alunos matriculados no ensino fundamental e no ensino médio sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de crença asseguradas pela Constituição Federal, especialmente sobre o disposto no Art. 3º desta Lei.

Art. 5º.  A Secretaria Estadual de Educação promoverá a realização de cursos de ética do magistério para os professores da rede pública, abertos à comunidade escolar, a fim de informar e conscientizar os educadores, os estudantes e seus pais ou responsáveis, sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que se refere aos princípios referidos no Art. 1º desta Lei.

Art. 6º.  Cabe a Secretaria Estadual de Educação de Alagoas e ao Conselho Estadual de Educação de Alagoas fiscalizar o exato cumprimento desta lei.

Art. 7º.  Os servidores públicos que transgredirem o disposto nesta Lei estarão sujeitos a sanções e as penalidades previstas no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civil do Estado de Alagoas.

Art. 8º.  Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.

Art. 9º.  Revogam-se todas as disposições em contrário.

GABINETE DA PRESIDÊNCIA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA ESTADUAL

Maceió, 05 de maio de 2016.

Deputado RONALDO MEDEIROS
Vice-Presidente, no exercício da Presidência

A Lei traz dois Anexos, que simplesmente resumem, para referência mais fácil, o que já diz a lei:

ANEXO I
ESCOLAS PÚBLICAS E PARTICULARES EM SENTIDO ESTRITO
DEVERES DO PROFESSOR

  1. O Professor não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente político-partidária;
  2. O Professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;
  3. O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas;
  4. Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o Professor apresentará aos alunos, de forma justa, com a mesma profundidade e seriedade, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito;
  5. O Professor deverá abster-se de introduzir, em disciplina ou atividade obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito com as convicções morais, religiosas ou ideológicas dos estudantes ou de seus pais ou responsáveis.

ANEXO II
ESCOLAS CONFESSIONAIS
DEVERES DO PROFESSOR

  1. O Professor não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente político-partidária;
  2. O Professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;
  3. O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas;
  4. Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, o Professor apresentará aos alunos, de forma justa, com a mesma profundidade e seriedade, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito.

O texto da lei, sem os Anexos, é disponibilizado, em reprodução através de fotografia, em O Globo: Vide http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2016/05/escola-livre-e-publicada-no-diario-oficial-e-lei-passa-valer-em-alagoas.html. Vide o texto final da lei, com os Anexos e até mesmo a justificativa de seu autor, Deputado Ricardo Nezinho (PMDB), em http://www.al.al.leg.br/comunicacao/noticias/confira-o-texto-final-do-projeto-que-trata-do-programa-escola-livre-aprovado-por-unanimidade-pelo-parlamento.

B. A Oposição à Lei 7800/16 do Estado de Alagoas

a. A Crítica do Vice-Presidente da Assembleia Legislativa de Alagoas

Num gesto inusitado, o Vice-Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas declarou ser contrário à lei, só a tendo promulgado porque estava no exercício da Presidência. Eis o que relata O Globo sobre a posição do Vice-Presidente, Ronaldo Medeiros:

“O deputado Ronaldo Medeiros (PMDB), presidente interino da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa de Alagoas (ALE-AL), promulgou a lei nº 7.800, conhecida como Escola Livre, que defende ‘neutralidade’ política, ideológica e religiosa do professor em sala de aula.  O texto foi publicado no Diário Oficial do Estado (DOE) desta segunda-feira (dia 9), e passa a valer imediatamente.

. . .  De acordo com o deputado, ele só promulgou a lei, de autoria do deputado Ricardo Nezinho (PMDB), por uma questão regimental, já que discorda do conteúdo dela.

‘Promulguei, mas sou contra o Escola Livre. Como o presidente da Mesa está afastado por doença, eu, como vice-presidente, tive que fazer a promulgação, mas sou totalmente contra a lei”, disse o deputado em entrevista ao G1 na última sexta-feira (dia 6).”

[http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2016/05/escola-livre-e-publicada-no-diario-oficial-e-lei-passa-valer-em-alagoas.html]

Se o deputado é contra a Escola Livre, ele é favor de quê? De uma escola atrelada à esquerda? Escravizada à antiga base aliada do PT?

Em sua conta no Facebook, o deputado disse que “a proposta do Projeto é silenciar o professor e que [ele] é a favor da democracia e da liberdade dentro da sala de aula.” [mesma referência anterior].

Se ele é “a favor da liberdade dentro da sala de aula”, por que rejeita a Escola Livre?

Continua a relatar O Globo:

“A Secretaria de Estado da Educação (SEDUC) informou que vai encaminhar um ofício ainda nesta segunda para que o governador do Estado [Renan Calheiros Filho, filho do presidente do Senado Renan Calheiros] entre com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) por meio da Procuradoria Geral do Estado (PGE). Disse ainda que até que este recurso seja feito não vai cumprir a nova lei, já que esta é ‘impraticável’. A PGE, por meio da assessoria de comunicação, disse que já está pronta para recorrer da Lei assim que o governador Renan Filho fizer a solicitação.”

[Mesma referência anterior:

http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2016/05/escola-livre-e-publicada-no-diario-oficial-e-lei-passa-valer-em-alagoas.html]

O Globo continua a esclarecer, na mesma referência já citada, que o governador do Estado, Renan Calheiros Filho, em vez de acionar a Procuradoria Geral do Estado, vetou a integralmente a lei. A Assembleia Legislativa do Estado, porém, durante sessão plenária no dia 26 de abril, derrubou o veto do governador, promulgando a lei depois de passado o prazo de 48 horas, sem que o governador o fizesse. A lei, portanto, está em vigor.

[Ver:

http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2016/05/prazo-vence-e-governo-de-alagoas-nao-promulga-lei-escola-livre.htmlhttp://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2016/04/deputados-de-alagoas-decidem-derrubar-veto-ao-projeto-escola-livre.html ].

Filho de Renan, como se vê, Renanzinho é.

b. A Crítica do Ex-Ministro da Educação

Agora é o recém-finado Ministro da Educação que toma a si a responsabilidade de recorrer à Advocacia Geral da União (AGU), então ainda exercida pelo advogado particular de Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo, solicitando que esse oficial maior do Direito no governo de Dilma procurasse invalidar a lei que, claramente, expressa o ponto de vista da maioria dos deputados estaduais de Alagoas.

Como José Eduardo Cardozo também foi defenestrado de seu cargo, e há sindicância dentro da AGU para investigar se ele violou seus deveres enquanto, sem pedir licença de seu cargo, defendeu a presidente temporariamente defenestrada, acusando o Poder Legislativo de perpetrar um golpe de estado e o Poder Judiciário de cumplicidade nesse golpe, a questão deve estar na mesa do atual responsável pela AGU.

O ex-Ministro da Educação alega que a lei alagoana “contraria os princípios legais, políticos e pedagógicos que orientam a política educacional brasileira” nos seguintes pontos:

  1. “O princípio constitucional do pluralismo de ideias” [princípio legal]
  2. “A liberdade do professor” [princípio político]
  3. “Concepções pedagógicas, uma vez que tal pluralidade efetiva-se somente mediante o reconhecimento da diversidade do pensamento, dos diferentes saberes e práticas” [princípio pedagógico 1]
  4. “O cumprimento do princípio constitucional que assegura aos estudantes a liberdade de aprender em um sistema educacional” [princípio pedagógico 2].

[As referências às alegações do Ministro da Educação são extraídas da matéria apresentada em O Globohttp://g1.globo.com/educacao/noticia/lei-contra-doutrinacao-nas-escolas-de-alagoas-e-inconstitucional-diz-mec.ghtml].

Espero que o atual titular da AGU mande para a lixeira o pedido do ex-Ministro, atual serviçal pro bono da Presidente afastada no Palácio da Alvorada, Aloísio Mercadante. Esclareço abaixo por quê. Mas antes, é preciso mencionar que o atual ocupante do Ministério da Educação também foi envolvido na questão da doutrinação a partir de outra iniciativa, como veremos a seguir.

C. A Visita de Alexandre Frota ao Atual Ministro da Educação

Na quarta-feira 25 de Maio de 2016 o atual Ministro da Educação, Mendonça Filho, recebeu em audiência, em seu gabinete em Brasília, o ator Alexandre Frota, acompanhado de um grupo de pessoas envolvidas no site “Revoltados Online”. Da parte do ministro, pouco se noticiou acerca do que realmente transpirou no encontro. Foi o próprio Frota que informou os jornalistas que “uma de suas reivindicações é o fim da doutrinação em sala de aula”. Apesar de aparentemente ter havido outras, essa foi a única reivindicação divulgada. A informação foi dada por O Globo em vários locais em sua edição online do próprio dia 25 e na edição impressa e online do dia seguinte, 26 de Maio (ontem), não raro em tom irônico e gozador.

No Blog de Lauro Jardim, neste caso assinado por Guilherme Amado, refere-se a Frota ironicamente como “um dos mais importantes nomes da educação e da cultura brasileiras”, para, em seguida, abandonar o tom irônico e chama-lo de “ator-ogro” [http://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/ministro-da-educacao-recebe-alexandre-frota.html; vide também a matéria de Renata Mariz, que faz referência ao blog de Lauro Jardim, mas não inclui o tom irônico e quase debochado: http://oglobo.globo.com/brasil/ministro-da-educacao-recebe-alexandre-frota-ativistas-19376309; o blog de Ricardo Noblat simplesmente transcreve, sem tirar nem pôr, a matéria de Renata Mariz: http://noblat.oglobo.globo.com/geral/noticia/2016/05/ministro-da-educacao-recebe-alexandre-frota-e-ativistas.html].

A visita de Frota, e especialmente o fato de que Mendonça Filho a tenha admitido e até mesmo defendido, causou celeuma. Teve gente, cujo nome me recuso a repetir, que chegou até mesmo a sugerir que o fato de o Ministro ter recebido Frota tem relação direta com o estupro coletivo no Rio de Janeiro. A esquerda consegue surpreender até quando parece que isso não seria mais possível.

