[NOTAS ao artigo anterior]
[1] O título original deste artigo era: “Justiça, Igualitarismo e Inveja: A Propósito do Livro de Gonzalo Fernández de la Mora”. O livro em questão era Egalitarian Envy: The Political Foundations of Social Justice. Dados sobre seu autor são fornecidos na Nota 3. O artigo foi inicialmente publicado, em versão mais curta, na revista Pro-Posições, órgão oficial da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), nº 4, Março de 1991, pp.26-40. O artigo só foi publicado depois de o autor ter concordado em eliminar do artigo várias referências explícitas à Universidade, que os leitores do trabalho, membros do Comitê Editorial da revista, todos eles professores da Faculdade de Educação, acharam inapropriadas. A justificativa dada pelo Comitê Editorial foi que, embora nada do que estava dito fosse falso, não ficava bem numa revista oficial da Faculdade de Educação que aparecessem críticas explícitas à Universidade. Concordei (como uma vez disse David Hume) em “castrar” o artigo para poder publica-lo ali. Nesta versão as partes cortadas foram reintroduzidas. Esta versão também contém bem mais material do que a original, especialmente nas notas de rodapé.
[2] O mote do artigo, que não fazia parte da versão original, vem de Oliver Wendell Holmes, Jr. (1841-1935), que foi Juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos durante trinta anos (1902-1932). A passagem citada está no livro The Holmes – Laski Letters: The Correspondence of Mr. Justice Holmes and Harold J. Laski, 1916-1935 (Cambridge, Harvard University Press, 1953), Vol. II, p.942, e ele é citado aqui apud Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty (The University of Chicago Press, Chicago, 1960), tradução brasileira de Anna Maria Capovilla e José Ítalo Stelle, com supervisão de Henry Maksoud, sob o título Os Fundamentos da Liberdade (Visão e Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1972), p.85 da edição original, p.92 da edição brasileira. A passagem é mote do capítulo VI da obra de Hayek. A tradução é minha, porque o texto da edição brasileira não é tão fiel ao original neste caso. O texto original é o seguinte: “I have no respect for the passion for equality, which seems to me merely idealizing envy“. Os tradutores não só tornaram o texto mais enfático como introduziram três termos (“obsessão”, “igualitarismo”, e “sublimação”) que não traduzem adequadamente os termos originais, para os quais há correspondências apropriadas em Português. Eis o texto dos tradutores brasileiros: “Não tenho o menor respeito à obsessão pelo igualitarismo, que não me parece ser nada mais do que a sublimação da inveja”.
[3] Egalitarian Envy (Paragon House Publishers, New York, 1987) é uma tradução do Espanhol, por Antonio T. de Nicolás, de La Envidia Igualitaria (Editorial Planeta, Barcelona, 1984). Números entre chaves se referem a páginas da edição americana. Segundo a capa da edição em Inglês, o autor nasceu em Barcelona em 1924, estudou direito e filosofia em Madrid e Bonn e foi Diretor da Escola Diplomática e Ministro do governo espanhol. Foi presidente de um periódico bi-mensal chamado Razón Española e autor de dezesseis livros, entre os quais um sobre ideologia e outro sobre partitocracia. La Envidia Igualitaria é o primeiro (e aparentemente único) livro seu a ser traduzido para o Inglês. Gonzalo Fernández de la Mora faleceu em Madrid em 10 de Fevereiro de 2002, dois meses antes de completar 78 anos.
[4] John W. Gardner, em Excellence: Can We Be Equal and Excellent Too? (Harper & Row Publishers, Perennial Library, 1961, 1971) procura contestar essa definição de felicidade, afirmando (p.123) que “felicidade, a despeito de noções populares em contrário, não deve ser concebida como um estado em que todos os desejos são satisfeitos…”, devendo ser encontrada “no atingimento de metas significativas”. Ayn Rand, em seu artigo “The Objectivist Ethics” (in The Virtue of Selfishness: A New Concept of Egoism [A Signet Book, The New American Library, New York, 1961, 1964], pp.28-29, tradução brasileira de On-line Assessoria em Idiomas, sob o título de “A Ética Objetivista”, in A Virtude do Egoísmo [Editora Ortiz S/A e Instituto Liberal Porto Alegre, 1991], p.39, aqui citada), afirma: “Felicidade é aquele estado da consciência que provém da realização dos próprios valores [NB]. . . . Felicidade é possível apenas para um homem racional, que deseja apenas objetivos racionais, procura apenas valores racionais e encontra sua alegria apenas em atos racionais”. A satisfação de desejos que não se sustentam em valores leva, segundo Rand, apenas a uma “pretensa felicidade”. Poder-se-ia argumentar que o “atingimento de metas significativas” ou “a realização dos próprios valores” só trazem felicidade para quem deseja atingir metas significativas ou realizar seus próprios valores, e que a noção popular de felicidade se fundamenta na simples satisfação do desejo. Pode muito bem dar-se o caso, ou pelo menos assim me parece, de que alguém, que é feliz, não mereça sê-lo, do ponto de vista moral, porque seus desejos são, digamos, imorais (implicam metas não significativas, segundo Gardner). Também pode dar-se o caso de que alguém, que é feliz no momento (i.e., no curto prazo), não venha sê-lo no futuro, porque seus desejos não se sustentam em valores e, portanto, como diria Rand, não são no seu verdadeiro interesse, no longo prazo (visto esse interesse de um prisma puramente racional). Seria difícil, entretanto, negar, em casos assim, que a pessoa seja feliz (no seu entendimento de felicidade). Por outro lado, é inegável que pode haver pessoas que mereçam ser felizes e que não o são, porque seus desejos, por qualquer razão, não estão satisfeitos. Também pode haver pessoas (mesmo racionais) que se tornem infelizes, num determinado momento, porque a satisfação de seus desejos, no longo prazo, demora demais para acontecer. Creio que Kant, ao distinguir entre o conceito de felicidade e o conceito de ser digno de felicidade, concordaria comigo.
[5] Os números entre colchetes se referem estas notas, colocadas no fim do texto. (Como já observado, os números que se referem às páginas do livro na edição em Inglês, aparecem entre chaves).
