Um livro interessante, de autoria conjunta de Jonathan Haidt e Greg Lukianoff, discute um problema sério que existe nos Estados Unidos hoje: a sensibilidade das duas últimas gerações (por aí) está se tornando por demais exacerbada, porque essas gerações foram mimadas demais – e o excesso de mimo as “estragou” (da mesma forma que o excesso de atenção, cuidado e liberalidade pelos avós “estraga” os nossos filhos).
O americano mais antigo, que livros e filmes costumavam chamar de “The Ugly American” (O Americano Feio), tipificado por Marlon Brando, no filme de 1954 On the Waterfront (Sindicato de Ladrões, no Brasil, Há Lodo no Cais, em Portugal), era um sujeito de “casca dura”, que aguentava bastante bem um bate-boca pesado, e, no mais das vezes, se saía vencedor dele. O americano das novas gerações, ao contrário, é o que os autores chamam de “The Coddled American” (O Americano Mimado), um sujeito de “casca fina”, extremamente delicada, supersensível, protegido ao extremo, tratado com excesso de indulgência, que foi “estragado” por excesso de mimo… Qualquer coisa o magoa ou ofende – e sua reação não é revidar, partir para o bate-boca pesado, de gente grande… Sua reação é buscar a proteção da autoridade – em última instância, do governo (que, por sinal, tem atendido a maior parte de suas demandas – o que torna a situação ainda pior, porque mostra que, de certa forma, dá certo e vale a pena se passar por vítima). Os Estados Unidos viraram uma nação de vítimas.
Haidt e Lukianoff deram ao seu livro o título de The Coddling of the American Mind: How Good Intentions and Bad Ideas are Setting Up a Generation for Failure. O verbo “coddle” quer dizer mimar, superproteger, “estragar” uma criança por excesso de atenção e cuidado (como em geral o fazem, do ponto de vista dos pais, os avós, como mencionado atrás). A tradução (admitidamente difícil) do título poderia ser Excesso de Indulgência para com a Mente do Americano: Como Boas Intenções e Ideias Ruins Estão Preparando uma Geração para o Fracasso. O livro foi publicado neste ano de 2018 pela Penguin Press (New York). Ambos os autores têm livros importantes que, de certo modo, prepararam o caminho para este. Jonathan Haidt é autor de The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (A Mente Justa: Por que Pessoas Boas São Divididas pela Política e pela Religião) e Greg Lukianoff de Unlearning Liberty: Campus Censorship and the End of American Debate (Desaprendendo a Liberdade: Censura no Campus e o Fim do Debate nos Estados Unidos).
A tese dos autores (um, Haidt, é psicólogo na linha da Psicologia Positiva de Martin Seligman, o outro, Lukianoff, é advogado que concentra sua atenção na defesa do direito de pensar livremente e expressar com igual liberdade o pensamento através da linguagem) é relativamente simples. Essa sensibilidade exacerbada prejudica as pessoas e enfraquece a nação.
Haidt e Lukianoff começam o seu livro discutindo “Três Grandes Inverdades” – algo que poderia ser mais bem descrito como “Três Grandes Tendências Prejudiciais aos Indivíduos e à Sociedade”.
A primeira dessas tendências pode ser introduzida, pela via negativa, por um ditado que existe, em variante, aqui no Brasil. Aqui o ditado é “O que não mata, engorda”. Nos Estados Unidos é “O que não mata, fortalece” (versão, na minha opinião, bem mais adequada). Esse ditado expressa uma grande verdade (não uma inverdade). A ideia do ditado, em sua versão americana, evidentemente é que debate, a discussão, o bate-boca, ainda que acirrado e pesado (desde que não chegue às vias de fato, em que um debatedor silencia o outro na porrada e, em casos extremos, matando-o), só torna as pessoas mais fortes. Os autores lamentam o fato de que o ditado acabou se tornando diferente, na realidade o seu oposto, na vida acadêmica americana, onde vigora hoje o seguinte princípio: “Mesmo que não mate, a linguagem que usamos pode machucar e, assim, enfraquecer as pessoas com quem dialogamos, ou a quem nos dirigimos, ou a quem nos referimos”. Essa a primeira tendência, que os autores chamam de primeira grande inverdade.