D. Críticas à Proposta de Alexandre Frota

O jornal O Estado de S. Paulo relata que “para especialistas em educação ouvidos pelo Estado, a proposta de Frota (de coibição de doutrinação em sala de aula, na linha do Escola sem Partido) pode tanto ser interpretada como um atentado à liberdade de cátedra quanto uma distorção do papel do educador de oferecer o melhor do conhecimento disponível, com suas contradições, aos alunos”.

Um dos ouvidos pelo Estadão foi o ex-Reitor da USP, ex-Ministro da Ciência e Tecnologia e ex mais um monte de coisas, José Goldenberg, que afirmou: “Não é possível não se discutir filosofia e política nas escolas. O que a gente chama de política é algo que Platão fazia há 2.500 anos. É claro que temos de evitar que um professor dissemine política partidária, mas não puni-lo”. Até aí, tudo bem. Mas ele acrescenta, procurando insinuar que a proposta levada ao ministro é algo “retrógrado e obscurantista”: “Agora fico admirado que o ministro da Educação vá se preocupar com isso no começo da gestão, quando há tantos problemas mais agudos para resolver. Me parece retrógrado e obscurantista. Aí amanhã vão querer proibir educação sexual, que vai gerar muito mais problemas. Ou querer o criacionismo no lugar da evolução. Negar isso é andar para trás”.

Outro ouvido do Estadão foi o professor José Álvaro Moisés, diretor científico do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP, que defendeu que o fato de receber o grupo não configura por si só um problema, mas se houve sinalização de apoio ao tema, sim. Disse ele “Faz parte do papel do ministro receber pessoas que queiram apresentar propostas de qualquer natureza. Tem de receber pessoas independentemente da opinião para ouvi-las”, disse. “Mas ouvir não quer dizer concordar e aceitar. Criar uma lei para punir professores que adotem posturas ideológicas não faz o menor sentido. É uma atitude contra a liberdade de expressão e de cátedra e não deve ser aceita pelo governo.”

Ainda outro ouvido pelo Estadão, o professor Renato Janine Ribeiro, “O Breve”, também da USP, ex-ministro “de curta permanência” da Educação, de abril a setembro de 2015, na gestão Dilma Rousseff. Segundo ele, a proposta fere o próprio conceito de educação. “A pretexto de reduzir algum caráter ideológico do ensino, essa proposta coloca em risco todo o ensino. No limite, não se vai poder falar de ciência, do que as ciências sociais e políticas descobriram nos últimos 200 anos. Isso é contra a modernidade  . . .  As ciências humanas têm estudos do socialismo ao capitalismo. Não se pode confundir o ensino das controvérsias que existem na ciência com ideia de doutrinação ou com partido político. Isso é um golpe contra o conhecimento. Estudar Karl Marx é necessário nas ciências sociais, mas não quer dizer quem estuda Marx vira marxista. Não é à toa que quem propõe isso não é exatamente uma referência científica ou em educação.  . . .  Considero um sinal perigoso que o ministro aceite dialogar sobre educação com quem não tem contribuições a fazer sobre educação”, acrescentou.

Aparentemente, nem mesmo um jornal supostamente liberal e até mesmo conservador como o Estadão conseguiu encontrar sequer um intelectual liberal para fazer contraponto às críticas. Coube ao ministro defender a audiência dada a Frota, mas sem entender direito as críticas, imaginando que elas se ativessem ao fato de que Alexandre Frota, entre outros papeis, tem participado de filmes pornôs, e se devessem, portanto, a discriminação contra essa escolha do ator. Segundo o Estadão, o Mendonça Filho “justificou-se” (! de quê? o que ele fez de errado?) afirmando: “Este ministério comporta a pluralidade e o respeito humano a qualquer cidadão.  . . .  Não discrimino ninguém, porque respeito a liberdade de cada pessoa para fazer suas escolhas de vida.  . . .  Não vejo problema na visita. Discriminação é algo tão abominável e tão mal visto por todos os cidadãos com postura civilizada, que o fato de receber um ator como Alexandre Frota é uma questão que absolutamente deve ser respeitada”, falou, dizendo-se uma pessoa “não sectária”. (O articulista cujo nome não declinei atrás acusa Frota de também ser apologista do estupro).

[Todas essas críticas se encontram em

http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,especialistas-criticam-proposta-levada-por-frota-ao-ministro-da-educacao,10000053515].

E. Resumo das Críticas

Tento, primeiro, enunciar as críticas feitas à lei alagoana, especificamente, e à tese do movimento Escola sem Partido, em geral.

O Vice-Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas alega que:

  1. O objetivo da lei é “silenciar o professor” (vide atrás)
  2. A lei contraria a “liberdade dentro da sala de aula” (vide atrás)

O ex-Ministro da Educação alega, em relação à lei alagoana, que:

  1. A lei “contraria os princípios legais, políticos e pedagógicos que orientam a política educacional brasileira”, a saber:
  2. “O princípio constitucional do pluralismo de ideias” [princípio legal]
  3. “A liberdade do professor” [princípio político]
  4. “Concepções pedagógicas, uma vez que tal pluralidade efetiva-se somente mediante o reconhecimento da diversidade do pensamento, dos diferentes saberes e práticas” [princípio pedagógico 1]
  5. “O cumprimento do princípio constitucional que assegura aos estudantes a liberdade de aprender em um sistema educacional” [princípio pedagógico 2].

O Estadão e os professores da USP ouvidos pelo jornal (os dois andam sempre juntos) alegam que:

  1. A lei contraria a “liberdade de cátedra” e a “livre expressão”
  2. A lei distorce “o papel do educador de oferecer o melhor do conhecimento disponível, com suas contradições, aos alunos”
  3. A lei impede de o professor de discutir filosofia e sociologia, ou as ciências sociais e políticas, em sala de aula
  4. A lei confunde “discussão de controvérsias que existem na ciência” com “doutrinação política” e defesa de plataformas partidárias
  5. A lei confunde “estudar Marx” com proselitismo em favor do Marxismo
  6. A lei pune professores que adotam posturas ideológicas
  7. A lei pode levar a medidas mais “retrógradas e obscurantistas”, com o impedimento de que se discuta a educação sexual ou a teoria da evolução das espécies em sala de aula
  8. Os proponentes da Escola sem Partido não são referência nem em ciência nem em educação

Analisarei, adiante, essas alegações, uma por uma. No fundo, elas são cinco, pois o suposto “silenciamento do professor” é a mesma coisa que a suposta negação da liberdade do professor em sala de aula.

  1. A suposta negação do pluralismo de ideias e da diversidade de pensamento, saberes e práticas
  2. A suposta negação da liberdade do professor em sala de aula (liberdade de cátedra) e até mesmo o cerceamento de sua liberdade de expressão
  3. A suposta negação da liberdade de aprender do aluno, em especial de conhecer as divergências e contradições existentes em e entre disciplinas acadêmicas
  4. A suposta confusão entre discutir questões e autores controvertidos e doutrinar ou fazer proselitismo
  5. A alegação de que os proponentes da Escola sem Partido não teriam qualificação para propor essa tese.

Antes, porém, farei um breve resumo da discussão acadêmica acerca da doutrinação e outros processos afins.

3. Resumo da Discussão Acadêmica

Meu primeiro projeto de pesquisa na UNICAMP, realizado em 1974-1976, logo que ali cheguei, foi sobre o tema doutrinação vs educação. Preocupava-me, naquele momento, em especial a questão da doutrinação religiosa, mas felizmente estudei também a questão da doutrinação política.

A doutrinação tem sido objeto de muita discussão dentro da educação, da psicologia individual e social e da ciência política, pois tem relações de parentesco com temas como “reeducação”, “lavagem cerebral”, “controle do pensamento”, “reforma do pensamento”, etc., bem como com as áreas de propaganda, persuasão forçada, persuasão subliminar, alienação parental, etc. Há uma vasta discussão acadêmica sobre vítimas comuns de alguns desses processos, como, por exemplo, prisioneiros de guerra, tentativas de submeter criminosos comuns multiplamente reincidentes a mudança de comportamento [vide, por exemplo, o filme de Stanley Kubrick Clockwork Orange (Laranja Mecânica)], uso de tortura em suspeitos de crimes (comuns ou políticos), pressão sobre membros mais vulneráveis de famílias autoritárias e outras vítimas de personalidades autoritárias, adolescentes supostamente sequestrados de sua família por cultos religiosos com vistas à sua conversão forçada e posterior total dedicação ao culto, etc.

[Cito aqui, para dar uma ideia da amplitude dos estudos e pesquisas, alguns títulos de livros que tenho aqui em minha estante sobre esses assuntos – em ordem alfabética do primeiro nome do autor:

Bruce Bawer, The Victims’ Revolution: The Rise of Identity Studies and the Closing of the Liberal Mind (A Revolução das Vítimas: O Surgimento de Estudos Identitários e o Fechamento da Mente Liberal)

Clarence T. Rivers, Mind Control: Manipulation, Persuasion, Deception (Controle da Mente: Manipulação, Persuasão e Engano Intencional)

Denise Winn, The Manipulated Mind: Brainwashing, Conditioning and Indoctrination (A Mente Manipulada: Lavagem Cerebral, Condicionamento e Doutrinação)

Diana E. Hess and Paula McAvoy, The Political Classroom: Evidence and Ethics in Democratic Education (A Sala de Aula Política: Evidência e Ética na Educação Democrática)

Diana E. Hess, Controversy in the Classroom: The Democratic Power of Discussion (Controvérsia na Sala de Aula: O Poder Democrático da Discussão)

Gordon W. Allport, The Nature of Prejudice (A Natureza do Preconceito)

Herbert Richardson, editor, New Religions & Mental Health (Novas Religiões e Saúde Mental)

Ivan A. Snook, editor, Concepts of Indoctrination: Philosophical Essays (Conceitos de Doutrinação: Ensaios Filosóficos)

Ivan A. Snook, Indoctrination and Education (Doutrinação e Educação)

J. A. C. Brown, Techniques of Persuasion: From Propaganda to Brainwashing (Técnicas de Persuasão: Da Propaganda à Lavagem Cerebral

John T. Steinbeck, Brainwashing Children: Exposing and Combating the Most Common Form of Child Abuse (Lavagem Cerebral de Crianças: Exposição e Crítica da Forma Mais Comum de Abuso de Crianças)

Jonathan Haidt, The Righteous Mind: Why Good People are Divided by Politics and Religion (A Mente que se Justifica: Por que Pessoas Boas se Separam em Função de Política e Religião)

Joost A. M. Meerloo, The Rape of the Mind: The Psychology of Thought Control, Menticide and Brainwashing (O Estupro da Mente: A Psicologia do Controle do Pensamento, do Menticídio e da Lavagem Cerebral)

Kathleen Taylor, Brainwashing: The Science of Thought Control (Lavagem Cerebral: A Ciência do Controle do Pensamento)

Michael Shermer, The Believing Brain: From Spiritual Faiths to Political Convictions; or How we Construct Beliefs and Reinforce them as Truths (O Cérebro que Crê: Das Fés Espirituais às Convicções Políticas; ou Como Construímos Crenças e as Reforçamos como Verdades)

Richard Warshack, Divorce Poison: How to Protect your Family from Badmouthing and Brainwashing (Veneno no Divórcio: Como Proteger sua Família contra Calúnia e Lavagem Cerebral)

Robert D. Hess and Judith V. Torney, The Development of Political Attitudes in Children (O Desenvolvimento de Atitudes Políticas em Crianças)

Robert J. Lifton, Thought Reform and the Psychology of Totalism: A Study of ‘Brainwashing’ in China (Reforma do Pensamento e a Psicologia do Totalismo: Um Estudo da ‘Lavagem Cerebral’ na China)

Theodor W. Adorno and Else Frenkel-Brunswik, The Authoritarian Personality (A Personalidade Autoritária), 2 volumes.

