O que Significa “Ser de Direita” Hoje no Brasil

Vi ontem um videozinho do Luiz Felipe Pondé, discorrendo sobre o que significa “ser de direita” na Universidade hoje. Embora concorde, em grande parte com ele, resolvi escrever sobre o meu ponto de vista acerca do assunto — sem tocar na questão da Universidade, que, para mim, são águas passadas. Faz 15 anos que me aposentei da UNICAMP e posso contar nos dedos as vezes que voltei lá. Vou discutir, portanto, o que significa ser de direita no Brasil hoje. Concordo basicamente com o Pondé na tese de que ser de direita no Brasil de hoje é ser liberal clássico, defender direitos e liberdades individuais, um estado mínimo, e, por conseguinte, a economia de mercado. Sei que há gente que discorda, dando ênfase ao papel de uma “direita cultural” e a “pauta de costumes” (sexo, aborto, etc.). Acredito, como liberal (mais do que isso, vejo-me hoje bem mais próximo do libertarianismo anárquico) na liberdade das pessoas de serem o que desejam ser — mas detesto a criação de causas e movimentos e o proselitismo que essas causas e esses movimentos fatalmente implicam. Mais sobre isso depois.

O que significa ser “de direita” no Brasil de hoje?

  1. Ser “de direita” significa, no Brasil de hoje, em primeiro lugar, numa tese negativa, “não ser de esquerda”. Muita gente não gosta de teses negativas, mas neste caso é apropriado. Boa parte dos brasileiros que se definiu como de direita o fez para marcar posição contra o petismo e os seus petralhistas. Mas reconheço que dizer que ser de direita é não ser de esquerda me obriga a definir, em seguida, o que é ser de esquerda. Não deixarei de fazer isso, como vai ficar claro em seguida.
  2. Ser “de direita” significa, no Brasil de hoje, agora numa tese positiva, considerar sempre o Indivíduo como o elemento mais fundamental nos binômios “Indivíduo e Sociedade”, “Indivíduo e Estado”. A sociedade é composta de indivíduos e não tem existência sem eles. Ela não é um ente platônico que tem existência, direitos, opiniões, voz, etc. à parte dos indivíduos que a compõem. E o estado é uma criação dos indivíduos. É difícil imaginar e crer que tenha havido uma sociedade de indivíduos sem nenhum mecanismo de governança, a chamada “sociedade natural” (erroneamente chamada de “estado natural”, a menos que o termo “estado” signifique apenas “condição”, sem um sentido mais técnico). E difícil imaginar que esses indivíduos tenham se reunido e poderado: “Oi galera, a gente tem brigado muito, vamos criar um estado, botar o Sarney na presidência, e ele cria um congresso para fazer umas leis e um tribunal para decidir quem violou as leis, etc.”. É bem mais provável que as coisas tenham acontecido de modo mais natural, espontâneo, e, em retrospectiva, se invento o mito do “contrato social”.
  3. Considerar o indivíduo o elemento mais fundamental significa nos conflitos inevitáveis que vão surgir entre o indivíduo e a sociedade e o indivíduo e o estado, nossa solidariedade primeira deve estar com o indivíduo. Ele é um — a sociedade são muitos, e o estado representa muitos, pois doutra forma não seria estado, a não ser pelo uso de uma força tão extrema que poria todo mundo contra ele. Isso significa, portanto, que quando falamos em direitos, a saber, o direito de expressar (tanto o seu pensamento como as suas emoções e a sua forma de ser), o direito de ir e vir (tanto dentro do país, como pra fora e pra dentro do país), o direito de se organizar e se associar em grupos ou se associar a grupos para fins lícitos, o direito de possuir bens e propriedades (tanto de bens tangíveis como intangíveis, tanto de propriedades materiais como imateriais), é de direitos de indivíduos, de direitos de pessoas humanas vistas como indivíduos, não de direitos de blocos ou grupos de pessoas, que estamos falando, e que esses direitos devem prevalecer contra a força, o poder e a autoridade da sociedade e do estado. E que, quando os direitos de indivíduos conflitarem uns com os direitos de outros indivíduos, deve haver meios pacíficos e com autoridade moral e de fato para decidir quais direitos prevalecem.
  4. Isso significa, portanto, que uma sociedade organizada com base na primazia dos direitos individuais, esses direitos devem ter primazia, não só com base em princípios utilitários (como se verá) mas, e principalmente, com base em princípios morais. O princípio da maioria pode ser útil para decidir quem vai governar, mas, mesmo neste caso, deve haver previsão para remover maus governantes de forma indolor, e, isso, quando prevaricam, ou por pura incompetência, ou pela prática deliberada de atos imorais — porque não sabem o que fazer ou por escolherem fazer o que não é certo. Até aí a moralidade se aplica, e ela é inerente aos indivíduos, as ações individuais. É preciso considerar sempre o Indivíduo o elemento mais fundamental. Ninguém deve ser exculpado em um linchamento alegando que, “bem todo mundo estava batendo nele, e então eu também fui lá e dei umas porradinhas…”.
  5. Toda essa conversa de “direito individual” como sendo “natural”, “inalienável”, surgiu porque se acredita que haja uma “lei natural”, que se aplica ao ser humano, independentemente de qualquer sociedade em que ele viva, em qualquer época histórica. É ela a base da moralidade, e é ela que torna certos atos individuais imorais independentemente de tempo ou lugar. É por isso que a maior parte dos liberais clássicos não acredita que direitos individuais sejam direitos outorgados por uma sociedade ou por um estado. Para ele à sociedade e ao estado só cabe reconhecê-los e fazer valer esse reconhecimento (até, agora, no caso do estado, pelo uso da força, que só pode ser aplicada para impedir ou corrigir uma injustiça).
  6. Mas o apelo a princípios utilitários também é válido, porque a experiência mostra e a história prova que uma sociedade que protege os direitos e as liberdades de cada um e que, não interferindo com o direito dos indivíduos de viver a sua vida como desejam e de desfrutar de suas liberdades, sem impedimentos, desde que estejam respeitando iguais direitos e liberdades dos demais, é uma sociedade não só mais justa, mas que produz mais e distribui melhor os bens e serviços produzidos, satisfazendo os interesses e as necessidades da maioria das pessoas.
  7. Isso significa, portanto, que a sociedade e o estado não devem nada aos indivíduos a não ser o respeito e a proteção aos seus direitos e às suas liberdades, e que a única forma legítima de os indivíduos alcançarem realização pessoal, felicidade, sucesso material e fama é respeitando esses direitos dos demais e tendo clareza sobre os seus objetivos e metas na vida (Projeto de Vida).
  8. Isso significa, também, que o estado não deve ser maior do que é estritamente preciso. Como sua função é exclusivamente respeitar e proteger direitos individuais, não estão entre suas funções garantir o bem-estar dos indivíduos em sociedade, oferecendo-lhes educação, saúde, seguridade social, muito menos moradia, emprego, esgoto, água tratada, energia, Internet, etc. Quando o estado já está exercendo essas funções, é preciso privatizá-las.
  9. Os limites extremos são individualismo anárquico, do lado direito, sem governo algum, e comunismo totalitário, condição em que o estado é tudo.
  10. Recomendaria que abandonássemos os termos “direita” e “esquerda” e nos concentrássemos nas questões fundamentais: defende o crescimento e fortalecimento de quem? Do indivíduo e das associações privadas? Em caso positivo, é dos meus. Do estado e das organizações estatais, para-estatais, etc.? Em caso positivo, não é dos meus: considero meu adversário político e vou lutar para que não prevaleça.

É só nesse sentido que se pode dizer que sou direita. A pauta cultural ou dos costumes literalmente não me incomoda. A mim não incomoda que alguém seja gay, ou bi, ou trans, que viva com alguém do mesmo sexo (ou até com mais de um), nem mesmo que faça um aborto de uma gravidez indesejável iniciante (não vejo diferença entre fazer sexo com camisinha, ou com coitus interruptus, e usar a pílula do dia seguinte: nesse aspecto sou católico, é tudo a mesma coisa) — desde que não se tente obrigar ou mesmo a constranger os outros a fazer a mesma coisa. Mas, na questão do aborto, chega uma hora é que se torna assassinato — e essa é hora é muito antes do nascimento. Isso é parte dos direitos individuais. É difícil de resolver em casos particulares? Sim, é difícil. Como é difícil fazer a coisa certa em muitas outras circunstâncias. Mas é a consciência moral de cada um (de cada indivíduo) que deve resolver. Não é a igreja ou o partido político.

Em Salto, 13 de Maio de 2022. Dia da Libertação dos Escravos.

Administrar o Tempo é Planejar a Vida, v.0 (1998)

NOTA: Este artigo é resumo, redigido em 1998, a pedido de meu amigo Wilson Azevedo, de um livreto, Administração do Tempo, que escrevi em 1992.

Geralmente quem escreve sobre administração do tempo não o faz porque seja especialista na questão, mas, sim, porque quer aprender mais sobre o assunto. Pelo menos foi esse o meu caso. Vou relatar aqui algumas de minhas descobertas, como roteiro para a leitura do quarto texto.

1) Administrar o tempo não é uma questão de ficar contando os minutos dedicados a cada atividade: é uma questão de saber definir prioridades. Provavelmente (numa sociedade complexa como a nossa), NUNCA vamos ter tempo para fazer tudo o que precisamos e desejamos fazer. Saber administrar o tempo é ter clareza cristalina sobre o que, para nós, é mais prioritário, dentre as várias coisas que precisamos e desejamos fazer – e tomar providências para que essas coisas mais prioritárias sejam feitas, sabendo que as outras provavelmente nunca vão ser feitas (mas tudo bem: elas não são prioritárias).

2) Dentre as coisas que vamos listar como prioritárias, algumas estarão ali porque nos são importantes, outras porque são urgentes. Imagino que algo que não é NEM importante NEM urgente não estará na lista de ninguém. E também sei que na lista de todo mundo haverá coisas que são IMPORTANTES E URGENTES. Não resta a menor dúvida de que estas coisas devem ser feitas imediatamente, ou, pelo menos, na primeira oportunidade. Poucas pessoas questionarão isso. O problema surge com coisas que consideramos importantes, mas não urgentes, e com coisas que são urgentes, mas às quais não damos muita importância.

3) Digamos que você considere importante ficar mais tempo com sua família. Por outro lado, você tem que trabalhar x horas por dia. Se o seu trabalho é mais importante do que ficar com a sua família, o problema está resolvido: você trabalha, mesmo que isso prejudique a convivência familiar. Mas e se o trabalho não é mais importante para você do que a convivência familiar? Neste caso, provavelmente o trabalho é urgente, no sentido de que tem que ser feito, pois doutra forma você vai ser despedido (ou perder clientes, se for autônomo ou empresário) e vai ter dificuldades para manter sua família (embora, sem trabalho, provavelmente vai poder passar mais tempo com ela…). Aqui o conflito é entre o importante e o urgente – e é aí que a maior parte de nós se perde, e por uma razão muito simples: algumas das tarefas que temos que realizar não são selecionadas por nós, mas nos são impostas. Isto é: não somos donos de todo o nosso tempo. Não temos, em relação ao nosso tempo, toda a autonomia que gostaríamos de ter. Quando aceitamos um emprego, estamos, na realidade, nos comprometendo a ceder a outrem o nosso tempo (e, também, o nosso esforço, a nossa capacidade, o nosso conhecimento, etc.). Este é um problema real e de solução difícil: não somos donos de boa parte de nosso tempo.

4) Acontece, porém, que geralmente usamos mal o tempo que dedicamos ao trabalho (e, por isso, temos que fazer hora extra ou trazemos trabalho para casa), ou mesmo o tempo que passamos em casa. Usar mal QUER DIZER que muitas vezes usamos o nosso tempo para fazer o que não é nem importante nem urgente, mas apenas algo que sempre fizemos, pela força do hábito. Alguém me disse, quando eu era criança, que a gente nunca deveria abandonar a leitura de um livro, por pior que ele fosse. Que bobagem! Mas quanto tempo desperdicei terminando de ler coisa que de nada me serviu por causa desse conselho! Uma vez me peguei dizendo à minha família que não poderia fazer algo (não me lembro o quê) domingo de manhã porque precisava ler os jornais. Eu lia, religiosamente, a Folha e o Estado aos domingos de manhã (sinto muito, folks: há tempo que não freqüento escola dominical). Lia por hábito. Achava que um professor tem que se manter informado. Mas quando disse que “precisava” ler os jornais me dei conta de que realmente não precisava lê-los. O que é de pior que poderia me acontecer se eu não lesse os jornais, me perguntei. NADA, foi a resposta que tive honestamente que dar. Se houver algo importante nos jornais provavelmente fico sabendo no noticiário da TV, ou na VEJA. Mas daí me perguntei: e preciso ler a VEJA todas as semanas? Resposta: não. Existe algo que eu prefiro ler/fazer naquelas manhãs de domingo que ganhei? Claro, muitas coisas – PARA AS QUAIS EU ANTES NÃO TINHA TEMPO. Ganhei as horas dos jornais, ganhei as horas da VEJA, fui ganhando uma horinha aqui outra ali, para as coisas que eu realmente queria fazer há muito tempo e não achava tempo…

5) Administrar o tempo é ganhar autonomia sobre a sua vida, não é ficar escravo do relógio. É uma batalha constante, que tem que ser ganha todo dia. Se você quer ter a autonomia de decidir passar mais tempo com a família, ou sem fazer nada, você tem que ganhar esse tempo deixando de fazer outras coisas que são menos importantes para você. Em última instância pode ser que você até tenha que, eventualmente, arrumar um outro emprego ou uma outra ocupação.

6) O tempo é distribuído entre as pessoas de forma bem mais democrática que muitos dos outros recursos de que nós dependemos (como, por exemplo, a inteligência). Todos os dias cada um de nós recebe exatamente 24 horas (a menos que seja o último dia de nossas vidas): nem mais, nem menos. Rico não recebe mais do que pobre, professor universitário não recebe mais do que analfabeto, executivo não recebe mais do que operário. Entretanto, apesar desse igualitarismo, uns conseguem realizar uma grande quantidade de coisas num dia – outros, ao final do dia, têm o sentimento de que o dia acabou e não fizeram nada. A diferença é que os primeiros percebem que o tempo, apesar de democraticamente distribuído, é um recurso altamente perecível. Um dia perdido hoje (perdido no sentido de que não realizei nele o que precisaria ou desejaria realizar) não é recuperado depois: é perdido para sempre.

7) Há os que afirmam, hoje, que o recurso mais escasso na nossa sociedade não é dinheiro, não são matérias primas, não é energia, não é nem mesmo inteligência: é tempo. Mas tempo se ganha, ou se faz, deixando de fazer coisas que não são nem importantes nem urgentes e sabendo priorizar aquelas que são importantes e/ou urgentes.

8) Quem tem tempo não é quem não faz nada: é quem consegue administrar o tempo que tem de modo a poder fazer aquilo que quer.

9) Por outro lado, ser produtivo não é equivalente a estar ocupado. Há muitas pessoas que estão o tempo todo ocupadas exatamente porque são improdutivas – não sabem onde concentrar seus esforços e, por isso, ciscam aqui, ciscam ali, mas nunca produzem nada. Ser produtivo é, em primeiro lugar, saber administrar o tempo, ter sentido de direção, saber aonde se vai.

10) Administrar o tempo, em última instância, é planejar estrategicamente a nossa vida. Para isso, precisamos, em primeiro lugar, saber aonde queremos chegar (definição de objetivos). Onde quero estar, o que quero ser, daqui a 5, 10, 25, 50 anos? O segundo passo é começar a estrategiar: transformar objetivos em metas (com prazos e quantificações) e decidir, em linhas gerais, como as metas serão alcançadas. O terceiro passo é criar planos táticos: explorar as alternativas específicas disponíveis para se chegar aonde queremos chegar, escolher fontes de financiamento (emprego, em geral, é fonte de financiamento), etc. Em quarto lugar, fazer o que tem que ser feito. Durante todo o processo, precisamos estar constantemente avaliando os meios que estamos usando, para verificar se estão nos levando mais perto de onde queremos vamos querer estar ao final do processo. Se não, troquemos de meios (procuremos outro emprego, por exemplo).

11) Mas tudo começa com uma verdade tão simples que parece uma platitude: se você não sabe aonde quer chegar, provavelmente nunca vai chegar lá – por mais tempo que tenha.

12) Quando o nosso tempo termina, acaba a nossa vida. Não há maneira de obter mais. Por isso, tempo é vida. Quem administra o tempo ganha vida, mesmo vivendo o mesmo tempo. Prolongar a duração de nossa vida não é algo sobre o qual tenhamos muito controle. Aumentar a nossa vida ganhando tempo dentro da duração que ela tem é algo, porém, que está ao alcance de todos. Basta um pouco de esforço e determinação.

Campinas, 27 de Março de 2001

Administração do Tempo – Entrevista para a Revista “É Domingo” (de Sorocaba)

[Entrevista dada por e-mail em 25/2/2007 para Vanessa Olivier, da Revista É Domingo, de Sorocaba.]

É Domingo:

Como organizar o tempo na vida pessoal, conseguindo um equilíbrio entre trabalho, família, lazer?

Eduardo Chaves:

Interessei-me pelo tema porque, há uns 15 ou 16 anos, andava assoberbado pelas demandas do  trabalho – era professor da UNICAMP, consultor de empresas, consultor de escolas, tinha filhos para criar, etc. Lazer, nem se pensava. Muitas vezes a família ia para a praia e eu ficava trabalhando. Trazia trabalho para casa à noite. A maior parte das pessoas conhece bem o problema. Mas, por outro lado, li, naquela ocasião, que o presidente de uma grande empresa multinacional havia saído de férias por 30 dias, indo para a Terra do Fogo, e que esquecia do trabalho durante aqueles dias e queria ser esquecido: nem deixava o telefone de onde estava. Perguntei-me: como ele consegue?

Fui estudar a questão e percebi, primeiro, que não há solução fácil ou mágica. A vida contemporânea é complexa mesmo e faz inúmeras demandas sobre o nosso tempo. Mas, embora nem fáceis nem mágicas, há medidas que podem nos ajudar a assumir controle de nossa vida – porque é disso, em última instância, que se trata.

A primeira medida é ganhar clareza sobre como gastamos o nosso tempo – fazendo um acompanhamento detalhado dos nossos dias durante um certo período.

A segunda medida é analisar cuidadosamente esses dados, classificando-os entre “Importantes e Urgentes”, “Importantes mas não Urgentes”, “Não-Importantes mas Urgentes” e “Não-Importantes e Não-Urgentes”.

A terceira medida é imediatamente deixar de fazer o que não é nem importante nem urgente. Ler jornais e revistas semanais de cabo a rabo, navegar sem rumo pela Internet, checar os e-mails duzentas vezes por dia, arranjar os ícones de aplicativos no desktop, brigar com a operadora de telefone por causa de um erro de cinco reais na conta, etc. – nada disso é importante ou urgente. Ganham-se preciosos minutos por dia e por semana deixando de fazer isso.

A quarta medida é tentar lidar com o que é urgente mas não importante. Como as coisas aqui são urgentes, não é possível simplesmente deixar de fazê-las. A solução é delega-las. Uma secretária, um assistente, um estagiário, um office boy, uma empregada doméstica – ou mesmo o cônjuge ou os filhos – podem assumir muitas dessas tarefas. O problema é que muita gente não consegue delegar. Conheço um grande advogado que não delega a estagiários nem mesmo a tarefa de ir ao fórum para acompanhar o andamento de processos. Segundo alega, uma vez fez isso e perdeu um prazo importante porque o estagiário bobeou. Mas nunca iremos conseguir administrar o tempo se não soubermos delegar – e lidar com eventuais problemas à medida que aconteçam.

Isso resolvido, temos de lidar com o que realmente vale a pena: as coisas importantes.

Algumas delas são também urgentes: se não pudermos delegá-las a quem possa realizá-las bem, temos de nos dedicar a elas imediatamente e fazê-las o mais rápido possível. Sem relaxo, mas, também, sem perfeccionismo. A incapacidade de delegar e o perfeccionismo são, talvez, os dois maiores inimigos da boa administração do tempo. A pressa, dizem, é inimiga da perfeição. Mas a busca da perfeição, embora necessária nas artes e no esporte, é inimiga da gestão eficaz do tempo. O artista e o esportista só conseguem chegar perto da perfeição porque são focados exclusivamente numa coisa – e deixam tudo o mais de lado. Nós, pobres mortais, que não podemos fazer isso, tempos de abrir mão da busca da perfeição  – sem, porém, abrir mão de certos padrões de qualidade.

Outras coisas importantes não são tão urgentes, ou assim parece. A nossa tendência aqui é procrastinar – empurrá-las com a barriga. A procrastinação é o terceiro grande inimigo da boa administração do tempo. Ter tempo de qualidade com a família é importante para você? Priorize isso. Abra mão, se necessário, de outras coisas menos importantes. Cuidar de sua saúde, exercitar-se, ter lazer, é importante para você? Priorize isso. Nada faz com que algo importante se torne também urgente como um grande susto com a saúde: um infarto, por exemplo. Sei do que falo nesta questão – embora às vezes me pegue me comportando como se não soubesse…

É Domingo:

Qual são as consequências para quem não consegue tempo para a saúde, para o lazer, para a família?

Eduardo Chaves:

Um infarto, por exemplo, como acabo de mencionar… Ou o cônjuge encontrar alguém que lhe dê mais tempo e atenção… Ou perceber que os filhos cresceram e você não notou, e, hoje, são quase estranhos em suas vidas… Ninguém conscientemente deseja essas coisas. Mas, frequentemente, nos comportamos como se as desejássemos.

É Domingo:

No que isso pode prejudicar no mundo dos negócios?

Eduardo Chaves:

Uma pessoa de negócio com problemas de saúde ou com problemas familiares não tem condições de apresentar o mesmo desempenho que apresentaria se a saúde estivesse 100% e tudo estivesse bem com o cônjuge e os filhos.

É Domingo:

Quais são as principais barreiras encontradas pelas pessoas que não conseguem administrar sua agenda? E como elas podem rompê-las?

Eduardo Chaves:

Já as listei: incapacidade de delegar, perfeccionismo, procrastinação. É possível adquirir novos hábitos nessas áreas – mas não é fácil: exige determinação, paciência e persistência. Sempre vai haver recaídas – mas não podemos usá-las como justificativa para voltar aos velhos hábitos.

É Domingo:

O que é preciso saber para conseguir sucesso na vida profissional e pessoal?

Eduardo Chaves:

Gosto de listar os Seis P’s: Pensamento, Propósito, Paixão, Plano, Produção, Persistência.

O sucesso só vem para quem sabe o que busca, para quem sabe aonde quer chegar. Essa a função do Pensamento: uma ideia norteadora que vai nos servir de bússola.

Mas o Pensamento só não basta: é preciso que ele se transforme em um Propósito.

É preciso que esse Propósito seja perseguido com Paixão.

Mas a Paixão não é substituto para a elaboração de um Plano racional para realizar o Propósito.

Um Plano certamente não pode ficar no papel: precisa ser posto em prática, transformado em ação. Essa é a função do que chamo de Produção.

Por fim, Persistência. Vai haver problemas e dificuldades, haverá horas em que ficaremos tentados a desistir… Mas os que são bem sucedidos são aqueles que, mesmo quando caem, “levantam-se, sacodem a poeira e dão a volta por cima”.

É Domingo:

Por fim, sua formação profissional e especialidades.

Eduardo Chaves:

Fiz curso de Graduação e Mestrado em Teologia e Doutorado em Filosofia. Fui professor universitário durante 35 anos – 32 dos quais na UNICAMP, da qual me aposentei no final do ano passado. Há cerca de 25 anos me enveredei pela área do uso da tecnologia na eficiência pessoal, no treinamento, na educação. Isso é hoje uma de minhas áreas de atuação profissional, como consultor. A Microsoft é minha principal cliente aqui. Desde janeiro deste ano sou Secretário Adjunto de Ensino Superior do Governo do Estado de São Paulo.

Em Campinas, 25 de fevereiro de 2007

“O CAOS em Revista”: Editoriais e Artigos de Eduardo Chaves, publicados e censurados de 18-3-1966 a 18-8-1966 [2a edição, revista e ampliada]

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NOTA DE 24.10.2021

A matéria que a seguir republico, em duas partes, ambas em 2a edição, ambas revistas, mas apenas a primeira ampliada, é totalmente de minha autoria (exceto por um texto chamado Manifesto dos Quinze, que indico claramente não ter sido escrito por mim).

Primeira Parte

A Primeira Parte foi publicada anteriormente, neste mesmo blog em que agora publico a presente matéria, Liberal Space, na forma de três artigos sequenciais, escritos em 2006, quinze anos atrás (escrevo esta nota em 24.10.2021), que formam um bloco integrado. Ele foram divididos em três artigos apenas por dificuldade de publicar um artigo de blog muito longo. Tanto é assim que, posteriormente, em 2015, com tecnologia mais evoluída, eu agrupei os três artigos em um só e publiquei o resultado, como um artigo só, em um outro blog meu, Autobio Space.

É essa publicação agrupada na forma de um artigo “três-em-um” que eu republico abaixo, com correções, revisões e ampliações, como Primeira Parte.

Segunda Parte

A Segunda Parte foi totalmente escrita, na forma de Editoriais e Artigos, nos meses de Março a Agosto de 1966 (cinquenta e cinco anos atrás, pois escrevo, como já dito, em 24.10.2021). A publicação, em 1966, foi feita no jornal acadêmico O CAOS em Revista, de saudosa memória, que era o órgão oficial do Centro Acadêmico “Oito de Setembro” (CAOS), órgão de representação dos alunos do Seminário Presbiteriano do Sul (SPS), de Campinas, SP, instituição de ensino da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB). Todos os meus Editoriais e Artigos foram censurados. Em alguns casos, a posteriori, envolvendo a determinação (pela Congregação do Seminário) da cessação imediata da distribuição do jornal e o confisco dos exemplares remanescentes (que não haviam ainda sido distribuídos). Isso se deu com os números de Março e Abril de 1966. E, neste ponto, a Congregação do Seminário implantou a censura prévia para qualquer publicação oriunda dos alunos, não só para as publicações do CAOS. Como um grupo de alunos não envolvidos com a Diretoria do Centro Acadêmico, do qual eu era Secretário, além de Editor do jornal, publicou um Manifesto, que ficou conhecido como o Manifesto dos Quinze, por este ser o número dos signatários. Os quinze e seu mentor, Prof. Waldyr Carvalho Luz, fizeram isso sem a autorização prévia da Congregação (fato por mim comprovado mediante carta à Congregação e resposta dela). E a Congregação não os puniu por desobedecer à sua instituição de censura prévia. Diante disso, o CAOS resolveu partir para a desobediência civil e publicou o número de Maio de 1966 de “O CAOS em Revista”, sem submetê-lo previamente à Congregação. O jornal foi novamente censurado (a posteriori) e seus exemplares remanescentes foram confiscados, mas, prevendo o que iria acontecer, editamos e imprimimos o jornal na surdina, fizemos uma tiragem maior e conseguimos distribuir cerca de 200 exemplares antes de a Congregação se manifestar.

Esta Segunda Parte contém apenas as matérias escritas em 1966 (de 18.3.1966 a 18.8.1966), com exceção do Manifesto dos Quinze (transcrito abaixo). Ela foi publicada anteriormente no meu blog Autobio Space, em 7.11.2015, em preparação para a comemoração dos Jubileu de Ouro — 50 Anos — dos Eventos de 1966, o que acabou não acontecendo, em 2016.