[6] Émile Durkheim, em L’Éducation Morale (Librairie Félix Alcan, Paris, 1925), obra publicada em inglês com o título Moral Education: A Study in the Theory and Application of the Sociology of Education (Macmillan Publishing Company, 1961, 1973), pp.43-44 e 48-49, argumenta que “através da disciplina, e apenas por meio dela, podemos ensinar a criança a conter seus desejos, colocar limites em seus apetites de todos os tipos, limitar e (pela limitação) definir as metas de sua atividade. Esta limitação é a condição da felicidade e da saúde moral” (pp.43-44). “Através da disciplina”, diz ele, “aprendemos a controlar o desejo, sem o que o homem não pode alcançar a felicidade”. Compare-se também meu artigo, no blog Edutec Space, com o título “O Conceito de Educação de Émile Durkheim”, na URL https://edutec.space/2018/03/20/o-conceito-de-educacao-de-emile-durkheim/. Por outro lado, Jean-Jacques Rousseau, em seu Émile, ou de l’Éducation (Éditions Garnier Frères, Paris), tradução brasileira de Sérgio Milliet, com o título Emílio ou da Educação (Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1968), afirma: “Em que consiste a sabedoria humana ou o caminho da felicidade verdadeira? Não consiste precisamente em diminuir nossos desejos, pois se se encontrassem abaixo de nossas forças, parte de nossas faculdades permaneceria ociosa e não gozaríamos de todo o nosso ser. Nem consiste tampouco em ampliar nossas faculdades, pois, se estas se ampliassem nas mesmas proporções, mais miseráveis ainda seríamos. Ela [a felicidade verdadeira] consiste, certo, em diminuir o excesso dos desejos sobre as faculdades e em por em perfeita igualdade o poder e a vontade” (p.62). “A miséria”, afirma ele, “não consiste na privação das coisas e sim na necessidade que delas se faz sentir” (p.63). (As referências são à edição brasileira).
[7] Embora o asceta possa deixar de desejar bens materiais, ele certamente deseja bens imateriais, como paz de espírito, pureza, santidade, etc.. É difícil imaginar que alguém consiga se livrar de todo e qualquer desejo, e que seja, portanto, absolutamente feliz pela ausência total de desejos. A total ausência de desejos sendo impossível, como parece ser, é recomendável que, se quisermos alcançar a felicidade, sejamos parcimoniosos e mesmo minimalistas no que desejamos – e foquemos no essencial. Um livro que encontrei recentemente (acrescento este comentário em 21/8/2016) defende a tese de que o “essencialismo”, no sentido que acabo de mencionar, é não só a chave para a felicidade como também para o sucesso. Isso não é de surpreender, porque felicidade e sucesso, no sentido de auto-realização (eudaimonia), sempre estiveram ligados. O livro, de Greg McKeown, tem o título de Essentialism: The Disciplined Pursuit of Less (Crown ou Penguin/Random, New York, 2014). Há tradução brasileira com o título: Essencialismo: A Disciplinada Busca por Menos (Sextante, Rio de Janeiro, 2015). O mote do livro é uma frase de Lin Yutang: “A sabedoria da vida consiste em eliminar o que não é essencial” [ênfase acrescentada na citação a partir da edição brasileira].
[8] Se encararmos as coisas de um prisma meramente quantitativo, somos forçados a concluir que, muitas vezes, por mais felizes que sejamos (i.e., mesmo que tenhamos um grande número de desejos satisfeitos), um só desejo insatisfeito pode ser causa de grande miséria (desde que ele seja considerado importante).
[9] A observação dos outros certamente não é a única fonte de objetos do desejo: a imaginação, a criatividade, a inventividade, também o são. Qualitativamente, estas têm a vantagem de nos fornecer objetos de desejo “de primeira mão”, enquanto aquela nos traz objetos de desejo “de segunda mão”. Quantitativamente, porém, a maior parte dos desejos da maioria das pessoas é sugerida por sua observação da vida dos outros.
[10] A atitude de emulação é positiva como ponto de partida e em comparação com as alternativas aqui descritas. Contudo, como se ressaltará, é preciso não parar na emulação, pura e simples: é necessário desejar ir além, ultrapassar, ser mais, para que haja inovação e progresso. {Cf.185}. Cf. Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty, op.cit., p.45 da edição original, p.45 da edição brasileira, aqui citada: “A maior parte dos bens que buscamos são coisas que desejamos porque outros já as têm. Contudo, uma sociedade progressista, embora baseada nesse processo de aprendizado e imitação, considera os desejos que desperta somente um estímulo para um renovado esforço. Ela não garante que esses bens se tornem automaticamente acessíveis a todos. E permanece insensível ao sofrimento do desejo insatisfeito despertado pelo exemplo de outros. Ela parece cruel porque aumenta os anseios de todos na mesma proporção em que aumenta os seus dons para alguns. Todavia, enquanto ela for uma sociedade progressista, alguns irão à frente e os outros terão de segui-los”.
[11] A atitude de asceticismo pode ser vista como uma variante da atitude de resignação: só que a atitude ascética procura eliminar/sublimar o desejo ao invés de meramente se resignar à sua não satisfação. Poderíamos até dizer que o asceta procura fazer do que ele percebe como necessidade o que ele considera uma virtude. Contudo, ao lado desse aspecto negativo da resignação, essa atitude pode ter um aspecto mais positivo, que é aprender a viver com o desejo não satisfeito, educar-se para apreciar a felicidade dos outros, ser feliz “vicariamente” (como os pais supostamente são, quando os filhos são felizes). Fernández de la Mora dá bastante ênfase a essa estratégia como uma fórmula de combater a inveja {121-124}.
[12] O livro termina com esta afirmação: “A destrutiva inveja igualitária é responsável pelas páginas mais negras de nossa história; a emulação, que é hierárquica e criativa, explica seu esplendor” {186}.