William Sargant, Battle for the Mind: A Physiology of Conversion and Brain-Washing; or How Evangelists, Psychiatrists, Politicians, and Medicine Men Can Change your Beliefs and Behavior (Batalha pela Mente: Uma Fisiologia da Conversão e da Lavagem Cerebral, ou Como Evangelistas, Psiquiatras, Políticos e o Pessoal Médico Podem Mudar suas Crenças e seu Comportamento).

Fim da citação bibliográfica.]

Vou me ater no que segue aos casos menos escabrosos que podem acontecer, e não raro acontecem, em instituições aparentemente inofensivas como a família, a igreja e, naturalmente, a escola (esta o objeto maior de preocupação aqui). Sobre a síndrome da Alienação Parental, vide os seguintes artigos meus no meu blog Liberal Space:

“Síndrome da Alienação Parental”, in https://liberal.space/2009/09/01/sindrome-de-alienacao-parental/ (01/09/2009)

“A Morte Inventada – Alienação Parental”, in https://liberal.space/2009/09/01/a-morte-inventada-alienacao-parental/ (01/09/2009)

“Alienação Parental – Vamos Combatê-la”, in https://liberal.space/2009/09/01/alienacao-parental-vamos-combate-la/ (01/09/2009)

“Projeto de Lei sobre Alienação Parental”, in https://liberal.space/2009/09/04/projeto-de-lei-sobre-alienacao-parental/ (04/09/2009)

Há várias teorias sobre o que constitui doutrinação (o conceito de doutrinação) e sobre qual o principal critério pelo qual se determina se está havendo doutrinação.

Quanto ao conceito, há certo consenso de que doutrinação tem que ver com tentativas de inculcar crenças ou doutrinas (donde o termo “doutrinação”) na mente de pessoas sobre as quais o doutrinador detém uma posição de certa autoridade: em geral um progenitor em relação aos filhos, um pastor ou um padre em relação aos crentes ou fiéis, um professor em relação aos alunos, etc.

“Inculcar crença”, no caso, quer dizer, “levar alguém a aceitar uma crença de uma maneira que não respeita devidamente o seu direito de livremente decidir, depois de exame independente de evidências e argumentos, apresentados de forma isenta e objetiva, se aceita ou não essa crença”. Não digo que “inculcar crença” é “levar alguém a aceitar uma crença contra a sua vontade”, porque a própria vontade da pessoa pode ser manipulada do processo, dando a impressão, até para a própria pessoa envolvida, de que a crença está sendo aceita voluntariamente, quando, na realidade, não está.

Duas observações adicionais:

Em primeiro lugar, em geral não se usa o termo “doutrinar” quando o objeto é, digamos, apenas mudança  comportamental (desacompanhada de crenças ou de outro componente cognitivo que a justifiquem, ou melhor, “racionalizem”), como quando (mal comparando) se domestica ou adestra um animal. Neste caso em geral se usa o termo “condicionar”, “amestrar”, ou mesmo “treinar”. Doutrinação tem que ver com inculcação de crenças, não com a mudança comportamental que frequentemente a acompanha.

Em segundo lugar, no caso de doutrinação em geral há uma desigualdade de condição entre as partes envolvidas, uma (a parte doutrinada) estando subordinada, e, portanto, em certo sentido, vulnerável, à outra (a parte doutrinadora). Por isso, em geral não faz sentido dizer que uma pessoa sem alguma autoridade sobre outra a doutrinou, como, por exemplo, que o filho doutrinou o pai, ou o crente ou fiel doutrinou o pastor ou o padre, ou que o aluno doutrinou o professor, porque a cadeia de autoridade aqui vai no sentido contrário, por assim dizer. Um aluno, um crente / um fiel, ou um filho pode até influenciar aquilo que um professor, um pastor / um padre, ou um pai pensa, mas não se trataria de doutrinação, nesse caso. Em casos de doutrinação alguma forma de autoridade, ou poder, parece estar sempre envolvida. O pai tem o poder de, de alguma forma, punir o filho (física, psicológica, social ou mesmo financeiramente [retirando-lhe a mesada, deserdando-o, etc.); o pastor ou padre, de igual maneira, têm poder para repreender ou mesmo excomungar seus crentes ou fieis; e o professor tem poder até mesmo de reprovar um aluno, e, assim, direta ou indiretamente, afetar suas possibilidades de sucesso na própria escola ou mesmo, posteriormente, na vida.

Quanto ao critério que nos permite determinar se doutrinação está ou não ocorrendo em casos específicos – ou se se trata de processo educacional totalmente normal e regular, ou, digamos, de um processo inofensivo (dentro da curva da normalidade, por assim dizer) de influenciar outra pessoa através da apresentação de ideias, evidências e argumentação – os autores divergem.

  1. Segundo alguns autores, o critério tem que ver com o tipo de conteúdo que se procura inculcar nos alunos. Segundo esses autores, na área científica não haveria doutrinação. Esta só aconteceria em áreas em que a evidência é disputada ou inexistente e a argumentação dirigida para fazer crer que a evidência inexistente de fato existe ou que a evidência disputada de fato não é disputada, como a religião ou a política (ou, talvez, o futebol…).
  2. Segundo outros autores, o critério tem que ver com o método de persuasão adotado no processo. Se o professor, pastor/padre, pai, etc. usa métodos que não admitem contestação, apresentam apenas um lado da questão, omitem evidências e argumentos que podem levar o aluno, crente/fiel, filho, etc. a questionar a posição do professor, pastor/padre, pai, então está havendo doutrinação. Se o método, por outro lado, é aberto e liberal (republicano, como se diria hoje no Brasil), discute várias alternativas de forma objetiva e isenta, ressaltando seus prós e contras, de modo que os alunos, crentes/fiéis, filhos possam escolher livremente a alternativa que acharem mais razoável, ou, então, não escolher nenhuma, e (adicionalmente) se eles nem sequer conseguem atinar com qual é a alternativa preferida pelo professor, pastor/padre, pai, então dificilmente se pode dizer que tenha havido doutrinação.
  3. Segundo outros autores, é a consequência do processo que determina se houve doutrinação ou não. Se, ao final do processo (aula, pregação, conversa), o aluno, crente/fiel, filho fica com uma crença inabalável em relação ao que foi apresentado, se resolve adotar a crença (ou mesmo a teoria) apresentada com tal convicção que não se dispõe a abandona-la em nenhuma circunstância, nem mesmo diante de evidências inegáveis e argumentos indisputáveis, houve doutrinação por parte do professor, pastor/padre, pai. Se, porém, ao final do processo, o aluno, crente/fiel, filho sai disposto a pensar mais sobre a questão e a examinar melhor as alternativas, cotejando-as com as evidências e os argumentos existentes, para ver qual adotará, ou mesmo se adotará alguma, então provavelmente não houve doutrinação.
  4. Por fim, há autores, entre os quais me situo, que veem na intenção do professor, do pastor/padre, do pai o critério chave. Se o professor, pastor/padre, pai, ao dar uma aula, fazer uma pregação ou preleção, ou mesmo entabular uma conversa, tiver a intenção de fazer a cabeça do aluno, crente/fiel, filho, fazer com que seu interlocutor venha a acreditar no que ele está dizendo não importa que evidências ou argumentos ele possa vir a encontrar em contrário, se seu objetivo é conseguir que o aluno, crente/fiel, filho estreite e limite suas opções na área em questão, em vez de expandi-las e aumenta-las, se seu objetivo é impedir que o aluno, crente/fiel, filho pense por si próprio, tire suas próprias conclusões, impondo-lhe um pacote de ideias pronto e embrulhado, então está havendo doutrinação.

A razão pela qual prefiro “d” é que a intenção me parece abranger os demais critérios. Se minha intenção é a que descrevi em “d”, provavelmente vou me ater a certos conteúdos (e religião e política são os mais prováveis), vou usar métodos mais diretivos e autoritários do que abertos e liberais, e vou esperar que a consequência do processo seja mais uma crença inabalável do que uma crença tentativa, ou uma suspensão de juízo, ou uma dúvida, ou, ainda, mesmo uma contestação e até um protesto.

No relatório de minha pesquisa de 1974-1976 sugeri que uma boa regra de bolso para determinar se alguém está doutrinando ou não é observar como ele reage em relação a quem discorda dele, a quem se recusa a aceitar as ideias e explicações que ele apresenta. Um doutrinador ficará, provavelmente, no mínimo irritado se isso acontecer. Um educador, possivelmente, ficará satisfeito ao ver que seu interlocutor é contrasugestionável e insiste em pensar por si próprio.

4. Resposta às Críticas

Analisarei, agora, de forma resumida, as críticas feitas às proposta do movimento Escola Sem Partido, seja no episódio do Estado de Alagoas, seja em relação à visita de Alexandre Frota e o pessoal do Revoltados Online ao atual Ministro da Educação.