A coisa começou na universidade, que, com (talvez) a boa intenção de não permitir que pessoas de raça, sexo e orientação sexual diferente fossem ofendidas pelas demais (de raça “majoritária”, de sexo “forte”, de orientação sexual “dominante”), criaram Speech Codes (Códigos de Fala), proibindo determinados tipos de palavras e expressões em debate, em discussão ou mesmo em conversa informal e corriqueira no campus. Da universidade a coisa se expandiu para a mídia e de lá para a sociedade em geral. Determinados termos, determinadas expressões, e mesmo determinados conteúdos (ainda que expressos em linguagem inatacável) se tornaram tabus. Com isso surgiu o que poderia ser chamada de uma polícia linguística (que, na realidade, é uma “polícia do pensamento”, que se incumbiu (e em muitos casos foi oficialmente incumbida) de punir linguagem “politicamente incorreta”. O politicamente correto acabou por ir além de temas como raça, sexo e orientação sexual.
O fenômeno já chegou ao Brasil. Talvez o exemplo mais chocante tenha sido o do crítico de cinema Rubens Ewald Filho, na transmissão do Oscar de 2018 pela TNT. A apresentação da canção “Mystery of Love“, trilha sonora do filme que em Português se chama “Me Chame Pelo Seu Nome”, foi feita por uma pessoa chilena que é “transgender” e que é conhecida pelo nome de Daniela Vega. Ela, que foi a protagonista do filme “Uma Mulher Fantástica” (título em Português), premiado como o melhor filme estrangeiro, em que representa uma pessoa “transgender”, estava linda, maquiada como mulher e vestida de mulher. Com o intuito de informar os telespectadores – era para isso que ele ali estava, não é verdade? – Rubens Ewald Filho disse no ar algo como: “Apesar da aparência e do nome, ela é um rapaz”. Foi crucificado. Houve abaixo-assinados para que ele fosse imediatamente demitido de sua função de crítico do Oscar pela TNT – que não o demitiu mas o censurou publicamente, levando-o a pedir desculpas também publicamente, não se sabe muito bem a quem: provavelmente aos que se ofenderam com sua insensibilidade. Foi execrado como sexista e transfóbico. Esse tratamento em geral é chamado de “public shaming” (envergonhamento publico, execração pública). (Vide https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2018/03/05/tnt-reprova-comentarios-de-rubens-ewald-filho-no-oscar-critico-se-desculpa.htm).
A segunda dessas tendências (ou inverdades) é que as pessoas se dividem, naturalmente, em dois grupos: as pessoas do bem (que aceitam sem problema a nova sensibilidade) e as pessoas do mal (que se recusam a aceita-la): em geral, “nós”, a gente do bem, e “eles”, a gente do mal.
Os do mal, nos Estados Unidos, são facilmente identificados por seu uso de linguagem politicamente incorreta – ainda que esse uso seja não-intencional, como frequentemente acontece com pessoas para quem o Inglês é uma segunda ou terceira língua. Apesar de aparências e mesmo afirmações ao contrário, o Inglês é complicado. O artigo “the” pode significar “o”, “a”, “os” e “as” – e certas palavras, como “professor”, “teacher”, “doctor”, etc. podem se referir tanto a alguém do sexo masculino como do sexo feminino. Tradicionalmente, era normal e aceitável (parte da norma culta) dizer “I asked a doctor and he told me that…”, usando o pronome em concordância com o gênero masculino, independentemente do sexo da pessoa. Isso não mais se admite na universidade. É necessário usar uma linguagem que, a muitos, em especial aos estrangeiros, parece canhestra: “I asked a doctor and he/she told me that…” ou “I asked a doctor and s/he told me that…” ou, hoje mais comum, “I asked a doctor and they told me that…”. No último caso, tornou-se uma praxe do politicamente correto usar o pronome no plural (em que they significa tanto eles como elas). Alguns autores preferem alternar, usando ora “he / his”, ora “she / her / hers”, quando não se revela o sexo do referente. Usar a forma tradicional de concordar uma referência a alguém de sexo não definido com o pronome masculino é incorrer no grande pecado de “sexismo”.