[13] Não consegui encontrar nenhuma evidência de que Fernández de la Mora tenha lido Ayn Rand. Os paralelismos, porém, em alguns aspectos, são surpreendentes (embora haja, em outros aspectos, contrastes importantes). Em incisivo artigo, intitulado “The Age of Envy” (A Era da Inveja), Rand observa que, apesar de “inveja” não ser o termo preciso para descrever nossa época, não existe outro que descreva “a manifestação mais clara de uma emoção que tem ficado sem nome: … o ódio do bom por ser ele bom”. O artigo de Rand, que originalmente apareceu em sua Newsletter, está republicado em The New Left: The Anti-Industrial Revolution (New American Library, Signet Books, New York, Edição Revista, 1971), pp.152-186. A citação foi tirada das pp.152-153. Talvez Rand tenha achado que o termo “inveja” não se aplicasse bem ao sentimento em questão porque considerasse, como muitos, que inveja inclua o que Fernández de la Mora chama de desejo de “emulação”, ou mesmo que ela com isso se identifique. No quotidiano, quando alguém adquire algo igual ao que outra pessoa já possui, é comum dizer-se que agiu por inveja. Fernández de la Mora – e aqui está a originalidade de sua contribuição – não usa o termo “inveja” neste caso, e apela para uma quantidade enorme de material histórico para justificar sua postura. O sentimento de querer ter algo que outros têm, ou de querer ser o que são, é um sentimento que está longe de ser negativo e de merecer as condenações que a inveja recebeu ao longo do tempo, dos pré-socráticos aos contemporâneos (querer ser tão santo quanto São Francisco de Assis, por exemplo, nunca foi condenado como inveja – pelo menos que eu tenha conhecimento). O sentimento que sempre foi condenado por moralistas, filósofos e teólogos inclui o desejo de que os outros percam o (bem material ou imaterial) que possuem e que desejamos – inclui o que Rand chama de “o ódio do bom por ser ele bom”. Por isso a inveja esteve frequentemente associada ao “mal olhado” (que supostamente transmite azar e causa mal à pessoa a quem é dirigido).
[14] “Justiça é a adjudicação de bens sociais em proporção à contribuição de cada membro da sociedade” {95; cf.184}.
[15] Cf. Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty, op.cit., p.93 da edição original, p.100 da edição brasileira, aqui citada: “Se analisarmos mais detidamente a justificativa apresentada em apoio a estas reivindicações igualitárias [as que vinham sendo discutidas no parágrafo anterior], verificaremos que elas se originam do descontentamento que o sucesso de algumas pessoas frequentemente suscita naqueles que tiveram menos êxito, ou, para usar uma expressão mais clara, nascem da inveja. A moderna tendência de se gratificar essa paixão, disfarçando-a sob a roupagem respeitável da justiça social, vem-se tornando uma séria ameaça à liberdade. . . . Apesar de humana, a inveja é uma das causas de descontentamento que uma sociedade livre não consegue eliminar. Provavelmente uma das condições essenciais para a preservação de tal sociedade é não alimentarmos a inveja, nem sancionarmos suas aspirações, camuflando-a sob o disfarce da justiça social, mas a considerarmos, nas palavras de John Stuart Mill, ‘a mais maligna de todas as paixões'”. [Ênfase acrescentada.] A referência a Mill é retirada de On Liberty.
[16] A fórmula se encontra na primeira seção da Crítica do Programa Gotha. Vide “Critique of the Gotha Program”, em Marx & Engels: Basic Writings on Politics and Philosophy, editado por Lewis S. Feuer (Doubleday & Company, Inc., Anchor Books, New York, 1959), p.119. O programa criticado foi o do congresso unido dos dois partidos socialistas alemães que se realizou na cidade de Gotha em 1875.
[17] Não só a inveja se mascara de justiça social, como a justiça social, para disfarçar sua postura igualitarista, frequentemente faz apelo a definições totalmente ad hoc de conceitos tradicionais e insuspeitos, como, por exemplo, do conceito de cidadania. Tendo o conceito de igualdade sofrido certo desgaste ao longo do tempo, o igualitarista afirma que o objetivo da justiça social é dar a todos condições de exercer sua cidadania. Quando, porém, se esclarece quais são essas condições, constata-se facilmente que o conceito de cidadania foi redefinido e inflacionado de tal modo que contém tudo aquilo que o conceito de igualdade material significava.
[18] Corroboram essa afirmação as histórias dos muitos “milionários da Loteca” que continuam tão pobres como antes.
[19] A reação de muitos pobres ao confisco monetário promovido pelo Presidente Fernando Collor de Mello no primeiro dia de seu governo (16/3/90) foi a de celebrar, porque a partir daquele dia todo mundo estaria igualmente pobre! A celebração diminuiu quando muitos deles começaram a perder seus empregos porque os ricos não tinham mais como lhes pagar os salários. Cf. Ludwig von Mises, Liberalism in the Classical Tradition (The Foundation for Economic Education, Irvington-on-Houston, NY, 1985 [1923]), tradução brasileira Haydn Coutinho Pimenta, publicada sob o título Liberalismo Segundo a Tradição Clássica (José Olympio Editora e Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1987), p.14 na edição americana, p.15 na edição brasileira, aqui citada (com pequenas correções na tradução, o texto original da edição brasileira sendo fornecido entre colchetes): “De tempos em tempos, ouvimos socialistas dizer [dizerem] que mesmo a carência material será mais facilmente suportável em uma sociedade socialista, porque as pessoas perceberão [compreenderão] que ninguém está em situação melhor do que seu próximo [ninguém é melhor do que o outro]”. (A última frase em inglês é “no one is better off than his neighbor“).
[20] Cf. Ayn Rand, op.cit., loc.cit., p.165: “Visto que a natureza não dota todos os homens de igual beleza ou inteligência, e seu livre arbítrio os leva a fazer escolhas diferentes, os igualitários propõem eliminar a ‘injustiça’ criada pela natureza e pela volição e estabelecer uma igualdade de fato. … Visto que atributos ou virtudes pessoais não podem ser ‘redistribuídos’, eles procuram privar os homens de suas consequências – ou seja de recompensas, benefícios, e realizações decorrentes de seus atributos e virtudes pessoais”.
[21] William W. Bartley, III, em seu Unfathomed Knowledge, Unmeasured Wealth: On Universities and the Wealth of Nations (Open Court, La Salle, Illinois, 1990), cita Ronald H. Coase que menciona que uma das razões porque intelectuais são, em regra, favoráveis à regulamentação da economia é que eles frequentemente se imaginam como os reguladores. Bartley, precocemente falecido, foi meu orientador de doutorado nos idos de 1970-1972 na Universidade de Pittsburgh. Ele era, além de orientando de Karl R. Popper, quando de seu doutorado, o seu testamenteiro intelectual, bem como o de Frierich A. Hayek.