A esquerda é mestre em acusar os outros dos pecados que lhe são mais caros… O liberalismo, que está por trás do movimento “Escola sem Partido” é o mais tradicional defensor da liberdade de pensamento, da liberdade de crença, da liberdade de expressão – no campo religioso, político ou qualquer outro. A lei alagoana, que é objeto desse tipo de crítica (que supostamente negaria o pluralismo de ideias e a diversidade de pensamento, saberes e práticas), afirma claramente, nos Incisos II, III e IV do Art. 1O, a importância de que, na escola, se respeitem o pluralismo de ideias, a liberdade de aprender e a liberdade de crença.

O conceito de “liberdade de cátedra” foi concebido e instituído para impedir que, em regimes ditatoriais ou autoritários, o governo pudesse determinar ao professor exatamente o que e como ele deveria abordar em sua disciplina, impondo-lhe, assim, um “catecismo” ou uma “vulgata” e não lhe deixando espaço para a livre apresentação e discussão de ideias que pudesse ensejar que o aluno não fosse doutrinado. É totalmente ilegítimo, numa situação em que é o próprio professor que tenta limitar o que acontece em sala de aula, em termos de conteúdo e de método, ao que está prescrito em um “catecismo” ideológico que ele aceita (independentemente de o governo também aceita-lo ou não), invocar a sua liberdade de cátedra para fazer exatamente aquilo que o conceito e a instituição da liberdade de cátedra não queriam que acontecesse em sala de aula, a saber, doutrinação. O professor continua a ter seu direito à liberdade de expressão intato, fora da sala de aula. Lá dentro, tem obrigações que ele deve cumprir, entre as quais está a de respeitar a integridade mental do aluno, não lhe impondo, ou não o constrangendo a aceitar, crenças que ele não tem condições de avaliar exatamente em decorrência da abordagem usada pelo professor.

A liberdade de cátedra do professor não é absoluta: ela é limitada e restringida pela liberdade de aprender do aluno, e a liberdade de aprender do aluno significa exatamente isso, que ele tem o direito de não lhe serem tolhidas, por omissão do professor ou por sua ação deliberada, alternativas e opções que podem lhe ser mais aceitáveis, depois de examinar as evidências e os argumentos disponíveis, opções e alternativas essas que o professor se recusou a apresentar em sala de aula, ou apresentou de forma parcial e distorcida, para promover sua agenda partidária (partisane). “Partidária”, aqui, não se refere a partido político, mas, sim, ao fato de o professor tomar partido na discussão, privilegiando uma posição sobre as demais, em vez de assumir a atitude recomendada de isenção e neutralidade, em que todas as opções e alternativas são apresentadas de forma igualmente convincente e persuasiva, como o faria alguém que fosse delas partidário.

Se há divergências e contradições entre essas opções e alternativas, essas divergências e contradições devem ser apresentadas e esclarecidas, não omitidas ou apresentadas de forma tendenciosa, que favorece apenas uma delas.

Os defensores da doutrinação ideológica em sala de aula querem nos fazer crer que não estão proselitizando, mas apenas discutindo, “de forma crítica”, questões e autores controvertidos, cuja aceitação está longe de ser pacífica e generalizada fora da sala de aula (nos lares dos alunos, por exemplo). Basta ouvir o que dizem em sala de aula ou ler o que escrevem para perceber quão falta é sua pretensão. Seu objetivo é proselitizar mesmo, não hesitando eles em defender o voto em um candidato e criticar o voto em outro, em insistir que alunos devem participar de marchas e manifestações defendendo um ponto de vista e se recusar a participar de outras que defendem pontos de vista opostos.

Não se pretende impedir que os professores apresentem e discutam em sala de aula questões e autores controvertidos, desde que o façam de forma isenta, neutra, objetiva. O que se pretende impedir é que apresentem e discutam, de forma partidária, apenas um lado da questão, aquele que eles favorecem e privilegiam, com o intuito de ganhar para o seu a adesão dos alunos. Em suma, o que se pretende impedir é que doutrinem com intenção proselitista.

A alegação de que os proponentes da Escola sem Partido não teriam qualificação para propor sua tese é um argumento ad hominem que adeptos de um Presidente da República apedeuta deveriam ter vergonha de utilizar.

É isso, por enquanto.

Se alguém tem dúvidas de que a esquerda doutrina, e usa até mesmo provas e exames para doutrinar, inclusive o ENEM, para não falar em concursos para ingresso em carreira, veja as seguintes matérias:

http://extra.globo.com/noticias/viral/menina-defende-capitalismo-em-questao-de-prova-leva-nota-zero-mae-questiona-escola-sem-partido-19380565.html

http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/academicos-atacam-doutrinacao-do-enem-14546063

http://mercadopopular.org/2015/10/doutrinacao-no-enem-o-que-nao-podemos-criticar-no-exame/

http://folhacentrosul.com.br/comunidade/8323/doutrinacao-ideologica-na-educacao-brasileira-forma-militantes-incapazes-de-enxergar-a-realidade

Para o site do Escola sem Partido ver:

http://www.escolasempartido.org/

Em São Paulo, 27-28 de Maio de 2016

NOTA de 11/5/2018

Este artigo é parte de uma série de cinco artigos que começou há quase dez anos neste blog Liberal Space e que defende o Liberalismo Clássico e uma Educação Liberal, que leve o Liberalismo Clássico a sério, combatendo uma educação que não merece o nome, pois é mais doutrinação do que educação, que foi moldada para combater o Liberalismo Clássico e para promover uma educação de viés socialista, quando não comunistizante.

São estes os cinco artigos:

O mais antigo dos artigos, “Dogmatismo e Doutrinação“, foi publicado em 3/4/2009, há quase dez anos, no endereço https://liberal.space/2009/04/03/dogmatismo-e-doutrinacao/.

Em seguida, “‘Educação Sem Doutrinação’ e ‘Escolas Sem Partido’“, que foi publicado em 10/4/2010, no endereço https://liberal.space/2010/04/10/educacao-sem-doutrinacao-e-escolas-sem-partido/.

O terceiro artigo, “Doutrinação e Educação: A Esquerda Pretende Argumentar que Doutrinar não Passa de um Jeito ‘Crítico’ de Educar“, que foi publicado em 28/5/2016, no endereço https://liberal.space/2016/05/28/doutrinacao-e-educacao-a-esquerda-pretende-argumentar-que-doutrinar-nao-passa-de-um-jeito-critico-de-educar/.

O quarto artigo, “A Controvérsia Acerca do ‘Escola Sem Partido’ Continua: PL 867/2015“, publicado em 14/5/2018, no endereço https://liberal.space/2018/05/14/a-controversia-acerca-do-escola-sem-partido-continua/.

Por fim, o quinto artigo, “A Escola e a Liberdade”, publicado em 10/11/2018, no endereço https://liberal.space/2018/11/10/a-escola-e-a-liberdade/.

Eduardo CHAVES

A Escola e o Futuro

Cada vez fico mais convencido de que a escola não tem futuro, porque o futuro não terá escolas.

Se a gente tivesse tido coragem, o presente já não teria escolas, porque teríamos prestado atenção ao que disse Ivan Illich, 45 anos atrás, em 1970, quando escreveu um livro nos conclamando a acreditar que uma sociedade sem escolas era possível – mais do que isso, necessária – e propondo que, portanto, desescolarizássemos a sociedade.

Se isso já parecia viável a Illich, um religioso, vivendo em Cuernavaca, no México, quase 50 anos atrás, quanto mais hoje, com toda a tecnologia de que dispomos, toda ela interconectada, com a Internet, com comunicação multimídia móvel e instantânea – ficando mais rápida a cada dia…

Falo em tecnologia, não porque ache que a tecnologia vai substituir a escola. A tecnologia de hoje, como Bill Gates já percebeu há muito tempo, quando escrevia seu primeiro livro, existe para permitir que pessoa se conecte com pessoa e que, interconectados, tenhamos amplo acesso às informações de que precisamos, ou que queremos, para fazer seja lá o que for que queiramos fazer. O que vai substituir a escola são redes – não de computadores, mas de gente: redes sociais. Os computadores viabilizaram essas redes, mas quem as criou fomos nós. Mike Zuckerberg teve a ideia, montou a estrutura, mas quem transformou Facebook em uma rede de bem mais de um bilhão de pessoas fomos nós. A maior parte de nós trabalha de graça no Facebook, conversando um com o outro, trocando ideias, fotos e vídeos, produzindo, compartilhando, criticando informações – só pelo prazer, pela satisfação, pelo sentimento de realização que isso nos dá – ou por outra razão últil qualquer.