Dados da Publicação Anterior dos Materiais

Para facilitar o acesso do leitor, aqui estão os endereços originais de todos os artigos mencionados.

O primeiro artigo, que tem o título de Quarenta anos depois do CAOS: 1966-2006 (I), foi publicado em 8.9.2006, no blog Liberal Space, no endereço https://liberal.space/2006/09/08/quarenta-anos-depois-do-caos-1966-2006-i/.

O segundo artigo, que tem o título de Quarenta anos depois do CAOS: 1966-2006 (II), foi publicado também em 8.9.2006, no mesmo blog, Liberal Space, no endereço https://liberal.space/2006/09/08/quarenta-anos-depois-do-caos-1966-2006-ii/.

O terceiro artigo, que tem o título de Quarenta anos depois do CAOS: 1966-2006 (III), foi publicado também em 8.9.2006, no mesmo blog, Liberal Space, no endereço https://liberal.space/2006/09/08/quarenta-anos-depois-do-caos-1966-2006-iii/.

Esses três primeiros artigos, que, agrupados, formam a Primeira Parte do presente artigo, foram agrupados em um só, para simplificar o acesso, e republicados, em outro blog meu, Autobio Space, em 7.11.2015 (vai fazer seis anos, em poucos dias), com o título “Quarenta Anos depois do CAOS: 1966-2006”, no endereço https://autobiospace.wordpress.com/2015/11/07/quarenta-anos-depois-do-caos-1966-2006/.

O artigo que aqui é publicado como Segunda Parte contém exclusivamente material de natureza histórica, referente à chamada Crise de 1966 no Seminário Presbiteriano do Sul, de Campinas, da Igreja Presbiteriana do Brasil.

Ele contém os Editoriais e Artigos meus escritos para O CAOS em Revista, escritos em 1966 (quarenta anos antes dos três artigos da Primeira Parte), para os interessados na História da Igreja Presbiteriana do Brasil, que assim, podem consultá-los sem meus comentários contextualizadores.

O título original do quarto artigo (o único artigo da Segunda Parte) é “‘O CAOS em Revista’: Editoriais e Artigos de 18-3-1966 a 18-8-1966 (com censura posterior ou prévia)“, e ele foi publicado em meu blog Autobio Space, em 7.11.2015 (na mesma data do artigo agrupado mencionado anteriormente), no endereço https://autobiospace.wordpress.com/2015/11/07/o-caos-em-revista-editoriais-e-artigos-de-18-3-1966-a-18-8-1966-com-censura-posterior-ou-previa/. Na edição original o título era levemente diferente.

Registre-se que o material da Segunda Parte está contido, quase totalmente, nos artigos da Primeira Parte, mas, nesta, está quebrado em diversas citações, que dificultam o entendimento da sequência e da unidade do material.

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PRIMEIRA PARTE

Apresentação da Primeira Parte

Esta é uma contribuição do autor, protagonista e testemunha ocular dos fatos, para a História da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), pois seu conteúdo é tal que as publicações oficiais da IPB, e mesmo os artigos e livros de seu historiador oficial, ignoram, escondem ou camuflam as informações aqui contidas.

Quarenta Anos Depois do CAOS (1966-2006)

CAOS era um acrônimo certo para o nosso Centro Acadêmico naqueles tempos: Centro Acadêmico “Oito de Setembro”. A época, em si, já era de caos, sem necessidade de um CAOS para conturbar ainda mais as coisas.

O Centro Acadêmico “Oito de Setembro” reunia os alunos daquilo que o pessoal da Igreja chamava de “Seminário Presbiteriano do Sul”, localizado em Campinas. A gente, aluno muito metido a besta, dizia que o CAOS reunia os alunos da “Faculdade de Teologia de Campinas da Igreja Presbiteriana do Brasil”. Afinal de contas, a gente (segundo o nosso próprio entendimento) não estudava teologia: estudava e interpretava a realidade brasileira à luz da teologia. Apesar de o Ministério da Educação não reconhecer o Seminário como uma instituição de ensino superior, para nós ele era simplesmente a nossa Faculdade. Ponto final. Até que voltou a ser Seminário e degradou ainda mais para ser Instituto Bíblico…

Não que a gente achasse que o ensino ali ministrado pelos professores fosse de categoria tal a justificar o upgrade para Faculdade. Pelo contrário: nossa opinião, de alunos, acerca da qualidade dos nossos professores e do ensino que nos proporcionavam era a pior possível. “Medíocres” era o rótulo mais generoso que lhes dávamos – com uma ou outra exceção.

O Rev. Francisco Penha Alves, o famoso “Chicão”, era uma delas. Afinal de contas, ninguém pode ser considerado medíocre se ele mesmo se rotula como tal. Ele não era pretensioso: conhecia suas limitações. Era pastor, formado em teologia, em seminário… Mas nos dava aula de filosofia e sociologia. Tive o meu primeiro curso de filosofia com ele. Usava basicamente dois livros como texto s básicos para suas aulas: Living Issues in Philosophy, de H. H. Titus, e Introduction to Philosophy, de George Thomas White Patrick. Era bom professor. Conquistava os alunos para a sua matéria. Devo a ele ter me interessado pela filosofia. Não conseguiu fazer o mesmo com a sociologia.

Eu tinha uma outra exceção: o Rev. Osmundo Affonso Miranda, professor de Novo Testamento, com doutorado no Seminário de Princeton. Ele via talento em mim e eu o admirava. Quando em circunstâncias trágicas ele deixou o Seminário de Campinas – digo, a Faculdade de Teologia de Campinas – para voltar aos Estados Unidos com os filhos, me deu um monte de livros dele e me legou os arquivos pessoais das pesquisas que havia feito para suas teses de Mestrado e Doutorado.

O resto era triste. Alguns, ressalvo, eram gente boa, no plano pessoal, mas péssimos professores – simplesmente despreparados ou, então, extremamente dogmáticos. Outros, nem gente boa eram – além de também serem despreparados ou dogmáticos. Deixo de citar os seus nomes por generosidade (embora os nomes de alguns apareçam adiante em outro contexto).

Entrei na Faculdade de Teologia de Campinas, pertencente à Igreja Presbiteriana do Brasil, em Fevereiro de 1964. O primeiro dia de aula foi 17 de Fevereiro, uma segunda-feira. O nome oficial da instituição era Seminário Presbiteriano do Sul. Mas a gente preferia chamar a instituição de Faculdade de Teologia. Minha festa de calouro estava programada para o dia 1º de abril. É evidente que não houve. Os militares, dando início ao golpe político-militar, com amplo apoio da sociedade, levaram de roldão a minha festa de calouro. Eu tinha uma madrinha, a Yara Lígia, mas nunca entrei com ela na festa. Ela me deu, porém, como presente, o livro Conheça-se a Si Mesmo, de Karen Horney. Na dedicatória dizia: “Ao meu afilhado, Oscar, a bênção de sua madrinha, Yara Lígia”. Yara, estou tentando… (Todo mundo me chamava de Oscar, naquela época, e não Eduardo, porque meu nome é composto, Eduardo Oscar, mas Oscar era o nome de meu pai).

Os dias que transcorriam entre o início das aulas e a festa dos calouros eram de trote. Os calouros tinham de andar de gravata o tempo todo – até indo para o banho. E, por falar em banho, havia o banho de um calouro toda noite, depois do café das 21h. A gente tomava café e os calouros corriam pros quartos. Dali a pouco ouvia o coro dos veteranos subindo as escadas e cantando: “A árvore da montanha, olê-le-a-ô, a árvore da montanha, olê-le-a-ô… A árvore tinha um galho, ai-ai-ai que amor de galho…” Tortura pura. Ameaçavam entrar num quarto, recuavam. Às vezes pegavam um calouro, levavam até o meio do caminho, e desistiam: voltavam e pegavam outro que já se julgava livre por aquele dia. O destino? Uma banheira velha cheia de água no segundo andar do alojamento velho. A gente era levado de óculos, relógio, sapatos, roupa e jogado dentro da água. Às vezes um veterano aparentemente bonzinho dizia: “Ah, vamos tirar os sapatos do calouro, coitado: ele só tem esses…”. Quando o dito calouro caía na água, já encontrava os pobres sapatos flutuando na banheira. Ao sair do banho, o calouro banhado era abraçado pelos veteranos… Ser considerado não-calouro, porém, só depois da festa – que, no meu caso, nunca houve… Culpa dos milicos. Os veteranos precisaram decretar que nossa condição, a partir de um certo momento, era de não-calouro, dando a festa como se tivesse acontecido.

Demorou um pouco para que o espírito repressivo do Golpe de 64 penetrasse os diversos escalões da Igreja Presbiteriana e permitisse que um grupo de pastores perpetrasse, dentro da Igreja, um golpe dentro do golpe. O artífice dessa manobra foi o Rev. Boanerges Ribeiro. O Diabo deve tê-lo em alta conta. Ao perceber que o clima político era propício a uma guinada fundamentalista dentro da Igreja, montou uma estrutura semi-partidária que o levou ao cargo de Presidente da Igreja numa eleição feita em Fortaleza, durante a reunião do Supremo Concílio, em Junho de 1966. Dali para frente foi sarrafo na moçada.

Para entender a razão do sarrafo, é preciso explicar, para aqueles que nunca viveram em Seminário, o que é a vida ali dentro.

Cheguei no Seminário crente piedoso, e tinha certeza de que sairia de lá pastor. Quando saí de lá, dois anos e seis meses depois, tinha perdido a piedade e tinha sérias dúvidas de que realmente viria a ser pastor um dia. Nunca fui.

Do ponto de vista do comportamento, quando cheguei ao Seminário não bebia, não fumava, não dançava, guardava o Domingo. Quando saí de lá, tinha começado a fumar, e, embora nunca de forma exagerada, bebia cerveja, vinho, e, às vezes, até um golinho de pinga. Também tinha tentado aprender a dançar e achava uma bobagem a guarda do Domingo.

O que aconteceu nesse processo? Como é que se processam essas mudanças, que são, na realidade, um processo de desconversão – o caminho inverso de um processo de conversão?

Em outro artigo vou tratar desse processo de desconversão. Aqui basta descrever, com grandes pinceladas, o ambiente que o tornou possível.

O médico que estuda medicina, parece perder o respeito pela doença. Ele muitas vezes a trata de forma brincalhona. Lembro-me de que uma vez minha mãe precisou ser operada, e meu pai assistiu à operação – que foi feita no Hospital Presbiteriano de Rio Claro, pelo amigo dele, e depois amigo meu, Dr. Eduardo Lane. Meu pai ficou irritadíssimo, porque enquanto esperava que a anestesia fizesse efeito, Eduardo Lane (segundo relatou meu pai) havia ficado a fazer uma discreta batucadinha na barriga de minha mãe, sem ligar muito para a gravidade da situação…

Bem, com quem estuda teologia algo semelhante acontece. Rapidamente se perde o espírito de reverência diante das coisas sagradas. Brinca-se com tudo. Dá-se apelido a quem antes não se ousava dizer o nome. O Deus dos Judeus, em Hebraico, é chamado de YHWH – pronunciado Yahweh em Inglês, Iavé (ou Javé, ou Jeová), em Português. Bom, se Deus é Iavé, Jesus Cristo deve ser Iavezinho… Fazia-se gozação com as passagens bíblicas, brincava-se com os milagres… Nada disso significava perda de fé. Era apenas o preço a pagar pela familiaridade excessiva com as coisas ditas sagradas.

Mas não era só a doutrina que era objeto de brinquedo. Brincava-se também com a ética. Embora a maioria absoluta dos seminaristas fosse tão pura quanto o puríssimo coração de Maria, os veteranos adoravam pretender que não eram, para impressionar – através do choque e do escândalo – os calouros… Eles davam a entender que se envolviam em ousadias sexuais que, é mais do que certo, nem em pensamento se arriscavam a perpetrar. Falavam da zona como se fosse um local visitado cotidianamente… E, naturalmente, fumavam, bebiam e dançavam – coisas que, para presbiterianos conservadores, eram quase tão pecaminosas quanto fornicar. No que diz respeito a fumar, beber e dançar não era apenas blefe: aprendi a fazer essas coisas no Seminário. Quanto às outras, se o intuito era chocar, chocavam; se era escandalizar, escandalizavam. Mas os calouros logo viravam veteranos e percebiam que a maior parte desses alardeados comportamentos eram blefe.

Em 1966 entrou uma turma de alunos especialmente conservadora no Seminário. Gente mais de idade, vários casados e com família. Formaram uma patota – e decidiram que iriam converter os devassos veteranos. Conquistaram o apoio do Rev. Waldyr Carvalho Luz (pelos veteranos apelidado de Rev. Trevas), e se reuniam, diariamente, para orar pela regeneração dos colegas que caminhavam rápido no caminho da perdição. Achavam-se os bons, os puros, os eleitos. E nós, os veteranos (eu já estava no meu terceiro ano), adorávamos provocá-los.  E, para provocá-los, exagerávamos nossa heterodoxia (heresia mesmo) e nosso comportamento divergente.

Em Março de 1966 explodiu uma crise no Seminário, da qual, felizmente ou infelizmente, não sei, fui pivô – e estopim. No dia 18 – cerca de um mês, portanto, depois do início das aulas – um estudante do curso breve (curso de três, e não de cinco anos, como era normal), Floramonte Dias Gonçalves, pregou um sermão de prova sobre o livro de Jonas, pressupondo não só a historicidade do profeta mas de todos os mínimos detalhes do relato bíblico. Na exegese do colega, Jonas realmente sofreu um naufrágio, foi engolido por uma baleia, ficou três dias na barriga da baleia e, depois, foi vomitado na praia de Nínive, para onde estava indo quando o ocorreu o naufrágio.

Na crítica ao sermão, o mais conservador de nossos professores, o Rev. Waldyr Carvalho Luz, foi o que mais falou: elogiou o aluno pelo sermão, dizendo, entre outras coisas, que ele fez muito bem em tomar por incontroversa a historicidade do livro, “sem ficar procurando chifres na cabeça de cavalo”. Embora o Rev. Earle D. Roberts (professor de Velho Testamento) houvesse mencionado, meio en passant, que a interpretação histórica do livro enfrentava uma série de problemas levantados pela crítica literária e textual, não explicitou quais seriam esses problemas. O Rev. Osmundo Affonso Miranda (meu guru, professor de Novo Testamento) disse que não concordava totalmente com a interpretação dada ao livro, mas não passou disso. Na verdade, o  comportamento do Rev. Osmundo me irritou mais do que o do Rev. Waldyr, cuja posição não me surpreendeu. Surpreendeu-me, entretanto, a omissão do Rev. Osmundo – até porque eu o admirava muito, tanto no plano pessoal como no profissional. Fui para o quarto pensando o que fazer.

Dias antes, a Diretoria do Centro Acadêmico “Oito de Setembro” (CAOS), do qual eu havia sido eleito Secretário para o ano letivo de 1966, havia decidido publicar um jornalzinho e eu fora escolhido para ser o seu Editor/Redator. Dei-lhe o título, deliberadamente provocante, de “O CAOS em Revista”. Eis o meu primeiro Editorial:

” Em sua reunião de 18 de fevereiro do corrente a Diretoria do CAOS decidiu que se publicasse, periodicamente, um jornal informativo da Diretoria, designando-nos, naquela mesma ocasião, responsáveis pela sua edição. Exatamente um mês após sai o primeiro número. Como primeiro é este um número experimental, para o qual pedimos a opinião dos colegas, para que ele venha a ser a expressão do corpo discente de nossa casa. Não é, porém, apenas a opinião dos colegas que solicitamos. Pedimos também a colaboração de cada um através de artiguetes escritos, através de trechos ou excertos traduzidos de livros ou revistas, através da indicação de livros e artigos recomendáveis. Esperamos que os colegas nos tragam suas colaborações. Será distribuído, gratuitamente, apenas um exemplar para cada colega. A pessoa que desejar mais números terá que pagá-los a razão de Cr$ 200 cada. Será esta uma maneira de arranjarmos um pouco de fundos para a contínua publicação do jornal. Cada vez que houver material suficiente, nas mãos do redator, para a tiragem de um número, este sairá. Contamos, pois, com a colaboração de todos. “

A crítica do sermão (mais do que o sermão em si) me deu o assunto para o primeiro número. O resto foi recheio.

Com toda a paixão dos meus 22 anos, escrevi um pesado artigo sobre o assunto com o título de “Instituto Bíblico em Campinas”. Chamar a Faculdade de seminário já era ofender. Chamar o Seminário de “Instituto Bíblico”, era chamar para briga. Institutos Bíblicos eram, em geral, instituições sem tradição acadêmica, e sem regulamentação, que preparavam leigos para o trabalho na Igreja em locais afastados em que não havia pastores em número suficiente. No artigo, ressalvei o direito de o colega Floramonte pregar sobre o que quisesse, do jeito que quisesse. O que não era admissível, argumentei, sendo a ocasião um sermão de prova, feito, portanto, para fins didáticos, era que os mestres se calassem sobre os problemas e as interpretações alternativas do livro de Jonas. Os problemas eram tantos, afirmei, que ignorá-los era equivalente a não ver chifres na cabeça de um boi – frase que especialmente feriu o Rev. Waldyr, de quem eu era, até aquele momento, um dos alunos mais queridos, por ter tirado algumas das maiores médias em Grego na história do Seminário (acima de 98.5, em três semestres consecutivos). Além do mais, o Rev. Waldyr havia sido colega de meu pai no Seminário.

Mas em vez de resumir o artigo, êi-lo na íntegra:

“ Estamos ainda debaixo do revoltante impacto que nos causou a crítica ao sermão pregado hoje por um de nossos colegas. Queremos, de início, esclarecer que tudo o que aqui vamos dizer não visa à pessoa e às idéias do pregador, mas sim à posição e às idéias dos “críticos”, membros do corpo docente desta “Faculdade”. Colocamos estas duas palavras entre aspas porque não reputamos críticos os que não levam em conta a obra e os resultados da Crítica, fazendo de sua “crítica” tão simplesmente uma avaliação da simpatia do pregador, de sua vestimenta, de sua linguagem, de sua elocução, da estrutura homilética de seu sermão, de sua liturgia, negligenciando o cerne do sermão que é a interpretação dada ao teto. Para se fazer esta interpretação a Crítica Histórico-Literária e Textual é simplesmente considerada “farrapos”. Além do mais não consideramos Faculdade uma instituição de ensino que se aliena, através de seus professores (mas graças a Deus não através de todos os seus alunos) do movimento intelectual teológico contemporâneo. O que está se dando aqui é que nosso Seminário, tido aí por fora como “Faculdade de Teologia”, não passa, atualmente, de um Instituto Bíblico, que acha virtude, através de alguns de seus professores, em nem se aproximar dos problemas levantados pela Crítica Bíblica, e que acha que os alunos não precisam conhecê-los, pois são irrelevantes.

Vejamos, porém, o caso concreto. 

Pregou-se, hoje, uma sermão de prova biográfico sobre JONAS. Como base da mensagem do pregador estava a pressuposição de que o livro de Jonas é um livro histórico no sentido de que as informações nele contidas são historicamente fidedignas, e que o que nele é registrado se deu literalmente como o descreve o livro. O Jonas de que o livro fala foi tido como o profeta Jonas, filho de Amitai, que profetizou em Israel, no século VIII, no reinado de Jeroboão II (Cf. II Reis 14:25). Reafirmamos que o pregador tinha pleno direito de fazer o que fez, ou seja, de dar esta interpretação conservadora ao livro. Não o criticamos por isso. Afirmamos também que os mestres tinham pleno direito de concordar com o pregador a respeito de sua interpretação e da linha de sua mensagem, o que de fato fizeram. Com o que não concordamos, porém, é que o outro lado da questão não tivesse sido sequer mencionado! Um dos professores mencionou de passagem que o livro apresentava problemas críticos, mas nem sequer esboçou quais e que tipos de problemas seriam estes. Apenas afirmou (certamente opinião pessoal sua) que a Crítica havia tornado o livro em “farrapos”, subentendendo-se daí que se é impossível pregar sobre o livro de Jonas com uma interpretação outra que não a sua pessoal, naquele contexto representada também pelo pregador e pelos outros críticos. Um outro crítico mencionou que sua opinião era diferente, mas não julgou conveniente apresentá-la. De qualquer forma o sermão foi tido como muito feliz, pela interpretação sadia, pela riqueza de material, etc., pois fugiu dos problemas críticos, “não procurando chifres na cabeça de cavalo”. Embora um crítico houvesse achado que o sermão carecia de melhoras, a impressão tida após a crítica é que o sermão do colega foi o tipo de sermão ideal, “ungido” (o termo foi usado).

Nossa intenção, aqui neste artiguete, pelo qual somos pessoalmente responsáveis, é apresentar o outro lado da questão, como um dever de consciência, pois o outro lado foi redondamente ignorado pelos “críticos” do referido sermão. Se o fazemos é no interesse de esclarecer os colegas, mostrando que o livro de Jonas é “pregável” mesmo depois de a ele ser aplicada uma crítica bastante radical.

Vamos à questão.

O livro de Jonas é diferente de todos os outros escritos proféticos do Velho Testamento no sentido de que não contém uma coleção de oráculos de um profeta, mas é simplesmente uma história a respeito de um profeta. Pode ser esta a razão pela qual um livro que não reivindica de modo algum ter sido escrito por um profeta (o v.1 diz: “Veio a palavra do Senhor Jonas, filho de Amitai, dizendo:…” – Notar que o livro é escrito na terceira e não na primeira pessoa: “Jonas se dispôs”, “Jonas orou”, etc.), e que no aspecto literário pertence a um tipo bastante diferente, foi incluído entre os Livros dos Doze Profetas. Nem podemos dizer que o livro de Jonas seja um conto profético de natureza histórica e biográfica, porque a base requerida para tal não está presente no livro. O livro de Jonas é um poema didático, podemos mesmo dizer que um poema parabólico, escrito para mostrar que Deus se compadece mesmo dos ímpios quando eles se arrependem (3:10; 4:10). Este poema foi escrito com uma moral dirigida contra a intolerância dos Judeus e sua arrogância para com as nações pagãs, resultantes da doutrina da eleição mal interpretada em um sentido particularista. Bastava somente esta moral para que concluíssemos que o livro é pós-exílico, pois sua atitude básica toma por pressuposta a influência de Dêutero-Isaías com sua idéia de salvação universal. O capítulo 3, versículo 3, dá a entender que Nínive era considerada uma cidade legendária, dos tempos antigos. Além do mais, a linguagem do livro, com seus aramaísmos, e com formas hebraicas bem posteriores em seu vocabulário e estilo (1:6, 7; 2:1; 3:2, 7; 4:6, 8) não permite que se date o livro anteriormente ao século V. Como terminus ad quem há o fato de o livro ser pressuposto no século II (Cf. Eclesiástico 49:12; Tobias 14:4,8).

Não há dúvida, entretanto, de que o autor do livro de Jonas tivesse tido a intenção de fazer com que o Jonas por ele descrito fosse entendido como o Jonas do século VIII. Isto era comum na antiguidade, quando a questão de direitos autorais e de direitos de nome não era problema jurídico. Qualquer pessoa podia escrever um livro em nome de outrem, ou poderia por seu nome em obra de outrem, ou poderia ainda, como no caso, usar a pessoa de outrem como personagem de seus escritos. O autor, contudo, não pretendeu estar escrevendo naquela época. Além do mais há muito no livro que indica que ele vem de um período bem posterior ao século VIII, além do que apresentamos acima. A cidade de Nínive não era tão grande no século VIII. Além do mais é difícil de se crer que uma cidade tão grande quanto a descrita tenha se convertido “desde o menor até o maior” (3:5), o rei inclusive 3:6 sqq. Note-se que em nenhum lugar mais, nem na Bíblia, nem fora dela, se menciona “Rei de Nínive”, pois o rei não era de Nínive, e sim da Assíria, país cuja capital era Nínive, e que isto não tenha sido registrado em nenhum lugar, nem nas crônicas assírias nem nas israelitas. Por cima é difícil de harmonizar como a Nínive convertida a YHWH, inclusive com seu rei, no século VIII, tivesse, com o restante da Assíria, ainda naquele mesmo século (721), conquistado Israel e destruído Samaria, levando cativos os líderes.

Por todos estes motivos é difícil crer na historicidade do livro como tal. Não negamos que tenha existido um Jonas, filho de Amitai, profeta. O que afirmamos é que ele não é o protagonista deste episódio, e que o que é narrado no livro de Jonas é uma parábola escrita com a finalidade acima apresentada, a saber, de mostrar aos Judeus que Deus se compadece e quer a redenção mesmo dos ímpios e gentios. Porque esta mensagem é apresentada com igual clareza por Deutero-Isaías é que se coloca o livro de Jonas mais ou menos na mesma época.

Agora perguntamos: Reconhecer isto é “procurar chifres na cabeça de cavalos”? Cremos que não reconhecê-lo é ignorar chifres na cabeça de um boi! Continuamos: reduz isto o livro de Jonas a “farrapos”? Absolutamente! Devemos deixar de pregar sobre o Bom Samaritano somente porque ele não é histórico? Evidentemente não! Se isto é verdade podemos pregar sobre o livro de Jonas mesmo que o episódio e o personagem ali descritos não sejam históricos. O que importa é a mensagem que o autor quis transmitir, ao criar esta parábola: quebrar as tradições nacionalistas dos Judeus, mostrando que Deus ama até os inimigos de Israel!

Embora o livro por seu tipo literário não seja profético, seu espírito o é, particularmente na tendência geral de pensamento a ele imprimida, quando foi escrito, em tempos pós-exílicos. Para por em cheque o particularismo exclusivista do Judaísmo pós-exílico, e a distorção da doutrina da eleição imposta pelo egoísmo religioso, este livro testifica a grandeza da profética concepção de Deus, e a ampla tolerância que esta concepção implica! O livro ainda hoje é uma voz profética e uma permanente advertência contra tudo o que estreita e particulariza a religião, e contra todo exclusivismo religioso. Porque pretendeu mostrar que a compaixão de Deus é maior que o coração humano, que sua vontade de salvar alcança mesmo além dos limites de seu próprio povo, e portanto o leva à tarefa missionária, este livro pertence aqueles no Velho Testamento que prepararam o caminho para o Evangelho.

Os colegas julguem se a crítica que aplicamos ao livro, privando-o de sua historicidade, tornou-o “impregável”, esfarrapou-o. Julguem se, em uma Faculdade de Teologia do gabarito que a nossa pretende ter, pode alguém pregar sobre Jonas nos termos em que se pregou, sem que qualquer dos professores presentes à crítica tivesse sequer levantado o problema da historicidade do livro.

Aos Colegas, a palavra! “

A crise estava iniciada.