[22] Gardner afirma que há, na sociedade americana, um sentimento muito grande favorável à igualdade junto de grande confusão sobre o que a igualdade implica. Diz ele: “Os americanos amam a idéia de igualdade. Em termos intelectuais, eles podem estar inteiramente confusos acerca do que a igualdade implica, mas emocionalmente eles não têm dúvidas: amam a igualdade” (op.cit.,p.13). Gardner caminha na direção certa quando ele explica esse sentimento apontando para o fato de que a sociedade americana surgiu (em parte) de uma luta contra uma sociedade onde prevalecia o privilégio hereditário. Neste tipo de sociedade, a posição social do indivíduo é determinada não por seus talentos e habilidades mas em função do fato de que pertence a determinada família, casta ou classe. É por isso que Thomas Jefferson afirmou, em frase viva, que “a maior parte da humanidade não nasceu com selas nas costas nem uns poucos favorecidos com botas e esporas, para que estes cavalgassem aqueles, legitimamente e com a graça de Deus”. Contra esse tipo de sociedade em que prevalece o privilégio hereditário e não a competência, os americanos corretamente levantaram o estandarte da igualdade. Contudo, os americanos sabiam (ainda que a nível mais intuitivo do que intelectualmente explicitado) que “quando os homens são liberados das peias ao desempenho que existem em uma sociedade hereditariamente estratificada, grandes diferenças individuais vão emergir no tocante ao desempenho, que podem levar a picos e vales de status tão dramáticos quanto aqueles produzidos pela estratificação hereditária”. Quando uma sociedade deixa de ser estratificada por princípios hereditários, ela tem de escolher como lidar com essas dramáticas diferenças individuais de talento, habilidade, preparo, ambição, garra, esforço, que surgem. “Uma forma de lidar com esse problema é tentar limitar essas diferenças, ou lutar contra elas, protegendo os mais fracos e criando obstáculos para os mais fortes. Esse o caminho do igualitarismo. A outra forma é simplesmente deixar ‘que vença o melhor'” (cf. pp.3-6). O que essa análise deixa claro é que tanto o privilégio hereditário como o igualitarismo são formas de restringir a extensão e a amplitude do desempenho individual – algo que, de resto, Gardner reconhece (cf. op.cit., pp.25,31,33, por exemplo). O privilégio hereditário protege os incompetentes através do nepotismo, do favoritismo. O igualitarismo protege os incompetentes (e penaliza os mais competentes) exigindo que os indivíduos sejam tratados em grupos ou categorias. Por exemplo: o sindicato negocia um mesmo aumento para toda uma categoria, independentemente do desempenho individual dos membros dessa categoria. A Associação dos Docentes da UNICAMP (ADUNICAMP) tem defendido que a única forma válida de avaliar o desempenho de docentes é através de avaliação coletiva: todo um Departamento, ou toda uma Faculdade é avaliada. Se o resultado for positivo, todos recebem igualmente os louros. Nesse sistema, aqueles que realmente trabalham e produzem, os mais competentes, esforçados e criativos, carregam os outros nas costas, trabalham para os outros, que, por sua vez, por sua incompetência e/ou inapetência para o trabalho, arrastam todos para a vala comum da mediocridade. Na Faculdade de Educação da UNICAMP defendeu-se a tese de que a avaliação, além de coletiva, fosse sempre auto-avaliação. A tese dispensa comentários.
[23] Fernández de la Mora dá, como data, 1734 {177}. A data correta, porém, é 1754.
[24] Cf. Ludwig von Mises, Liberalism in the Classical Tradition, op.cit., p.28 na edição americana, pp.30-31 na edição brasileira, aqui citada: “No entanto, nada mais infundada do que a afirmação da suposta igualdade de todos os membros da raça humana. Os homens são totalmente desiguais. Mesmo entre irmãos, há diferenças das mais marcantes, quer nos atributos físicos, que nos mentais. A natureza nunca se repete em sua criação; não produz nada às dúzias, nem são padronizados os seus produtos. . . . Os homens não são iguais e a exigência da igualdade por lei [de que sejam considerados iguais diante da lei] não pode, de modo algum, basear-se na alegação de que tratamento igual é devido a iguais”. Cf. Friedrich A. Hayer, The Constitution of Liberty, op.cit., pp.86-87 da edição americana, pp.93-94 da edição brasileira, aqui citada: “A ilimitada diversidade da sua natureza – a ampla variedade de capacidade e potencialidade individuais – é um dos aspectos mais característicos da espécie humana. … Tem sido comum, nos tempos atuais, minimizar a importância das diferenças congênitas entre os homens e atribuir à influência do meio todas as diferenças relevantes. Por mais relevante que o meio possa ser, não devemos subestimar o fato de que os indivíduos já nascem marcadamente diferentes. A importância das diferenças individuais não seria menor se as pessoas fossem criadas em ambientes muito semelhantes. Não é correto afirmar, no sentido factual, que ‘todos os homens nascem iguais’. Podemos continuar usando esta frase consagrada para exprimir o ideal de que, de um ponto de vista legal e moral, todos os homens deveriam ser tratados com igualdade. Mas, para compreender o que esse ideal pode ou deve significar, devemos primeiramente libertar-nos da crença em qualquer igualdade fatual”.
[25] O autor atribui o dito “ao poeta romântico Young”, sem esclarecer a que Young se refere. Há mais de um Young, poeta: Edward Young, no século XVIII, e Francis Brett Young, no século XX, por exemplo.
[26] Diz Jean-Claude Casanova, em sua coluna semanal em L’Express: “O triunfo do capitalismo [sobre o comunismo] se lê no espetáculo que oferecem seus adversários. Que não se encontre, em Moscou, nem sabão nem açúcar surpreende menos do que a derrocada intelectual que transparece nos discursos dos líderes soviéticos, ao fazerem o elogio do Ocidente, da liberdade de preços, da convertibilidade de moedas, da privatização de empresas. Se, segundo a fórmula do Marx, a teoria do comunismo se resume na frase: ‘a abolição da propriedade privada’, o desmoronamento do comunismo também se resume em uma frase: a ‘restauração’ dessa propriedade” (Edição internacional nº 2043, de 7 de setembro de 1990, p.30). A frase a que se refere Casanova é, naturalmente, a da segunda seção do Manifesto Comunista, onde Marx e Engels dizem: “A característica que distingue o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa. … Neste sentido, a teoria dos Comunistas pode se resumir em uma só sentença: Abolição da propriedade privada”. Vide Harold Larski, On the Communist Manifesto: An Introduction with the Original Text and the Prefaces (Random House, Vintage Books, New York, 1967), p.151.
[27] O livro foi escrito antes do desmantelamento dos regimes comunistas dos países do Leste Europeu e da União Soviética. Mas, para dar um exemplo, o estilo de vida de Ceaucescu e sua família na Romênia, amplamente divulgado pelos meios de comunicação internacionais, plenamente comprova a afirmação do autor.
