Corrupção e o Mensalão

Os artigos de Eliane Cantanhêde e de Carlos Heitor Cony na Folha de S. Paulo de hoje (19/11/2013) tocam em pontos importantes do Mensalão, em particular, e da questão da corrupção, em geral, que têm sido pouco discutidos na mídia e nas redes sociais. Vou apresentar esses pontos como foram deglutidos por mim.

Primeiro, a questão da corrupção. Acredito que haja uma distinção clara e importante entre corrupção e roubo/furto (mesmo que a corrupção, na maioria dos casos, envolva alguma forma de roubo/furto ou de apropriação indébita de dinheiro ou propriedade alheia).

A corrupção envolve o uso do poder público e do dinheiro público em benefício próprio (para que um indivíduo fique rico, como no caso dos fiscais da Prefeitura de São Paulo) ou de causas que não se identificam com o bem público (como cobrir dívidas de campanha de um candidato a cargo eletivo, estejam essas dívidas em nome de uma pessoa ou de um partido político, como no caso do Mensalão).

Não existe corrupção se não houver uma autoridade pública, eleita ou de carreira, usando indevidamente dinheiro público ou bens públicos. Usar um avião do governo para ir participar de uma atividade particular é corrupção. Mas quando um executivo ou funcionário de uma empresa privada usa o helicóptero da empresa para ir ver o Superbowl, não é corrupção. Quando um executivo privado desvia dinheiro da empresa para sua conta particular ou para algum outro destino que não era o previsto, temos roubo/furto, mas não há corrupção (embora haja roubo/furto). Não há corrupção, no sentido técnico, porque o dinheiro desviado não era público, não havia sido confiscado da população pela ameaça do uso da força, contra o desejo dela, como acontece com impostos e contribuições.

Não nos esqueçamos. Um agente privado pode fazer qualquer coisa que não lhe seja proibida. Um agente público não pode fazer qualquer coisa que não lhe seja proibida: ele só pode fazer aquilo que a lei o autoriza a fazer.

Segundo, no caso do Mensalão, temos a participação de agentes públicos e privados. José Dirceu e Marcos Valério, por exemplo. Um pegou uma pena de cerca de dez anos e o outro pegou uma pena quase cinco vezes maior. A população, em especial aquela contaminada pelo pensamento de esquerda, tende a achar que o principal culpado pela corrupção — o chamado corruptor ativo — é o agente privado. Afinal de contas, presume-se, é dele que sai o dinheiro que vai corromper o agente público. [Há uns gatos pingados do PT protestando a prisão do Dirceu e do Genoíno, que são políticos (ninguém liga pro Delúbio, que é um bobão). Mas ninguém protesta as prisões do Marcos Valério e seus sócios (com penas muito maiores), nem da Presidente do Banco Rural, etc.]

Mas a coisa raramente funciona desse jeito, corruptor privado, corrompido público. O representante de uma empresa que paga propina para um agente público para ganhar uma tomada de preços ou burlar uma concorrência paga porque sabe que vai recuperar esse dinheiro ganhando a tomada de preços ou concorrência — e vai recupera-lo através de dinheiro público. O dinheiro da empresa vai para o bolso do funcionário público, mas volta para a empresa na forma de dinheiro público. Tomemos o caso do José Genoíno, que assinou um pedido de empréstimo em favor do PT junto a um banco. O PT é uma entidade privada e o banco era privado. Que mal houve na transação? O mal estava no fato de que nem o PT nem o banco esperava que esse empréstimo fosse pago de volta — e, na realidade, ele nunca seria pago de volta ao banco pelo PT, porque o PT tinha conexões no governo que iriam conceder ao banco contratos ou outros tipos de favores que permitiria que o banco se ressarcisse do valor do empréstimo, com juros, correção monetária e uma confortável folga. A coisa era toda feita dentro de um “esquema” — que, segundo tudo indica, tinha em José Dirceu e Marcos Valério seus principais operadores ou coordenadores. O governo fazia aprovar uma legislação, e o banco se beneficiava. O Banco do Brasil fazia um contrato de publicidade com a empresa do Marcos Valério e esta nunca prestava o serviço — e parte do dinheiro ia para fazer os ajustes da contabilidade espúria. Um “Caixa Dois”, mas não um Caixa Dois dos partidos políticos: um Caixa Dois também do governo.

Terceiro, a distinção entre “corrupção ativa” e “corrupção passiva” é uma fantasia. A ocasião cria a corrupção (como cria o ladrão — e o corrupto é um ladrão: a vítima somos todos nós que pagamos impostos e dependemos do governo). A mente humana é criativa. Mas em nenhum caso se trata de estar um agente público fielmente exercendo sua função em seu gabinete e chegar um agente privado acenando com uma graninha privada para ganhar um favor. Os dois lados sabem que podem se ajudar (“uma mão lava a outra”) — e, o que é mais, sem que nenhuma das pessoas envolvidas ou nenhum dos lados no acordo gaste qualquer dinheiro que não seja público. “Estou precisando de uma grana para comprar um deputado ou ajudar um partido. Vamos fazer um acerto? Você faz um contrato de publicidade com o Banco do Brasil, que não precisa ser cumprido, e me devolve, por debaixo do pano, 80% do valor, ok? Os 20% são seus. Com os 80% eu resolvo o problema do deputado ou do partido e você teve um ‘lucro’ fácil”. Quem é ativo, no caso imaginado (mas não improvável)? Ou: “Você arruma um empréstimo para o PT pelo Banco Rural, o PT nunca paga, mas a gente cobre o prejuizo do banco através de contratos com sua empresa que nunca vão ser executados, ou conseguindo um benefício legal para o banco que representa um enorme benefício financeiro para o banco, às custas do erário público”. Quem é o corruptor ativo?