As redes sociais que nós estamos montando vão substituir a escola – mas serão tão diferentes da escola que conhecemos que nós provavelmente abandonaremos o termo. Os prédios que hoje são escolas, da mesma forma que os cinemas que antigamente estavam por todo lugar e andavam sempre cheios, um dia serão destruídos (já estão sendo) ou se transformarão templos das igrejas dos sucessores dos Edir Macedos de hoje. A menos que as igrejas também sejam substituídas por redes sociais – por que não? Elas são locais em que pessoas se encontram para receber e transmitir informações e para sentir prazer com a companhia alheia… Tudo isso pode ser feito através de redes sociais atuais – e será muito mais viável e efetivo com as redes sociais que estão ali adiante, bastando virar a esquina. O Edir Macedo, que entende muito mais do que se pode fazer com tecnologia do que qualquer um de nós já esparramou “pastores virtuais” pela Internet, que ouvem e conversam com gente que tem problema, que está ansiosa, preocupada, aflita, usando a Internet como confessionário…

Uma das coisas mais importantes (para eles) que crianças, adolescentes e jovens fazem hoje é jogar – brincar usando videogame. Hoje, eles não jogam com o videogame: usam o videogame para jogar com outras pessoas. Os que fazem isso intensamente são uma confraria secular. Aprender a jogar bem um videogame desses que fascinam as novas gerações não é fácil (para um adulto). É muito mais difícil do que aprender a usar bem a língua portuguesa. Mas as jovens gerações de hoje aprendem a jogar esses jogos fascinantes de forma extremamente rápida e com inacreditável competência. Por eles, viram a noite jogando. E aprendem de forma ativa, interativa, comunicativa, colaborativa, significativa… Como dizia Paulo Freire, ninguém ensina ninguém, mas ninguém aprende sozinho: nós nos educamos uns aos outros “em comunhão”, mediatizados pelos nossos interesses comuns no mundo… A igreja dos anos 60 aprendeu que o lugar de adorar a Deus é no mundo, não no templo… Paulo Freire pegou essa ideia e a pedagogizou: o lugar de nos educarmos uns aos outros é no mundo, não na escola. Paulo Freire era amigo de Ivan Illich – e ambos eram amigos de Rubem Alves, o nosso teólogo-educador-poeta-em-prosa maior, que nos ajudou a entender, lá nos anos setenta, que a teologia era uma coisa muito chata, mas a teopoesia era uma coisa encantadora… Ele também fez uma transposição do mundo da religião para o mundo da aprendência: aprender o que não se quer e, o que ainda é pior, através do ensino de um professor de saco cheio é uma merda – mas aprender o que se tem interesse em aprender, brincando juntos, poetizando juntos, até mesmo teopoetizando juntos, é encantador. Escolas são gaiolas. Rubem Alves nos ajudou a ver isso. Elas matam os pássaros que prendemos nelas – mesmo quando o fazemos com a melhor das intenções. Rubem Alves certamente havia lido um livro de alguém que descreveu o tempo de escolarização obrigatória como uma sentença de 12 anos que condena nossas crianças, adolescentes e jovens a desperdiçar numa instituição autoritária o melhor tempo de suas vidas, o tempo em que deveriam estar explorando o mundo, aprendendo enquanto jogavam, se divertiam, curtiam a vida… [*]

Fui obrigado a ir à escola, disse Mark Twain – mas nunca deixei que a escola atrapalhasse a minha educação. Ainda bem. É isso. Na escola perdemos tempo – tempo precioso que deveria estar sendo usado em nossa educação.

Karl Popper disse que tinha fé no ser humano – e que essa fé se fundamentava no fato de que essa maldita escola, que, segundo ele, foi inventada e nos foi legada por Platão e que foi conservada quase sem mudança até hoje, ainda não conseguiu destruir de todo a nossa curiosidade, a nossa vontade de aprender, o nosso amor ao saber e ao saber-fazer, a nossa capacidade de não perder de vista o que importa, mesmo quando a escola tenta desviar o nosso olhar para o desimportante…

A escola está à morte. Que tenha uma longa vida a educação.

Em São Paulo, 6 de Outubro de 2015

[*] O livro a que me refiro é The Twelve-Year Sentence: Radical Views on Compulsory Education, de William Rickenbacker. Infelizmente, apesar to título chamativo, Rickenbacker não é suficientemente radical. Ele se opõe basicamente à educação compulsória (em especial a que tem lugar na escola pública). Na verdade, ele se opõe à escolarização obrigatória imposta pelo governo. Eu me oponho a isso também. Mas minha tese é mais ampla e mais radical: ela afirma que a escola, como locus privilegiado da educação, é uma ideia a ser combatida, seja a escola compulsória ou não, seja a escola pública ou não. O locus da educação é o mundo, isto é, a sociedade, o ambiente de trabalho, o ambiente de lazer, a comunidade, a casa (o lar), o quarto do indivíduo, o seu telefone… Todos esses ambientes de aprendizagem estão hoje interconectados — na verdade, estão tão entrelaçados que a gente trabalha em casa, se diverte no trabalho, brinca e se entretem com as mesmas ferramentas com que trabalha — e aprende em todos esses locianywhat, anywhy, anywhen, anywhere, anyhow…

Avaliação de Software para EAD via Internet

O artigo que disponibilizo a seguir foi escrito em Agosto de 2000 — faz 15 anos, portanto — para um minicurso que ministrei num dos congressos da ABED – Associação Brasileira da Educação a Distância. Evidentemente, exibe marcas do tempo — é inevitável que um artigo com essa idade mostre a idade. No entanto, compartilho-o para quem possa se interessar pelo assunto.

EC -A Avaliacao de Software para EAD via Internet (Para ABED)

Transcrito m São Paulo, 1 de Setembro de 2015

Tendências Pedagógicas e Educação a Distância (EAD)

NOTA: O artigo que aqui disponibilizo foi escrito em Janeiro de 2007 a pedido do SENAC-RJ. Deve estar publicado em algum lugar no site do SENAC-RJ. Dada a dificuldade de encontra-lo, republico-o aqui. Apesar de haverem se passado mais de oito anos desde que o escrevi, creio que continua relevante.

Tendências Pedagógicas e a Educação a Distância (EAD)

 

1. Introdução

2. Tendências Pedagógicas

2.1. A Distinção entre as Megatendência
2.2. A Primeira Megatendência
2.3. A Segunda Megatendência

3. As Megatendências e a Educação a Distância

3.1. Ensino a Distância
3.2. Aprendizagem Colaborativa em Ambientes Virtuais Estruturados

4. Conclusão

o O o

1. Introdução

O texto discute a noção de tendências pedagógicas e sugere que as principais tendências pedagógicas encontradas na história da pedagogia podem ser agrupadas, grosso modo, em duas mega-tendências.

A primeira delas vê a educação como um processo de socialização e aculturação de crianças (e, por extensão, de imigrantes estrangeiros que adentram uma nova sociedade e uma nova cultura). Nessa visão, educar é procurar introjetar naqueles que são objeto da educação os conteúdos informacionais, valorativos e atitudinais que aquela sociedade e aquela cultura consideram essenciais ou importantes. Aprender é assimilar e absorver esses conteúdos.

Essa megatendência se tornou virtualmente hegemônica no Ocidente durante a Revolução Industrial, porque se presta extremamente bem a um sistema de educação formal que é sistemático, metódico, padronizado e de massa.

A segunda megatendência vê a educação como um processo de desenvolvimento humano, focado no indivíduo (desenvolvimento esse que tem lugar durante toda a vida da pessoa). Nessa visão, educar é transcender a incompetência, dependência e ausência de responsabilidade com as quais se nasce e transformá-las em competência, autonomia e responsabilidade. Isso se dá através da aprendizagem, que se define como tornar-se capaz de fazer aquilo que antes não se conseguia fazer, e que acontece através de processos interativos com os semelhantes. Essa megatendência, em geral privilegiada em ambientes de educação não-formal, tem encontrado grande aceitação na Sociedade da Informação, que enfatiza o valor de sistemas educacionais, mesmo formais, que levam em conta as diferenças individuais e respeitam os interesses, os talentos pessoais, e os estilos de aprendizagem de cada aluno.

Essas duas megatendências se refletem na Educação a Distância em, respectivamente, dois modelos: o Ensino a Distância e a Aprendizagem Colaborativa em Ambientes Virtuais Estruturados. A Educação a Distância seria, nesse caso, o gênero, e esses dois modelos as espécies – não se devendo, portanto, em hipótese alguma, confundir Educação a Distância com Ensino a Distância.

Embora o texto não faça uma defesa da segunda megatendência (e da sua aplicação no caso da Educação a Distância), é evidente que nela está a simpatiado autor.

2. Tendências Pedagógicas

A expressão “Tendências Pedagógicas” em geral é usada para se referir a diferentes maneiras de abordar a educação.

As várias abordagens à educação em geral incluem um referencial teórico e um conjunto de diretrizes práticas. Este, em regra, se deriva, ou assim se assume, do referencial teórico.

A primeira grande distinção a ser feita quando se fala em educação é a que diferencia, de um lado:

  • A educação como processo não-formal que acontece no lar, na comunidade, nos momentos de lazer, no ambiente de trabalho, e em outros ambientes distintos da escola, à medida que as pessoas interagem com os seus próximos, com os meios de comunicação de massa, ou com o meio cultural e natural em que vivem;e, de outro lado:
  • A educação como processo formal que tem lugar em instituições criadas especificamente para servir de ambiente privilegiado para a educação, as quais, para atender a essa finalidade, contratam profissionais, elaboram currículos, definem metodologias, e estipulam formas de avaliar a aprendizagem dos que as freqüentam.

Neste trabalho focarei a atenção principalmente na educação como processo formal – isto é, na educação que tem lugar em escolas, universidades e entidades afins.

No entanto, ao discutir as “tendências pedagógicas” que são o foco principal do trabalho, farei menção a características que em geral predominam na educação como processo não-formal.

Em termos de abordagem, adotarei aquela que me é mais natural, dada a minha formação: a do filósofo, mais do que a do historiador ou do sociólogo (incluindo aqui o especialista em educação comparada). A um historiador ou especialista em educação comparada certamente caberia mostrar as diferenças entra a educação de diversos tempos históricos, de diversas culturas ou regiões geográficas. O filósofo, no entanto, busca encontrar a unidade na diferença, o “um nos muitos”… (bem como buscar diferenças onde se supõe haver apenas uma visão e/ou uma prática…).

Isto posto, resta observar que faz sentido presumir, também, que diferenças entre diversas abordagens à educação, tout court, se reflitam nas abordagens à Educação a Distância, que, afinal de contas, não deixa de ser educação por ser a distância. O que precisa se discutir – e é uma questão interessante – é se é viável falar-se em educação não-formal a distância. Como se verá, eu acredito que sim.

Assim, consciente de que corro o risco de simplificar demasiado o assunto, passando por cima de diferenças que muitos considerariam extremamente importantes, estou pronto a afirmar que, ao longo da história da educação as diferentes tendências pedagógicas podem, no fundo, ser reduzidas a duas mega-tendências.

No próximo capítulo deste artigo procurarei caracterizar essas duas megatendências em um pouco mais de detalhe, para, depois, no terceiro capítulo, discutir suas implicações para a Educação a Distância (EAD).

2.1. A Distinção entre as Megatendências

Há muitas maneiras de distinguir as duas megatendências.