[28] Fernández de la Mora não usa as expressões “igualdade substantiva” e “igualdade formal”. Para uma discussão dessa distinção, cf. Sanford A. Lakoff, Equality in Political Philosophy (Beacon Press, Boston, 1964), p.6. Os defensores da igualdade substantiva afirmam, via de regra, que os homens realmente são iguais. Os defensores da igualdade formal geralmente afirmam apenas que os homens devem ser considerados iguais, ou tratados de forma igual (pelo governo, pela lei), isto é, tratados de maneira não-arbitrária e imparcial (apesar das desigualdades que obviamente exibem). O problema com a distinção aparece quando a igualdade substantiva é, de alguma forma, pressuposta na justificativa da igualdade formal – ou seja, quando se pressupõe que a razão pela qual os homens devem ser tratados com igualdade é que eles são iguais (talvez em um sentido metafísico, que não implica igualdade biológica, social e política, e econômica). Cf. neste sentido Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty, op.cit., p.86 da edição americana, p.93 da edição brasileira, aqui citada: “Os atuais partidários de uma igualdade material mais ampla costumam negar que suas exigências se baseiem no pressuposto de uma igualdade de fato entre todos os homens. No entanto, geralmente ainda se supõe ser esta a principal justificativa dessas exigências. Nada, contudo, é mais prejudicial à reivindicação de um tratamento igualitário que partir de um pressuposto tão obviamente falso como o da igualdade de fato de todos os homens. Defender a igualdade de tratamento de minorias nacionais ou raciais com o argumento de que elas não são diferentes dos outros homens equivale a admitir, implicitamente, que a desigualdade de fato justificaria tratamento desigual; e a prova de que certas diferenças de fato existem não tardaria a aparecer. É essencial à reivindicação de igualdade perante a lei que as pessoas sejam tratadas do mesmo modo, embora sejam diferentes umas das outras”. Cf. também John Wilson, Equality (Hutchinson’s, London, 1966), pp.18-19.
[29] “É uma coisa exigir que todos os corredores em uma corrida comecem no mesmo lugar e ao mesmo tempo, e outra coisa impedir que desigualdades apareçam no curso da corrida, separando o campeão dos que perdem ou abandonam a corrida. Igualdade de oportunidade [nesta interpretação] é nivelamento na partida, mas não na chegada” {181}. Como vai ser ressaltado a seguir, nas situações concretas em que vive o ser humano, só se consegue fazer com que todos os corredores comecem no mesmo lugar e ao mesmo tempo, em relação a todos os quesitos relevantes, através da restrição da liberdade, ou mesmo de sua abolição, com violência.
[30] Cf. Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty, op.cit., pp.385-386 da edição americana, pp.455-456 da edição brasileira, aqui citada: “Por mais louváveis que sejam os motivos das pessoas que desejam, por amor à justiça, que todos comecem a partir do mesmo patamar, esse ideal é literalmente impossível de se atingir. Além disso, pensar que ele foi realizado, mesmo parcialmente, só pode tornar a situação pior para os menos dotados. Embora seja plenamente justificável a eliminação de todos os obstáculos artificiais que as instituições existentes podem colocar no caminho de algumas pessoas, não é possível nem desejável compelir todos a começar no mesmo patamar, pois isto só pode ocorrer se privarmos algumas pessoas das possibilidades que não podem ser proporcionadas a todos. Embora queiramos que as oportunidades de todos sejam as maiores possíveis, certamente reduziríamos as da maioria se impedíssemos que elas fossem maiores que as dos menos dotados”.
[31] O texto aqui afirma a igualdade real e a igualdade diante da lei. Entretanto, não fundamenta a segunda na primeira (embora isso possa ser pressuposto).
[32] Interpreto a palavra “familiares”, no texto, de forma ampla, de modo a incluir fatores tanto genéticos como sociais, culturais e econômicos.
[33] London, 1958, principalmente p.85. Tirei a referência e a citação de Lakoff, op.cit., p.240. Cf. Gardner, op.cit., pp.133-135. Cf. Também Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty, op.cit., p.87 da edição americana, p.94 da edição brasileira, aqui citada: “A igualdade perante a lei, que a liberdade exige, conduz à desigualdade material. … Do fato de que pessoas são muito diferentes segue-se que, se dispensarmos a todas tratamento igual, o resultado será a desigualdade das suas posições reais e que a única maneira de colocarmos essas pessoas em posição de igualdade [real] seria dispensar-lhes tratamentos diferenciados” (a ordem das duas passagens está invertida no texto original). Os proponentes do “tratamento preferencial” para as minorias pobres, inicialmente apenas nos Estados Unidos, agora também aqui no Brasil, geralmente conhecido como “ação afirmativa”, concordam plenamente com essa afirmação de Hayek. É óbvio que discordam dele, porém, quando ele afirma que “querer nivelar as pessoas em suas condições individuais é algo que não pode ser aceito numa sociedade livre por justificar coerção adicional e discriminatória” (loc.cit.). Na página seguinte ele afirma, de forma ainda mais clara: “… os desníveis econômicos [i.e., a desigualdade] não constituem mal que justifique, como remédio, a adoção de coerção discriminatória ou de privilégios [i.e., a abolição ou restrição da liberdade]”.