Eis a versão do caso dada pelo Rev. Waldyr Carvalho Luz, em sua autobiografia:

” Eu encontrava séria resistência e era indisfarçada a má vontade para comigo da parte da maioria dos alunos e de certos professores. Assim é que ao criticar um sermão pregado pelo seminarista Floramante [sic] Dias Gonçalves, elemento sério, firme, um dos poucos que se me revelavam amigos, eu o louvei pelo teor edificante da mensagem e pelo fato de não ceder aos pressupostos críticos que negariam a historicidade do profeta e do livro, dizendo eu que tais críticos achariam até “chifres em cabeça de cavalo”. Essa afirmação minha irritou profundamente os “doutos” adeptos da mentalidade liberal-modernista e, na manhã seguinte, circulava um jornaleco ou folhetim do famigerado CAOS (Centro Acadêmico Oito de Setembro), o grêmio dos estudantes, em que um seminarista que viera para o Seminário muito crente e piedoso, filho de consagrado pastor meu contemporâneo de Seminário, agora um dos mais virulentos corifeus da nova linha de pensamento, derramava todo o seu amargo fel em insultuoso artigo contra mim e minha posição teológica. O folhetim não publicaria defesa minha, já que era privativo dos estudantes. A Congregação, fugindo a suas responsabilidades, não tomou medida alguma contra o deselegante rabiscador de inuendos e agravos. Eu, porém, em nada me abalei com esse proceder, seja do estudante, seja da Congregação. ” (Negrito acrescentado na referência a mim como “o deselegante rabiscador de inuendos e agravos”…).

A Congregação, na realidade, determinou ao Reitor (o pacato Rev. Júlio Andrade Ferreira, por quem sempre tive enorme estima pessoal até que faleceu, recentemente), que apreendesse a edição do jornal – o que ele constrangidamente fez (porque, entre outras coisas, também era amigo de meu pai e de minha mãe), mas não antes de havermos distribuído mais de 200 cópias e escondido outras tantas.

O Rev Waldyr, oficiosamente e por iniciativa própria, e certamente com a melhor das intenções (concedo-lhe isto), chamou meu pai a Campinas, mostrou-lhe o artigo, e disse-lhe que, não fora a consideração a ele, meu pai e tutor, eu poderia ter sido suspenso ou mesmo expulso do Seminário incontinenti – no que certamente exagerava. Lembro-me bem de que assistia a uma aula de Alemão, à noite, no Instituto Goethe, no centro da cidade, quando vi meu pai parado perto da porta, do lado de fora. Pensei que minha mãe houvesse morrido, ou que algo igualmente grave houvesse acontecido. Peguei minhas coisas e saí da aula. O assunto era o artigo. Fui severamente repreendido pelo pai e ameaçado de perder a bolsa de estudos pelo tutor. De nada adiantou argumentar. As linhas da batalha estavam definidas.

Voltei para o Seminário naquela noite e quase não dormi. Na noite em claro refleti sobre tudo o que estava acontecendo e tomei a decisão de seguir a minha consciência, que de nada me acusava, e que me lembrava de que mais vale lutar para preservar e ampliar as liberdades que temos do que depois lastimar o seu cerceamento ou mesmo a sua extinção.

Nesse estado de espírito fiquei sabendo, através de um dos colegas (não me lembro quem), que teria sido o meu pai (e tutor), na conversa que teve com o Rev. Waldyr, quem teria recomendado a minha expulsão do Seminário. Liguei para o meu pai para interpelá-lo e verificar a veracidade da informação. Foi uma conversa tensa, que o deixou extremamente preocupado, a tal ponto que ele me enviou, bastante tempo depois, em 30 de abril, um relato escrito do que teria sido a conversa dele com o Rev. Waldyr. Passo por cima do relato por ser muito longo.

Nos dias seguintes à conversa com meu pai, sentei-me à maquina de escrever e escrevi o Editorial do segundo número do jornal, relatando o que acontecera com o primeiro e protestando contra o empastelamento determinado pela Congregação e executado, creio que a contragosto, pelo Reitor. Inspirei-me em Da Liberdade, de John Stuart Mill. Afinal, não estava desobedecendo a nenhuma ordem superior, porque a resolução da Congregação, determinando a apreensão do primeiro número, não havia proibido a publicação de um segundo, nem a discussão do que havia acontecido.

Publicado o segundo número do jornal, em 18 de Abril de 1966, a pancada veio mais forte. O segundo número do jornal também foi apreendido e a Congregação agora determinou que os estudantes nada publicassem sem a prévia censura da Congregação. Eis o editorial-artigo, chamado “Ainda Jonas”, que foi o carro chefe do número:

” No número anterior, primeiro de nosso jornal, procuramos, em um artigo que teve um Sitz im Leben de todos conhecido, dizer algumas palavras sobre o livro de Jonas. Naquele ocasião dissemos que o livro tinha uma mensagem ainda hoje relevante, pois era “uma voz profética e uma permanente advertência contra tudo o que estreita e particulariza a religião, e contra todo exclusivismo religioso”. Nosso interesse hoje é assinalar a relevância e o oportunismo desta mensagem no contexto imediato em que nos encontramos, a saber, na vida da IPB.

Vimos, no artiguete passado, que a mensagem de Jonas foi um brado de protesto contra o nacionalismo particularista dos judeus que se consideravam detentores únicos e exclusivos da divina graça, e que, assim fazendo, limitavam à ação de Deus à nação política Israel. Deus estava cercado dentro dos limites políticos da nação. Qual a relação que isto pode ter com a IPB? A relação é que, ainda hoje há o grupo que se considera detentor exclusivo e único da graça divina, grupo este que, assim fazendo, procura limitar a ação de Deus, não a uma nação política, mas a um círculo ideológico, que procura cercar Deus, não dentro de limites políticos, mas de limites ideológicos.

Concretizamos: aqueles que, no seio da IPB, estão preocupados em tirar do seu caminho todos os que não concordarem em gênero, número e caso com os padrões rígidos de sua “ortodoxia” superada estão praticando o mesmo tipo de exclusivismo religioso (senão pior) praticado pelos judeus aos quais foi dirigida a mensagem do livro de Jonas. Estas normas “ortodoxas” têm se tornado os limites cerceadores da ação de Deus. Quem delas se afastar — dizem, ou se não dizem assim o entendem, pois suas atitudes o comprovam — afasta-se do próprio Deus, e então não é digno de permanecer na IPB. Precisa ser expurgado (palavra, por eles, estimadíssima!).

Vimos, contudo, no artigo passado, que quando o homem estabelece limites que particularizam e estreitam a órbita da ação de Deus o próprio Deus encontra um meio de arrasar com essas pretensões do coração humano. As obras do autor de Jonas e de Dêutero-Isaías são em Israel  evidências típicas disto. Foi porque os israelitas não atentaram ao fato de que Deus queria quebrar (como de fato quebrou) estas barreiras particularizantes que foram por Ele rejeitados.

É conscientes desta verdade que levantamos a nossa voz em protesto contra a estreiteza de mente de alguns dentro da IPB para os quais até opinião é delito, para os quais a livre expressão do pensamento é causa suficiente para expurgo! Como é mais fácil lutar para manter as liberdades que já temos do que lutar para reconquistar as liberdades perdidas, “O CAOS em Revista” se dispõe, em suas páginas, a dar livre expressão ao pensamento dos alunos. O número presente é exemplo disto. Não podemos permitir que nos tolham a liberdade de termos os nossos próprios pensamentos e o livre direito de expressá-los. É esta a base da democracia. É esta a base do regime presbiteriano. Em sua obra Utilitarianism, Liberty and Representative Government (New York: Dutton, 1910) John Stuart Mill faz notar, com toda razão, que silenciar a expressão de uma opinião é roubar a raça humana, tanto a geração presente como a posterior, sendo ainda mais prejudicados os que discordam do que os que mantêm a opinião, pois, se a opinião é correta, aqueles que dela discordam estão perdendo a oportunidade de trocar o erro pela verdade, e, se é errada, os dela discordantes perdem o grande benefício de adquirir uma percepção mais clara e mais viva da verdade, proveniente de sua colisão com o erro. Se as idéias que temos expresso e, esperarmos, continuaremos a expressar através deste jornal não são verdadeiras e são perniciosas, não vingarão, pois a melhor maneira de destruir uma idéia falsa é expô-la! Quem tiver com a verdade não precisa temer idéias, por mais estapafúrdias que sejam, pois terão com que refutá-las, através de um franco diálogo. Aqueles que se crêem portadores de idéias verdadeiras, se querem mantê-las, devem torná-las continuamente relevantes, e não impedir que novas idéias apareçam e sejam disseminadas.

Aquilo que tem sido considerado como delito, isto é, a apresentação de idéias que não se harmonizam inteiramente com os padrões oficiais, o delito de opinião, é um crime que devemos praticar diariamente, sob quaisquer riscos. Se deixarmos de ser “criminosos” neste campo, estaremos roubando as gerações passadas que lutaram, até o sangue, para obter as liberdades de que somos herdeiros, a geração presente que estará tendo sua voz sufocada e reprimida, e a geração futura que sentirá que uma geração deixou de realizar o seu papel na história!

Neste espírito e com este alvo é que “O CAOS em Revista” sai, exatamente um mês depois do primeiro, em seu segundo número. “

O Rev. Waldyr novamente contatou meu pai para informá-lo do ocorrido. Com meu pai, nova conversa difícil. Meu pai relutava em acreditar que eu estivesse agindo de moto próprio. Em uma atitude que mais do que tudo ofendia os meus brios, ele achava que outros estavam me usando e que eu estava apenas servindo de “inocente útil”. É difícil discutir quando o outro lado acredita que você é apenas porta-voz.

A comunicação do Seminário com o meu pai deixou, no mês de Maio, de se fazer apenas de forma oficiosa, por intermédio do Rev. Waldyr. Em 11 de maio de 1966, o Rev. Júlio Andrade Ferreira, Reitor do Seminário, escreveu, a meu pai e tutor, uma carta, para comunicar a decisão tomada pela Congregação vinte e dois dias antes. Eis a carta:

” Campinas, 11 de maio de 1966

Rev. Oscar Chaves
Cx. 626
Santo André, SP

Prezado Colega:

Escrevo-lhe esta, na qualidade de Reitor do Seminário Teológico Presbiteriano de Campinas, para comunicar a decisão tomada pela Congregação desta Casa de Ensino, em sua reunião do dia 19 do mês p.p., nos seguintes termos:

Encaminhar ao PLIS, presbitério a que é filiado o estudante Eduardo Oscar de Campos Chaves, comunicação do caso criado pelo referido aluno, constante de duas publicações no folhetim CAOS EM REVISTA e demais informações atinentes ao caso. Registra-se que na discussão e votação desta matéria não tomaram parte os professores Waldyr Carvalho Luz e Américo Justiniano Ribeiro“.

Junto os dois números do referido jornal do CAOS, bem como a informação de que o 2º número saiu após ter o Reitor dado ordem para que o 1º fosse recolhido, bem como após o Deão ter tido conversa com o aluno, mostrando a inconveniência de atitudes como a assumida pelo aluno, no fazer a crítica constante do 1º artigo.

Pessoalmente, desejo esclarecer que a Congregação resolveu mandar o caso ao Presbitério do aluno, sem tomar, ela mesma, alguma atitude direta quanto ao caso, em virtude de situação interna, que dificilmente poderia expor. O julgamento do aluno, contudo, dificilmente poderia ser justo se todos esses elementos não fossem considerados.

Era o que me cumpria dizer.

Abraça-o, colega e companheiro na seara do Mestre,

Rev. Júlio Andrade FerreiraReitor “

Não tenho certeza de qual seria a “situação interna, que dificilmente poderia expor” em virtude da qual a Congregação do Seminário, segundo o Rev. Júlio, resolveu não tomar “alguma atitude direta quanto ao caso”, e que tornaria o meu julgamento, naquela esfera, “dificilmente justo”. Imagino que os problemas diziam respeito aos dois professores que se omitiram de votar no caso, os Revs. Waldyr Carvalho Luz e Américo Justiniano Ribeiro, que persistiam em abster-se nas votações, mas, por trás, tentavam tramar as ações.

As coisas estavam nesse pé quando explodiu outra bomba — agora do outro lado. Sob a coordenação do Rev Waldyr Carvalho Luz, um grupo de alunos, dos mais conservadores (e, acrescente-se, academicamente mais fracos), escreveu um texto-denúncia, intitulado Manifesto dos Quinze, em que relatavam, para a Igreja, todos os desmandos que estariam ocorrendo no Seminário — que iam desde modernismo teológico, com rejeição das idéias calvinistas, desvios éticos, com aceitação, prática e defesa do fumo, da bebida, do amor livre, etc. O manifesto foi enviado para virtualmente todas as igrejas do país — sem haver sido submetido a apreciação da Congregação!

O texto completo desse Manifesto é o seguinte:

” Aos Membros, Oficiais e Ministros da Igreja Presbiteriana do Brasil

Saudações no Senhor,

Sentimos um dia que Deus nos chamava para o sagrado ministério da Palavra. Obedecendo a esse chamamento, decidimos entregar a vida ao serviço do Senhor, não medindo as dificuldades, os problemas, os sacrifícios que teríamos de enfrentar. Foi nesse propósito que viemos para o Seminário. Não tínhamos ilusões de que não iríamos encontrar um céu aberto. Esperávamos, entretanto, encontrar um ambiente favorável para os estudos, um meio apropriado para cultivar espiritualidade, uma atmosfera de seriedade moral e de respeito, particularmente para com as pessoas e as instituições da Igreja. Preferiríamos não dizer da desilusão que tivemos.

Não queremos prejudicar o Seminário ou a Igreja. Nem desejamos atingir pessoas. Somos os primeiros a reconhecer nossa imperfeição, nosso pecado, nossas falhas, nossa pobreza espiritual, nossas deficiências em todo sentido, contudo, aspiramos um Seminário melhor, mais vida espiritual, mais firmeza de caráter, mais consagração, fé mais vigorosa, convicção mais sólida, testemunho mais cristão e espírito mais dedicado na evangelização e na obra da Igreja. Temos silenciado até agora por que não queríamos nem de longe concorrer para o agravamento da situação. Só Deus sabe das angústias de nossa alma e das preocupações de nosso espírito, das lágrimas que temos vertido, das noites mal dormidas, das lutas em oração que temos sustentado. Chegamos, porém, a um ponto em que não mais podemos manter-nos calados. Por amor ao Seminário e à Igreja temos de sair a público para clamar contra os abusos que presenciamos e a situação em que vivemos. Com tristeza infinita, temos de apelar a todos os corações crentes a que se levantem para defender esta Casa, que tanto amamos, e a IPB nesta hora crítica.

Com o maior dos pesares temos de dizer que o Seminário não é hoje a Casa de Profetas, de onde saíam homens de Deus, fiéis à Bíblia e ardendo de entusiasmo pela salvação dos pecadores, ministros piedosos que continuem a obra dos grandes homens do passado, grandes na fé, grandes na consagração, grandes no fervor, grandes na piedade, prontos a todo sacrifício, varões de Cristo sem reservas. O Seminário é hoje um lugar onde se zomba dos que levam a sério a Bíblia, a oração, a vida espiritual; onde se desmoraliza de todas as formas a liderança da Igreja, suas instituições e seus homens de confiança; onde se hostilizam professores que não se dobram aos interesses do grupo dominante; onde se defende a libertinagem e a imoralidade; onde existem clubes dos que se reúnem para fumar e beber; em cujo refeitório se praticam atos que ferem a mais elementar educação e onde a própria oração é motivo de ridículo e zombaria; onde se defende o amor livre e se condena como pietismo e moralismo todo esforço de viver cristãmente, segundo os padrões do Evangelho; onde se tacham de estreitos todos quantos mantêm firmes as doutrinas do Calvinismo clássico e aceitam a Bíblia como inspirada Palavra de Deus; onde se veiculam idéias modernistas como se fossem a verdade de Deus, somente porque os teólogos do dia e os estafetas dos evoluídos desta e de outras terras o proclamam; onde não existe interesse geral pela evangelização e pela conversão dos pecadores; onde uma cúpula ativista, politiqueira, de simpatias pronunciadamente esquerdista, exerce inexorável pressão sobre os colegas que não rezam pela sua cartilha e trama de maneira traiçoeira contra os líderes da Igreja que não obedecem à sua linha de pensamento; onde figuras estranhas ao Seminário e até à IPB, muitos até ministros, não sentem escrúpulos em manter encontros para desmoralizar a Igreja, autoridades eclesiásticas e professores da instituição de maneira desleal e revoltante; onde impera a irreverência e o cinismo; onde palavrões e piadas picantes são a norma de não poucos; onde a dignidade feminina e a pureza pessoal são objeto de alusões que não podemos aqui referir. Onde colegas são humilhados e tratados de maneira contrária ao amor de que tanto falam, especialmente aqueles que são novatos, vítima de trotes que refletem bem o espírito evoluído dos seus promotores; onde a vida espiritual e devocional é baixa, tanto quanto o pode ser; onde os cultos são mal assistidos e por alguns inteiramente desprezados; onde um círculo de oração iniciado por um grupo desejoso de mais vida devocional é hostilizado e combatido; onde a maioria indiferente e acomodada, querendo manter uma neutralidade impossível, acaba sempre fazendo a jogada da liderança negativista; onde as próprias autoridades não parecem em condições de agir com firmeza.

Irmãos no Senhor, não dissemos tudo que poderíamos dizer. O próprio deão do ano passado, Rev. Dr. Osmundo Afonso Miranda, traçou um retrato bem realista da situação em seu relatório à Diretoria do Seminário, que é um brado de alerta contra a referida situação. A situação é séria, o sentimos. Por amor a Cristo e Sua Palavra, por amor à IPB e seu ministério autêntico, por amor aos crentes sinceros de hoje e às gerações do futuro, é preciso por paradeiro a esses desmandos. Aqui, diante de nosso Deus, obedecendo à voz de nossa consciência, com o coração sangrando de tristeza, bradamos pedindo que alguma coisa seja feita. Não podemos ficar indiferentes nem calar-nos; seríamos cúmplices desse processo de desmoralização da Causa. Pensai no que estamos relatando, informai-vos de tudo, orai muito e agi com firmeza. E que Deus, o nosso Deus, nos dê forças para não fugirmos ao dever, para sermos fiéis à Sua vontade. Amém.

Hermes Mariano, Presbitério de São Paulo
Ariovaldo C. Bomfim, Presbitério de São Paulo
Elpídio Gonçalves, Presbitério do Rio Doce
Evandro Luiz da Silva, Presbitério de Cuiabá
Floramonte Dias Gonçalves, Presbitério Oeste de Goiás
Célio J. Duarte, Presbitério Florianópolis
Francisco Antônio Maia, Presbitério de Brasília
Silas Augusto Tscherne, Presbitério de Rio Claro
Dirceu Xavier de Mendonça, Presbitério de Rio Claro
Gilson Barbosa Gomes, Presbitério do Rio de Janeiro
Eldman Francklin Eler, Presbitério de Governador Valadares
Adolfo Potenciano, Presbitério de Goiânia
José Silvério Júnior, Presbitério de Brasília
José dos Anjos, Presbitério Norte de Minas
Jarbas Dantas, Presbitério de Campinas “

Aqui está um resumo das principais denúncias nele feitas, nas palavras do Rev. João Dias de Araújo:

As de ordem piedosa: Há quem zombe da Bíblia, da oração e da vida espiritual; a vida devocional é baixa; os cultos mal assistidos ou desprezados; o círculo de oração combatido.

As de ordem doutrinária: Desprezo ao calvinismo, apego ao modernismo, negação da inspiração [da Bíblia], etc.

As de ordem ética: Há libertinagem, imoralidade, fumo, bebida, amor livre, palavrões, piadas atentando à pureza feminina, etc.

As de ordem administrativa: Há os que desmoralizam a liderança da Igreja, hostilizam professores; “uma cúpula ativista, politiqueira, de simpatias pronunciadamente esquerdistas, exerce inexorável pressão sobre os colegas”; “tramam de maneira traiçoeira contra os líderes da Igreja que não obedecem à sua linha de pensamento”; “elementos de fora, até ministros, vêm aqui, tramam, etc. “.

Eis o que diz o Rev. Waldyr sobre o manifesto em sua autobiografia:

” Ante o estado de coisas vigente, autoridades sem pulso, alunos sem disciplina, ensino acomodatício, vago, difuso, incerto, incapaz de dirimir dúvidas e firmar vocações, a vida espiritual do Seminário em nível raso, alunos mais sérios e responsáveis, que se não podiam conformar com a situação, decidiram encontrar-se em reunião de oração às seis e meia da tarde nos dias de aula, convidando-me para com eles participar. Eram reuniões ferventes de súplica a Deus em favor do Seminário, rogando-se ao Senhor interviesse e mudasse as coisas para que o ambiente fosse o de real Casa de Profetas e não um reduto de fariseus, mercenários e agitadores, como estava sendo. Essa plêiade de seminaristas, menos de vinte, ridicularizada pelos colegas avançados e revolucionários, com lágrimas não raro, preservava a pureza da fé, o alvo do ministério, a espiritualidade real, a ética genuína, em orações tocantes e sentidas, brotadas de corações sinceros e almas piedosas.

Vinha essa prática sendo mantida já por meses, quando se realizou no Seminário um encontro de qualquer comissão ou grupo de estudos, de que fazia parte o Rev. Domício Pereira de Mattos, um dos expoentes da corrente liberal. Como costumava acontecer sempre que vultos dessa mentalidade apareciam no Seminário, foi ele convidado a falar aos estudantes, promoção do famigerado CAOS. Havíamos encerrado a reunião de oração, quando chegaram dois do grupo, Gilson Barbosa Gomes e Adolfo Potenciano, visivelmente indignados, dizendo não agüentarem mais a situação, revoltados com o que haviam ouvido nesse encontro, em que o canhestro convidado buscara desestimular os que visavam ao ministério, a seu ver, carreira falida e parasitária, a serviço de uma Igreja retrógrada, dizendo que ele continuava no ministério somente porque, já cinqüentenário, não acharia outro emprego, além de que, perguntado por um dos futuros alunos de Exegese aos Romanos, como impedir que eu fosse o professor, ferindo os ditames de até comezinha ética, a despeito de colegas de Seminário que fomos, aconselhava-os a promoverem desordem em classe, buscando irritar-me com provocações e acintes, que eu perderia a serenidade e eles acabariam levando a melhor. Com os dois solidarizaram-se os demais membros do grupo e decidiram redigir um manifesto à Igreja, expondo tudo o que se passava de irregular no Seminário, embora na época fosse proibido pela Congregação qualquer pronunciamento de alunos a entidades externas [Ênfase acrescentada]. Não se dirigiram à Congregação porque sabiam de sobejo que a questão seria abafada em seu clássico imobilismo. Elaboraram o documento, que veio a ser conhecido por MANIFESTO DOS QUINZE, tantos os seus signatários, e o despacharam aos quatro cantos do país para conhecimento de pastores e igrejas. Foi uma bomba! A repercussão foi enorme e traria resultados inimagináveis.

A Congregação ficou entalada em agudo dilema. Os fatos referidos eram de extrema gravidade. Eu que tomara conhecimento do teor do documento desde o início, por muitos havido como de minha lavra, o que não era bem verdade, pois que não o redigi, apenas revi a fraseologia e linguagem, indaguei dos rapazes se eles tinham provas objetivas de tudo quando denunciaram, e afirmavam que sim, porquanto, do contrário, corriam sério risco de exemplar punição. Não tomar medida nenhuma comprometeria a Congregação, inda mais que estava próxima a reunião do Supremo Concílio. Punir os signatários do documento comprovaria evidente parcialidade. Apurar os fatos poderia acarretar pesadas críticas e desprestigiar a Direção do Seminário. Como algo teria de ser feito, decidiu a Congregação encarregar uma comissão de professores, de que eu não fazia parte, de, à base do Manifesto, elaborar um questionário a ser respondido, de surpresa, pelos alunos. Constou de vinte e oito quesitos que abordavam todos os aspectos envolvidos, menos questões políticas. Era esperança de muitos que os acusados negassem o que deles se dizia e os não-acusados pouco ou nada confirmassem que pudesse convalidar as denúncias contidas no Manifesto. Dos acusados apenas um se furtou a responder objetivamente, os demais todos confessaram as faltas denunciadas; dos signatários, um recuou do que havia subscrito, justamente Gilson Barbosa Gomes, que de início se mostrara tão inconformado, os não-denunciados, por sua vez, confirmaram os fatos incriminados. A Congregação não teve outra solução senão encaminhar todo o material ao supremo Concílio para apreciação. Os quinze estavam vindicados! “

A Congregação não puniu os alunos que haviam desrespeitado a sua Resolução nem repreendeu o mestre que os incitou a fazê-lo, tendo até mesmo, segundo admite, ajudado na redação da peça. Não vindo a punição, considerei-me moralmente justificado, nessas circunstâncias, a também ignorar a Resolução da Congregação e publicar o terceiro número do jornal — e foi isso que fiz. 

Foi este o meu Editorial no terceiro número de “O CAOS em Revista”, publicado em 18 de Maio de 1966:

” Novo dia 18. Novo “O CAOS em Revista”. Até aqui temos podido ser pontuais. Esperamos poder continuar a sê-lo.

Muitas coisas aconteceram em nossa casa desde que o segundo número saiu. Dentre elas merece destaque, não pelo conteúdo, mas pela repercussão, o Manifesto (na falta de melhor palavra) que um grupo de quinze alunos endereçou aos membros da Igreja Presbiteriana do Brasil, delatando coisas que se passam aqui dentro (e até as que não se passam), separando estas coisas de seu contexto, julgando-as erradas e pedindo punição para quem as comete. Deve ser dito ainda que o referido manifesto está sendo espalhado ilegalmente, pois não passou pela Congregação, canal competente para o envio de qualquer documento dos alunos para fora dos limites do Seminário.

“O CAOS em Revista” lamenta o sucedido. Lamenta por várias razões.

Em primeiro lugar, o referido manifesto veio dividir definitivamente nossa comunidade. Antes dele havia correntes, tendências divergentes, que não chegavam, contudo, a ser grupos. Havia mesmo aqueles que eram neutros a qualquer corrente: os que se chamavam de “a terceira força”. O manifesto, no entanto, acabou com tudo isto, criando dois grupos apenas: o dos que assinaram o manifesto (quinze) e o grupo dos restantes. Este fato decepou qualquer esperança de se poder viver em real comunidade aqui.

Em segundo lugar, lamenta pelo simples fato de que “roupa suja se lava em casa”.

Lamenta, ainda, pelo mal que os colegas signatários do referido manifesto vão causar ao membros da IPB, escandalizando-os desnecessariamente. Porque o instrumento de escândalo não são tanto os que cometeram determinadas coisas tidas por erradas quanto os que as espalharam a um contexto inteiramente diferente e não preparado para ouvi-las. Se observarmos o que Paulo tem a dizer a respeito do comer carne de porco, vamos notar que o erro não estava no comer em si, mas no escândalo que isto podia causar. Correto. São feitas e ditas coisas aqui dentro de nosso dormitório e de nossos quartos (não tantas e tão terríveis quanto o referido manifesto pretende que sejam) que não escandalizam ninguém no ambiente em que estão sendo feitas e ditas. Levadas, contudo, para um ambiente não preparado para ouvi-las, estas coisas servem de escândalo. O culpado deste escândalo, contudo, não é quem faz o ato, mas quem o espalha para um ambiente não preparado para ouvi-lo.

Isto é o que mais lamentamos no manifesto. Não lamentamos o mal que seus signatários pretenderam causar aos outros, “neutros e liberais”. Lamentamos, sim, pelo mal que causarão e já estão causando, inconscientemente, a uma enormidade de crentes inocentes, que não precisavam saber das dificuldades internas de nossa casa, que, porque internas, deveriam ser resolvidas aqui dentro. A atitude dos que assinaram o manifesto, dos que orientaram ou estimularam a sua confecção, dos que o estão enviando e distribuindo não é nada pastoral em relação aos membros da Igreja que eles querem salvar! Eles, os responsáveis pelo manifesto, não tinham o direito de escandalizar os membros humildes e inocentes das nossas Igrejas. Por isso é que reputo correta a opinião de um pastor que ao receber o manifesto disse: “Isto é antes de um ato de covardia para com os membros da Igreja!” É construindo e não destruindo que se deve alcançar um objetivo.