Quando a Web se tornou um meio de comunicação de massa, começou a se tornar comum distingui-la da televisão, ressaltando que a televisão é uma tecnologia “push”, e a Web, uma tecnologia “pull”. Traduzindo em miúdos, a televisão “empurra” (“pushes”) a informação para o telespectador, que passivamente o recebe. O máximo de ação que a televisão permite ao telespectador é definir que canal deseja assistir – ou, então, desligar o aparelho. A Web, porém, não empurra a informação para o usuário da Internet: a informação (uma quantidade enorme!) fica armazenada em diversos servidores, e o usuário tem de ativamente buscá-la. No caso da Web, o usuário precisa tomar a iniciativa de buscar a informação: “puxar” (“pull”) da Web o que lhe interessa ou atende às suas necessidades.

Para exprimir essa distinção usando noções que fazem parte da família dos conceitos pedagógicos, poderíamos dizer que uma megatendência dá prioridade ao ensino, a outra, à aprendizagem. Didática é o nome normalmente dado à “arte de ensinar”; Matética o nome que Seymour Papert inventou para a “arte de aprender”. Há um paralelo interessante entre ensino, didática e “push”, de um lado, e aprendizagem, matética e “pull”, do outro…  É verdade que é possível imaginar que um grupo de pessoas interessadas em se informar acerca de um determinado assunto, ou em adquirir determinada competência ou habilidade, se dirija a um especialista e peça a ele que lhes ensino algo sobre aquele assunto, ou que lhes ensine a fazer isso ou aquilo. É possível, mas não é tão comum. A iniciativa do modelo de educação calcado no ensino em geral parte do ensinante (ou até mesmo de alguém acima dele), não do aprendente. No modelo de educação calcado na aprendizagem, a iniciativa parece partir, em regra, de quem aprende, que, interessando-se por vir a saber, ou a saber fazer, alguma coisa, vai buscar maneiras de adquirir os saberes, ou construir os saber-fazeres, que lhe interessam ou de que tem necessidade.

Não se fala muito em educação centrada no professor – talvez porque esse seja o tipo mais comum de educação formal, que tem lugar na escola – o “default”, o ar que, por ser onipresente, não se nota. Fala-se, porém, bastante, pelo menos nos últimos tempos, numa educação alternativa centrada no aluno… Novamente, o mesmo paralelo…

Tem se dito que o ensino é um processo que tem lugar “de fora para dentro”: o ensinante procura transferir, da sua cabeça para a cabeça dos alunos, um determinado saber. Essa é a visão “bancária” da educação que Paulo Freire denunciou: educar, dentro dessa visão, seria equivalente um processo de transferência de fundos – só que, em vez de recursos financeiros, transferem-se “recursos informacionais”. A aprendizagem, porém, parece ser um processo mais “de dentro para fora”.

Sócrates, o grande proponente da segunda das duas megatendências que vamos analisar, caracterizou o papel do professor em analogia com o da parteira. A parteira facilita o nascimento da criança, mas não dá à luz, ela própria, uma criança. Ela ajuda a mãe a dar à luz a criança. E o processo de dar à luz é um processo “de dentro para fora”…

2.2. A Primeira Megatendência

A primeira megatendência tem seu lugar natural na educação formal – mas ela não vê a educação como algo “natural” para a pessoa humana. Dentro dessa visão, as pessoas nascem em uma determinada cultura – cultura que vem sendo construída dentro da sociedade, às vezes, há muito tempo. Dentro dessa visão, a educação, no seu sentido mais básico, é uma mescla, sistemática e metódica, de socialização e aculturação que se aplica, em geral, a crianças (ou, alternativamente, a adultos que imigram para aquela sociedade). A educação, sem dúvida, tem lugar também através de processos não-formais (as crianças e os imigrantes aprendem a falar a língua de uma determinada sociedade – e a fazer muitas outras coisas – fora de escolas, apenas vivendo suas vidas). Mas a primeira megatendência postula, em geral, que esses processos não-formais não são suficientes, e que é necessário suplementá-los com um conjunto de processos formais. E isso por um fato básico da natureza humana: o ser humano é naturalmente livre, e, deixado aos seus próprios interesses, não motivação suficiente para se socializar ou aculturar: o processo civilizatório é, acima de tudo, um processo de substituição da natureza pela cultura, que visa a transformar os animaizinhos que são as crianças ao nascer em seres humanos bem posicionados na sociedade.

Émile Durkheim, talvez o representante mais lídimo dessa megatendência, definiu a educação da seguinte forma:

“A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social, com objetivo de suscitar e desenvolver, nas crianças, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que as crianças, particularmente, se destinem”.

Os defensores dessa megatendência em geral acreditam que “a realidade da sociedade precede a vida individual”. Com isso querem dizer que, sem o efeito civilizatório e benéfico da sociedade, a criança não se torna, verdadeiramente, uma pessoa humana. Se a criança for criada no meio de lobos (por exemplo), tornar-se-á um “menino lobo”. Se, no entanto, sofrer a ação socializante e aculturante (educacional) das gerações mais velhas – e o verbo “sofrer” aí é usado conscientemente – e desenvolver “certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política”, ela se tornará um ser humano. É a sociedade que molda a criança (como se esta fosse uma “massinha” de moldar), que lhe dá a forma de ser humano. Durkheim considera a criança um ser tão maleável que chega a aproximar a ação educativa da ação hipnótica. Ou, para usar um linguajar menos ofensivo, usado por alguns filósofos da educação marxistas, é a sociedade que “institui o humano” na criança – que a “humaniza”.

Dentro dessa visão, que dá primazia ao social, tudo aquilo que é caracteristicamente humano é visto como produto da sociedade. Segundo seus defensores, o homem só é humano porque vive em sociedade. O homem não nasce homem: torna-se homem unicamente pelo contacto com outros homens. Na verdade, não é o caso que o homem seja um ser social porque é humano, mas, pelo contrário: ele é humano porque é um ser social.

Diz Durkheim:

“A civilização se deve à cooperação de homens associados e de gerações sucessivas; é, pois, obra essencialmente social. É a sociedade que a fez, que a guarda e a transmite aos indivíduos. É dela que a recebemos. Ora, a civilização é o conjunto de todos os bens aos quais damos o maior preço: é o conjunto dos mais altos valores humanos. Pois a sociedade é a um tempo a fonte e a guardiã da civilização. Ela se apresenta a nós como uma realidade infinitamente mais rica, mais alta que a nossa, uma realidade donde nos vem tudo quanto vale a nossos olhos e que, contudo, nos excede de todos os lados. . . . O homem não é homem senão na medida que é civilizado. Ora, a civilização vem da sociedade”.

O processo educacional que Durkheim definiu atrás é, portanto, um processo de transmissão, pelas gerações mais velhas às mais novas, da herança cultural da sociedade, com a finalidade de preservar essa tradição supostamente humanizante.

Assim, dentro dessa visão, a educação formal, escolar, é entendida como um processo de transmissão, sistemático e metódico, pelos professores aos alunos, de conteúdos informacionais (fatos, conceitos, procedimentos), valorativos e atitudinais, definidos como essenciais ou importantes pelo ambiente cultural predominante naquela sociedade, sistematizados em áreas específicas (disciplinas acadêmicas) e organizados seqüencialmente de forma cada vez mais complexa (séries). Nessa visão da educação há, conseqüentemente, a valorização relativa dos conteúdos, do processo de ensino e instrução, e do papel do professor como detentor dos conteúdos informacionais, valorativos e atitudinais a serem repassados aos alunos. A aprendizagem, por sua vez, fica caracterizada como um processo, em grande parte passivo (do ponto de vista do aluno), de absorção desses conteúdos (em geral apresentados de maneira totalmente desvinculada dos problemas fundamentais que um dia levaram o ser humano a se interessar pelas questões que estão por trás desses conteúdos). 

Na implementação mais conhecida dessa megatendência – a escola da sociedade industrial, de massa – esse modelo foi obrigado, para promover a educação de massa, padronizar os processos (currículos, metodologias, formas de avaliação, etc.). O resultado foi que essa escola se tornou incapaz de seriamente levar em consideração as necessidades, os interesses, os talentos, o estilo e o ritmo próprio de aprendizagem de cada aluno, de modo a proporcionar a cada um uma educação adaptada a ele, porque esse tipo de ensino personalizado e individualizado se chocaria com um requisito básico da escola, a saber: a padronização.

Para alcançar essa padronização a escola se tornou um ambiente de aprendizagem totalmente estruturado, segundo o modelo da linha de montagem: todo mundo começa a trabalhar na mesma hora, desenvolve atividades pré-determinadas em uma seqüência pré-especificada em plano de produção (currículo), seguindo um cronograma (horário) imposto, pára de trabalhar na mesma hora, e não tem liberdade para decidir que seria preferível estar fazendo outra coisa (mesmo que seja trabalho diferente, não lazer).

Indo além do modelo fabril, a escola espera que todos os seus alunos iniciem seus estudos com a mesma idade, para poder padronizar os grupos de alunos (classes), tanto quanto possível, por faixa etária. Conseqüentemente, a escola não pode levar em conta (pelo menos muito seriamente) as diferenças individuais de interesse (motivação), aptidão, capacidade, estilo e ritmo de aprendizagem. Em regra, a criança tem de ser alfabetizada aos 6/7 anos. Se ela é mais vagarosa, fica estigmatizada. Se é mais rápida, azar dela, tem de ficar parada (e quieta) esperando os outros. Se ela gosta de aprender passivamente, ouvindo e lendo, ótimo, a escola até que lhe serve bem. Se ela gosta de aprender ativamente, explorando, fuçando, mexendo, tocando, abrindo, falando, deve se cuidar, porque a escola pode lhe ser cruel.

Por fim, para poder colocar na sociedade um “produto padronizado” essa escola tende a concentrar a atenção no “aluno médio”, negligenciando tanto os mais fracos como os mais fortes! Na verdade, os alunos melhores são os mais prejudicados, porque mais importante do que produzir alunos excepcionalmente bons é evitar que sejam colocados na sociedade “produtos defeituosos”. Assim, se um aluno é excepcionalmente bom em artes, mas não se dá muito bem com matemática, a professora vai (provavelmente) dizer pra mãe: seu filho precisa se concentrar mais em matemática, ele está muito fraco; em casa, cuide que ele gaste mais tempo com a lição de matemática e não com os desenhos, que já faz bem. Provavelmente esse procedimento está matando um artista e criando em seu lugar uma pessoa que detesta matemática. A mesma coisa com uma aluna: ela escreve bem, compõe poemas, escreve pequenos contos, etc., mas não suporta ciências. A escola vai tentar lhe impor as ciências de que ela não gosta em vez de promover o amor às letras que a motivam.