[34] Ludwig von Mises, em livro originalmente publicado dois anos antes do livro de Michael Young, já havia ressaltado o fato. Cf. The Anticapitalistic Mentality (Libertarian Press, Spring Mills, PA, 1972 [1956]), pp.11-12. [Tradução brasileira: A Mentalidade Anticapitalista]. Diz von Mises: “Em uma sociedade baseada em casta e status, o indivíduo pode atribuir uma situação adversa na vida a condições que jazem além de seu controle. … Aquela situação não foi produzida por ele, e ele não tem razão de se sentir humilhado. … A situação é bastante diferente sob o capitalismo. Aqui a situação de cada um depende do que ele próprio faz. Qualquer pessoa cuja ambição não tenha sido plenamente realizada sabe muito bem que perdeu oportunidades, que foi julgado e considerado em falta. … Ele se torna consciente de sua própria inferioridade e se sente humilhado.” Cf. Também Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty, op.cit., p.441 da edição americana, p.94 da edição brasileira, aqui transcrita, que cita, com aprovação, C. A. R. Crosland, The Future of Socialism (London, 1956, p.235), que diz: “Mesmo que todos os que fracassaram pudessem convencer-se de que tiveram a mesma oportunidade que os outros, isto não modificaria sua insatisfação; ao contrário, ela poderia aumentar. Quando se sabe que as oportunidades são desiguais, e os critérios de seleção favorecem a maior riqueza ou a origem, podemos consolar-nos dizendo que nunca tivemos uma oportunidade adequada, que o sistema foi iníquo e os padrões de julgamento muito parciais. Mas se a seleção se faz claramente segundo o mérito das pessoas, esse consolo desaparece e o fracasso produz um sentimento de total inferioridade, para o qual não haverá desculpa ou conforto possível; e isto, por uma peculiaridade da natureza humana, na realidade aumenta a inveja e o ressentimento com o sucesso alheio”. Na sequência, Hayek, escrevendo em 1959, informa o leitor que ainda não leu o livro de Michael Young, embora tenha tomado conhecimento, por resenhas, de que ele apresenta o mesmo argumento. É interessante que Hayek não faça referência a von Mises neste contexto, embora faça várias referências a The Anticapitalistic Mentality em outros lugares do livro. Cf., a propósito, também Gardner (op.cit., p.23): “Em uma sociedade de privilégio hereditário, um indivíduo de posição humilde pode não estar inteiramente feliz com sua sorte, mas não tem porque esperar destino diferente. … Quando, porém, as novas democracias removeram os obstáculos às expectativas, nada foi mais atraente para aqueles cheios de energia, habilidade e equilíbrio emocional do que sair ao encontro do desafio. Mas para os indivíduos que não possuíam essas qualidades o novo sistema estava repleto de perigos. Falta de habilidade, energia, ou agressividade levou à frustração e ao fracasso”. Cf. idem, p.83. O Marxismo busca capitalizar (sem ironia) a frustração dos que não obtêm êxito na satisfação de suas ambições, atribuindo sua condição não a um fracasso pessoal, mas a condições inerentes à ordem social (que ele se propõe alterar). Cf. o desmascaramento dessa “mentira salvadora” em Ludwig von Mises, Liberalism in the Classical Tradition, op.cit., pp.16-17 na edição americana, pp.18-19 na edição brasileira, aqui citada: “Na vida do neurótico a ‘mentira salvadora’ tem dupla função. Não apenas o consola dos fracassos passados, mas também mantém a perspectiva do progresso futuro. No caso do fracasso social, que é nossa única preocupação aqui, a consolação consiste em acreditar que a incapacidade de alguém atingir as sublimes metas a que aspira, não deve ser atribuída à sua própria incapacidade, mas às deficiências da ordem social. O descontente espera da derrocada desta ordem social o sucesso que o sistema existente lhe recusou. … De outro modo, a vida seria insuportável para ele, na ausência do consolo que encontra na ideia do socialismo. Esta lhe diz que não é ele, mas o mundo, que falhou por ter-lhe causado o fracasso. Essa convicção o resgata da decaída autoconfiança e o libera do tormentoso sentimento de inferioridade”.
[35] Cf. Ralf Dahrendorf, “On the Origin of Social Inequality“, em Philosophy, Politics and Society (Second Series), editado por Peter Laslett e W. G. Runciman (Basil Blackwell, Oxford, 1969), pp.88-109. Nesse artigo, que é uma tradução da aula inaugural de Dahrendorf na Universidade de Tübingen, ele mostra, jogando com o duplo sentido da palavra “before” (que pode significar “perante”, “diante de”, mas também “antes de”), que “all men are equal before the law but they are no longer equal after it“: “Enquanto normas não existem, e na medida em que não agem sobre as pessoas (‘before the law‘), não há estratificação social; assim que há normas que impõem exigências inescapáveis ao comportamento das pessoas, e assim que seu comportamento real é medido em termos dessas normas (‘after the law‘), uma ordenação de status social fatalmente emerge” (p.102).
[36] Entre esses direitos políticos fundamentais incluem-se apenas os direitos individuais, não os chamados “direitos sociais”, que os igualitaristas conseguiram introduzir na nova Constituição Brasileira (Título II, Capítulo II), que nada mais são do que instrumentos empregados para tentar concretizar a igualdade real. A concessão que Fernández de la Mora faz ao admitir “direitos econômicos” abre a porta para o reconhecimento da legitimidade desses chamados “direitos sociais”. Uma vez reconhecidos alguns, é virtualmente impossível parar. Os igualitaristas vão pressionar para o reconhecimento de outros direitos: direito à educação, direito à assistência médica e hospitalar, direito ao trabalho, direito ao salário desemprego, direito à moradia (de quantos quartos?), direito ao transporte, direito ao ar puro, direito a uma vista da sacada do apartamento, quando não direito a ter um(a) companheiro(a), direito ao orgasmo (quantas vezes por semana?), etc..
[37] Cf. Gardner, op.cit., p.117.
[38] A Folha de S. Paulo, que dificilmente pode ser acusada de direitista ou mesmo de livre-mercadista (exceto quando se trata da liberdade de importar papel-imprensa e equipamentos eletrônicos e mecânicos para edição, impressão e distribuição de jornais), noticiou, em sua edição de 3 de setembro de 1990, com chamada na primeira página, uma das últimas ondas de protestos na União Soviética. Protestavam os soviéticos contra a falta de comida ou de gêneros de primeira necessidade? Não: “Soviético faz protesto para ter cigarros”, diz a manchete. O protesto, que chegou a envolver violência, com mais de uma centena de presos, várias lojas e carros destruídos, foi também contra a falta de vodka: as bebidas alcoólicas estavam racionadas. Uma fotografia mostrava uma enorme fila de soviéticos enfastiados, cuja fisionomia demonstrava qualquer coisa menos felicidade, aguardando sua vez de comprar bebidas alcoólicas. O mercado de cigarros e bebidas estava “desabastecido”. As autoridades estavam negociando a importação de cigarros – da Índia! Tanta era a carência que cigarros importados haviam virado moeda forte. Motoristas de taxi pediam que estrangeiros pagassem a corrida em dólares ou então em maços de cigarro. Um maço de Marlboro era vendido no mercado negro por 20 rublos – o equivalente a 32 dólares, no câmbio oficial, ou a 8% do salário mensal médio do trabalhador soviético que, segundo a Folha, era, na época, de 250 rublos. Anúncios classificados em jornais propunham a troca de cigarros (em total equivalente a 30 mil rublos) por “automóveis alemães-ocidentais”. A que cúmulo chegou o socialismo. Foi o próprio Izvestia que constatou (a propósito da falta de pão em Moscou de 28/8/90 a 10/9/90): “Não deveríamos nos surpreender com o fato de que a lista de penúrias se alongue: o surpreendente é que se encontre ainda seja lá o que for nas lojas” (Citado em Le Point, Edição Internacional nº 940, de 24 de setembro de 1990, p.18).