Fala-se muito, em alguns contextos, da pobreza do Genoíno. Continua, pelo que se relata, quase tão pobre quanto São Francisco. E daí? O corrupto não precisa embolsar o dinheiro (como tudo indica fez o João Paulo Cunha com os cinquentinha que a mulher dele tirou do banco). Basta fraudar o erário público, ainda que em benefício de seu partido apenas, ou mesmo de outros mais espertos do que ele.

Quarto, se a coisa funciona assim, por que a disproporção entre a pena de José Dirceu e a de Marcos Valério? As penas deveria ser bem mais equiparáveis.

Quinto, o Marcos Valério não tinha chefe: tinha sócios. Todos eles estão presos. Mas o José Dirceu tinha chefe. Por que o José Dirceu está preso e o chefe dele não?

Sexto, por que não se foi atrás do Lulla quando ele estava vulnerável? Por várias razões.

a) Porque alguém, talvez mais de um, assumiu responsabilidades no governo que permitiam que o Lulla, ainda que sem credibilidade alguma diante da parcela mais bem informada da nação, negasse saber do fato — alegando ter sido traído por pessoas de sua confiança (mas sem explicitar quem o teria traído — até hoje acho que o Lulla imagina que foi o Roberto Jefferson, porque este deu com a língua nos dentes).

Lembro-me do caso do Watergate em que há registros de que o Nixon, quando um subordinado ia lhe contar os detalhes de algum “mal feito”, impedia que ele o fizesse para que ele, Nixon, pudesse ter condições de negar que sabia, sem precisar mentir. O Nixon pelo menos tinha alguma vergonha na cara. Ele queria, na expressão dele, ter condições de “deniability” — “negabilidade”.

b) Porque nossos políticos de oposição são uns frouxos. Em vez de aproveitar a vulnerabilidade de Lulla e “go for the kill”, ficaram com medo de uma crise institucional ou mesmo de uma convulsão popular. Naquele quadro, teriam impedido Lulla de continuar a governar mais facilmente do que o Collor foi impedido.

c) Porque, passado o momento, o Lulla, que não tem nenhum medo ou vergonha de mentir, e que não precisa, portanto, buscar condições de negabilidade, simplesmente começou a mentir com a maior cara de pau — e os babacas acreditaram nele, e os não babacas vivos que não acreditavam mas acharam melhor fazer de conta, ficaram quietos, porque iriam se beneficiar mais adiante. E o momento de impedi-lo foi embora.

Sétimo, por que a Procuradoria Geral da República não indiciou o Lulla da mesma forma que indiciou o Dirceu? Por que considerou o Dirceu o Ali Babá, e não o Lulla? Também por medo. O Lulla tinha carisma e prestígio popular. Um indiciamento seu, ou o seu impeachment no Congresso, poderia gerar uma certa convulsão popular. Dirceu, apesar de sua força política, não tinha esse prestígio. O Lulla era “likable”. (Está rapidamente deixando de ser, exceto no povão). O Dirceu era “apenasmente” temido. Muita gente não gostava dele, porque ele era prepotente e grosso — e aproveitou o momento para lhe dar o troco. Roberto Jefferson, por exemplo.

Oitavo, como diz o Cony, em seu artigo, a quem beneficiava todo esse esquema? Beneficiava ao Lulla, que era o presidente da República e o presidente de honra do PT, ao Dirceu, que esperava suceder ao Lulla, e se nada tivesse dado errado seria o presidente do Brasil, e o PT, com seus presidentes, tesoureiros e secretários de ocasião — mais a raia miúda nos estados e municípios. Ou seja: beneficiava ao poder. (O secretário do PT da época se safou. O presidente e o tesoureiro sifu).

Nono, o Supremo Tribunal Federal foi mais longe do que todo mundo esperava pela coragem, pelo destemor, pela honradez e pelo brilhantismo de Joaquim Barbosa. Só por isso. Poderia ter ido mais longe e fisgado Lulla. Mas seria arriscado. Como poderia não ter ido tão longe, e os brasileiros compreenderiam.