“O CAOS em Revista” registra, pois, com pesar, esta mancha negra nos anais do corpo discente desta casa. Continuaremos, porém, a lutar, de modo franco e legal, à luz do dia, através do diálogo leal, para que cada um tenha a liberdade de pensamento e ação indispensáveis à vida de cada verdadeiro homem, de cada verdadeiro cristão. É com o intuito de restabelecer diálogo que o redator escreveu o artigo “Parafraseando”. Ele tem esperado em vão a contribuição dos colegas. E ainda espera. Por que algum dos colegas signatários  do manifesto não se decide a um diálogo franco em lugar de fazer ataques subversivos e inesperados? É uma tática mais madura e mais máscula. As páginas de “O CAOS em Revista” estão à espera.

Enquanto isto, colegas, lutemos para que, em nosso meio, cada um possa ter a autonomia de pensamento que o cristão precisa ter. “Lembrai-vos sempre de que não existe felicidade sem liberdade, e de que o fundamento da liberdade é a coragem” (Péricles, Discurso aos Atenienses, citado por Tucídides, em A Guerra do Peloponeso, Livro 2, citado por Celso Furtado, em Dialética do Desenvolvimento). “

O artigo “Parafraseando”, citado no Editorial, foi este, que segue, também escrito por mim:

“ Propôs Jesus também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos, e desprezavam os outros” (Lucas 18:9).

Certa vez, em uma Faculdade Teológica, passaram a existir dois grupos: um que se dizia “conservador” e outro que era taxado de “modernista”. Certo dia os conservadores oraram assim: “Ó Deus, graças te damos porque não somos como os demais colegas: defensores da libertinagem e da imoralidade, fumantes e beberrões, defensores do amor livre, mantenedores de simpatias pronunciadamente esquerdistas, irreverentes, cínicos, contadores de piadas e desrespeitadores da dignidade feminina. Louvamos-te, ó Deus, porque assim não o somos. Nós fazemos reunião de oração diariamente, ocasião em que um rabino nos instrui a respeito das idéias ortodoxas da tua palavra e a respeito do calvinismo clássico que tu nos legaste; nós, por ocasião das refeições, ficamos quietos: chegamos a bater palmas e a sorrir para mostrar nosso amor cristão, mesmo quando são proferidos discursos que nos criticam; aceitamos a Bíblia toda como palavra inspirada de Deus; estamos sempre aos pés dos líderes da Igreja para aprender deles como agir honesta, franca e desinteressadamente; saímos três ou mais vezes por semana para pregar a tua palavra, embora nosso estudo seja com isso prejudicado: contudo, teu sábio servo do passado já dizia que “o muito estudar é enfado da carne” — aliás o teu Espírito colocará nos nossos lábios a mensagem, mesmo que nada tenhamos estudado! Ó Deus, atenta para isto: somos fiéis servos e testemunhas da tua palavra aqui neste Seminário; para conseguirmos sê-lo chegamos até a desrespeitar as leis da Congregação, ó Deus, pois mandamos, por trâmites ilegais, um formidável manifesto aos crentes da tua igreja, condenando tudo o que de errado se passa aqui dentro, fora do nosso grupo, evidentemente; por amor à tua causa, ó Deus, chegamos ao ápice da ousadia e da coragem ao afirmar que as próprias autoridades que dirigem este Seminário não parecem estar em condições de agir com firmeza. Mas nós o estamos, ó Deus, e te agradecemos por isto.”

O resto todo o mundo sabe. Aquela criatura de tão excelentes qualidades, o fariseu da parábola de Jesus, não foi o que desceu para casa justificado, mas sim aqueles que era roubador, injusto e adúltero, aquele que era um pária moral na sociedade de sua época. Estranho, não? Mas real. No entanto seria bom perguntar por que o fariseu, que era o pietista, o legalista, o moralista, o ortodoxo da época de Jesus, não foi justificado. A razão parece óbvia, embora muitos não a queiram ver: o fariseu não foi justificado porque colocou como critério de sua auto-avaliação diante de Deus o seu próximo, o publicano. E, nestas circunstâncias, aferindo-se por um critério imperfeito, o fariseu jactou-se diante de Deus, orgulhou-se, e creu que poderia trazer nas mãos e apresentar diante de Deus algo de bom: o seu comportamento, o seu modo de agir, o seu zelo pelo cumprimento da lei divina. E não foi justificado embora praticasse atos muito bons em sua vida, se os considerarmos isolados de sua motivação e de seu contexto. Porque todas as vezes que nos avaliamos por critérios e padrões imperfeitos nos tornamos orgulhosos.

Às vezes este orgulho é disfarçado sob a capa de uma pseudo-humildade, sob palavras tais como estas: “Somos os primeiros a reconhecer nossa imperfeição, nosso pecado, nossas falhas, nossa pobreza espiritual, nossas deficiências em todos os sentidos, contudo…” (grifo meu). Não são, no entanto, nossas palavras a coisa que tem importância primária. É nossa atitude que, lhes subjaz, que é o primariamente importante. Mesmo que pronunciemos, em lágrimas e com o coração sangrando, palavras que falem a respeito de nossa humildade, se nossa atitude for a de um juiz apontando erros nos outros, não estaremos sendo humildes, mas orgulhosos.

Será bom perguntar porque sentimos um prazer imenso em apontar as falhas, erros e os defeitos dos outros, principalmente quando estes são pessoas mais preeminentes que nós, em outros setores, ou talvez no mesmo a que nos dedicamos. Porque no instante que fazemos isto podemos nos jactar e nos consolar intimamente, dizendo: “embora fulano seja melhor estudante que eu, embora se destaque mais em certos círculos, na hora em que souberam que ele faz isto e aquilo eu subirei na cotação do povo, mediante o rebaixamento do outro!” A raiz de todo mexerico, fuxico e de toda delação está nesse nosso desejo de nos compararmos com os outros e de ver neles falhas, e de torná-las ainda mais negras, através de generalizações precipitadas e de mentiras mesmo, porque assim teremos maior realce. Isto até me faz lembrar da história daquela ordem de monges, que nada mais tendo de que se orgulhar orgulhavam-se de sua humildade!

O erro do fariseu não foi fazer todas aquelas coisas. Foi comparar-se com o que não fazia, e julgar-se superior, julgar-se na condição de juiz do seu próximo. Todas as vezes que nos aproximamos de Deus auto-avaliando-nos por critérios imperfeitos nos tornamos orgulhosos, e nos sentimos no direito e em condições de apresentar a Deus alguma realização nossa, algo que nos conceda mérito diante dele. E todas as vezes que assim fazemos estamos sendo fariseus: mesmo que aquilo que estejamos apresentando a Deus seja a nossa fé, seja a nossa “ortodoxia”, seja a nossa conduta impecável!

O mérito do publicano estava em que, quando quis avaliar-se, não tomou para si critérios humanos, e, portanto, imperfeitos, mas colocou o próprio Deus como padrão de sua auto-avaliação. E porque assim agiu sentiu-se imediatamente arrasado. Não viu mérito algum em sua pessoa. Diante de Deus ele não era nada. Então, não podia orgulhar-se. Simplesmente não tinha de quê. Só pode dizer: “Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador”. E foi justificado.

Como esta parábola deve ter chocado os ouvintes de Jesus! Como aquela crítica tremenda aos “santos” e “justos” fariseus, aos “ortodoxos”, e a sentença de que o publicano havia sido justificado deve ter arrasado os ouvintes de Jesus! Justamente o publicano, que não era apenas “modernista e liberal”, mas HEREGE! No entanto, o impacto que a parábola causou nos ouvintes de Jesus foi esquecido e hoje a parábola não faz parte da Bíblia de muita gente tida por aí como exemplo de santidade.

Finalmente uma palavra aos “quinze”: o que fazeis, vós os que assinastes o manifesto, com textos tais como este (Lucas 18:9:14)? Simplesmente o ignorais? Por diversas vezes já tenho ouvido a acusação de que nós, os “modernistas”, recortamos a Bíblia, para fazer nossa exegese ou formular nossas doutrinas. Será que é verdade? Ou, em última instância, será que é toda a verdade? Porque o que posso perceber é que vós, os conservadores e “ortodoxos”, também a recortais, não através da exegese, mas através do vosso comportamento, através de vossas vidas! E, em assim fazendo, vos tornais mais liberais do que os próprios. Quero crer, no entanto, que assim o fazeis ignorantemente e não de espírito premeditado. Quero, com sinceridade, crer que é inconscientemente que extraís de vossas Bíblias, em vossa vida e através de vossa conduta, textos tais como o acima mencionado, que não é o único. Ou será que não percebestes que a vossa atitude em fazendo o manifesto que fizestes, não permite que a Parábola do Fariseu e do Publicano continue mais em vossas Bíblias? O mesmo se dá com textos tais como Mat. 7:1 sqq; Tiago 4:11-12 e outros.

Minha opinião particular é que fostes, a maioria de vós os “quinze”, ingênuos simplesmente. Não pudestes perceber as dimensões do que fizestes. Os outros, os  “não-ingênuos” que vos manipularam, não passam também de ingênuos nas mãos de outros menos ingênuos do que eles. Quando tiverdes adquirido um pensamento crítico e uma capacidade independente de avaliar as coisas, o que se dará do segundo ano em diante, embora haja alunos que já cheguem aqui com estas qualidades, então podereis observar o quanto fostes insensatos. E vos arrependereis muitíssimo. Pois então vereis porque as vossas expectativas de ter 2/3 dos alunos ao vosso lado (correspondentes ao I e II ano somados), expectativas estas bastante vivas no início deste ano, vieram a falhar, e sois apenas quinze em uma comunidade de quase oitenta. Tendes apenas dois do segundo ano em vosso meio. Os outros “abriram os olhos” (o que não significa que tenham se tornado “modernistas” – apenas perceberam quão estreitos sois). Então (quando adquirirdes um espírito crítico mais aguçado, na pressuposição de que este Seminário vai ajudar-vos a aguçá-lo), vereis porque é que um professor que luta ano a ano para ver seu circulo de influência crescer não consegue, cada ano, fazer com que sua influência abranja senão um pequeno número de calouros. Seu contato influente com os alunos termina em três semestres. Vereis porque de professor de mais ou menos cinco matérias veio ele a lecionar apenas uma, presentemente. Mas é somente o tempo que vos poderá mostrar isto. É com paciência que espero que ele e o Espírito Santo (por que não?) realizem o seu trabalho. “

Para se aquilatar a distância que separava pai e filho, eis a carta que meu pai escreveu ao meu colega Evandro Luiz da Silva, signatário do Manifesto dos Quinze, e líder estudantil do movimento, e, por um tempo, muito admirado por meu pai (depois se desentenderam de forma lastimável e lamentável):

” Esta carta, dirigida a você e extensiva aos seus colegas que assinaram  aquele manifesto, é para dar-lhes o meu apoio  integral e o meu grande abraço pela coragem, pela firmeza, e pela sinceridade que vocês demonstraram naquele brado de alerta. Graças a Deus, nem tudo está perdido. Estava faltando justamente isso que vocês revelaram naquele papel, estava faltando uma denúncia corajosa contra o atual estado de coisas no Seminário, mas uma denúncia partida aí de dentro, mesmo, de alunos que vivem aí e sentem o drama em suas próprias carnes. Quando os de fora acusavam, eram taxados de exagerados, de ignorantes da vida do Seminário, de inimigos dos alunos. Mas agora vocês fizeram o que já deviam ter feito há muito tempo: Deram o alarme! E esse alarme irá despertar a Igreja Presbiteriana e estimular outros alunos que devem estar sentido o mesmo nos outros Seminários. Sei que vocês irão sofrer com a atitude que tomaram, irão ser mal compreendidos, até por alguns de seus próprios Presbitérios. A acusação é tão forte (e diz a verdade) que muitos não acreditam, porque uma grande parte do ministério não sabe o que se passa aí na ex-Casa de Profetas. Vocês sofrerão, mas tenham coragem: vocês não estão sozinhos. Continuem firmes, e Deus os abençoe. O abraço do amigo e companheiro de lutas, Oscar Chaves, pastor da Igreja Presbiteriana de Santo André.

PS. A única nota triste daquele manifesto, para mim, é não estar lá a assinatura do meu filho.”

Os “companheiros de lutas” acabaram lutando um com o outro e dividindo a Igreja Presbiteriana de Santo André em duas, uma para cada um…

O artigo “Parafraseando” lança várias farpas contra o mentor docente dos “Quinze”, o Rev. Waldyr Carvalho Luz. É ele o “rabino” mencionado na frase “Nós fazemos reunião de oração diariamente, ocasião em que um rabino nos instrui a respeito das ideias ortodoxas da tua palavra e a respeito do calvinismo clássico que tu nos legaste”.

Também é o Rev. Waldyr o presumido “não-ingênuo” (deliberadamente entre aspas) que manipulou os “Quinze”, mas que estava sendo manipulado pela direção da Igreja, a quem eu acuso, quando digo: “Minha opinião particular é que fostes, a maioria de vós os ‘quinze’, ingênuos simplesmente. Não pudestes perceber as dimensões do que fizestes. Os outros, os ‘não-ingênuos’ que vos manipularam, não passam também de ingênuos nas mãos de outros menos ingênuos do que eles.” (Alguns anos depois, o próprio Rev. Waldyr seria expulso do Seminário, junto com o Rev. Américo Justiniano Ribeiro, que era parente do Rev. Boanerges Ribeiro).

Também é ao Rev. Waldyr que faço menção quando digo: “Então (quando adquirirdes um espírito crítico mais aguçado, na pressuposição de que este Seminário vai ajudar-vos a aguçá-lo), vereis porque é que um professor que luta ano a ano para ver seu circulo de influência crescer não consegue, cada ano, fazer com que sua influência abranja senão um pequeno número de calouros. Seu contato influente com os alunos termina em três semestres. Vereis porque de professor de mais ou menos cinco matérias veio ele a lecionar apenas uma, presentemente.”

A única disciplina que o Rev. Waldyr acabou lecionando no Seminário era Grego — uma matéria na qual era excelente professor, mas que era desprovida de maior conteúdo teológico, e, portanto, não suscitava muita controvérsia (exceto pelo método do professor, que teve que ser revisado várias vezes, especialmente no tocante às suas famosas “topadas”, ou provas sem data marcada). Enquanto eu estudava no Seminário a Congregação tentou atribuir-lhe a disciplina “Exegese do Novo Testamento”, mas os alunos se recusaram a tê-lo como professor.

Em sua autobiografia o Rev. Waldyr dá sua própria versão desses fatos. Procura explicar-se e até certo ponto defender-se da acusação, nunca no texto explicitada, de que seu comportamento foi no mínimo incoerente. Foi inicialmente o paladino e o maior defensor das mudanças que a Igreja procurava realizar dentro do Seminário. Quando as mudanças finalmente o alcançaram, virou repentinamente crítico da administração, passou de telhado a estilingue, assumiu posturas de oposição.

No que me diz respeito, sempre usou sua famosa retórica para (do seu ponto de vista) atacar-me, sem jamais explicitar o meu nome. Eis, por exemplo, um outro incidente que ele relata a meu respeito:

” Boa amostra do espírito desse aluno [o editor do jornal] dá-o o seguinte fato. A Editora da tradução do NOVO DICIONÁRIO DA BÍBLIA para o português pediu-me fazer a concatenação dos itens compostos para impressão. Como eu não dispunha de tempo para esse trabalho, sugeri algum seminarista. Autorizado pela editora, consultei o referido escrivinhador, moço inteligente, de bom preparo, competente para esse mister. Quis saber primeiro quanto lhe pagariam. Quando lhe disse qual a remuneração prevista, ele que estava em férias, com muito tempo disponível, apesar de tratar-se de livro importante para o povo crente, respondeu que por esse preço não faria o trabalho. Procurei, então, outro seminarista, Célio João Duarte, modesto, firme de convicções, piedoso e consagrado, que, ao dizer-lhe da gratificação oferecida, se prontificou a fazê-lo de graça para ajudar a Igreja, aceitando a custo o minguado pagamento proposto. Não pude deixar de contrastar a atitude dos dois: aquele, avançado de idéias, defensor dos postulados sociais, argentário e ambicioso, a preocupar-se com o dinheiro, este, conservador de pensamento, fiel à doutrina da Igreja, dominado pelo espírito de servir à Causa, desprendido e indiferente a recursos materiais. Era incontestável evidência do espírito diferente gerado pelas duas posições teológicas antagônicas. E enquanto este entrou para o ministério, pastor fiel e dedicado que o tem sido, aquele ‘arripiou carreira’ e hoje parece nem religião ter! “

Devo deixar aqui registrado que, em todo esse processo, o Rev. Waldyr, não sei se em respeito ao meu pai, ou em consideração à “promessa intelectual” que, para ele, eu representava, sempre me tratou, no nível pessoal, de forma extremamente cortês, naquela época e depois. O mesmo não posso dizer de sua esposa, Da. Amélia Luz, que, um dia, na saída da Escola Dominical da Igreja do Jardim da Guanabara, que funcionava no prédio do Seminário, investiu contra mim, tirando satisfações pelas críticas que fazia ao seu marido, falando aos gritos e criando um verdadeiro escândalo no pórtico do Seminário. Que me lembre, não lhe disse nada, em resposta. Sempre tive receio de altercações verbais públicas, preferindo, consistentemente, a via escrita para me debater. (Recentemente, neste ano de 2006, por ocasião do enterro de minha tia, Alice de Campos Sanvido, encontrei Da. Amélia Luz, que me tratou de forma cortês).

Voltando para 1966, eu pretendia publicar um quarto número de “O CAOS em Revista” no mês de Junho – no dia 18, para manter a regularidade. Esse número não saiu. Explico porquê.

No fim de Maio e início de Junho percebi que a história ia acabar mal. A situação política do país prenunciava um endurecimento político, e, dentro da Igreja, parecia certa a vitória do candidato da reação, Rev. Boanerges Ribeiro, que fazia campanha de Norte a Sul do Brasil, prometendo, entre outras coisas, “limpar” e “desinfetar” (ou “salvar”) os Seminários.

O Manifesto dos Quinze começava a surtir efeito também. Algumas Igrejas, entre elas uma de Belo Horizonte e outra do Presbitério de Rio Claro, ajudaram a espalhar o Manifesto pelo Brasil, como prova de que precisava ser eleito um Presidente do Supremo Concílio que tivesse, como parte de seu programa, a “salvação” do Seminário. O circo estava armado.

A Congregação do Seminário apertava o cerco. Embora, em sua reunião de 19 de Abril, a Congregação houvesse decidido não se manifestar sobre o conteúdo dos dois primeiros números de “O CAOS em Revista”, apenas remetendo a questão ao meu Presbitério, depois do número de Maio ela se reuniu novamente e decidiu “reprovar energicamente” as matérias publicadas. Além disso, numa reunião da qual infelizmente não tenho a ata, mas cujo teor me foi oficialmente comunicado, a Congregação deu ordem explícita e inequívoca ao CAOS para não publicar mais nenhum “O CAOS em Revista”, ou equivalente, sem o visto escrito do Reitor ou do Deão. Por fim, o Redator recebeu, pessoalmente, uma repreensão enérgica pela matéria dos três primeiros números e foi advertido de que seria exemplarmente punido por indisciplina no caso de reincidência.

Eu, com meus jornais, acabara por tornar-me o estopim da crise do Seminário de Campinas. Certamente não seria poupado em hipótese alguma. Assim sendo, saí a procurar emprego. Fiz um teste na Bêndix e, no dia 13/6, na Bosch, que me chamou em seguida. Comecei a trabalhar dia 20/6 — por ora ainda mantendo meu quarto no dormitório do Seminário. Como comecei a trabalhar no final do último mês do primeiro semestre, não me vi forçado a tomar nenhuma decisão. Resolvi, até certo ponto, deixar os fatos se desenrolarem por si mesmos.

Preparei, entretanto, um Editorial para o quarto número de “O CAOS em Revista”, que deveria sair em 18 de Junho (para manter o cronograma previsto) e que teria apenas um Editorial, que explicasse o que vinha ocorrendo, e uma seção do livro A Formação da Mentalidade (Mind in the Making), de James Harvey Robinson, então bastante popular aqui no Brasil [traduzido para o Português pelo grande Monteiro Lobato – EC em 2015], que eu considerava relevante para o entendimento do que estava acontecendo. É este o Editorial que escrevi:

” Ainda um “O CAOS em Revista”. O último deste semestre. Os leitores já acostumados à sua leitura talvez notem que, neste número, “O CAOS em Revista” está um pouco diferente, em seu conteúdo, dos números anteriores: está menos vivo. Motivos vários contribuíram para que isso se desse, dentre os quais a falta de tempo do Redator e a falta de colaboração dos colegas no sentido de enviarem artigos, traduções, poesias, etc., para serem publicados.

Outro motivo ainda, a ser notado, é a ordem explícita e inequívoca da Congregação do Seminário Presbiteriano do Sul, que determinou que nenhum “O CAOS em Revista”, ou equivalente, fossem publicado sem o visto do Senhor Reitor ou do Senhor Deão. Esta ordem explícita, acrescentada da reprovação enérgica feita ao Redator, pela matéria contida nos três primeiros números do jornal, e da ameaça de punição por indisciplina em caso de reincidência, esclarecem, sem possibilidade de equívoco, a posição da Congregação e a posição que ela nos reserva. (Observe-se que os dois primeiros números do jornal foram julgados duas vezes pela Congregação. Na primeira vez, ela decidiu não opinar sobre eles, enviando-os ao Presbitério do Redator. Na segunda vez, por razões ignoradas, decidiu reprovar a matéria sobre a qual em vez anterior havia se omitido).

O campo que a Congregação nos permite abranger, contudo, torna-se demasiado restrito quando notamos que ela considera a matéria contida no terceiro jornal fora da competência e do direito de manifestação de um jornal do corpo discente. Torna-se difícil, pois, formular um jornal em que tratar de problemas que diretamente afetam a vida de todos os alunos é considerado “fora da competência” de um jornal de alunos.

Assim sendo, resolvemos, em protesto, transcrever uma seção (Seção 4, no Capítulo II) do livro A Formação da Mentalidade, de James Harvey Robinson. Se o trecho que será transcrito for lido em seqüência aos três primeiros números do jornal, poderá comunicar uma mensagem bastante relevante. É o que esperamos. “

A matéria que seria transcrita do livro de Robinson procurava mostrar que a maior parte das pessoas não aceita as idéias que tem em função de exame crítico, mas, sim, em função das circunstâncias que se encontra. Aqui estão algumas passagens importantes:

” Somos incrivelmente descuriosos da formação das nossas crenças, mas por elas nos enchemos de amor quando no-las querem roubar. Torna-se óbvio que não são propriamente as idéias que nos são caras, sim o nosso amor próprio. [ . . . ]

Gostamos de continuar a crer no que nos acostumamos a aceitar como verdade, e a revolta sentida quando duvidam das nossas verdades estimula-nos a ainda mais nos apegarmos a elas. O resultado é que a maior parte do chamado raciocínio humano consiste em descobrirmos argumentos para continuarmos a crer no que cremos.  [ . . . ]

Esta distinção entre “boas” e “reais” razões é das mais importantes nos domínios do pensamento. Podemos de pronto dar o que chamamos as nossas “boas” razões para sermos católicos ou maçons, republicanos ou democratas, amigos ou inimigos da Liga das Nações. Mas as razões “reais” ficam em outro plano. Não há dúvida que a importância desta distinção é notória, embora obscura. Um missionário batista concorda prontamente em que o budista não é budista por conseqüência do cuidadoso estudo que fez dessa crença, mas simplesmente porque nasceu numa família budista de Tóquio. Mas considerará ofensivo à sua fé reconhecer que a sua parcialidade para com certas doutrinas provém de ter tido ele uma progenitora afiliada à igreja batista de Puddlebury. [ . . . ] Mas nem um nem outro perceberá por que motivo está defendendo as suas opiniões pessoais.

As razões “reais” das nossas crenças vivem ocultas de nós mesmos, tanto quanto dos outros. À medida que crescemos, muito naturalmente vamos adotando as idéias ambientes relativas à religião, às relações de família, à propriedade, aos negócios, ao governo. Absorvêmo-las, de tanto ouvi-las zumbir em torno de nós, no seio do grupo em que vivemos. Ademais, como Trotter notou, essas idéias, como produto da sugestão e nunca do raciocínio, possuem o característico de parecerem perfeitamente óbvias. [ . . . ]

Este espontâneo e leal apoio aos nossos preconceitos — este processo de descobrir “boas” razões para justificá-los — recebe dos cientistas modernos o nome de “racionalização” — palavra nova para coisa muito velha. Nossas “boas” razões nada valem para o honesto esclarecimento de um assunto, porque, por mais solenemente que sejam apresentadas, não passam, no fundo, de resultados de preferências pessoais, ou preconceitos, não refletindo nenhum sadio desejo de acertar. . . .

O fato de uma idéia ser antiga e largamente espalhada não constitui argumento a seu favor, mas sim argumento para que tal idéia seja estudada e testada, a fim de verificarmos se não passa de mera racionalização. “

O Reitor e o Deão não aprovaram nem o Editorial nem a matéria a ser transcrita do livro de Robinson – e o jornal abortou.

Preparei ainda um quinto número do jornal, para ser publicado dia 18 de Agosto, mas com o aborto do número anterior, o quinto, evidentemente, não viu a luz do dia: fui expulso da instituição antes. Eis o que dizia (diria) o Editorial de Agosto:

” Temos em mãos o que seria “O CAOS em Revista” do mês de Junho, mas que não o foi, por causa do aborto que sofreu. O Editorial, que naquela ocasião escrevemos, procurava dar um relato sucinto dos acontecimentos que culminaram na colocação, naquela oportunidade, de “O CAOS em Revista” sob a tutela da Congregação do SPS [Seminário Presbiteriano do Sul], fato este que, por sua vez, ocasionou o aborto mencionado.

Um tempo relativamente longo decorreu desde então. Vivemos em outro contexto: temos outro Reitor, temos outro Presidente no Supremo Concílio. A cúpula que dirigia os destinos da IPB [Igreja Presbiteriana do Brasil] foi trocada. Há uma nova direção.

Todos estes acontecimentos, todas estas mudanças, toda esta “renovação”, pareceriam ser sinais de que a IPB rejuvenesce, reforma-se, atualiza-se, sofre uma renovação, no verdadeiro sentido do termo, sem as aspas indispensáveis ao emprego anterior da palavra. Mas, todos sabemos, isto não é verdade. A IPB preferiu, através da maioria dos representantes presentes ao Supremo Concílio, dar-se um outro rumo: o de lutar, em pleno século de viagens interplanetárias e de armas nucleares, como se fosse “remanescente de uma época de cavalaria”, para usar a apta imagem de Dietrich Bonhoeffer [em Letters and Papers from Prison], isto é: usando uma linguagem que não é a nossa do século XX; valendo-se de meios de ação que mais se assemelham aos da Idade Média; pregando idéias que há um século já eram tidas como desatualizadas, anacrônicas, conservantistas, vetustas; empregando métodos de pressão e repressão que nos fazem lembrar a Santa Inquisição Medieval; sendo dirigida por uma cúpola que, no seu totalitarismo, faria Hitler tremer de inveja no túmulo; expressando-se através de um órgão oficial que nada fica a dever aos periódicos do Rev. Raphael Camacho e do Mr. Robert Rapp! A IPB chegou a este ponto. Ou, melhor dizendo, permitiu que a conduzissem a este ponto.