A escola que ainda temos, que adota esta megatendência, representa, portanto, um modelo de promoção da educação calcado no ensino, que foi criado para a sociedade industrial (em que a produção em massa era essencial) e que não se adapta bem a uma educação individualizada e personalizada.

Os defensores dessa megatendência às vezes parecem acreditar que ela é a única megatendência viável – pelo menos hoje, numa sociedade complexa. Pressupõem que aprender é absorver e assimilar conteúdos informacionais, valorativos e atitudinais, que a melhor forma de aprender é através do ensino, e que, portanto, professores são ensinantes. Dentro de uma visão como essa, não resta dúvida de que faz sentido afirmar que os professores são “o portal para a aprendizagem” (“the gateway to learning”), ou que a chave para melhorar a qualidade da educação é a capacitação de professores.

Reformas educacionais, dentro dessa visão, não passam de tentativas de reformular currículos ou de encontrar formas mais atraentes de ensinar. Como aquilo que os alunos devem aprender em geral não corresponde a coisas em que eles estão naturalmente interessados, os proponentes dessa megatendência estão convictos de os alunos são naturalmente avessos a aprender e que, portanto, é preciso encontrar formas (em geral extrínsecas) de motivá-los a aprender ou de engajá-los no processo educacional. Mas, no fundo, reconhecem que aprender é, para a maioria das pessoas, um processo difícil — e penoso para os alunos. As formas de motivação utilizadas para conseguir que aprendam o que naturalmente não teriam interesse em aprender recorrem à chamada motivação extrínseca: apelos ao fato de que a educação é necessária para seu desempenho futuro na sociedade ou para seu sucesso econômico, etc. Isso quando não tentam apelar à sua consciência, afirmando que é importante que eles aprendam porque só assim ajudarão a sua sociedade a se desenvolver economicamente e a encontrar um lugar melhor na comunidade das nações…

2.3. A Segunda Megatendência

A segunda megatendência parte de pressupostos diferentes. Ela parte do fato de que seres humanos, ao nascer, são incompetentes, e, por causa disso, totalmente dependentes dos seus pais e parentes, e, por causa disso, incapazes de autonomia. Não se desenvolvem em seres humanos adultos competentes, autônomos e responsáveis por um processo de mero crescimento e amadurecimento. É isso que torna a educação um processo absolutamente necessário em seu desenvolvimento: necessário primariamente para eles próprios, não para a sociedade. E a educação, dentro dessa visão, tem lugar através da aprendizagem, não do ensino.

Aprender, porém, nessa visão, não é um processo de absorção e assimilação de informação: é um processo mediante o qual as pessoas se tornam capazes de fazer aquilo que não conseguiam fazer antes (Peter Senge). Aprender, portanto, é um processo de desenvolvimento de competências.

Felizmente o ser humano é especialmente bem dotado pela natureza para a tarefa de aprender, e, assim, se desenvolver em ser humano adulto. Ele aprende, sem que ninguém lhe ensine, a fazer coisas extremamente complicadas. Uma delas é isolar, identificar e reconhecer as pessoas, e, depois, os objetos, a partir de uma série de impressões visuais que abrangem, além das pessoas e dos objetos em si, todo o contexto em que se encontram. Outra é reconhecer sentido nos sons da voz humana e tentar imitar esses sons significativos, assim aprendendo a entender a fala e a falar. Esses processos estão entre os mais complexos e difíceis que o ser humano precisa dominar através da aprendizagem – e, no entanto, as crianças pequenas os dominam de forma natural, indolor, fácil, e prazerosa, sem que ninguém os ensine a elas.

É verdade, como bem ressaltou Paulo Freire, que ninguém nos ensina a fazer essas coisas – mas também não aprendemos a fazê-las sozinhos. Aprendemos a fazê-las interagindo uns com os outros. Os pais e parentes ajudam a criança a aprender, dão-lhes apoio, incentivo e feedback. Mas, em última instância, quem aprende é a criança – e o faz sem ser metódica e sistematicamente ensinada. Pais e parentes são como a parteira invocada por Sócrates. Ajudam a extrair de dentro da criança o potencial que está lá e que, realizado, permite que ela consiga fazer coisas que antes não conseguia fazer (i.e., permite que ela aprenda).

Diferentemente do que acontece na outra megatendência, aqui aprender é considerado algo natural, relativamente fácil, indolor, e até mesmo prazeroso. Na verdade, os defensores dessa visão apontam para o fato de que a criança é naturalmente motivada a aprender – e que aprender lhe vem com naturalidade. É verdade que reconhecem que esse aprender natural, fácil, indolor, prazeroso acontece quando o processo de aprendizagem é auto-iniciado, auto-determinado, auto-conduzido, e auto-motivado, porque a criança tem interesse em aprender aquilo que se propõe aprender.

Mas há um outro pressuposto que sustenta essa visão da educação: o de que cada criança é diferente das outras. Transcrevo, a seguir, uma passagem, escrita por Octavi Roca, em seu artigo “A Autoformação e a Formação à [sic] Distância: As Tecnologias da Educação nos Processos de Aprendizagem”, que enfatiza isso.

Diz ele.

“Na maioria dos profissionais da educação já existe a consciência de que cada pessoa é diferente das outras, que cada uma tem as suas necessidades próprias, seus objetivos pessoais, um estilo cognitivo determinado, que cada pessoa usa as estratégias de aprendizagem que lhe são mais positivas, possui um ritmo de aprendizagem específico, etc. Além disso, quando se trata de estudantes adolescentes ou adultos, é preciso acrescentar novos elementos, como as diferentes disponibilidades horárias, as responsabilidades adquiridas ou o aumento da capacidade de determinação pessoal de necessidades e objetivos. Assim parece óbvio que é preciso adaptar o ensino a todos estes fatores.

Esta reflexão não é nova. As diferenças sempre têm sido reconhecidas. Mas, antes, eram vistas como um problema a ser eliminado, uma dificuldade a mais para o educador. Em uma fase posterior, considerava-se que esta diversidade devia ser considerada e isso já bastava. No entanto, agora se considera que é a partir daí que devemos organizar a formação e é nos traços diferenciais que devemos fundamentar a tarefa de formação: as capacidades de cada pessoa representam uma grande riqueza que é conveniente aproveitar.

Parece que, neste caso, na inovação que isto tudo representa, agirão em conjunto, tanto aqueles que se dedicam à pesquisa dos aspectos mais teóricos como aqueles que têm responsabilidades diretas na atividade de formação. Esses dois grupos, às vezes com pouca comunicação entre si, começam a mostrar um interesse convergente no trabalho dirigido a proporcionar uma formação cada vez mais adaptada a cada pessoa em particular”. 

(Citação retirada de Para Uma Tecnologia Educacional, organizado por Juana M. Sancho, ArtMed, Porto Alegre, 1998, p.185).

Os defensores desta segunda megatendência criticam os defensores da outra megatendência por tornar o processo educacional que tem lugar na escola totalmente artificial e por não levar em conta as diferenças individuais. A dificuldade que muitas crianças têm na escola, afirmam eles, se deve ao fato de que não vêm sentido em aprender aquilo que se exige que aprendam. Os defensores desta megatendência apontam para o fato de que a aprendizagem, quando se trata de aprender coisas que os aprendentes consideram interessantes, é prazerosa e, assim, naturalmente (intrinsecamente) motivada (mesmo que exija esforço e concentração).

A principal crítica que esta megatendência enfrenta é a seguinte: o que fazer quando as crianças precisam aprender algo no qual não têm interesse?

Os defensores desta megatendência apontam para dois fatos:

  • Há sempre vários caminhos para aprender alguma coisa;
  • Em geral aprendemos várias coisas, como sub-produto, quando estamos tentando aprender outras. Dentro desse quadro, o desafio é encontrar projetos que permitam aos alunos aprender algo que se considera importante fazendo algo que eles consideram interessante.

Num ambiente de aprendizagem formal, em que há algumas coisas que todos devem aprender, como se comportaria esta tendência?

Uma escola que privilegiasse esta megatendência poderia ter um sistema de aprendizagem composto por três componentes:

  • Uma Matriz de Competências
  • Um Banco de Projetos
  • Um Portfólio de Aprendizagem

A Matriz de Competências seria o subsistema que define e descreve o currículo da escola. Ele circunscreve, portanto, o que os alunos podem aprender. O que eles devem aprender seria uma seleção das competências da matriz que formam o seu currículo personalizado.

O Banco de Projetos seria o subsistema que descreve as partes integrantes da metodologia da escola. Seria através do trabalho com projetos que os alunos aprendem – isto é, desenvolvem competências. Cada projeto deve conter uma lista das competências (retirada da Matriz de Competências) que os alunos que fizerem o projeto irão desenvolver. Assim, se a Matriz de Competências define e descreve “o que” os alunos podem e devem aprender, o Banco de Projetos define “como” eles irão aprender o que devem aprender.

Por fim, o Portfólio de Aprendizagem seria o subsistema que descreve o itinerário de aprendizagem dos alunos dentro da escola. Ele conteria, primeiro, uma avaliação inicial do aluno que entra na escola, que procurará detalhar quais competências (dentre aquelas definidas e descritas na Matriz de Competências) o aluno já domina ao entrar na escola, e em que nível as domina.

Essa avaliação inicial serve de base para o trabalho de aconselhamento do aluno acerca dos tipos de projeto de aprendizagem (dentre aqueles constantes do Banco de Projetos) em que deverá se engajar ao longo do ano na escola. Em seguida, o Portfólio de Aprendizagem conteria algo equivalente ao histórico escolar do aluno: uma listagem completa e detalhada de todos os projetos de aprendizagem que o aluno vier a contratar (mesmo daqueles que ele contratar e, depois, distratar). Em terceiro lugar, o Portfólio de Aprendizagem conteria as avaliações do desempenho dos alunos nos projetos que ele contratou, avaliações essas feitas pelos responsáveis pelos projetos. Essas avaliações seriam baseadas em observações dos alunos feitas em todos os encontros – não em testes ou provas. Como o que se avalia é o desenvolvimento de competências, isso pode ser feito por simples observação na interação cotidiana. Em seguida, o Portfólio de Aprendizagem deveria conter avaliações bimestrais abrangentes do desempenho dos alunos feitas pelos educadores que lhes servem de orientadores ou mentores.