Décimo, boa parte dos brasileiros não acha que a punição a Dirceu, Genoíno e Delúbio foi suficiente e acham que o Lulla se safou apenas por esperteza. Concordo com eles. Acho que o Lulla deveria estar preso com seus comparsas e as penas deles deveriam ser no mínimo igual à do Valério. E todo mundo deveria ter de repor os dinheiros desviados. Mas isso não quer dizer que a punição que foi aplicada, e a quem foi aplicada, não  vale nada e equivale a pizza. Acho que fomos mais longe do que jamais aconteceu. Mesmo no caso do Collor, a punição foi apenas política. Judicialmente, ele se livrou de todas: tem ficha limpa até hoje. (O Maluf só perdeu a dele recentemente — e ainda pode recorrer). E o Collor e o Maluf, para não falar no Sarney, são “amigos do rei”, hoje. Tudo farinha do mesmo saco.

Por fim, décimo primeiro: duvido que haja alguém que entre na política brasileira hoje sem esperar enriquecer — ilicitamente. É triste, mas é a verdade.

Raramente termino um artigo com onze pontos. Sempre encontro mais um para chegar a doze ou tiro um para ficar com dez. Mas hoje estou com o saco cheio e vou deixar com onze mesmo.

Em São Paulo, 19 de Novembro de 2013. Dia da Bandeira. A gente antigamente comemorava.

ELIANE CANTANHÊDE

Nem ódio nem adoração

BRASÍLIA – Foram 25 condenados pelo mensalão, 12 com mandado de prisão até ontem à noite, mas não se veem manifestantes contra e muito menos a favor da banqueira Kátia Rabello, do publicitário Marcos Valério nem da mera funcionária Simone Vasconcelos, atingidos por pesadas penas em regime fechado.

Também não se veem manifestantes gritando contra ou a favor de deputados e ex-deputados do PP, do PR nem do PTB, de quem nunca se esperou nada diferente de mensalões. A estes, a lei e o descaso.

Toda a comoção nacional, pró e contra, está concentrada em três réus: José Dirceu, apontado pela Procuradoria-Geral da República como o “chefe da quadrilha”, José Genoino, que caiu na besteira de assinar um documento e –ao contrário de uns e outros– sai dessa preso e sem ficar rico, e Delúbio Soares, o ex-tesoureiro petista, desses que apanha calado.

Por que os manifestantes, que desdenham da sorte dos demais, adoram ou odeiam esses três personagens? Porque eles são do PT, que foi heroico nas CPIs, dossiês e escândalos contra adversários –até no impeachment de um presidente–, mas aderiu às mesmas práticas para chegar ao poder e se agarrar a ele. Os três pagam pelo crime e pela hipocrisia.

A banqueira, o publicitário, a funcionária, os pepistas, os petebistas e os do PR não tinham assento no Palácio do Planalto, não eram do partido do presidente e não tinham a caneta. Se houve algum crime –e o Supremo diz que houve–, eles foram participantes, não mandantes. Logo, que as manifestações sejam mais justas e não seletivas. Ou se defendam todos os réus, ou se ataquem todos eles.

De toda forma, as penas devem ser para fazer justiça, não para aniquilar pessoas. As prisões são tenebrosas, os réus são muito visados e o Estado é responsável pela integridade física de cada um. Especialmente de Genoino, que acaba de passar por uma cirurgia cardíaca, está em regime semiaberto e tem direito, antes de mais nada, à vida.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/139576-nem-odio-nem-adoracao.shtml

CARLOS HEITOR CONY

A causa e o efeito

RIO DE JANEIRO – Pedindo vênia aos doutos ministros do Supremo Tribunal Federal que gastaram muito latim para julgar os réus do mensalão, vou gastar o meu pouco latim, que aprendi na lógica de Aristóteles em versão escolástica de Tomás de Aquino:

“Posita causa, positur effectus; variata causa, variatur effectus; sublata causa, tollitur effectus.” O latim é macarrônico demais, não precisaria de tradução, mas aí vai: pondo, variando ou eliminando a causa, põe-se, varia-se ou elimina-se o efeito.

O efeito, até agora, foi a prisão de alguns dos condenados do mensalão, mas a causa não foi a corrupção pessoal dos autores materiais dos diversos crimes cuja causa seria o fortalecimento do governo petista, que mantém uma perspectiva operacional de permanecer 20 anos no poder.

Resumindo: mais uma vez, a causa de tantos crimes foi o poder, o poder em si mesmo, autor intelectual de uma vasta rede de corrupção em diferentes níveis.

Pelo que se apurou nas infindáveis sessões do Supremo Tribunal Federal, chegou-se a um “capo di tutti i capi” na pessoa simpática e já histórica de José Dirceu, que ocupava a sala ao lado de outra sala, por sinal, mais poderosa e da qual emanava o combustível que mantinha a engrenagem funcionando.

Do ponto de vista jurídico, a justiça parece que foi feita, em que pesem pequenos ajustes nas penas e até mesmo na mecânica dos crimes.

Do ponto de vista filosófico, o “quid prodest” que foi a causa da corrupção generalizada, a Justiça chegou até onde podia chegar, funcionários de média ou grande importância, não ultrapassando os limites que poderiam gerar uma grave e até mesmo sangrenta crise institucional.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/139577-a-causa-e-o-efeito.shtml

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