Lembro-me de uma frase de Goethe, lida algures, que diz: “Muitos preferem morrer a pensar”. Na minha opinião, esta frase explica a razão de ter a IPB se deixado levar à situação em que se acha: “Muitos preferem morrer a pensar”. A IPB já sofre, agora, e vai sofrer muito mais ainda, os resultados da “preguiça intelectual” daqueles aos quais se delegaram poderes para decidir a respeito dos destinos da Igreja. Isto porque, enquanto a maioria prefere morrer a pensar, há aqueles, poucos e raros, que quase morrem de pensar para descobrir meios de manipular a maioria não-pensante, a fim de que esta venha a servir a seus objetivos pessoais, egoístas, de “will to power”. E o resultado, trágico, mas inevitável, a menos que os não pensantes se decidam a pensar por si, é que, muitas vezes, uma pessoa, que se proponha este alvo, consegue manipular uma multidão, quase sempre de boa fé, levando-a a satisfazer às suas aspirações (suas, bem entendido, do manipulador). É mais fácil, realmente, deixar que os outros pensem por nós; que nos ditem o que fazer; que decidam quais destinos devam ser os da Igreja; quais normas devam regê-la; quais doutrinas devam ser sua confissão. É o caminho mais fácil, o “caminho largo”, mas aquele que leva à negação completa do dom da inteligência.

‘Contudo’, talvez diga alguém, ‘o prezado jovem está se esquecendo de algo muito importante: foi o Espírito Santo que fêz com que se deliberasse em Fortaleza como foi deliberado. Ou será que o irmão é dos modernistas que não crêem no Espírito Santo?’ Sim, muitos já disseram isto, e não só uma vez. E é aqui que se situa, no meu entender, a maior heresia dos situacionistas presbiterianos de hoje: a heresia de fazer a vontade soberana, ilimitada, perfeita de Deus identificar-se com sua finita, limitada, imperfeita, egoísta e pecaminosa vontade, a heresia de cercear os limites da ação divina, a heresia de orientar o Espírito Santo em lugar de procurar dele genuína orientação, a heresia de buscar Deus apenas como um meio útil na aquisição de um determinado objetivo e não como um fim em si, a heresia de colocar doutrinas e normas de conduta em nível superior à vontade específica de Deus para o nosso hic et nunc, a heresia de fazer com que a mensageira se torna mensagem, a heresia de tornar a serva maior do que o seu Senhor! 

Parece que exagero. Provo, contudo. Tenho em mãos uma carta escrita pelo Conselho da IP [Igreja Presbiteriana] de Belo Horizonte, data de 2 de julho, quase dez dias antes do Supremo Concílio — carta esta para cuja elaboração um de nossos colegas, especialmente chamado a Belo Horizonte, emprestou sua valiosa cooperação! A carta, que deveria ser enviada a todas as Igrejas Presbiterianas do Brasil, acompanhada de uma cópia do “Manifesto dos 15”, reimpresso por aquela Igreja, denuncia em alto e bom som a “orientação modernista que os nossos Seminários vêm dando aos seus alunos [oxalá!], nossos futuros pastores”. Depois de analisar a situação, o referido Conselho, encabeçado pelo Rev. Wilson de Souza, faz as seguintes sugestões aos Conselhos das Igrejas às quais se destina a carta:

‘ a) Ore e convide outros irmãos a orarem, pedindo a Deus uma solução certa para o problema, promovendo, se possível, reuniões de oração com esta finalidade.
. . . . .
c) Telegrafe AGORA e peça a outros irmãos para telefonarem HOJE ao Presidente do Supremo Concílio, solicitando solução urgente para os problemas dos nossos Seminários. ‘

Até aí compreende-se. A aberração, contudo, vem depois, quando a carta continua:

‘ Esses telegramas poderão ter redações, mais ou menos, como estas:
— ‘Solicito SC tome providências enérgicas contra modernismo reinante nossos seminários’.
— ‘IP de (nome da cidade) espera que SC promova expurgo modernistas que atuam em nossos seminários’. ‘

Mais do que em qualquer outro lugar, aqui se faz presente a heresia atrás mencionada. Aconselhava-se a orar, pedindo a Deus a solução do problema. Para que orar, entretanto, se a solução já estava decidida, como bem o expressam os “telegramas-padrão”. Ei-la, clara, insofismável: EXPURGO dos que conosco não concordam. Esta solução já estava pronta, já havia sido tomada muito antes do Supremo Concílio. E do mesmo modo todas as outras. Aqueles belos apelos feitos pelo agora Presidente do Supremo Concílio, através de sua imprensa privada, para que a Igreja orasse, pedindo que o Espírito Santo orientasse o Supremo, eram desnecessários. As principais decisões e soluções já estavam no bolso de seu colete, Deus sabe já há quanto tempo! Uma prova inequívoca disto é o fato de ter sido designado relator da Comissão que iria estudar os problemas dos Seminários, ninguém menos do que o Rev. Wilson de Souza, o capacho atrás mencionado, que já se demonstrara parcialíssimo e preconcebido em relação ao problema. E a arbitrariedade acompanhou todas as outras decisões. Pobre Espírito Santo! Invocaram-no tanto, mas manietaram-no, cercearam-lhe a ação. Talvez tivesse ele uma outra solução para os problemas, talvez ele não fosse tão conservador quanto se dizem ser os atuais chefes da Igreja, mas seu parecer não foi aceito, talvez por ter sido expresso por alguém da ala contrária, talvez por não se identificar com os moldes dos “telegramas-padrão” e com os planos do partido vitorioso.

E assim caminha o tempo. A história, contudo, saberá passar seu julgamento (além de Deus que será bem capaz de passar o seu) sobre este negro período na vida da IPB. Enquanto, porém, o futuro não vem, para apresentar os vários aspectos e matizes da situação, é dever nosso, ao qual não nos podemos escusar, levantar uma voz profética contra o estado de coisas em que nos encontramos. “O CAOS em Revista” sempre se dispôs a isto. O artigo de Tristão de Athayde reflete o conflito das gerações. O de Alvino Alves, mais específico, é muito oportuno ao caracterizar a ortodoxia conservadora. “O Pequeno Inquisidor”, colaboração anônima, recebida pelo Correio, ataca o problema ainda mais específico da “inquisição” que nos visitou aqui.

O Redator aproveita para comunicar que deixará o cargo, a partir do próximo número, em virtude de seu desligamento do Seminário, a partir de 5 de Setembro até o final do ano. Agradece a colaboração, o estímulo, e o incentivo que recebeu durante o tempo que dirigiu o jornal, e coloca-se, mais do que nunca, ao lado daqueles que, cientes de sua responsabilidade para com Deus e os homens, para com o homem do século vinte, procuram evitar que a Igreja se torne mais uma relíquia, entre outras, dentro de nossa história. Agradece ainda àqueles que programaram este número, e o realizaram, sem os quais ele não sairia.

E até breve. “

O até breve foi um até nunca mais.

Com exceção dos signatários do Manifesto dos 15, nenhum dos demais alunos do Seminário pode se matricular normalmente no segundo semestre de 1966. Para ter direito à matrícula, teriam de assinar um documento em que se comprometiam a se comportar, em doutrina e comportamento, como o Seminário exigiu. Para sua honra, nenhum o fez. Assim, fomos todos literalmente expulsos do Seminário Presbiteriano de Campinas em Agosto de 1966.

Em 8 de Setembro daquele ano, o funesto ano de 1966, não houve celebração no Seminário. E o CAOS não jogou futebol contra ninguém: o CAOS havia sido fechado. Pensaram que com isso acabaria o caos. Não acabou. 

Transcrito em “Liberal Space” em Campinas (ainda!), 8 de Setembro de 2006 

Transcrito aqui em São Paulo, 7 de Novembro de 2015.

o O o

SEGUNDA PARTE

Apresentação [escrita em 2015 e revista e ampliada nesta data de 24.10.2021]

Esta é uma contribuição para a História da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) que suas publicações oficiais, e mesmo os artigos e livros de seu historiador oficial, escondem ou camuflam. 

O material desta Segunda Parte consiste, como afirmado atrás, de Editoriais e Artigos meus escritos para o jornal O CAOS em Revista, no ano de 1966. Os interessados na História da Igreja Presbiteriana do Brasil, que assim o desejem, podem consultá-los aqui, sem os meus comentários contextualizadores que aparecem na Primeira Parte — exceção feita a esta Apresentação.

[O material aqui contido está contextualizado no meu outro artigo “Quarenta Anos Depois do CAOS (1966-2006), que constitui a Primeira Parte do atual artigo, publicado em 2006 (quarenta anos depois do material contido nesta Segunda Parte) e que constitui a Primeira Parte deste artigo.]

Em 2016, cinco anos atrás, completou-se o Jubileu de Ouro da Crise de 1966 no Seminário Presbiteriano de Campinas e da grotesca intervenção autoritária de Boanerges Ribeiro no Seminário e na IPB, intervenção cujos efeitos nefastos se manifestam até hoje no caráter fundamentalista daquela denominação. Passou em brancas nuvens o dito Jubileu. As pessoas que foram vítimas dessa intervenção, e que ainda estão vivas, deveriam ter feito um Desagravo Contra a IPB. Não fizeram. Incluo-me entre os culpados, embora escreva o tempo todo sobre a referida crise. Esta segunda edição, agora em 2021, de material publicado em em 2017, serve de lembrança dos 55 anos da Crise de 1966 que se deplora neste ano.

É bom que se diga que a IPB sempre foi conservadora (sendo herdeira da “Old School” da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América, a chamada “Igreja do Norte”, cujo principal teólogo era o princetoniano Charles Hodge), mas a partir de 1966 tornou-se, na minha forma de ver e entender, fundamentalista, mais para Carl McIntire do que para Charles Hodge.

Eis aqui os meus Editoriais e os meus artigos em “O CAOS em Revista”, órgão oficial do Centro Acadêmico Oito de Setembro (CAOS) do Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas. Eu era o redator-chefe do jornal, que teve vida curta. Eu escrevi cinco Editoriais. Os jornais em que apareceram os três primeiros foram confiscados. Os dois últimos não chegaram a ser publicados, sendo vítimas da “Censura Prévia” instaurada no Seminário.

Para os que possam se assustar com a linguagem meio agressiva, registro que eu tinha apenas 22 anos quando vivi essa experiência, que me marcou, na época, e que continua de certo modo a me marcar até hoje.

1. Editorial de 18/3/1966 [Publicado e censurado nos dias seguintes, sendo o jornal confiscado]

Em sua reunião de 18 de fevereiro do corrente a Diretoria do CAOS decidiu que se publicasse, periodicamente, um jornal informativo da Diretoria, designando-nos, naquela mesma ocasião, responsáveis pela sua edição. Exatamente um mês após sai o primeiro número. Como primeiro é este um número experimental, para o qual pedimos a opinião dos colegas, para que ele venha a ser a expressão do corpo discente de nossa casa. Não é, porém, apenas a opinião dos colegas que solicitamos. Pedimos também a colaboração de cada um através de artiguetes escritos, através de trechos ou excertos traduzidos de livros ou revistas, através da indicação de livros e artigos recomendáveis. Esperamos que os colegas nos tragam suas colaborações. Será distribuído, gratuitamente, apenas um exemplar para cada colega. A pessoa que desejar mais números terá que pagá-los a razão de Cr$ 200 cada. Será esta uma maneira de arranjarmos um pouco de fundos para a contínua publicação do jornal. Cada vez que houver material suficiente, nas mãos do redator, para a tiragem de um número, este sairá. Contamos, pois, com a colaboração de todos.

2. Artigo de 18/3/1966: “Instituto Bíblico em Campinas” [Publicado e censurado nos dias seguintes, sendo o jornal confiscado]

Estamos ainda debaixo do revoltante impacto que nos causou a crítica ao sermão pregado hoje por um de nossos colegas. Queremos, de início, esclarecer que tudo o que aqui vamos dizer não visa à pessoa e às idéias do pregador, mas sim à posição e às idéias dos “críticos”, membros do corpo docente desta “Faculdade”. Colocamos estas duas palavras entre aspas porque não reputamos críticos os que não levam em conta a obra e os resultados da Crítica, fazendo de sua “crítica” tão simplesmente uma avaliação da simpatia do pregador, de sua vestimenta, de sua linguagem, de sua elocução, da estrutura homilética de seu sermão, de sua liturgia, negligenciando o cerne do sermão que é a interpretação dada ao teto. Para se fazer esta interpretação a Crítica Histórico-Literária e Textual é simplesmente considerada “farrapos”. Além do mais não consideramos Faculdade uma instituição de ensino que se aliena, através de seus professores (mas graças a Deus não através de todos os seus alunos) do movimento intelectual teológico contemporâneo. O que está se dando aqui é que nosso Seminário, tido aí por fora como “Faculdade de Teologia”, não passa, atualmente, de um Instituto Bíblico, que acha virtude, através de alguns de seus professores, em nem se aproximar dos problemas levantados pela Crítica Bíblica, e que acha que os alunos não precisam conhecê-los, pois são irrelevantes.

Vejamos, porém, o caso concreto. Pregou-se, hoje, uma sermão de prova biográfico sobre JONAS. Como base da mensagem do pregador estava a pressuposição de que o livro de Jonas é um livro histórico no sentido de que as informações nele contidas são historicamente fidedignas, e que o que nele é registrado se deu literalmente como o descreve o livro. O Jonas de que o livro fala foi tido como o profeta Jonas, filho de Amitai, que profetizou em Israel, no século VIII, no reinado de Jeroboão II (Cf. II Reis 14:25). Reafirmamos que o pregador tinha pleno direito de fazer o que fez, ou seja, de dar esta interpretação conservadora ao livro. Não o criticamos por isso. Afirmamos também que os mestres tinham pleno direito de concordar com o pregador a respeito de sua interpretação e da linha de sua mensagem, o que de fato fizeram. Com o que não concordamos, porém, é que o outro lado da questão não tivesse sido sequer mencionado! Um dos professores mencionou de passagem que o livro apresentava problemas críticos, mas nem sequer esboçou quais e que tipos de problemas seriam estes. Apenas afirmou (certamente opinião pessoal sua) que a Crítica havia tornado o livro em “farrapos”, subentendendo-se daí que se é impossível pregar sobre o livro de Jonas com uma interpretação outra que não a sua pessoal, naquele contexto representada também pelo pregador e pelos outros críticos. Um outro crítico mencionou que sua opinião era diferente, mas não julgou conveniente apresentá-la. De qualquer forma o sermão foi tido como muito feliz, pela interpretação sadia, pela riqueza de material, etc., pois fugiu dos problemas críticos, “não procurando chifres na cabeça de cavalo”. Embora um crítico houvesse achado que o sermão carecia de melhoras, a impressão tida após a crítica é que o sermão do colega foi o tipo de sermão ideal, “ungido” (o termo foi usado).

Nossa intenção, aqui neste artiguete, pelo qual somos pessoalmente responsáveis, é apresentar o outro lado da questão, como um dever de consciência, pois o outro lado foi redondamente ignorado pelos “críticos” do referido sermão. Se o fazemos é no interesse de esclarecer os colegas, mostrando que o livro de Jonas é “pregável” mesmo depois de a ele ser aplicada uma crítica bastante radical.

Vamos à questão.

O livro de Jonas é diferente de todos os outros escritos proféticos do Velho Testamento no sentido de que não contém uma coleção de oráculos de um profeta, mas é simplesmente uma história a respeito de um profeta. Pode ser esta a razão pela qual um livro que não reivindica de modo algum ter sido escrito por um profeta (o v.1 diz: “Veio a palavra do Senhor Jonas, filho de Amitai, dizendo:…” – Notar que o livro é escrito na terceira e não na primeira pessoa: “Jonas se dispôs”, “Jonas orou”, etc.), e que no aspecto literário pertence a um tipo bastante diferente, foi incluído entre os Livros dos Doze Profetas. Nem podemos dizer que o livro de Jonas seja um conto profético de natureza histórica e biográfica, porque a base requerida para tal não está presente no livro. O livro de Jonas é um poema didático, podemos mesmo dizer que um poema parabólico, escrito para mostrar que Deus se compadece mesmo dos ímpios quando eles se arrependem (3:10; 4:10). Este poema foi escrito com uma moral dirigida contra a intolerância dos Judeus e sua arrogância para com as nações pagãs, resultantes da doutrina da eleição mal interpretada em um sentido particularista. Bastava somente esta moral para que concluíssemos que o livro é pós-exílico, pois sua atitude básica toma por pressuposta a influência de Deutero-Isaías com sua idéia de salvação universal. O capítulo 3, versículo 3, dá a entender que Nínive era considerada uma cidade legendária, dos tempos antigos. Além do mais, a linguagem do livro, com seus aramaísmos, e com formas hebraicas bem posteriores em seu vocabulário e estilo (1:6, 7; 2:1; 3:2, 7; 4:6, 8) não permite que se date o livro anteriormente ao século V. Como terminus ad quem há o fato de o livro ser pressuposto no século II (Cf. Eclesiástico 49:12; Tobias 14:4,8).

Não há dúvida, entretanto, de que o autor do livro de Jonas tivesse tido a intenção de fazer com que o Jonas por ele descrito fosse entendido como o Jonas do século VIII. Isto era comum na antigüidade, quando a questão de direitos autorais e de direitos de nome não era problema jurídico. Qualquer pessoa podia escrever um livro em nome de outrem, ou poderia por seu nome em obra de outrem, ou poderia ainda, como no caso, usar a pessoa de outrem como personagem de seus escritos. O autor, contudo, não pretendeu estar escrevendo naquela época. Além do mais há muito no livro que indica que ele vem de um período bem posterior ao século VIII, além de que apresentamos acima. A cidade de Nínive não era tão grande no século VIII. Além do mais é difícil de se crer que uma cidade tão grande quanto descrita tenha se convertido “desde o menor até o maior” (3:5), o rei inclusive 3:6 sqq. Note-se que em nenhum lugar mais nem na Bíblia, nem fora dela, se menciona “Rei de Nínive”, pois o rei não era de Nínive, e sim da Assíria, país cuja a capital era Nínive, e que isto não tenha sido registrado em nenhum lugar, nem nas crônicas assírias nem nas israelitas. Por cima é difícil de harmonizar como a Nínive convertida a YHWH, inclusive com o seu rei, no século VIII, tivesse, com o restante da Assíria, ainda naquele mesmo século (721), conquistado Israel e destruído Samaria, levando cativos os líderes.

Por todos estes motivos é difícil crer na historicidade do livro como tal. Não negamos que tenha existido um Jonas, filho de Amitai, profeta. O que afirmamos é que ele não é o protagonista deste episódio, e que o que é narrado no livro de Jonas é uma parábola escrita com a finalidade acima apresentada, a saber, de mostrar aos Judeus que Deus se compadece e quer a redenção mesmo dos ímpios e gentios. Porque esta mensagem é apresentada com igual clareza por Deutero-Isaías é que se coloca o livro de Jonas mais ou menos na mesma época.

Agora perguntamos: Reconhecer isto é “procurar chifres na cabeça de cavalos”? Cremos que não reconhecê-lo é ignorar chifres na cabeça de um boi! Continuamos: reduz isto o livro de Jonas a “farrapos”? Absolutamente! Devemos deixar de pregar sobre o Bom Samaritano somente porque ele não é histórico? Evidentemente não! Se isto é verdade podemos pregar sobre o livro de Jonas mesmo que o episódio e o personagem ali descritos não sejam históricos. O que importa é a mensagem que o autor quis transmitir, ao criar esta parábola: quebrar as tradições nacionalistas dos Judeus, mostrando que Deus ama até os inimigos de Israel!

Embora o livro por seu tipo literário não seja profético, seu espírito o é, particularmente na tendência geral de pensamento a ele imprimida, quando foi escrito, em tempos pós-exílicos. Para por em cheque o particularismo exclusivista do Judaísmo pós-exílico, e a distorção da doutrina da eleição imposta pelo egoísmo religioso, este livro testifica a grandeza da profética concepção de Deus, e a ampla tolerância que esta concepção implica! O livro ainda hoje é uma voz profética e uma permanente advertência contra tudo o que estreita e particulariza a religião, e contra todo exclusivismo religioso. Porque pretendeu mostrar que a compaixão de Deus é maior que o coração humano, que sua vontade de salvar alcança mesmo além dos limites de seu próprio povo, e portanto o leva à tarefa missionária, este livro pertence aqueles no Velho Testamento que prepararam o caminho para o Evangelho.

Os colegas julguem se a crítica que aplicamos ao livro, privando-o de sua historicidade, tornou-o “impregável”, esfarrapou-o. Julguem se, em uma Faculdade de Teologia do gabarito que a nossa pretende ter, pode alguém pregar sobre Jonas nos termos em que se pregou, sem que qualquer dos professores presentes à crítica tivesse sequer levantado o problema da historicidade do livro.

Aos Colegas a palavra!

3. Editorial de 18/4/1966: Ainda Jonas [Publicado e censurado nos dias seguintes, sendo o jornal confiscado]

No número anterior, primeiro de nosso jornal, procuramos, em um artigo que teve um Sitz im Leben de todos conhecido, dizer algumas palavras sobre o livro de Jonas. Naquele ocasião dissemos que o livro tinha uma mensagem ainda hoje relevante, pois era “uma voz profética e uma permanente advertência contra tudo o que estreita e particulariza a religião, e contra todo exclusivismo religioso”. Nosso interesse hoje é assinalar a relevância e o oportunismo desta mensagem no contexto imediato em que nos encontramos, a saber, na vida da IPB.

Vimos, no artiguete passado, que a mensagem de Jonas foi um brado de protesto contra o nacionalismo particularista dos judeus que se consideravam detentores únicos e exclusivos da divina graça, e que, assim fazendo, limitavam à ação de Deus à nação política Israel. Deus estava cercado dentro dos limites políticos da nação. Qual a relação que isto pode ter com a IPB? A relação é que, ainda hoje há o grupo que se considera detentor exclusivo e único da graça divina, grupo este que, assim fazendo, procura limitar a ação de Deus, não a uma nação política, mas a um círculo ideológico, que procura cercar Deus, não dentro de limites políticos, mas de limites ideológicos.

Concretizamos: aqueles que, no seio da IPB, estão preocupados em tirar do seu caminho todos os que não concordarem em gênero, número e caso com os padrões rígidos de sua “ortodoxia” superada estão praticando o mesmo tipo de exclusivismo religioso (senão pior) praticado pelos judeus aos quais foi dirigida a mensagem do livro de Jonas. Estas normas “ortodoxas” têm se tornado os limites cerceadores da ação de Deus. Quem delas se afastar — dizem, ou se não dizem assim o entendem, pois suas atitudes o comprovam — afasta-se do próprio Deus, e então não é digno de permanecer na IPB. Precisa ser expurgado (palavra, por eles, estimadíssima!).

Vimos, contudo, no artigo passado, que quando o homem estabelece limites que particularizam e estreitam a órbita da ação de Deus o próprio Deus encontra um meio de arrasar com essas pretensões do coração humano. As obras do autor de Jonas e de Deutero-Isaías são em Israel  evidências típicas disto. Foi porque os israelitas não atentaram ao fato de que Deus queria quebrar (como de fato quebrou) estas barreiras particularizantes que foram por Ele rejeitados.

É conscientes desta verdade que levantamos a nossa voz em protesto contra a estreiteza de mente de alguns dentro da IPB para os quais até opinião é delito, para os quais a livre expressão do pensamento é causa suficiente para expurgo! Como é mais fácil lutar para manter as liberdades que já temos do que lutar para reconquistar as liberdades perdidas, “O CAOS em Revista” se dispõe, em suas páginas, a dar livre expressão ao pensamento dos alunos. O número presente é exemplo disto. Não podemos permitir que nos tolham a liberdade de termos os nossos próprios pensamentos e o livre direito de expressá-los. É esta a base da democracia. É esta a base do regime presbiteriano. Em sua obra Utilitarianism, Liberty and Representative Government (New York: Dutton, 1910, p.79) John Stuart Mill faz notar, com toda razão, que silenciar a expressão de uma opinião é roubar a raça humana, tanto a geração presente como a posterior, sendo ainda mais prejudicados os que discordam do que os que mantêm a opinião, pois, se a opinião é correta, aqueles que dela discordam estão perdendo a oportunidade de trocar o erro pela verdade, e, se é errada, os dela discordantes perdem o grande benefício de adquirir uma percepção mais clara e mais viva da verdade, proveniente de sua colisão com o erro. Se as idéias que temos expresso e, esperarmos, continuaremos a expressar através deste jornal não são verdadeiras e são perniciosas, não vingarão, pois a melhor maneira de destruir uma idéia falsa é expô-la! Quem estiver com a verdade não precisa temer idéias, por mais estapafúrdias que sejam, pois terão com que refutá-las, através de um franco diálogo. Aqueles que se crêem portadores de idéias verdadeiras, se querem mantê-las, devem torná-las continuamente relevantes, e não impedir que novas idéias apareçam e sejam disseminadas.

Aquilo que tem sido considerado como delito, isto é, a apresentação de idéias que não se harmonizam inteiramente com os padrões oficiais, o delito de opinião, é um crime que devemos praticar diariamente, sob quaisquer riscos. Se deixarmos de ser “criminosos” neste campo, estaremos roubando as gerações passadas que lutaram, até o sangue, para obter as liberdades de que somos herdeiros, a geração presente que estará tendo sua voz sufocada e reprimida, e a geração futura que sentirá que uma geração deixou de realizar o seu papel na história!

Neste espírito e com este alvo é que “O CAOS em Revista” sai, exatamente um mês depois do primeiro, em seu segundo número.

X. “O Manifesto dos Quinze” [Única matéria NÃO escrita por Eduardo Chaves]

[NOTA: Entre o segundo e o terceiro número do jornal, houve a publicação, fora do jornal, do nefasto Manifesto dos Quinze. Para fazer sentido dos Editoriais e do artigo que segue, publico-o aqui, inclusive com o nome de seus indignos signatários.]

Aos Membros, Oficiais e Ministros da Igreja Presbiteriana do Brasil

Saudações no Senhor,

Sentimos um dia que Deus nos chamava para o sagrado ministério da Palavra. Obedecendo a esse chamamento, decidimos entregar a vida ao serviço do Senhor, não medindo as dificuldades, os problemas, os sacrifícios que teríamos de enfrentar. Foi nesse propósito que viemos para o Seminário. Não tínhamos ilusões de que não iríamos encontrar um céu aberto. Esperávamos, entretanto, encontrar um ambiente favorável para os estudos, um meio apropriado para cultivar espiritualidade, uma atmosfera de seriedade moral e de respeito, particularmente para com as pessoas e as instituições da Igreja. Preferiríamos não dizer da desilusão que tivemos.