Algo parecido se dá com o uso de termos que passaram a ser considerados tabus.
A forma de se referir a alguém de outra raça (ou mesmo etnia) também se complicou. Tradicionalmente se referia a alguém da raça negra como “a negro”. (Nunca “a nigger”, que sempre demonstrou preconceito, exceto quando usado por um negro / uma negra (!) para se referir a si próprio / própria (!). Depois que os próprios / as próprias (!) começaram a se referir a si próprios / próprias (!) como “blacks”, esse termo se tornou mais ou menos padrão, embora haja quem prefira usar “people of color” como uma expressão supostamente mais neutra, que inclui negros, vermelhos (índios ou aborígenes – os tradicionais “peles vermelhas”, expressão hoje condenada), marrons (hispânicos – que em regra incluem os portugueses e brasileiros), amarelos (orientais, em geral), etc. A expressão tradicional “colored people” para se referir aos negros /negras / pretos / pretas (!) foi anatematizada, porque coloridos / coloridas somos todos / todas (embora a expressão “people of color” exclua os brancos / as brancas (!), que, supostamente, são “sem cor”…). Não ser sensível a essas nuances de linguagem pode fazer com que alguém seja acusado de usar linguagem racista – talvez um pecado mais grave do que ser chamado de sexista. (No Brasil, ser racista dá cadeia. Ser sexista, ainda não.) Reflita-se se é possível compor um texto estilisticamente decente com todas essas precauções. Jorge Amado que o diga.
A forma de se referir a alguém que é homossexual também se complicou. O termo “gay” se tornou razoavelmente padrão (embora haja dúvida se ele se aplica a todos os homossexuais, independentemente de seu sexo, ou se o termo “lesbian” deve ser preferido para homossexuais do sexo feminino). As variações de comportamento sexual mais recentemente admitidas, como “bisexual” (em Inglês com um “s” só) e “transsexual” (este com dois “s” em Inglês) acabou por levar à sigla LGBT (Lesbian, Gay, Bisexual, Transsexual), hoje amplamente usada, inclusive no Brasil, onde algumas letrinhas são acrescentadas, que só os ultra-especializados conseguem explicar (embora, no caso do último termo, hoje se prefira “Transgender” a “Transsexual”).
A preocupação de Haidt e Lukianoff não é com os detalhes da linguagem politicamente correta, mas com o fato de que a sua adoção é usada como critério para demarcar “a turma do bem” da “turma do mal”, entre “nós” e “eles”.
Isso já se dá também no Brasil.
Se alguém inicia uma palestra dizendo “Boa noite a todos e todas”, em vez do convencional “Boa noite a todos” (que inclui todas as pessoas e todos os pessoos (!), independentemente de seu sexo), ele ou ela (!) está dizendo que faz parte da turma do bem… (Se quem está falando for mulher, é de rigueur que diga “Boa noite a todas e todos” – pondo o pronome feminino antes. Quem não segue essa praxe é considerado insensível à questão do gênero (expressão aqui preferível à expressão “questão do sexo” ou “questão sexual”, porque é de palavras, vale dizer, de linguagem que se trata, não de biologia).