[39] “Hereditariedade, o meio-ambiente, e a vontade são as causas da capacidade desigual entre os homens” {102}.
[40] Cf. Ludwig von Mises, Liberalism in the Classical Tradition, op.cit., p.54 na edição americana, p.55 na edição brasileira, aqui citada: “Todo o progresso da humanidade foi alcançado como resultado da iniciativa de uma pequena minoria que começou a desviar-se das ideias e dos costumes da maioria, até que, finalmente, seu exemplo convenceu os outros a aceitarem a inovação. Dar à maioria o direito de ditar à minoria o que pensar, ler e fazer é dar um basta ao progresso, de uma vez por todas”. Registre-se que essa última frase de von Mises não significa que o liberalismo seja incompatível com a democracia. Na democracia liberal as leis são aprovadas por processo democrático, mas os princípios fundamentais (geralmente constitucionais) que circunscrevem o escopo da ação governamental impedem o governo de, mesmo com o apoio da maioria (dos legisladores ou da população), fazer leis que determinem o que a minoria (ou quem quer que seja) deva “pensar, ler e fazer”. Cf., neste contexto, Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty, op.cit., pp.104,106 da edição americana, pp.112,114 da edição brasileira, aqui citada: “Liberalismo é uma doutrina que define as características da lei [“… a doctrine about what the law ought to be“, no original]; democracia é uma doutrina que define o método pelo qual se determinará quais leis são aprovadas [“… a doctrine about the manner of determining what will be the law“, no original]. … Enquanto o liberalismo é uma das doutrinas referentes ao âmbito de ação [“escope“] e à finalidade [“purpose“] do governo … , a democracia, por ser um método, não diz respeito aos objetivos [“aims“] do governo”. Até aqui p.112; a seguir, a passagem da p.114 (da edição brasileira). “As tradições democrática e liberal concordam, portanto, que, sempre que se torne necessária a ação do Estado, e, sobretudo, sempre que seja preciso elaborar medidas coercitivas, a decisão deve ser da maioria. Diferem, porém, quanto à abrangência da ação estatal que se guiará por decisão democrática. Enquanto o democrata dogmático considera ideal que o maior número possível de questões seja decidido pelo voto da maioria, o liberal defende limites explícitos para o espectro de problemas que podem ser resolvidos desta maneira. O democrata dogmático crê em especial que qualquer maioria corrente deve ter o direito de decidir de que poderes dispõe e de que forma os exercerá, ao passo que o liberal considera igualmente importante que os poderes de uma maioria temporária sejam limitados por princípios duradouros. Para ele, a autoridade de uma decisão da maioria não deriva do mero ato da vontade de uma maioria momentânea, mas de um consenso mais amplo em torno de princípios comuns”.
[41] William James, falando no campus da Universidade de Stanford, em 1906, assinalou: “O mundo . . . está apenas começando a ver que a riqueza de uma nação consiste, acima de tudo, na quantidade de homens superiores que ela abriga”. Alfred North Whitehead, em seu famoso livro Aims of Education (The Macmillan Company, London, 1929) observa: “Nas condições da vida moderna a regra é absoluta: está condenada a raça que não dá valor a inteligência treinada”. As duas citações são feitas apud Gardner, op.cit., pp.37,40.
[42] William Graham Sumner defendeu com vigor essa tese no final do século passado. “Na luta entre o homem e a natureza … esta é neutra, submetendo-se àqueles que a submetem mais resolutamente. Se o estado não interferir, os homens serão recompensados em proporção aos seus esforços, e os mais aptos sobreviverão. A sobrevivência do mais apto só pode ser alterada se se subtrair dos que foram bem sucedidos para dar aos que fracassaram, diminuindo assim a desigualdade. ‘Não podemos fugir dessa alternativa: liberdade, desigualdade, sobrevivência do mais apto, ou então não-liberdade, igualdade, sobrevivência do mais inapto’. A primeira alternativa constrói a civilização e o progresso, a segunda produz a anti-civilização e o retrogresso.” [ênfase acrescentada]. Sidney Fine, Laissez-Faire and the General-Welfare State: A Study of Conflict in American Thought, 1865-1901 (The University of Michigan Press, Ann Arbor Paperbacks, Ann Arbor, 1956, 1964), p.82. As passagens em aspas simples são citações de Sumner. O restante está nas palavras de Fine.
[43] Gardner (op.cit., pp.16-17) ressalta a pressão que existe, mesmo nos Estados Unidos, para esconder competência. Aponta para os políticos que afetadamente adotam maneiras de falar do povo, não refugando nem mesmo diante de erros crassos de gramática, para dar a impressão aos membros de uma audiência popular de que são como eles. Lembro-me de um ex-político campineiro, saído das fileiras de alunos da UNICAMP, que, para assumir liderança entre os funcionários, teve de “reaprender” (leia-se desaprender) a falar o português – isto é, teve de aprender a falar errado. Afirma Gardner: “As mesmas atitudes são observáveis na pressão social generalizada para que as pessoas não deixem brilhar os seus dons. Uma das exigências de efetividade em muitos segmentos de nossa vida nacional é que a pessoa não dê oportunidade à inveja dos outros através de ostentação inconveniente de inteligência ou talento. Nessa atmosfera, não é de surpreender que linguagem deliberadamente desleixada, falta de jeito estudada e deselegância calculada tenham atingido status de formas menores de arte” [ênfase acrescentada].
[44] O que meramente insinuo no último parágrafo é outro sintoma do igualitarismo: o desaparecimento de papéis sexuais distintos para o homem e a mulher, consubstanciado nos vários movimentos “gays” e mesmo nas formas mais radicais de feminismo. Essa questão evoluiu para a malfadada ideologia do gênero. Enveredar por aí, porém, iria nos levar muito longe.
[45] Phi Delta Kappan, Janeiro de 1981, pp.382-386.
[46] Edição internacional nº 2036, de 20 de julho de 1990, pp.24-31.
[47] Op.cit., p.26.
[48] Que os orientais se concentrem maciçamente na área de ciências exatas e engenharias, e não na de ciências humanas, pode ser indicativo do fato de que na primeira existe mais preocupação com qualidade e desempenho (e, consequentemente, menos preocupação com igualitarismo) do que na segunda.
[49] Cf. William W. Bartley, III, op.cit., pp.xx,130.