Não queremos prejudicar o Seminário ou a Igreja. Nem desejamos atingir pessoas. Somos os primeiros a reconhecer nossa imperfeição, nosso pecado, nossas falhas, nossa pobreza espiritual, nossas deficiências em todo sentido, contudo, aspiramos um Seminário melhor, mais vida espiritual, mais firmeza de caráter, mais consagração, fé mais vigorosa, convicção mais sólida, testemunho mais cristão e espírito mais dedicado na evangelização e na obra da Igreja. Temos silenciado até agora por que não queríamos nem de longe concorrer para o agravamento da situação. Só Deus sabe das angústias de nossa alma e das preocupações de nosso espírito, das lágrimas que temos vertido, das noites mal dormidas, das lutas em oração que temos sustentado. Chegamos, porém, a um ponto em que não mais podemos manter-nos calados. Por amor ao Seminário e à Igreja temos de sair a público para clamar contra os abusos que presenciamos e a situação em que vivemos. Com tristeza infinita, temos de apelar a todos os corações crentes a que se levantem para defender esta Casa, que tanto amamos, e a IPB nesta hora crítica.

Com o maior dos pesares temos de dizer que o Seminário não é hoje a Casa de Profetas, de onde saíam homens de Deus, fiéis à Bíblia e ardendo de entusiasmo pela salvação dos pecadores, ministros piedosos que continuem a obra dos grandes homens do passado, grandes na fé, grandes na consagração, grandes no fervor, grandes na piedade, prontos a todo sacrifício, varões de Cristo sem reservas.

O Seminário é hoje um lugar onde se zomba dos que levam a sério a Bíblia, a oração, a vida espiritual; onde se desmoraliza de todas as formas a liderança da Igreja, suas instituições e seus homens de confiança; onde se hostilizam professores que não se dobram aos interesses do grupo dominante; onde se defende a libertinagem e a imoralidade; onde existem clubes dos que se reúnem para fumar e beber; em cujo refeitório se praticam atos que ferem a mais elementar educação e onde a própria oração é motivo de ridículo e zombaria; onde se defende o amor livre e se condena como pietismo e moralismo todo esforço de viver cristãmente, segundo os padrões do Evangelho; onde se tacham de estreitos todos quantos mantêm firmes as doutrinas do Calvinismo clássico e aceitam a Bíblia como inspirada Palavra de Deus; onde se veiculam idéias modernistas como se fossem a verdade de Deus, somente porque os teólogos do dia e os estafetas dos evoluídos desta e de outras terras o proclamam; onde não existe interesse geral pela evangelização e pela conversão dos pecadores; onde uma cúpula ativista, politiqueira, de simpatias pronunciadamente esquerdista, exerce inexorável pressão sobre os colegas que não rezam pela sua cartilha e trama de maneira traiçoeira contra os líderes da Igreja que não obedecem à sua linha de pensamento; onde figuras estranhas ao Seminário e até à IPB, muitos até ministros, não sentem escrúpulos em manter encontros para desmoralizar a Igreja, autoridades eclesiásticas e professores da instituição de maneira desleal e revoltante; onde impera a irreverência e o cinismo; onde palavrões e piadas picantes são a norma de não poucos; onde a dignidade feminina e a pureza pessoal são objeto de alusões que não podemos aqui referir. Onde colegas são humilhados e tratados de maneira contrária ao amor de que tanto falam, especialmente aqueles que são novatos, vítima de trotes que refletem bem o espírito evoluído dos seus promotores; onde a vida espiritual e devocional é baixa, tanto quanto o pode ser; onde os cultos são mal assistidos e por alguns inteiramente desprezados; onde um círculo de oração iniciado por um grupo desejoso de mais vida devocional é hostilizado e combatido; onde a maioria indiferente e acomodada, querendo manter uma neutralidade impossível, acaba sempre fazendo a jogada da liderança negativista; onde as próprias autoridades não parecem em condições de agir com firmeza.

Irmãos no Senhor, não dissemos tudo que poderíamos dizer. O próprio deão do ano passado, Rev. Dr. Osmundo Afonso Miranda, traçou um retrato bem realista da situação em seu relatório à Diretoria do Seminário, que é um brado de alerta contra a referida situação. A situação é séria, o sentimos. Por amor a Cristo e Sua Palavra, por amor à IPB e seu ministério autêntico, por amor aos crentes sinceros de hoje e às gerações do futuro, é preciso por paradeiro a esses desmandos. Aqui, diante de nosso Deus, obedecendo à voz de nossa consciência, com o coração sangrando de tristeza, bradamos pedindo que alguma coisa seja feita. Não podemos ficar indiferentes nem calar-nos; seríamos cúmplices desse processo de desmoralização da Causa. Pensai no que estamos relatando, informai-vos de tudo, orai muito e agi com firmeza. E que Deus, o nosso Deus, nos dê forças para não fugirmos ao dever, para sermos fiéis à Sua vontade. Amém.

Hermes Mariano, Presbitério de São Paulo
Ariovaldo C. Bomfim, Presbitério de São Paulo
Elpídio Gonçalves. Presbitério do Rio Doce
Evandro Luiz da Silva, Presbitério de Cuiabá
Floramonte Dias Gonçalves, Presbitério Oeste de Goiás
Célio J. Duarte, Presbitério Florianópolis
Francisco Antônio Maia, Presbitério de Brasília
Silas Augusto Tscherne, Presbitério de Rio Claro
Dirceu Xavier de Mendonça, Presbitério de Rio Claro
Gilson Barbosa Gomes, Presbitério do Rio de Janeiro
Eldman Francklin Eler, Presbitério de Governador Valadares
Adolfo Potenciano, Presbitério de Goiânia
José Silvério Júnior, Presbitério de Brasília
José dos Anjos, Presbitério Norte de Minas
Jarbas Dantas, Presbitério de Campinas

4. Editorial de 18/5/1966 [Publicado e censurado nos dias seguintes, sendo o jornal confiscado]

Novo dia 18. Novo “O CAOS em Revista”. Até aqui temos podido ser pontuais. Esperamos poder continuar a sê-lo.

Muitas coisas aconteceram em nossa casa desde que o segundo número saiu. Dentre elas merece destaque, não pelo conteúdo, mas pela repercussão, o Manifesto (na falta de melhor palavra) que um grupo de quinze alunos endereçou aos membros da Igreja Presbiteriana do Brasil, delatando coisas que se passam aqui dentro (e até as que não se passam), separando estas coisas de seu contexto, julgando-as erradas e pedindo punição para quem as comete. Deve ser dito ainda que o referido manifesto está sendo espalhado ilegalmente, pois não passou pela Congregação, canal competente para o envio de qualquer documento dos alunos para fora dos limites do Seminário.

“O CAOS em Revista” lamenta o sucedido. Lamenta por várias razões.

Em primeiro lugar, o referido manifesto veio dividir definitivamente nossa comunidade. Antes dele havia correntes, tendências divergentes, que não chegavam, contudo, a ser grupos. Havia mesmo aqueles que eram neutros a qualquer corrente: os que se chamavam de “a terceira força”. O manifesto, no entanto, acabou com tudo isto, criando dois grupos apenas: o dos que assinaram o manifesto (quinze) e o grupo dos restantes. Este fato decepou qualquer esperança de se poder viver em real comunidade aqui.

Em segundo lugar, lamenta pelo simples fato de que “roupa suja se lava em casa”.

Lamenta, ainda, pelo mal que os colegas signatários do referido manifesto vão causar ao membros da IPB, escandalizando-os desnecessariamente. Porque o instrumento de escândalo não são tanto os que cometeram determinadas coisas tidas por erradas quanto os que as espalharam a um contexto inteiramente diferente e não preparado para ouvi-las. Se observarmos o que Paulo tem a dizer a respeito do comer carne de porco, vamos notar que o erro não estava no comer em si, mas no escândalo que isto podia causar. Correto. São feitas e ditas coisas aqui dentro de nosso dormitório e de nossos quartos (não tantas e tão terríveis quanto o referido manifesto pretende que sejam) que não escandalizam ninguém no ambiente em que estão sendo feitas e ditas. Levadas, contudo, para um ambiente não preparado para ouvi-las, estas coisas servem de escândalo. O culpado deste escândalo, contudo, não é quem faz o ato, mas quem o espalha para um ambiente não preparado para ouvi-lo.

Isto é o que mais lamentamos no manifesto. Não lamentamos o mal que seus signatários pretenderam causar aos outros, “neutros e liberais”. Lamentamos, sim, pelo mal que causarão e já estão causando, inconscientemente, a uma enormidade de crentes inocentes, que não precisavam saber das dificuldades internas de nossa casa, que, porque internas, deveriam ser resolvidas aqui dentro. A atitude dos que assinaram o manifesto, dos que orientaram ou estimularam a sua confecção, dos que o estão enviando e distribuindo não é nada pastoral em relação aos membros da Igreja que eles querem salvar! Eles, os responsáveis pelo manifesto, não tinham o direito de escandalizar os membros humildes e inocentes das nossas Igrejas. Por isso é que reputo correta a opinião de um pastor que ao receber o manifesto disse: “Isto é antes de um ato de covardia para com os membros da Igreja!” É construindo e não destruindo que se deve alcançar um objetivo.

“O CAOS em Revista” registra, pois, com pesar, esta mancha negra nos anais do corpo discente desta casa. Continuaremos, porém, a lutar, de modo franco e legal, à luz do dia, através do diálogo leal, para que cada um tenha a liberdade de pensamento e ação indispensáveis à vida de cada verdadeiro homem, de cada verdadeiro cristão. É com o intuito de restabelecer diálogo que o redator escreveu o artigo “Parafraseando”. Ele tem esperado em vão a contribuição dos colegas. E ainda espera. Por que algum dos colegas signatários  do manifesto não se decide a um diálogo franco em lugar de fazer ataques subversivos e inesperados? É uma tática mais madura e mais máscula. As páginas de “O CAOS em Revista” estão à espera.

Enquanto isto, colegas, lutemos para que, em nosso meio, cada um possa ter a autonomia de pensamento que o cristão precisa ter. “Lembrai-vos sempre de que não existe felicidade sem liberdade, e de que o fundamento da liberdade é a coragem” (Péricles, Discurso aos Atenienses, citado por Tucídides, em A Guerra do Peloponeso, Livro 2, citado por Celso Furtado, Dialética do Desenvolvimento, p. 7).

5. Artigo de 18/5/2015: “Parafraseando” [Publicado e censurado nos dias seguintes, sendo o jornal confiscado]

“Propôs Jesus também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos, e desprezavam os outros” (Lucas 18:9).

Certa vez, em uma Faculdade Teológica, passaram a existir dois grupos: um que se dizia “conservador” e outro que era taxado de “modernista”. Certo dia os conservadores oraram assim: “Ó Deus, graças te damos porque não somos como os demais colegas: defensores da libertinagem e da imoralidade, fumantes e beberrões, defensores do amor livre, mantenedores de simpatias pronunciadamente esquerdistas, irreverentes, cínicos, contadores de piadas e desrespeitadores da dignidade feminina. Louvamos-te, ó Deus, porque assim não o somos. Nós fazemos reunião de oração diariamente, ocasião em que um rabino nos instrui a respeito das idéias ortodoxas da tua palavra e a respeito do calvinismo clássico que tu nos legaste; nós, por ocasião das refeições, ficamos quietos: chegamos a bater palmas e a sorrir para mostrar nosso amor cristão, mesmo quando são proferidos discursos que nos criticam; aceitamos a Bíblia toda como palavra inspirada de Deus; estamos sempre aos pés dos líderes da Igreja para aprender deles como agir honesta, franca e desinteressadamente; saímos três ou mais vezes por semana para pregar a tua palavra, embora nosso estudo seja com isso prejudicado: contudo, teu sábio servo do passado já dizia que “o muito estudar é enfado da carne” — aliás o teu Espírito colocará nos nossos lábios a mensagem, mesmo que nada tenhamos estudado! Ó Deus, atenta para isto: somos fiéis servos e testemunhas da tua palavra aqui neste Seminário; para conseguirmos sê-lo chegamos até a desrespeitar as leis da Congregação, ó Deus, pois mandamos, por trâmites ilegais, um formidável manifesto aos crentes da tua igreja, condenando tudo o que de errado se passa aqui dentro, fora do nosso grupo, evidentemente; por amor à tua causa, ó Deus, chegamos ao ápice da ousadia e da coragem ao afirmar que as próprias autoridades que dirigem este Seminário não parecem estar em condições de agir com firmeza. Mas nós o estamos, ó Deus, e te agradecemos por isto.”

O resto todo o mundo sabe. Aquela criatura de tão excelentes qualidades, o fariseu da parábola de Jesus, não foi o que desceu para casa justificado, mas sim aqueles que era roubador, injusto e adúltero, aquele que era um pária moral na sociedade de sua época. Estranho, não? Mas real. No entanto seria bom perguntar por que o fariseu, que era o pietista, o legalista, o moralista, o ortodoxo da época de Jesus, não foi justificado. A razão parece óbvia, embora muitos não a queiram ver: o fariseu não foi justificado porque colocou como critério de sua auto-avaliação diante de Deus o seu próximo, o publicano. E, nestas circunstâncias, aferindo-se por um critério imperfeito, o fariseu jactou-se diante de Deus, orgulhou-se, e creu que poderia trazer nas mãos e apresentar diante de Deus algo de bom: o seu comportamento, o seu modo de agir, o seu zelo pelo cumprimento da lei divina. E não foi justificado embora praticasse atos muito bons em sua vida, se os considerarmos isolados de sua motivação e de seu contexto. Porque todas as vezes que nos avaliamos por critérios e padrões imperfeitos nos tornamos orgulhosos.

Às vezes este orgulho é disfarçado sob a capa de uma pseudo-humildade, sob palavras tais como estas: “Somos os primeiros a reconhecer nossa imperfeição, nosso pecado, nossas falhas, nossa pobreza espiritual, nossas deficiências em todos os sentidos, contudo…” (negrito meu). Não são, no entanto, nossas palavras a coisa que tem importância primária. É nossa atitude que, lhes subjaz, que é o primariamente importante. Mesmo que pronunciemos, em lágrimas e com o coração sangrando, palavras que falem a respeito de nossa humildade, se nossa atitude for a de um juiz apontando erros nos outros, não estaremos sendo humildes, mas orgulhosos.

Será bom perguntar porque sentimos um prazer imenso em apontar as falhas, erros e os defeitos dos outros, principalmente quando estes são pessoas mais preeminentes que nós, em outros setores, ou talvez no mesmo a que nos dedicamos. Porque no instante que fazemos isto podemos nos jactar e nos consolar intimamente, dizendo: “embora fulano seja melhor estudante que eu, embora se destaque mais em certos círculos, na hora em que souberam que ele faz isto e aquilo eu subirei na cotação do povo, mediante o rebaixamento do outro!” A raiz de todo mexerico, fuxico e de toda delação está nesse nosso desejo de nos compararmos com os outros e de ver neles falhas, e de torná-las ainda mais negras, através de generalizações precipitadas e de mentiras mesmo, porque assim teremos maior realce. Isto até me faz lembrar da história daquela ordem de monges, que nada mais tendo de que se orgulhar orgulhavam-se de sua humildade!

O erro do fariseu não foi fazer todas aquelas coisas. Foi comparar-se com o que não fazia, e julgar-se superior, julgar-se na condição de juiz do seu próximo. Todas as vezes que nos aproximamos de Deus auto-avaliando-nos por critérios imperfeitos nos tornamos orgulhosos, e nos sentimos no direito e em condições de apresentar a Deus alguma realização nossa, algo que nos conceda mérito diante dele. E todas as vezes que assim fazemos estamos sendo fariseus: mesmo que aquilo que estejamos apresentando a Deus seja a nossa fé, seja a nossa “ortodoxia”, seja a nossa conduta impecável!

O mérito do publicano estava em que, quando quis avaliar-se, não tomou para si critérios humanos, e, portanto, imperfeitos, mas colocou o próprio Deus como padrão de sua auto-avaliação. E porque assim agiu sentiu-se imediatamente arrasado. Não viu mérito algum em sua pessoa. Diante de Deus ele não era nada. Então, não podia orgulhar-se. Simplesmente não tinha de quê. Só pode dizer: “Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador”. E foi justificado.

Como esta parábola deve ter chocado os ouvintes de Jesus! Como aquela crítica tremenda aos “santos” e “justos” fariseus, aos “ortodoxos”, e a sentença de que o publicano havia sido justificado deve ter arrasado os ouvintes de Jesus! Justamente o publicano, que não era apenas “modernista e liberal”, mas HEREGE! No entanto, o impacto que a parábola causou nos ouvintes de Jesus foi esquecido e hoje a parábola não faz parte da Bíblia de muita gente tida por aí como exemplo de santidade.

Finalmente uma palavra aos “quinze”: o que fazeis, vós os que assinastes o manifesto, com textos tais como este (Lucas 18:9:14)? Simplesmente o ignorais? Por diversas vezes já tenho ouvido a acusação de que nós, os “modernistas”, recortamos a Bíblia, para fazer nossa exegese ou formular nossas doutrinas. Será que é verdade? Ou, em última instância, será que é toda a verdade? Porque o que posso perceber é que vós, os conservadores e “ortodoxos”, também a recortais, não através da exegese, mas através do vosso comportamento, através de vossas vidas! E, em assim fazendo, vos tornais mais liberais do que os próprios. Quero crer, no entanto, que assim o fazeis ignorantemente e não de espírito premeditado. Quero, com sinceridade, crer que é inconscientemente que extraís de vossas Bíblias, em vossa vida e através de vossa conduta, textos tais como o acima mencionado, que não é o único. Ou será que não percebestes que a vossa atitude em fazendo o manifesto que fizestes, não permite que a Parábola do Fariseu e do Publicano continue mais em vossas Bíblias? O mesmo se dá com textos tais como Mat. 7:1 sqq; Tiago 4:11-12 e outros.

Minha opinião particular é que fostes, a maioria de vós os “quinze”, ingênuos simplesmente. Não pudestes perceber as dimensões do que fizestes. Os outros, os  “não-ingênuos” que vos manipularam, não passam também de ingênuos nas mãos de outros menos ingênuos do que eles. Quando tiverdes adquirido um pensamento crítico e uma capacidade independente de avaliar as coisas, o que se dará do segundo ano em diante, embora haja alunos que já cheguem aqui com estas qualidades, então podereis observar o quanto fostes insensatos. E vos arrependereis muitíssimo. Pois então vereis porque as vossas expectativas de ter 2/3 dos alunos ao vosso lado (correspondentes ao I e II ano somados), expectativas estas bastante vivas no início deste ano, vieram a falhar, e sois apenas quinze em uma comunidade de quase oitenta. Tendes apenas dois do segundo ano em vosso meio. Os outros “abriram os olhos” (o que não significa que tenham se tornado “modernistas” – apenas perceberam quão estreitos sois). Então (quando adquirirdes um espírito crítico mais aguçado, na pressuposição de que este Seminário vai ajudar-vos a aguçá-lo), vereis porque é que um professor que luta ano a ano para ver seu circulo de influência crescer não consegue, cada ano, fazer com que sua influência abranja senão um pequeno número de calouros. Seu contato influente com os alunos termina em três semestres. Vereis porque de professor de mais ou menos cinco matérias veio ele a lecionar apenas uma, presentemente. Mas é somente o tempo que vos poderá mostrar isto. É com paciência que espero que ele e o Espírito Santo (por que não?) realizem o seu trabalho.

6. Editorial de 18/6/1966 [Censurado previamente: não chegou a ser publicado]

Ainda um “O CAOS em Revista”. O último deste semestre. Os leitores já acostumados à sua leitura talvez notem que, neste número, “O CAOS em Revista” está um pouco diferente, em seu conteúdo, dos números anteriores: está menos vivo. Motivos vários contribuíram para que isso se desse, dentre os quais a falta de tempo do Redator e a falta de colaboração dos colegas no sentido de enviarem artigos, traduções, poesias, etc., para serem publicados.

Outro motivo ainda, a ser notado, é a ordem explícita e inequívoca da Congregação do Seminário Presbiteriano do Sul, que determinou que nenhum “O CAOS em Revista”, ou equivalente, fossem publicado sem o visto do Senhor Reitor ou do Senhor Deão. Esta ordem explícita, acrescentada da reprovação enérgica feita ao Redator, pela matéria contida nos três primeiros números do jornal, e da ameaça de punição por indisciplina em caso de reincidência, esclarecem, sem possibilidade de equívoco, a posição da Congregação e a posição que ela nos reserva. (Observe-se que os dois primeiros números do jornal foram julgados duas vezes pela Congregação. Na primeira vez, ela decidiu não opinar sobre eles, enviando-os ao Presbitério do Redator. Na segunda vez, por razões ignoradas, decidiu reprovar a matéria sobre a qual em vez anterior havia se omitido).

O campo que a Congregação nos permite abranger, contudo, torna-se demasiado restrito quando notamos que ela considera a matéria contida no terceiro jornal fora da competência e do direito de manifestação de um jornal do corpo discente. Torna-se difícil, pois, formular um jornal em que tratar de problemas que diretamente afetam a vida de todos os alunos é considerado “fora da competência” de um jornal de alunos.

Assim sendo, resolvemos, em protesto, transcrever uma seção (Seção 4, no Capítulo II) do livro A Formação da Mentalidade (Mind in the Making), de James Harvey Robinson. Se o trecho que será transcrito for lido em seqüência aos três primeiros números do jornal, poderá comunicar uma mensagem bastante relevante. É o que esperamos.

7. Matéria para transcrição em 18/6/1966 [Censurada previamente: não chegou a ser publicada]

Somos incrivelmente descuriosos da formação das nossas crenças, mas por elas nos enchemos de amor quando no-las querem roubar. Torna-se óbvio que não são propriamente as idéias que nos são caras, sim o nosso amor próprio. . . .

Gostamos de continuar a crer no que nos acostumamos a aceitar como verdade, e a revolta sentida quando duvidam das nossas verdades estimula-nos a ainda mais nos apegarmos a elas. O resultado é que a maior parte do chamado raciocínio humano consiste em descobrirmos argumentos para continuarmos a crer no que cremos.  . . .

Esta distinção entre “boas” e “reais” razões é das mais importantes nos domínios do pensamento. Podemos de pronto dar o que chamamos as nossas “boas” razões para sermos católicos ou maçons, republicanos ou democratas, amigos ou inimigos da Liga das Nações. Mas as razões “reais” ficam em outro plano. Não há dúvida que a importância desta distinção é notória, embora obscura. Um missionário batista concorda prontamente em que o budista não é budista por conseqüência do cuidadoso estudo que fez dessa crença, mas simplesmente porque nasceu numa família budista de Tóquio. Mas considerará ofensivo à sua fé reconhecer que a sua parcialidade para com certas doutrinas provém de ter tido ele uma progenitora afiliada à igreja batista de Puddlebury. . . . Mas nem um nem outro perceberá por que motivo está defendendo as suas opiniões pessoais.

As razões “reais” das nossas crenças vivem ocultas des nós mesmos, tanto quanto dos outros. À medida que crescemos, muito naturalmente vamos adotando as idéias ambientes relativas à religião, às relações de família, à propriedade, aos negócios, ao governo. Absorvêmo-las, de tanto ouvi-las zumbir em torno de nós, no seio do grupo em que vivemos. Ademais, como Totter notou, essas idéias, como produto da sugestão e nunca do raciocínio, possuem o característico de parecerem perfeitamente óbvias. 

. . .

Este espontâneo e leal apoio aos nossos preconceitos — este processo de descobrir “boas” razões para justificá-los — recebe dos cientistas modernos o nome de “racionalização” — palavra nova para coisa muito velha. Nossas “boas” razões nada valem para o honesto esclarecimento de um assunto, porque, por mais solenemente que sejam apresentadas, não passam, no fundo, de resultados de preferências pessoais, ou preconceitos, não refletindo nenhum sadio desejo de acertar. . . .

O fato de uma idéia ser antiga e largamente espalhada não constitui argumento a seu favor, mas sim argumento para que tal idéia seja estudada e testada, a fim de verificarmos se não passa de mera racionalização.

8. Editorial de 18/8/1966 [Censurado previamente: não chegou a ser publicado]

Temos em mãos o que seria “O CAOS em Revista” do mês de Junho, mas que não o foi, por causa do aborto que sofreu. O Editorial, que naquela ocasião escrevemos, procurava dar um relato sucinto dos acontecimentos que culminaram na colocação, naquela oportunidade, de “O CAOS em Revista” sob a tutela da Congregação do SPS [Seminário Presbiteriano do Sul], fato este que, por sua vez, ocasionou o aborto mencionado.

Um tempo relativamente longo decorreu desde então. Vivemos em outro contexto: temos outro Reitor, temos outro Presidente no Supremo Concílio. A cúpola que dirigia os destinos da IPB [Igreja Presbiteriana do Brasil] foi trocada. Há uma nova direção.

Todos estes acontecimentos, todas estas mudanças, toda esta “renovação”, pareceriam ser sinais de que a IPB rejuvenesce, reforma-se, atualiza-se, sofre uma renovação, no verdadeiro sentido do termo, sem as aspas indispensáveis ao emprego anterior da palavra. Mas, todos sabemos, isto não é verdade. A IPB preferiu, através da maioria dos representantes presentes ao Supremo Concílio, dar-se um outro rumo: o de lutar, em pleno século de viagens interplanetárias e de armas nucleares, como se fosse “remanescente de uma época de cavalaria”, para usar a apta imagem de Dietrich Bonhoeffer [em Letters and Papers from Prison], isto é: usando uma linguagem que não é a nossa do século XX; valendo-se de meios de ação que mais se assemelham aos da Idade Média; pregando idéias que há um século já eram tidas como desatualizadas, anacrônicas, conservantistas, vetustas; empregando métodos de pressão e repressão que nos fazem lembrar a Santa Inquisição Medieval; sendo dirigida por uma cúpula que, no seu totalitarismo, faria Hitler tremer de inveja no túmulo; expressando-se através de um órgão oficial que nada fica a dever aos periódicos do Rev. Raphael Camacho e do Mr. Robert Rapp! A IPB chegou a este ponto. Ou, melhor dizendo, permitiu que a conduzissem a este ponto.

Lembro-me de uma frase de Goethe, lida algures, que diz: “Muitos preferem morrer a pensar”. Na minha opinião, esta frase explica a razão de ter a IPB se deixado levar à situação em que se acha: “Muitos preferem morrer a pensar”. A IPB já sofre, agora, e vai sofrer muito mais ainda, os resultados da “preguiça intelectual” daqueles aos quais se delegaram poderes para decidir a respeito dos destinos da Igreja. Isto porque, enquanto a maioria prefere morrer a pensar, há aqueles, poucos e raros, que quase morrem de pensar para descobrir meios de manipular a maioria não-pensante, a fim de que esta venha a servir a seus objetivos pessoais, egoístas, de “will to power”. E o resultado, trágico, mas inevitável, a menos que os não pensantes se decidam a pensar por si, é que, muitas vezes, uma pessoa, que se proponha este alvo, consegue manipular uma multidão, quase sempre de boa fé, levando-a a satisfazer às suas aspirações (suas, bem entendido, do manipulador). É mais fácil, realmente, deixar que os outros pensem por nós; que nos ditem o que fazer; que decidam quais destinos devam ser os da Igreja; quais normas devam regê-la; quais doutrinas devam ser sua confissão. É o caminho mais fácil, o “caminho largo”, mas aquele que leva à negação completa do dom da inteligência.