Aqui no Brasil já se começa ver, na televisão, negros se referirem a si mesmos como pretos. (Alguns negros / pretos sempre usaram os termos “crioulo / crioula” para se referirem a si próprios, mesmo depois desses termos serem considerados pejorativos se usados por um branco / uma branca (!) para se referir a alguém da outra raça. (Mesmo falar em “raça” se tornou problemático, havendo “cientistas” que afirmam que raças não existem). Quando eu era adolescente havia um jogador de futebol do Fluminense cujo apelido era “Escurinho”. Esse apelido era considerado tão normal quanto apelidos como Japonês / Japa, Português / Portuga, Alemão, Gringo (para Americano), etc. Houve época em que, em formulários, ao preencher ao campo “Cor”, alguns, hoje denominados pardos, informavam: “Escurinho / Escurinha” (ou, então, “Moreno / Morena”). Hoje, não mais.
Como é que se designa alguém nascido / nascida (!) nos Estados Unidos ou que é cidadão / cidadã (!) daquele país. Tradicionalmente se dizia “americano / americana” (!). O nome oficial do país é “United States of America”, ou, na prática, simplesmente “America”. Nosso país, quando se tornou independente, e por muito tempo, se denominou “Estados Unidos do Brazil” (assim com “z” na grafia antiga). Embora a gente também vivesse numa das Américas, a gente se designava simplesmente “brasileiro / brasileira” (!).
Hoje a gente encontra no Brasil toda forma de absurdos: “norte-americano / norte-americana” (como se os canadenses e mexicanos / mexicanas (!) não o fossem; “estadunidense”, embora ninguém nascido / nascida (!) no Brazil / Brasil de antigamente se denominasse “estadunidense”, em vez de brasileiro / brasileira (!), etc.
A terceira das três tendências (ou inverdades) é que essas questões de sensibilidade / insensibilidade nada têm que ver com a razão, mas, sim, com o sentimento (identificado pela intuição e não pela razão). Assim se elimina toda uma área, a importante área da linguagem, da fala, da escrita, do discurso, do âmbito da análise racional, deixando-a à mercê dos sentimentos e da intuição – que é algo que, supõe-se, não se discute ou debate, simplesmente se reconhece.
Como já observado, muitas dessas questões se aplicam ao Brasil de hoje, dividido entre dois grupos: a esquerda e a direita, os petistas e os antipetistas. É forçoso reconhecer que há antipetistas que se reconhecem como de esquerda, e que, entre os restantes, há muitos que não se reconhecem como de direita, preferindo se identificar como liberais. Eu, por exemplo, sou antipetista radical, mas sou a favor do aborto, em várias situações, não sou contra o reconhecimento legal de uma sociedade conjugal entre pessoas do mesmo sexo, defendo uma educação libertária, não tradicional, e desescolarizada (vista a escola como ela é hoje), isto é, sem currículo, sem ensino, sem professor, sem avaliação, etc.
Para que algumas dessas questões se resolvam, concordo com os autores que, antes de mais nada, a nossa sensibilidade deve se tornar menos exacerbada. Devemos reconhecer, entre outras coisas, que a linguagem, excetuados os casos claros de calúnia, difamação e real injúria objetiva (não a injúria subjetiva frequentemente alegada hoje), não fere ou machuca, embora, dependendo de quem venha, possa irritar e e até mesmo magoar. Reconheço que as linhas demarcatórias entre um xingamento e uma calúnia, entre uma ofensa absorvível e uma difamação, entre um abuso (chamar alguém de vagabundo, estrupício, canalha, mau caráter, etc.) e uma real injúria, que cause danos e prejuízos à pessoa, são difíceis de definir – mas é preciso tentar, desde que o Judiciário tenha bom senso e saiba analisar os fatos e as normas com neutralidade e isenção.
Nos séculos 16 e 17 houve várias guerras motivadas por questões religiosas. Hoje o clima de opinião e sentimento é tão aguçado, em especial nos Estados Unidos e no Brasil, que não é difícil imaginar que possa haver guerras por questões políticas. Brigas e assassinatos por causa de futebol já são comuns. Neste contexto, recomendo a leitura deste livro e do livro anterior de Haidt, mencionado atrás.
Em São Paulo, 20 de Outubro de 2018.