[50] O Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à Educação (DECISAE) da UNICAMP, que é um de cinco departamentos da Faculdade de Educação, e que “concorre” com o Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade e (pelo que parece) também com o Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem, lista, no catálogo de Pós-Graduação da Universidade para 1990, nada menos do que 94 (noventa e quatro) disciplinas. Entre elas, “Empresa Privada e Educação”, “Educação e Empresa” [imagino que estatal, porque a empresa privada já terá merecido devida atenção na disciplina anterior], “Educação Sindical”, “Educação das Populações Rurais”, “Educação e Organizações Partidárias”, “Aspectos Educacionais dos Meios de Comunicação de Massa”, “Meios de Comunicação de Massa e Educação”, “Educação e Ciências da Linguagem”, “Teorias Narrativas e Educação”, “Teorias do Discurso e Educação”, “Formas do Discurso e Educação”, “Educação, Comunicação e Cultura”, “Discursos Políticos e Educação”, “Formas de Comunicação e Educação I”, “Formas de Comunicação e Educação II”, etc. A multiplicação de disciplinas, mesmo que nunca oferecidas, serve de base para se exigir a contratação de novos professores, sob a alegação de que há inúmeras disciplinas “a descoberto”.
[51] Como são aceitos 90 alunos anualmente para o curso de Pedagogia, o número máximo de 30 alunos por turma significa que são necessárias três turmas (e três professores) para cada disciplina. (Há quem diga que houve, na Faculdade de Educação da UNICAMP, os que defenderam que o número mágico seria 20, não 30. Imagino que o substitutivo tenha sido rejeitado porque não dá para dividir exatamente 90 por 20 – mas isso não passa de especulação de minha parte…).
[52] Os dados relativos ao ano de 1989, retirados do Relatório do Quatriênio 1986/1990 preparado pelo ex-Reitor Paulo Renato Costa Souza (pp.11,66,71), foram divulgados para a imprensa de Campinas pelo próprio Reitor atual, Carlos Vogt (Correio Popular de 16/8/90, fl.4), e são os seguintes: 2.475 professores, 9.689 funcionários técnico-administrativos (excluído o pessoal de obras!), e 12.517 alunos regulares (7.741 de graduação, 3.216 de mestrado e 1.560 de doutorado). Vai chegar uma hora — e ela chegou na segunda metade desta década de 2010, depois do desastroso primeiro mandato de Dilma Rousseff, em que não haverá mais dinheiro público para pagar tanta gente.
[53] Também é de Sumner a frase que, na indústria, as pessoas são escolhidas para exercer suas funções “por seleção natural, não por eleição política”. É isso que explica seu sucesso. Cf. Fine, op.cit., p.83. Nos cargos de confiança do governo brasileiro o oposto se dá.
[54] Basta verificar os resultados, quebrados por categoria, da “consulta à comunidade” (eufemismo para “eleição”) para escolha do Reitor da UNICAMP em 1986, para ver quão mais acachapante teria sido a derrota do candidato dos igualitaristas, hoje Ministro da Educação, se a eleição tivesse sido paritária ao invés de ter tido os pesos três, um e um para docentes, funcionários e alunos, respectivamente. O candidato dos igualitaristas, embora tenha perdido por boa margem entre funcionários e alunos, ganhou no Conselho Universitário, no qual a representação destes é meramente simbólica.
[55] No início da gestão de Carlos Vogt na Reitoria da UNICAMP (ele foi reitor de 1990 a 1994) 43,5 % dos docentes da UNICAMP não possuíam o doutorado. Cerca de 20% desses (ou seja, um pouco mais de 8% do total) só possuíam a graduação. Isto numa universidade que se pretendia ser (e ainda pretende) nada menos do que a melhor do Brasil. Dê-se crédito a Carlos Vogt por ter tentado implantar na UNICAMP um “Projeto Qualidade”, que (de certa forma) procurava constranger os professores não-doutores a defender seu doutoramento dentro de quatro anos. Ressalte-se que havia, na época, professores na universidade, em regime de tempo integral e de dedicação exclusiva, que estavam há mais de quinze anos para defender seu mestrado. Apesar disso, os igualitaristas protestaram contra a “pressão” da Reitoria. Sua demagogia apareceu em alegações como esta: “Qualidade nunca pode ser identificada com titulação!” A afirmação é verdadeira. Mas o projeto não afirmava nem pressupunha que o fosse. A afirmação é verdadeira porque a obtenção de um doutorado acadêmico é o mínimo indispensável para comprovar qualidade. Assim sendo, quem não tem o doutorado não demonstrou ter qualidade ao nível mínimo. Quem leva mais de dez anos para concluir um curso de pós-graduação “doesn’t have what it takes“: já deveria estar em outra profissão. Mas os igualitaristas, afirmando que qualidade não pode ser identificada com titulação, procuravam sugerir que titulação nada tinha que ver com qualidade, tentando, assim, encobrir o fracasso de seus correligionários, que, usufruindo das mordomias universitárias por vários anos, geralmente em tempo integral e dedicação exclusiva, não conseguiam obter um título que, em qualquer país desenvolvido, é condição sine qua non para pleitear ingresso na vida acadêmica.
[56] É a conclusão de professores experientes e competentes que o melhor aluno para ensinar é o de primeiro ano, recém-ingressado, orgulhoso da façanha de ter entrado na universidade, motivado para aprender, porque ainda acredita que está na universidade para isso e que seus mestres lhe ajuda-lo a aprender o que é preciso. Essa esperança não sobrevive a um ano de prática e doutrinação igualitária – geralmente está extinta ao fim do primeiro semestre. Cf. Bartley, op.cit., p.xviii.
[57] O problema da droga é por demais conhecido para necessitar de corroboração. O do suicídio entre jovens não tem merecido tanta atenção. Entretanto, suicídio é a segunda principal causa de mortes entre jovens, depois de acidentes com veículos automotores, tanto nos Estados Unidos como na Europa. Na França, três jovens se suicidam por dia – número bem maior do que o dos que morrem por “overdose” acidental. Cf. o artigo “Suicide des jeunes: les chiffres qui font peur“, em L’Express, Edição internacional nº 2017, de 9 de março de 1990, pp.8-9. Cf. também “Suicide: Ces jeunes qui veulent mourir“, em Le Point, Edição internacional nº 1007, de 4 de março de 1992, pp.56-60.
Transcrito aqui em São Paulo, 8 de Dezembro de 2007; revisado em São Paulo, 21 de Março de 2018.
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