“Contudo”, talvez diga alguém, “o prezado jovem está se esquecendo de algo muito importante: foi o Espírito Santo que fêz com que se deliberasse em Fortaleza como foi deliberado. Ou será que o irmão é dos ‘modernistas’ que não crêem no Espírito Santo?” Sim, muitos já disseram isto, e não só uma vez. E é aqui que se situa, no meu entender, a maior heresia dos “situacionistas” presbiterianos de hoje: a heresia de fazer a vontade soberana, ilimitada, perfeita de Deus identificar-se com sua finita, limitada, imperfeita, egoísta e pecaminosa vontade, a heresia de cercear os limites da ação divina, a heresia de orientar o Espírito Santo em lugar de procurar dele genuína orientação, a heresia de buscar Deus apenas como um meio útil na aquisição de um determinado objetivo e não como um fim em si, a heresia de colocar doutrinas e normas de conduta em nível superior à vontade específica de Deus para o nosso hic et nunc, a heresia de fazer com que a mensageira se torna mensagem, a heresia de tornar a serva maior do que o seu Senhor!

Parece que exagero. Provo, contudo. Tenho em mãos uma carta escrita pelo Conselho da IP [Igreja Presbiteriana] de Belo Horizonte, data de 2 de julho, quase dez dias antes do Supremo Concílio — carta esta para cuja elaboração um de nossos colegas, especialmente chamado a Belo Horizonte, emprestou sua valiosa cooperação! A carta, que deveria ser enviada a todas as Igrejas Presbiterianas do Brasil, acompanhada de uma cópia do Manifesto dos Quinze, reimpresso por aquela Igreja, denuncia em alto e bom som a “orientação modernista que os nossos Seminários vêm dando aos seus alunos [oxalá!], nossos futuros pastores”. Depois de analisar a situação, o referido Conselho, encabeçado pelo Rev. Wilson de Souza, faz as seguintes sugestões aos Conselhos das Igrejas às quais se destina a carta:

“a) Ore e convide outros irmãos a orarem, pedindo a Deus uma solução certa para o problema, promovendo, se possível, reuniões de oração com esta finalidade.
. . . . .
c) Telegrafe AGORA e peça a outros irmãos para telefonarem HOJE ao Presidente do Supremo Concílio, solicitando solução urgente para os problemas dos nossos Seminários”.

Até aí compreende-se. A aberração, contudo, vem depois, quando a carta continua:

“Esses telegramas poderão ter redações, mais ou menos, como estas:
‘Solicito SC tome providências enérgicas contra modernismo reinante nossos seminários.
IP de (nome da cidade) espera que SC promova expurgo modernistas que atuam em nossos seminários’.”

Mais do que em qualquer outro lugar, aqui se faz presente a heresia atrás mencionada. Aconselhava-se a orar, pedindo a Deus a solução do problema. Para que orar, entretanto, se a solução já estava decidida, como bem o expressam os “telegramas-padrão”. Ei-la, clara, insofismável: EXPURGO dos que conosco não concordam. Esta solução já estava pronta, já havia sido tomada muito antes do Supremo Concílio. E do mesmo modo todas as outras. Aqueles belos apelos feitos pelo agora Presidente do Supremo Concílio, através de sua imprensa privada, para que a Igreja orasse, pedindo que o Espírito Santo orientasse o Supremo, eram desnecessários. As principais decisões e soluções já estavam no bolso de seu colete, Deus sabe já há quanto tempo! Uma prova inequívoca disto é o fato de ter sido designado relator da Comissão que iria estudar os problemas dos Seminários, ninguém menos do que o Rev. Wilson de Souza, o capacho atrás mencionado, que já se demonstrara parcialíssimo e preconcebido em relação ao problema. E a arbitrariedade acompanhou todas as outras decisões. Pobre Espírito Santo! Invocaram-no tanto, mas manietaram-no, cercearam-lhe a ação. Talvez tivesse ele uma outra solução para os problemas, talvez ele não fosse tão conservador quanto se dizem ser os atuais chefes da Igreja, mas seu parecer não foi aceito, talvez por ter sido expresso por alguém da ala contrária, talvez por não se identificar com os moldes dos “telegramas-padrão” e com os planos do partido vitorioso.

E assim caminha o tempo. A história, contudo, saberá passar seu julgamento (além de Deus que será bem capaz de passar o seu) sobre este negro período na vida da IPB. Enquanto, porém, o futuro não vem, para apresentar os vários aspectos e matizes da situação, é dever nosso, ao qual não nos podemos escusar, levantar uma voz profética contra o estado de coisas em que nos encontramos. “O CAOS em Revista” sempre se dispôs a isto. O artigo de Tristão de Athayde reflete o conflito das gerações. O de Alvino Alves, mais específico, é muito oportuno ao caracterizar a ortodoxia conservadora. “O Pequeno Inquisidor”, colaboração anônima, recebida pelo Correio, ataca o problema ainda mais específico da “inquisição” que nos visitou aqui.

O Redator aproveita para comunicar que deixará o cargo, a partir do próximo número, em virtude de seu desligamento do Seminário, a partir de 5 de Setembro até o final do ano. Agradece a colaboração, o estímulo, e o incentivo que recebeu durante o tempo que dirigiu o jornal, e coloca-se, mais do que nunca, ao lado daqueles que, cientes de sua responsabilidade para com Deus e os homens, para com o homem do século vinte, procuram evitar que a Igreja se torne mais uma relíquia, entre outras, dentro de nossa história. Agradece ainda àqueles que programaram este número, e o realizaram, sem os quais ele não sairia.

E até breve.

o O o

Do “E até breve” até hoje já vão mais de 55 anos.

Todo o material, Primeira e Segunda Parte, transcrito aqui neste blog, em Segunda Edição, Revista e Ampliada, na Estância Turística de Salto, SP, em 24 de Outubro de 2021.

Eduardo CHAVES

LIVROS MENCIONADOS

Celso Furtado, Dialética do Desenvolvimento (Editora Fundo Cultura, São Paulo, 1964. A passagem citada é o mote do livro, que se encontra na p.7. Eu adquiri esse livro em Campinas em 1964, ano de sua publicação.

Dietrich Bonhoeffer, Letters and Papers from Prison (SCM Press / Collins / Fontana Books, 1953). A passagem referida se encontra em uma carta de 30.4.1944, dirigida “a um amigo”, pp.90-93 dessa edição das Cartas e Papéis da Prisão, que eu adquiri em Campinas, em 10.8.1964.

George Thomas White Patrick, Introduction to Philosophy, 2nd edition, revised (Houghton Mifflin Company, Cambridge, MA, 1952 – 1935 foi a data da primeira edição).

Harold H. Titus, Living Issues in Philosophy: An Introductory Textbook, 4th edition (American Book Company, New York, 1964 – edições anteriores de 1946, 1953 e 1959).

James Harvey Robinson, The Mind in the Making: The Relation of Intelligence to Social Reform (Harper & Brothers Publishers, New York and London, 1921). As passagens citadas foram retiradas da Parte II, Capítulo 4, “Rationalising”, pp.40-48. Tenho também a tradução de ninguém menos do que Monteiro Lobato para o Português, sob o título A Formação da Mentalidade, 3a edição (Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1957). As passagens citadas foram retiradas da Parte II, Capítulo 4, “Racionalização”, pp.21-26. O texto citado foi, naturalmente, retirado da tradução de Monteiro Lobato.

João Dias de Araújo, Inquisição sem Fogueiras: Vinte Anos de História da Igreja Presbiteriana do Brasil, 1954-1974, 3a edição (Instituto Superior de Estudos da Religião, Rio de Janeiro, 1985 – a 1a edição é de 1975 e a segunda, de 1982). A citação feita foi retirada das pp.56-57. Há uma 3a edição revista e atualizada, publicada pela Fonte Editorial, em 2010, com Apresentação de Derval Dasílio, e uma 4a edição, em ebook, formato Amazon Kindle, publicada pela Editora Resistência Reformada, em 2020, com Apresentação do Conselho Editorial do Resistência Reformada, Prefácio de Cláudio Márcio Rebouças da Silva, e Posfácio de Ricardo Quadros Gouvêa.

John Stuart Mill, Utilitarianism, Liberty, and Representative Government (New York: Dutton, 1910). O livro On Liberty fica nas pp.61-170. As ideias mencionadas estão discutidas na p.79, no primeiro parágrafo do Capítulo II, que trata Liberdade de Pensamento e Discussão.

Waldyr Carvalho Luz, Nem General, Nem Fazendeiro: Ministro do Evangelho (Editora Luz para o Caminho, Campinas, 1994). Os textos citados estão nas pp.267-268 (“Eu encontrava séria resistência… “), p.268 (“Boa amostra do espírito desse aluno…”), pp.269-271 (“Ante o estado de coisas vigente…”).

Wilfred Trotter, Instincts of the Herd in Peace and War (Macmillan, New York, 1st ed., 1915; 2nd ed., 1919). Trotter é mencionado na passagem citada de James Harvey Robinson, que, em seu livro, se refere especialmente às pp.1-65 do livro de Trotter. Na edição brasileira do livro de Robinson o nome de Trotter está grafado de forma errada, como Totter.

NOTA:

Pretendo ainda transcrever aqui neste artigo, numa Terceira Parte, as cartas e outros documentos pessoais mencionados, que eu eu possuo em forma manuscrita, datilografada ou mimeografada. São documentos raros.

A Igreja, o Estado, o Casamento e a Família

Desde os vinte anos (em 1963) fui um liberal clássico, estilo “laissez faire”. Tornei-me um liberal desse tipo lendo o livro On Liberty, de John Stuart Mill, no meu último ano do Ensino Médio. (Comecei a minha escolaridade quase aos nove anos, e, por isso, terminei a chamada Educação Básica já na maioridade). Essa minha defesa do Liberalismo Clássico foi confirmada e radicalizada quando, aos trinta anos (em 1973), encontrei Ayn Rand e li Atlas Shrugged, pela providencial mediação de Charles King, meu colega no Pomona College, segunda instituição de ensino superior em que trabalhei. Charles posteriormente se tornou presidente do Liberty Fund, instituição liberal na área da cultura e da educação criada por Pierre F. Goodrich ((da família de B. F. Goodrich, o magnata da empresa de pneus criada em 1870). Em Pomona, Charles era responsável pela área de Filosofia Política e eu estava atuando na área de Metafísica, Lógica e Filosofia da Religião. Quanto a mim, ao fazer setenta anos (em 2013), já aposentado há seis anos da UNICAMP, e depois de ter voltado para a igreja e para a teologia, e de ter escrito bastante em defesa do Liberalismo Clássico, fui forçado a reconhecer que, na filosofia política, eu havia avançado para um Libertarianismo Anarquista, à la Murray N. Rothbart. Considero esse um avanço significativo, depois de defender o Liberalismo Clássico ao longo de cinquenta anos, dos meus vinte aos meus setenta anos. Por mais que alguns possam imaginar que se trate de evidência de senilidade, não acredito que se trate disso…

Mas isso significa que hoje estou convicto da possibilidade de uma vida social sem estado, baseada em uma mistura daquilo que David Smith chamava de interesse próprio, ou auto interesse racional (rational self interest), aquilo que Ayn Rand chama de egoísmo racional, bom senso (que inclui o sentido de uma justiça natural (aquela que nos leva a dizer, em várias situações, “isto não é justo”, that isn’t fair), e a percepção de que vale mais a pena, no longo prazo, ser bom, tolerante e pacífico, e conviver bem, e em ordem, uns com os outros, criando instituições privadas, do que as alternativas que envolvem viver em perpétuo conflito e desordem. Pode parecer meio utópico, mas essa postura mas não envolve a criação prévia de um novo homem, altruísta, defensor da igualdade substantiva, batalhador pela justiça social, inconformado com o estado do mundo; uma nova sociedade, sem classes, sem competição, em que a igualdade substantiva sempre tem a condição de trunfo (trump), sobrepujando-se à liberdade; um novo mundo que parece ser o paraíso, que foi perdido no Éden mas é reganho da sociedade sem classes e, por isso, sem conflito, com igualdade, e, por conseguinte, felicidade geral. Aquilo que, hoje, é uma Utopia.

 Na minha visão, basta apenas apelar ao nosso auto interesse racional, que inclui o nosso desejo de viver bem, em paz e em ordem, e o nosso senso natural de justiça, de que a cada cabe apenas aquilo que ele fez por merecer e que lhe é devido. E isso pode ser alcançado sem Estado (donde a referência ao anarquismo), em um clima de libertaridade (o caráter libertário, a mais plena liberdade possível), em que existem desigualdades, mas elas são justas, e, por isso, não intoleráveis.

E tudo isso pode ser feito também em um ambiente de desescolarização — certamente sem escolas públicas ou estatais e até mesmo sem escolas quaisquer,  überhaupt, ou tout court. Digo isso para conectar esta discussão com outro grande interesse meu: a Educação (não a Escola, na qual hoje não tenho nenhum interesse).

Tudo isso tem que ver, naturalmente, com o Estado, ou melhor com a desestatização da sociedade — mas o que tem que ver com a Igreja? O título deste trabalho, afinal de contas, é “Igreja e Estado”.

Antes de me referir ao que penso, é mister que diga que, embora seja defensor do Libertarianismo Anárquico, sou realista o suficiente para ter certeza de que, tão cedo, o Estado não vai embora de livre e espontânea vontade, por iniciativa própria, nem vai ser extinto, contra a sua vontade, pela vontade do povo. Logo, temos de lidar de forma racional e sensata com essa realidade, mesmo que não gostemos dela.

Isso posto, começo meu argumento.

Um postagem na forma de foto com texto que eu compartilhei no Facebook diz o seguinte:

Eis a foto:

Eu fiz o seguinte comentário ao postar essa foto:

Eis o que observei ao compartilhar essa imagem no Facebook:

“Compartilho, mas tenho reservas quanto a esta colocação, [reservas] que já expus em vários artigos, e resumirei aqui, se e quando recomendável. Compartilho, para que a colocação seja discutida, sem endossá-la.”

As reservas que tenho quanto a esta colocação já foram esclarecidas o suficiente nesta série de artigos que publiquei, no meu blog Liberal Space, entre 17 de abril de 2008 e 30 de junho de 2015 — um período de sete anos que terminou seis anos atrás, quase na data exata.

Pensei que o assunto estivesse esgotado — evidentemente, não está, como o mostra a postagem exibida atrás (a fotografia com letreiro).

  1. [17.04.2008] “A Interferência do Estado na Vida Privada: O Casamento”, em https://liberal.space/2008/04/17/a-interferencia-do-estado-na-vida-privada-o-casamento/
  2. [09.04.2013] “O Casamento entre Homossexuais”, em https://liberal.space/2013/04/09/o-casamento-entre-homossexuais/
  3. [19.05.2013] “Ainda o Casamento entre Homossexuais”, em https://liberal.space/2013/05/19/ainda-o-casamento-entre-homossexuais/
  4. [19.11.2014] “Casamento Homossexual, Poligamia / Poliandria, Casamento Poliafetivo, Casamento Incestuoso (Entre Pessoas Relacionadas por Parentesco)”, em https://liberal.space/2014/11/19/casamento-homossexual-poligamia-poliandria-casamento-poliafetivo-casamento-incestuoso-entre-pessoas-relacionadas-por-parentesco/
  5. [27.04.2015] “Contrato Civil de Convivência e Casamento (Religioso)”, em https://liberal.space/2015/04/27/contrato-civil-de-convivencia-e-casamento-religioso/
  6. [05.06.2015] “As Igrejas, o Casamento e a União Civil”, em https://liberal.space/2015/06/05/as-igrejas-o-casamento-e-a-uniao-civil/
  7. [30.06.2015] “Ainda o Casamento Gay (agora a propósito de decisão da Suprema Corte americana”, em https://liberal.space/2015/06/30/ainda-o-casamento-gay-agora-a-proposito-de-decisao-da-suprema-corte-americana/

Como esclareço no primeiro artigo o Estado não deveria meter o seu bedelho nos relacionamentos amorosos e sexuais dos indivíduos, para tentar regulá-los. Como, porém, esses relacionamentos, muitas vezes, geram, além de bebês, expectativas de direito sobre pensões, heranças, etc., o Estado, existindo, fatalmente irá tentar regular essas questões. Não devia, mas deve.

É forçoso reconhecer que, ao longo do tempo, o Estado, sob pressão dos indivíduos, vem retirando sua patinha de algumas dessas questões.

Antigamente, em muitos países, o mero engajamento em relações sexuais fora do casamento, aquilo que a Bíblia chama de fornicação, por parte de indivíduos livres e desimpedidos, solteiríssimos da silva, e de sexo diferente, era considerado crime. Hoje isso não mais se dá — exceto, aqui no Brasil, quando um dos parceiros é menor de quatorze anos (idade antes da qual o Estado presume — erroneamente, porque um adolescente de quatorze anos nos dias de hoje é plenamente capaz de dar consentimento — que ninguém é capaz de dar consentimento, presumindo-se coerção, o que torna o ato, não simplesmente um mero relacionamento sexual, mas um relacionamento sexual não consentido, ou seja, um estupro.

Antigamente, em muitos casos, o mero engajamento em relações sexuais por parte de indivíduos maiores de idade mas do mesmo sexo, era crime. Hoje isso não mais se dá, indivíduos do mesmo sexo podendo até “se casar”, como o povo diz.

Antigamente, em muitos países, o mero engajamento em relações sexuais por parte de indivíduos de sexo distinto, maiores de idade, mas casados um com o outro, o que a Bíblia chama de adultério, termo ainda usado hoje, era crime. Deixou de sê-lo há bom tempo.

E assim vai.

Para livrar-me do encargo de formular ainda uma vez, ab initio, o que penso sobre o assunto, resumirei o meu argumento a partir do artigo mais recente dos mencionados, artigo que escrevi há quase exatamente seis anos atrás, no dia. Nele discuto uma série de argumentos que basicamente implicam, em seu conjunto, a afirmação contida na postagem mencionada atrás (a fotografia com letreiro dizendo “Não foi o ESTADO que criou a FAMÍLIA. Logo, não tem AUTORIDADE para MUDAR o conceito de família.”).

a. A ideia de que alguém, Deus ou um outro ser, ou uma sociedade ou grupo social qualquer criou o casamento e a família nos moldes que o pessoal conservador, religioso ou não, imagina (um homem e uma mulher unidos em casamento para a vida toda, produzindo seus descendentes) é um mito. Nem mesmo na Bíblia há um relato da criação do casamento propriamente dito, como ele é entendido pelos conservadores. Segundo um dos relatos bíblicos, Deus criou primeiro o homem, e, depois, percebendo que ele estava meio entediado, sem o que fazer, criou a mulher. Outro relato sugere que eles foram criados juntos. Mas em nenhum dos relatos se afirma eles foram colocados lado a lado e indagados por Deus se era de sua livre e espontânea vontade que compareciam perante ele para se unir pela vida inteira a fim de manter relações sexuais e produzir descendentes, sendo fieis um ao outro até que a morte os separasse. Independentemente do que possa ter sido dito no momento da criação do homem e da mulher, supondo que foram criados, para não complicar demais o argumento, o relato bíblico mostra que os patriarcas e heróis da fé transavam livremente, com pessoas de sexo diferente ou do mesmo, tinham, no caso dos homens, várias mulheres, e independentemente disso, mantinham relacionamentos adulterinos e incestuosos, que, em alguns casos, geravam prole, etc. Longe de isso ser uma anomalia era o costume dos povos primitivos que aparecem nas páginas da Bíblia, para nos ater à religião cristã. O que encontramos na Bíblia — e na história — é qualquer coisa mas não o casamento convencional defendido pelos conservadores, cristãos ou não.

b. Mesmo que a história, bíblica ou não bíblica, relatasse que os primeiros casais humanos aderiam fielmente ao padrão conservador do casamento, é uma falácia genética, que ignora o fato do desenvolvimento social (ainda que não biológico) humano, imaginar que esse fato, por si só, endossa e valida esse padrão per secula seculorum. Mesmo que o relacionamento entre os sexos tivesse sido, originalmente, heterossexual, para a vida toda, com exigência de fidelidade completa até que um dos dois morresse, isso não prova que esse tipo de relacionamento deva ser mantido para sempre, independentemente das mudanças sociais e biológicas. Fornicação e adultério, bem como atração sexual entre pessoas do mesmo sexo, com o consequente relacionamento sexual entre elas, sempre houve no mundo — e nem a Bíblia não nega isso. Poligamia em paralelo (ainda que apenas para os indivíduos do sexo masculino) existiu em todos os tempos, e a poligamia em série, por morte ou divórcio, sempre existiu, ainda que algumas sociedades primitivas tenham exigido que a mulher fosse enterrada junto com seu marido, se ele morresse antes dela… Por conseguinte, essa história de “conceito original de família” é balela.

c. Por muito tempo, a regulação do relacionamento sexual entre as pessoas era feita pelas instituições religiosas, privadas, não pelo Estado. Foi apenas recentemente que o Estado começou a regular esse relacionamento. Mesmo assim, nunca (que eu saiba) impediu que instituições religiosas implementassem a sua própria regulação, dentro do seu âmbito.  

d. A partir, pelo menos, da Revolução Americana, que resultou na independência das colônias britânicas na América, evento que se celebra no dia de hoje, e que começou a acontecer nesse dia em 1776, firmou-se, em nações fundadas nos direitos individuais e na liberdade, o princípio de que deve haver separação entre a religião (e as igrejas) e o Estado, sem desobrigar as pessoas religiosas e os membros das Igrejas de cumprir seus deveres para com o Estado em áreas ou em relação a questões que não são caracteristicamente religiosas ou morais (envolvendo a consciência).

e. A partir desse momento, consagrou-se o princípio de que o Estado pode até regular algumas questões privadas, como as envolvendo o casamento e a família, naquilo que elas possuem ou envolvem de obrigações para com terceiros em geral. Os Estados Unidos da América, enquanto entidade política, não são um país religioso, muito menos cristão. São um país em que a religião e as igrejas são claramente separadas do Estado, que, assim, só pode ser entendido como laico ou não religioso. Mas a Constituição Americana não exige que os governantes da nação sejam ateus ou agnósticos, que o lema da nação seja “In God We Trust” (Em Deus Confiamos), que a Constituição e o dinheiro (as notas e moedas de dólar) façam referência a Deus.

f. Assim sendo, mesmo países criados sob inspiração religiosa, como os Estados Unidos, ou mesmo, até certo ponto, o Brasil, a Igreja (ou a religião) é uma coisa e o Estado é outra — embora o Brasil tenha tido uma religião oficial pelo menos até o início do período republicano.

g. O que acabou acontecendo nesses países, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, foi que o Estado veio a reconhecer e a afirmar a validade, em todo o território nacional, de contratos de união civil (normalmente chamados de “casamentos civis” e, mais recentemente, “contratos de união estável”) entre duas pessoas não casadas de qualquer sexo (ou gênero, se preferem) — e, acrescente-se, de qualquer raça, cor, nacionalidade, religião, preferência política, etc. Num primeiro momento, era apenas o primeiro desses quesitos que estava em jogo — sexo ou gênero. Mas já houve época em que casamento civil interracial era banido e deixou de sê-lo. Provavelmente, num futuro não muito distante, o Estado vai liberar casamento entre mais de duas pessoas (a chamada união poliafetiva ou poliamorosa, antigamente chamada de poligamia), ou entre pessoas que são parentes próximos (o chamado, até aqui, de incesto).

h. Não há nada antirreligioso nessas decisões, como não havia na decisão concernente ao divórcio — embora os católicos e os evangélicos conservadores também tenham protestado. O estado está regulando contratos de convivência civil (CCC) entre duas (e oportunamente mais de duas) pessoas não casadas (e oportunamente já casadas — nada havendo que impeça uma pessoa de ter múltiplas uniões civis). Não se está desafiando Deus, ou a Bíblia. Não nos esqueçamos de que os Patriarcas da Fé do Velho Testamento, Abraão, Isaque e Jacó, eram todos “poliamorosos” ou polígamos — e alguns heróis do Velho Testamento chegaram até mesmo a ter conjunções carnais, como diz o pessoal do direito, incestuosas).

i. Cada igreja ou cada grupo social tem total liberdade de definir um casamento mais significativo ou profundo ou espiritual ou carregado de valores do que o civil da forma que quiser. Pode decidir que ele será exclusivamente hétero e entre apenas duas pessoas (necessária e comprovadamente virgens, se preferem), durará para sempre, não podendo ser desfeito (mesmo que um dos envolvidos, ou os dois, estejam sofrendo de forma desesperadora por causa desse casamento, ou que o casamento envolva violência mental ou física, ou manipulação invasiva dos direitos de um cônjuge por parte do outro cônjuge).

j. Num estado laico não faz sentido que evangélicos, católicos e judeus — para não falar nos maometanos — tentem impor seus valores religiosos a todo mundo. Imaginem que os judeus ortodoxos resolvam que um homem só pode casar se for circuncidado. Vocês acham justos que o estado adote esse ponto de vista religioso e obrigue todo humano masculino a se circuncidar? Não faz sentido, não é verdade? Também não faz sentido querer que duas pessoas, para se unir em união  de convivência civil e viver em família, tenham de ser de sexos ou gêneros diferentes.

k. Por fim, já faz muito tempo que a finalidade principal do casamento civil não é a procriação, mas, sim, a parceria, o companheirismo, o apoio mútuo, a união de esforços para um fim comum, etc. Erra, portanto, e fundamentalmente, demonstrando uma imperdoável pobreza de espírito, Hélio Schwartsman, na Folha de 30.06.2015, quando afirma que “O casamento, vale lembrar, é um mecanismo através do qual o indivíduo pede ao Estado licença para manter relações sexuais com outra pessoa.” Nem de longe. Relações sexuais regulares fazem parte do casamento da maioria das pessoas — mas não de todas. Mas estão longe de ser a única razão para o casamento — em especial numa sociedade liberada como a nossa, em que a maior parte das pessoas começa a ter relações sexuais bem antes de se casar (sem pedir para ninguém, muito menos para o Estado através de sua direção, governo), em muitos casos mantém relações sexuais extraconjugais, e, findo o casamento, continua a ter uma vida sexual regular e normal (em alguns casos, até em asilos de idosos).

l. E as igrejas podem continuar a implementar exigências mais estritas e rígidas para as relações afetivas, amorosas e sexuais entre as pessoas, considerando que a sua versão dessas relações é mais válida do que a preconizada pelo Estado.

m. Mas o Estado estará ultrapassando seus limites se proibir que as igrejas façam isso ou se exigir que elas considerem a união de convivência civil proposta pelo Estado como plenamente equivalente ao casamento que elas endossam (mesmo que haja sobreposição de funções, atribuições e deveres).

n. Assim, oponho-me tanto à intervenção do Estado em questões que envolvem exclusivamente a Igreja como a intervenção da Igreja em questões que dizem respeito exclusivamente ao Estado (numa sociedade em que o Estado ainda continua a existir).

É isso…

Em Salto, 4 de Julho de 2021. Have a good Fourth of July.

“O Difícil Papel das Madrastas”

Assunto complicado é ser madrasta… Mais complicado do que ser padrasto, pelo que parece…

Aqui, matéria da Revista Crescer. [Ver a referência completa no final].