Essas avaliações teriam de incluir não só os aspectos relativos ao desempenho cognitivo dos alunos, mas também aspectos relativos ao que se convencionou. chamar de sua “inteligência social e emocional”, isto é, às suas relações interpessoais, ao seu comportamento em geral (em especial fora do trabalho com os projetos), às suas atitudes (para com a vida, os outros, as coisas), aos seus valores, etc. Por fim, o Portfólio de Aprendizagem deveria conter avaliações anuais do desempenho dos alunos, que conteria o resumo de seu desenvolvimento durante o ano.

Assim é possível implementar esta megatendência num ambiente de educação formal. Veremos adiante que a tecnologia é uma poderosa auxiliar nesse processo.

3. As Megatendências e a Educação a Distância (EAD)

Como disse atrás, a Educação a Distância é, acima de tudo, educação. Assim sendo, as duas megatendências que foram apresentadas e discutidas vão se refletir em abordagens distintas na Educação a Distância. Curiosamente, há dois grandes modelos de Educação a Distância, e eles, não por coincidência, refletem as duas megatendências:

  • Ensino a Distância
  • Aprendizagem Colaborativa em Ambientes Virtuais Estruturados

3.1. Ensino a Distância

O Ensino a Distancia é o modelo de Educação a Distância que corresponde à primeira nmegatendência vista.

Ele se presta razoavelmente bem quando se trata de transmitir, ou ensinar, conteúdos bem estruturados e relativamente estáveis. Neste caso, o professor elabora seus materiais didáticos e dá a sua aula – usando vídeo-conferências ou a Internet. O nível de interação dos alunos, com o professor ou entre si, é mínimo.

O que quero dizer com conteúdos bem estruturados e relativamente estáveis? Se preciso dar uma aula sobre, digamos, a tabela dos elementos em Química, ou os tipos de antibióticos, em Medicina, ha uma série de informações que precisam ser passadas e assimiladas e que não são passíveis de controvérsia e muita discussão. Nesse caso, é fácil dizer que o material dessa aula se encontra na apostila x, que acompanha a vídeo-conferência y, ou no site z — o aluno vai lá, lê, procura entender e memoriza.

O Ensino a Distância representa um modelo pedagógico de Educação a Distância muito popular – e não é difícil descobrir a razão. Como esse modelo é a implementação, na área da Educação a Distância, da primeira megatendência vista, que é a mais popular das duas, está explicada a sua popularidade. Na verdade, muitas pessoas pensam que essa é a única modalidade de Educação a Distância que existe, considerando as expressões “Educação a Distância” e “Ensino a Distância” como sinônimas. (Quando se usa a sigla “EAD” cada um a interpreta como quer).

3.2. Aprendizagem Colaborativa em Ambientes Virtuais Estruturados

A segunda megatendência vista no capítulo anterior é representada, na área da Educação a Distância, por algo que poderíamos chamar de Aprendizagem Colaborativa em Ambientes Virtuais Estruturados.

Um modelo de Educação a Distância calcado na segunda megatendência será voltado para a aprendizagem do aluno, para os seus interesses, as suas necessidades, o seu estilo e ritmo de aprendizagem. Quem quiser participar desse processo terá de disponibilizarpara os alunos, não cursos convencionais ministrados a distância, mas, sim, duas coisas:

  • Ambientes virtuais ricos em possibilidades de interação, de acesso à informação, de disponibilização da informação, e de discussão crítica da informação;
  • Professores especializados em envolver a participação de todos os alunos na discussão, em facilitar o fluxo de idéias, em garantir que todos os aspectos das questões são devidamente analisados, em mediar eventuais conflitos, em extrair o máximo que cada um pode contribuir para o processo.

As diversas ferramentas da Internet – a Web, o e-mail, os grupos de discussão, os fóruns, as mensagens instantânea, os chats e especialmente as redes sociais que estão chegando – parecem ter sido desenvolvidas sob medida para esse modelo de Educação a Distância.

A Web caminha rapidamente para se tornar o grande repositório que armazenará todo tipo de informação que for tornada pública no mundo daqui para frente. Com isso, as pessoas vão estar recorrendo a ela o tempo todo para buscar informações – não só professores e alunos, porque essas categorias tendem a perder seu sentido, mas qualquer pessoa, esteja ela no processo de aprender porque quer se desenvolver ou porque precisa realizar alguma atividade em seu trabalho ou em sua vida particular.

Está ficando cada vez mais claro que a principal tarefa que a escola hoje exerce, qual seja, a de transmitir, através do ensino de seus professores, informações aos alunos, de forma sistemática, metódica e padronizada, tende a se tornar desnecessária. As informações necessárias para o aprendizagem das pessoas, para que elas desenvolvam os projetos em que vão estar envolvidos, vão estar disponíveis na Web e aos interessados competirá ir atrás delas, não ficar esperando que professores as tragam até eles (“pull”, não “push”…).

Em áreas como, por exemplo, as humanidades, as ciências humanas e a filosofia há pouca coisa que possa ser considerada consensual, pacífica, estabelecida, estável, e que possa, portanto, ser objeto de um ensino (presencial ou remoto) “unidirecional”, não-participativo, não-dialógico, não-discutitivo.

É difícil imaginar alguém perguntando “Qual a melhor forma de organizar a sociedade, quais as funções essenciais do governo, etc.?” e alguém respondendo: “Leia essa apostila, ou visite esse site, e você encontrará a resposta”. Aqui as questões precisam ser apresentadas, analisadas, discutidas, revistas, etc. e não há muita esperança de consenso. O mesmo se dá em áreas como as incorporadas no tema “Qualidade de Vida”, no tema “Valores”, ou em discussões acerca da religião, se é que se deseja, como se deve, evitar a doutrinação e buscar o livre convencimento dos envolvidos no processo.

Nessas áreas, a Aprendizagem Colaborativa em Comunidades Virtuais Estruturadas parece ser a única alternativa viável. Diferentemente do Ensino a Distância, aqui, no caso da Aprendizagem Colaborativa em Comunidades Virtuais Estruturadas, uma infra-estruturatecnológica que possibilite e facilite a interação (síncrona ou, ainda melhor, assíncrona) é essencial. A televisão de que dispomos permite a apresentação de diversas facetas da questão e alguma medida de discussão entre pessoas convidadas a discutir o tema, mas ainda não permite real participação dos telespectadores. Teremos de esperar a televisão digital interativa para viabilizar esse modelo de aprendizagem via televisão.

Essa megatendência, quando aplicada à Educação a Distância, reduz bastante as diferenças entre educação formal e educação não-formal, porque posso aprender bastante, e coisas altamente importantes e significativas, em interações informais pela Internet — em especial pelas Redes Sociais que estão chegando..

4. Conclusão

Ao começar a estudar a distância, ou a estudar a Educação a Distância, a maior parte dos alunos, que muitas vezes não tem nenhuma formação em educação, provavelmente vai ficar sabendo, muito cedo no processo, que há tendências pedagógicas tradicionais, escolanovistas, construtivistas, socialistas, marxistas, libertárias… E, provavelmente, ficará perdido com tantas tendências…

Este trabalho, ao privilegiar a abordagem filosófica, tenta encontrar a unidade na diversidade, de modo a permitir ao aluno não especializado em pedagogia que oportunamente perceba que, em aspectos fundamentais, a pedagogia marxista (só para dar um exemplo) é bastante tradicional, ou que a pedagogia construtivista e a pedagogia escolanovista têm muitos aspectos em comum…

O aluno típico de um curso a distância, embora não tenha nenhuma formação em educação, certamente já ouviu falar que há escolas tradicionais, construtivistas, montessorianas, pestalozzianas, waldorfianas – para não falar em escolas católicas, presbiterianas, metodistas, batistas… O que procurei lhe fornecer neste trabalho é um referencial teórico que lhe permita colocar um pouco de ordem em um universo que, a primeira vista, parece caótico. A classificação dessas tendências todas em grandes categorias, ou megatendências, é o primeiro passo. Subseqüentemente ele poderá ir refinando a sua visão e a sua abordagem, de modo a tomar decisões mais precisas.

Eduardo Chaves
27 de Janeiro de 2007

Eduardo CHAVES é Ph.D. em Filosofia pela University of Pittsburgh (1972), Eduardo Chaves foi Professor Titular de Filosofia da Educação da UNICAMP de 1972 a 2006. Atualmente aposentado, é presidente do Instituto Lumiar e presta serviços de consultoria à Microsoft Corporation, ao Instituto Ayrton Senna, e a outras instituições não-governamentais. É conhecido palestrante na área de educação e tecnologia. Seus interesses principais na área da filosofia estão voltados para a filosofia política e a filosofia da educação. Na primeira, tem sido um incansável defensor do liberalismo clássico, com sua ênfase nos direitos individuais e no estado mínimo. Na segunda, tem procurado desenvolver uma filosofia liberal da educação, centrada no desenvolvimento do indivíduo e voltada para a construção de competências, autonomia e responsabilidade.  Seus escritos, quase todos disponíveis na Internet (http://chaves.com.br e http://ec.spaces.live.com) se dedicam a esses temas em sua maioria. Atualmente com 64 anos, Eduardo Chaves, quando não está viajando, mora em Salto, no Estado de São Paulo.

Transcrito aqui neste blog em Salto, em 1 de Setembro de 2015

Design Instrucional para Ambientes Virtuais de Aprendizagem: MOOCs

Compartilho a informação acerca do curso abaixo, que será ministrado, a partir do dia 4/8/15, por mim, por Marcos Telles e por Nivaldo Tadeu Marcusso na FIA – Faculdade Instituto de Administração, no Butantã. É um curso de cinco semanas, quatro horas por semana (das 18h45 às 22h45). Clique no link para maiores informações.

Design Instrucional para Ambientes Virtuais de Aprendizagem: MOOCs.

Eduardo Chaves
Em 1 de Agosto de 2015