Mas em 2011 fiz um post sobre o assunto, com material do UOL, e com o título “Madrasta Antes dos 30 Anos”, que gerou muita discussão neste mesmo blog, Liberal Space. Quem quiser consultar, pode acessar:

https://liberal.space/2011/04/19/madrasta-antes-dos-30/

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Aqui está o material da Revista Crescer, disponível no seguinte URL:

https://revistacrescer.globo.com/Educacao-Comportamento/noticia/2021/02/o-dificil-papel-das-madrastas-maes-podem-enlouquecer-brigar-xingar-nos-nunca.html

O difícil papel das madrastas: “Mães podem enlouquecer, brigar, xingar. Nós, nunca”

Mulheres que se tornaram madrastas contam suas experiências e revelam como buscam ajuda para lidar com os conflitos: “Precisamos provar que não vamos ser ‘bruxas más'”, desabafam. Conheça histórias

SABRINA ONGARATTO
DO HOME OFFICE25 FEV 2021 – 11H34
ATUALIZADO EM 25 FEV 2021 – 11H34

“Padrasto é herói, assumiu uma família. Madrasta é palavrão, está tentando ocupar o lugar da mãe”, compara uma bióloga gaúcha de 25 anos, que prefere não revelar seu nome. Ela conta que se tornou madrasta recentemente e a notícia veio de surpresa. “Descobrimos durante a pandemia que meu marido tinha uma filha de 5 anos. Em março, vai fazer um ano que estamos vivenciando a ‘madrastidade’ e a paternidade”, diz. Segundo ela, a situação é complexa. “A criança é fruto de sexo casual e já tinha o registro de outro pai na certidão. Até o ano passado, esse homem acreditava ser o pai biológico”, completa.

+ “Minha filha chama a madrasta de ‘mamãe’ – e tudo bem!”

“No começo, foi difícil definir meu papel, ocupar meus espaços e viver o luto por ter casado com meu marido sem filhos e saber que ele tinha uma filha, que não saiu de mim. Atualmente, a maior dificuldade é saber quais batalhas eu devo lutar. Às vezes, abraçamos o mundo e tentamos resolver problemas e situações que não são nossas”, reflete.

AMOR E PACIÊNCIA

Quem já passou pela experiência concorda que não é fácil, mesmo quando a pessoa já entra na relação sabendo que o outro tem filhos. Uma advogada do Rio de Janeiro, que também não quis revelar sua identidade, tem dois enteados e conta que, na época em que conheceu o marido, um deles tinha 6 anos e a outra era um bebê de apenas 10 meses. “Sou madrasta há 4 anos. Quando o conheci, meu marido estava divorciado há apenas 8 meses e buscava os filhos quinzenalmente. No início, não nos encontrávamos nesses dias, pois ele se dedicava integralmente a eles. A menor ainda era um bebê e o mais velho estava confuso com a separação. Então, tivemos muito cuidado”, lembra.

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O primeiro encontro aconteceu em um passeio na praia. “A pequena era uma bebê maravilhosa, mas que não me dava muita confiança, pois era agarradíssima ao pai. Quantas broncas tomei nas minhas tentativas de trocar as fraldas… O pai, cuidadoso, tinha todo o ritual com a princesa dele. Mas, após algumas noites em claro, cuidando das crises de bronquite e muitos penteados na frente do espelho, fomos estabelecendo nossa relação. Já com o maior, foi mais fácil! Eu era a companheira para todas as brincadeiras e sua defensora oficial em todas as encrencas e bagunças”, conta.

No entanto, ela diz que, ao longo dos anos, a relação foi mudando. “Quando o litígio entre meu marido e a mãe das crianças aumentou, sofri o impacto direto. O maior, hoje com 10 anos, que era superapegado a mim, foi se afastando. Já chega na nossa casa bem reativo, mas, com muito amor e paciência, vamos nos reaproximando. É um processo bem triste e doloroso, em que todos sofrem. A pequena, que hoje está com 5 anos, é mais tranquila. Ela tem uma afinidade natural com o pai e nossa família, então, esse processo leva, no máximo, uma noite”, disse.

MADRASTA PELA TERCEIRA VEZ

A analista judiciária Ana Carolina Reis Paes Leme, 38 anos, de Curitiba, no Paraná, poderia escrever um livro com cada uma de suas experiências. “Já fui madrasta de uma garota de 17 anos; depois, de duas meninas de 10 e 12 anos e, hoje, me casei e sou madrasta de um menino de 6 anos e dois adultos, de 23 e 26 anos”, conta. “Ah, também sou vódrasta. Minha enteada mais velha tem um filho de 3 anos”, completa.

Ana Carolina conta que a relação com a primeira enteada foi muito tranquila. “Mantemos contato até hoje”, diz. Porém, passou por alguns conflitos na segunda experiência. “Namorei um homem que tinha duas meninas. Me identifiquei muito com elas e tínhamos um bom relacionamento até viajarmos os quatros juntos. A viagem foi de 28 dias para a Europa. Tudo correu relativamente bem até o 22º dia, quando eu perdi a paciência e ficou bem complicado administrar os conflitos. O namoro, claro, acabou. Porém, eu decidi buscar ajuda para compreender melhor o que tinha acontecido”, lembra. “Hoje, acredito que consegui achar um equilíbrio ao desvendar qual é o meu papel como madrasta. Casei com o pai deles, então, a casa é minha, são minhas regras e eles me respeitam muito. Sou a esposa do pai e nunca quis ocupar o lugar da mãe”, afirma.

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MADRASTA X MÃE

Mas nem sempre é fácil chegar a esse entendimento e mais, fazer com que todos a respeitem. Para Ana Carolina, os estereótipos criados pela sociedade atrapalham muito. “As histórias da Disney sempre nos colocam numa posição de bruxa má”, desabafa. Ela ainda esclarece: “Para mim, a melhor definição de madrasta vem do inglês ‘step mother’ ou ‘step mom’, que significa mãe substituta. A madrasta exerce, sim, um papel de cuidado quando a mãe não se encontra no local. Dessa forma, nos dias de semana e finais de semana que o enteado está formalmente com o pai, a criança estará, sim, com o pai e a madrasta”.

Mas, segundo Ana Carolina, um dos maiores desafios é manter um bom relacionamento com a mãe das crianças. “Os meus enteados de 26 e 23 anos são de uma mãe e o de 6 anos é de outra. Eu sou a terceira esposa. Com a primeira, tenho um ótimo relacionamento e admiro muito, mas nunca conversamos sobre a educação dos filhos dela, pois são adultos. A mãe do menino de 6 anos prefere não manter contato comigo e eu tento respeitar, na medida do possível. Eu até gostaria de perguntar a ela sobre certas rotinas do filho dela, mas como não tive abertura, achei melhor não ‘forçar’ a amizade”, diz.

Já a bióloga gaúcha conta que a relação com a mãe da enteada é mais turbulenta. “Não conseguimos construir uma relação de respeito porque, infelizmente, muitas vezes, ela usa a filha como ‘moeda de troca’. Se não buscamos na hora que ela quer ou não pagamos o que ela pede, nos nega convívio”, diz.

Assim como a bióloga, a advogada carioca conta que, apesar de conseguir manter um bom relacionamento com os enteados, o maior problema também costuma ser com a mãe das crianças. “Infelizmente, a relação não é boa”, lamenta. Mesmo assim, ela tenta fazer com que isso não interfira no clima familiar. “Nunca quis ser a mãe dos meus enteados. Quando estão na nossa casa, os recebo com muito amor e também busco oferecer o que tenho de melhor, inspirar o amor ao próximo, oferecer educação, alimentar, estimular a leitura, enfim… Conheço meus enteados desde muito pequenos e os amo como filhos, apesar de muitos não compreenderem esse amor”, disse.

BUSCANDO EQUILÍBRIO

Para Ana Carolina, o primeiro passo para que a relação seja saudável é cuidar-se. “É preciso estar com autoestima muito boa para encarar o desafio de ser madrasta. Mãe pode enlouquecer, brigar, xingar. Madrasta nunca! Nós não temos esse direito. Precisamos ser plenas e estar muito bem com nós mesmas ‘para dar conta do recado’. Porque a criança vai te testar, vai te irritar e você não pode explodir, porque essa explosão poderá significar o rompimento de um relacionamento com o enteado e com o pai dele”, alerta.

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Segundo ela, as dúvidas sobre como proceder com o enteado e como abordar o companheiro sobre os filhos sempre vão existir. Por isso, uma boa dica é buscar uma rede de apoio e falar sobre o assunto. “Eu busquei um grupo nas redes sociais e está sendo um porto seguro. Temos encontros virtuais, grupos no WhatsApp, formamos inclusive subgrupos e, a qualquer momento que alguma de nós está em apuros, a gente se reúne para discutir o problema e auxiliá-la a resolver o imbróglio! (risos)”, conta.

REDE DE APOIO

Ana Carolina faz parte do “Somos Madrastas”. O grupo foi criado por Mariana Camardelli que é educadora parental, terapeuta e escritora, mas, mais do que isso, ela é enteada e também madrasta. “Sou enteada, madrasta e mãe, nesta ordem”, pontua. “A vontade de fazer parte de um grupo que apoiasse emocionalmente mulheres que se tornaram madrastas existe desde que eu me tornei uma — há mais ou menos seis anos. Nunca encontrei esse grupo e foi por isso que decidi criar-lo”, revela. “Ser madrasta é um papel cheio de preconceitos da sociedade e pode ser um lugar muito solitário, por isso acredito que é super importante abrir essa conversa e trazer para perto mulheres que precisem de apoio, de um lugar seguro para desabafar, de entendimento e empatia”, completa.

Mariana diz que, durante os bate-papos, duas questões sempre estão presentes. “Um é o sofrimento advindo do estereótipo em si, de entrar em um relacionamento já com esse rótulo, que acaba gerando bastante ansiedade e confusão. Parece que a gente entra na história devendo, sabe? Que a gente precisa provar que não vai ser ‘bruxa má’. É desgastante a sensação de não poder errar, não poder falar ou fazer alguma coisa apenas porque existe esse estereótipo”, explica. “Outra angústia é a de não saber qual o seu papel. Até onde falar? O que fazer? Como se comportar? Educar ou não a criança? Pouco se conversa abertamente sobre o tema, transformando ele ainda mais em tabu. E assim a gente segue perdidas”, lamenta.

Hoje, o Somos Madrastas tem 17 mil seguidoras no Instagram e 25 grupos de WhatsApp fechados para trocas entre as mulheres, com cerca de 600 pessoas ao todo. Além disso, com o objetivo de organizar os conteúdos e ampliar a conversa, Mariana conta que está lançando no próximo mês, uma comunidade gratuita na internet. “Será um ambiente seguro de troca e de cocriação. Para entrar, a pessoa precisará apenas fazer um cadastro e terá oportunidade de ler, comentar, conversar com outras mulheres e participar de cursos, atendimentos em grupo e jornadas”, esclarece.

“Ao entrar em qualquer relacionamento, você entra em uma montanha russa de emoções. Tem que segurar bem firme pra não cair do carrinho. Só que quando somos madrastas, o carrinho é um pouco mais veloz”, compara a bióloga gaúcha. “O Somos Madrastas foi e é minha mola no fundo do poço. Eu estava muito mal por não saber lidar com minhas angústias e frustrações. Em meio uma pandemia, me vi madrasta e sem rede de apoio, estava enlouquecendo. Mas o grupo me acolheu e me fez enxergar que tem como fazer dar certo e, principalmente, ocupar meu papel sem ofender ninguém”, completa a bióloga.

A advogada carioca também dá um conselho importante: “Busque se colocar no lugar da mãe para entender a perspectiva dela. Fale bem da mãe para os pequenos e veja o sorriso que se abre no rostinho deles. Nunca se esqueça que mãe é mãe e madrasta é madrasta. As duas são igualmente maravilhosas e devem somar na educação de crianças e adolescentes”. “Meu enteado já me chamou carinhosamente de sapadrasta (ao me conhecer), bancodrasta (quando me pedia mesada), semidrasta (quando eu era noiva do pai dele) e depois quasedrasta (após o casamento civil). Então, quando o pai deu a ele a certidão de casamento, ele leu atentamente e me perguntou: “Onde aqui está escrito que você é minha madrasta?”, nós todos rimos muito. Conclusão: Pode ser divertido ser madrasta”, finalizou.

+ 3 passos para ser uma madrasta mais feliz

Transcrito de:

https://revistacrescer.globo.com/Educacao-Comportamento/noticia/2021/02/o-dificil-papel-das-madrastas-maes-podem-enlouquecer-brigar-xingar-nos-nunca.html

Em Salto, 26 de Fevereiro de 2021

Erik Ritter von Kuehnelt-Leddihn – Capítulo 2

A Ameaça do Rebanho, ou Procrusto à Solta

O livro, cujo título (The Menace of the Herd or Procrustes at Large, no original) empresta o subtítulo para este segundo artigo sobre Erik Ritter von Kuehnelt-Leddihn, foi publicado em 1943. Esse ano (além de ser o ano em que eu nasci e em que Casablanca ganhou o Oscar de Melhor Filme de 1942) viu a conclusão de outro livro de combate ao Socialismo ou ao Esquerdismo: O Caminho da Servidão, de Sir Friedrich von Hayek, que no original se chamou The Road to Serfdom – e que foi publicado no início de 1944 (Março), no auge da Segunda Guerra Mundial.

Neste segundo artigo da série vou procurar dar uma ideia do conteúdo do primeiro livro de von Kuehnelt-Leddihn mencionado no artigo anterior.

Começo o que escrevi sobre ele no artigo anterior, delimitando o seu foco:

“A parte inicial do título do primeiro livro faz referência a rebanho. O termo inglês ‘herd’ quer dizer, literalmente, ‘rebanho’: aquele conjunto de animais que normalmente é pastoreado em bandos. Em um bando, eles, que em geral já se parecem uns com os outros, gostam de estar juntos de seus iguais, se comportam de forma igual, e, por isso, são relativamente fáceis de pastorear. O termo “the herd” tem um sentido derivativo e figurado em Inglês: “a plebe”, “o povão”, “the generality of mankind“. Essa parte do título afirma que o rebanho, ou a plebe, ou o povão, é uma ameaça.

A parte final do título do primeiro livro faz referência a Procrusto, personagem da mitologia grega, e afirma que ele está à solta em nossa sociedade. Procrusto era um ferreiro que detestava coisas de tamanhos desiguais, e, por conseguinte, de aparência diferente. Ele tinha em sua oficina uma cama, e tentava atrair para ela as pessoas que passavam em frente da oficina. Dentro da oficina, ele colocava a pessoa na cama. Se ela fosse menor do que a cama, ele a espichava, usando sua arte de ferreiro, para que ficasse do tamanho exato da cama; se fosse maior, ele lhe cortava um pedaço (cortar um pedaço é sempre mais fácil do que esticar) para que ela também ficasse do tamanho exato da cama. Ao sair da oficina, todas as pessoas tinham exatamente o mesmo tamanho, e, assim, eram, pelo menos no tocante ao tamanho, iguais. O autor não diz no título, mas ele achava Procrusto, tanto quanto o rebanho, uma ameaça.

Procrusto detestava a desigualdade e gostava de rebanhos, em que todos animais têm a mesma aparência, gostam de seus iguais, e se comportam, em geral, da mesma maneira. Mas Procrusto era um perigo: se você passasse em frente da oficina dele corria o risco de ser espichado ou de ser encurtado para ficar igual aos demais.”

O livro contém o seguinte frontispício:

“Este livro é dedicado a todos os que defendem nossa liberdade com a espada, não com a caneta, em todos os cinco continentes desta Terra.”

Como adverte o editor do e-book que estou usando, Francis Stuart Campbell, a causa que von Kuehnelt-Leddihn esposa e defende não era popular em 1943, quando ele publicou o livro, nem, tampouco, é agora. Durou pouco o interregno liberal representado por Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margareth Thatcher, no Reino Unido. Mas ele deixou raízes, algumas das quais começam a frutificar no Brasil de hoje.

A causa que von Kuehnelt-Leddihn esposa e defende é a defesa e a promoção da liberdade contra seus inimigos — em especial contra os que buscam a promover a igualdade. Mas von Kuehnelt-Leddihn também esposa e defende a cultura liberal que só viceja em ambiente de liberdade. O fato de nossa cultura, agora também em sentido mais estreito e técnico, envolvendo as artes, em geral, e aquilo que o povo cultiva, estar em estado deprimente e lastimável, é sintomático do fato de que a liberdade está ameaçada pelo cerco dos movimentos que busca a igualdade a todo custo, movimentos que von Kuehnelt-Leddihn discute neste e nos outros dois livros. O fato de que a Globo é ainda líder de audiência no Brasil, apesar de um programação nojenta  com suas novelas, suas séries, seus shows, seus programas supostamente sérios como “Profissão Repórter”, conduzido por aquele repórter que faz jus ao nome de Caco Barcelos, e malgrado um jornalismo ativista revoltante, em favor de causas que hoje começam a se tornar visivelmente impopulares, é prova dessa afirmação. O fato de que seus índices de audiência vêm caindo gradualmente, mas sem oscilar, nos últimos tempos é sinal de alguma esperança — mesmo que as redes concorrentes estejam longe de merecer a audiência que vêm conquistando.

O livro se inicia com uma Nota Explicativa sobre o conceito de Democracia — conceito que se tornou tão positivo em seu sentido que quase ninguém ousa se dizer não-democrata, quanto mais anti-democrata. Até os países soviéticos do Leste Europeu, durante a Guerra Fria, se diziam democráticos. A Alemanha Comunista (a Oriental) era “República Democrática da Alemanha”, embora nada tivesse de democrático, enquanto a Alemanha Ocidental se chamava “República Federal da Alemanha”, deixando de lado o adjetivo confiscado pela parte da Alemanha que não fazia jus a ele. O governo do PT, aqui no Brasil, quando queria e tentava controlar a mídia, para acabar com o restinho de independência que ela tinha, que o governo não conseguia comprar com verbas publicitárias, dizia que iria democratiza-la, ou, pelo menos, torna-la mais democrática.

Von Kuehnelt-Leddihn começa esclarecendo que “governo representativo como o que foi estabelecido nos Estados Unidos não é sinônimo de democracia”. O que os Pais Fundantes da República Americana criaram não foi uma democracia, mas, sim, uma res publica, uma politéia. Este segundo termo figura em Grego no título do livro de Platão que Cícero traduziu para o Latim como Res Publica, a Coisa Pública, Republica, e que foi traduzido para o Português como A República. Durante os debates para a definição da Constituição dos Estados Unidos, ficou claro que os Pais fundadores da nação não buscavam uma democracia, mas, sim, uma república.

Um exemplo ilustra o que ele quer dizer: a censura é algo iliberal e antiliberal, porque vai contra a liberdade, mas não fere a democracia (não é anti-democrático, nem mesmo ademocrático), SE promovido por um governo eleito pela maioria do povo e se a maioria do povo deseja cercear as opiniões de segmentos minoritários da população.

A Constituição Americana só foi aprovada nos Congresssos dos Estados (antigas Colônias) quando lhe foi incorporada, a título de Primeira Emenda, A Carta de Direitos (The Bill of Rights), que deixa cristalinamente claro, em seu Artigo 1o, que, o Congresso, mesmo de 100% dos senadores e deputados estejam de acordo, e mesmo que seja para atender o clamor de 99,99% da população, fica terminantemente proibido de aprovar qualquer legislação que elimine, viole ou restrinja o direito de expressão. Nunca uma democracia admitiria um dispositivo desses.

A Constituição aprovada pela Constituinte Americana em 1787 não era uma constituição democrática: era, muito mais, uma “constituição republicana aristocrática”, para citar, apud von Kuehnelt-Leddihn as palavras de Ralph Adams Cram.

Mesmo Thomas Jefferson, o Pai Fundante mais brilhantee querido da nação americana, o autor da Declaração de Independência, o Ministro Plenipotenciário da nação americana junto ao governo francês durante a Revolução Francesa, o terceiro presidente dos Estados Unidos (1801-1809), em grande parte responsável por duas importantes medidas, a compra (em 1803) da Região de Lousiana, que era da França, e a expedição de Lewis & Clarke (1804-1806), que permitiram a expansão da nação para o Oeste, mesmo ele não era democrata: ele era defensor de um republicanismo aristocrático, em que os melhores governam.

Disse ele em uma carta de 28/10/1814, a John Adams, que havia sido o segundo Presidente da nação (1797-1801),

“Considero a aristocracia natural o dom mais precioso que a natureza nos legou para nos orientar sobre a melhor forma de governo em sociedade. De fato e na verdade, teria sido inconsistente se o homem tivesse sido feito para viver em sociedade e quem foi responsável pela criação não houvesse dotado um número suficiente deles com a virtude e a sabedoria necessárias para gerir as preocupações da sociedade. Não é essa a melhor forma de governo, a saber, aquela que é mais efetivamente capaz de selecionar esses aristoi naturais para ocupar os cargos do governo?” [passagem citada por von Kuehnelt-Leddihn].

Afirma von Kuehnelt-Leddihn mais adiante:

“Os Estados Unidos não são uma democracia. Não lutamos pela democracia. Lutamos pela liberdade. O país luta não só pela sua sobrevivência, luta pela pela sua liberdade — bem como pela liberdade de outros países. A dignidade humana nunca será preservada sem liberdade. A liberdade é, portanto, o bem real, o bem precioso que vale a pena preservar e redimir mesmo que sangue seja derramado”.

Discutir como é que a República dos Pais Fundantes virou a Democracia de Franklin Roosevelt e de hoje nos levaria muito longe, mas não há a menor dúvida de que, aquilo que os Estados Unidos são hoje, ainda que muito melhor do que aquilo que a União Europeia é, está longe de ser o que os Pais Fundantes da nação americana desejavam e esperavam.

Uma outra deformação na percepção da forma de governo escolhida pelos Pais Fundantes da nação americana apontada por von Kuehnelt-Leddihn é a seguinte:

Não se pode dizer que a Constituição Americana tenha impedido ou mesmo retardado a transformação da forma de governo da nação americana em uma democracia. Mas é inegável que, quando criada pela Constituição em 1787, essa forma de governo claramente não era democrática (no sentido de estabelecer eleição direta para cargos, sufrágio universal, governo da maioria que pudesse, por ser maioria, desrespeitar os direitos de minorias até mesmo de um).

“Liberdade e Igualdade são conceitos que não estão intrinsicamente conectados, de modo a ser impossível ter liberdade perfeita sem ter igualdade completa”.

Mas essa questão será discutida em mais detalhe no segundo livro.

Em São Paulo, 14 de Junho de 2019

Erik Ritter von Kuehnelt-Leddihn – Capítulo 1

Erik Ritter von Kuehnelt-Leddihn — que nome impressionante, não? — nasceu na Áustria em 31/07/1909 (na época, ainda Império Austro-Húngaro). Morreu também na Áustria , em 26/05/1999 (no apagar das luzes do século 20), também na Áustria. Viveu, portanto, uma vida relativamente longa: basicamente noventa anos (que se espalharam pelo século 20 e por inúmeros países do globo): faltavam apenas dois meses e cinco dias para ele completar noventa anos, quando morreu.

Falava com fluência oito línguas — nas quais era capaz também de escrever mais do que competentemente. Lia, sem problemas, além de nessas oito, em mais dezessete. Dominava, de alguma forma, 25 línguas — em parte porque morou em diversos países que falavam línguas diferentes.

Escreveu vários livros, em especial na área de Filosofia Política, tendo escrito também ficção. Admiradíssimo por uns poucos, a quem eu muito respeito, e totalmente desconhecido por aquele segmento da população que David Hume gostava de chamar de “the generality of mankind” (a maioria generalizada da humanidade).

Tenho, já há algum tempo, em ebook, formato Kindle, três livros dele — os que eu considero os melhores, e que menciono a seguir em ordem cronológica, do mais antigo para o mais recente:

The Menace of the Herd or Procrustes at Large (1943) [A Ameaça do Rebanho, ou Procrusto à Solta]

Liberty or Equality: The Challenge of our Time (1952) [Liberdade ou Igualdade: O Desafio do Nosso Tempo]

Leftism: From de Sade and Marx to Hitler and Marcuse (1974) [Esquerdismo: De de Sade e Marx até Hitler e Marcuse]

Os títulos são sugestivos e instigantes, mas podem requerer alguma exegese. Por isso, eu a forneço.

A parte inicial do título do primeiro livro faz referência a rebanho. O termo inglês “herd” quer dizer, literalmente, “rebanho”: aquele conjunto de animais que normalmente é pastoreado em bandos. Em um bando, eles, que em geral já se parecem uns com os outros, gostam de estar juntos de seus iguais, se comportam de forma igual, e, por isso, são relativamente fáceis de pastorear. O termo “the herd” tem um sentido derivativo e figurado em Inglês: “a plebe”, “o povão”, “the generality of mankind“. Essa parte do título afirma que o rebanho, ou a plebe, ou o povão, é uma ameaça.

A parte final do título do primeiro livro faz referência a Procrusto, personagem da mitologia grega, e afirma que ele está à solta em nossa sociedade. Procrusto era um ferreiro que detestava coisas de tamanhos desiguais, e, por conseguinte, de aparência diferente. Ele tinha em sua oficina uma cama, e tentava atrair para ela as pessoas que passavam em frente da oficina. Dentro da oficina, ele colocava a pessoa na cama. Se ela fosse menor do que a cama, ele a espichava, usando sua arte de ferreiro, para que ficasse do tamanho exato da cama; se fosse maior, ele lhe cortava um pedaço (cortar um pedaço é sempre mais fácil do que esticar) para que ela também ficasse do tamanho exato da cama. Ao sair da oficina, todas as pessoas tinham exatamente o mesmo tamanho, e, assim, eram, pelo menos no tocante ao tamanho, iguais. O autor não diz no título, mas ele achava Procrusto, tanto quanto o rebanho, uma ameaça.

Procrusto detestava a desigualdade e gostava de rebanhos, em que todos animais têm a mesma aparência, gostam de seus iguais, e se comportam, em geral, da mesma maneira. Mas Procrusto era um perigo: se você passasse em frente da oficina dele corria o risco de ser espichado ou de ser encurtado para ficar igual aos demais.

O título do segundo livro remete, portanto, ao título do primeiro: Liberdade ou Igualdade. O que é preferível, liberdade ou igualdade? Uma sociedade de pessoas livres, até mesmo radicalmente livres (como cavalos selvagens, difíceis de domar e impossíveis de pastorear), ou uma sociedade-rebanho, em que todo mundo pensa igual, se comporta igual, acaba ficando igual, e, por isso é mais fácil de governar? A primeira é impossível de “pastorear” — pode até ser governada, mas não mediante pastoreio; a segunda, parece que foi criada para viver debaixo do cajado do pastor e do ladrar (e morder) de seus cães pastores. Esse, considera o autor, é o grande desafio de nosso tempo. Esse desafio representa uma escolha: temos de decidir o que preferimos.

O título do terceiro livro indica o que o autor vê naquilo que ele chama de Esquerdismo. Os esquerdistas, como todos sabem, se conhecem pela sua opção pela Igualdade e pela sua luta contra as Desigualdades, em vez de pela Liberdade. Quem luta pela Liberdade são os liberais. Até aqui, não há novidade. A novidade é que o autor vai analisar o Esquerdismo a partir do Marquês de Sade (o homem que deu nome ao Sadismo) e de Karl Marx até Adolf Hitler e Herbert Marcuse. Que Marx e Marcuse são esquerdistas notórios, um do século 19, o outro do século 20, também não é novidade. Mas estariam o Marquês de Sade e Hitler, ambos personagens funestos, também identificados com o Esquerdismo, representantes da Esquerda, que estaria associada ao Sadismo e ao Nazismo? Essa a grande questão…

Este é Capítulo 1 de uma série de artigos sobre Kuehnelt-Leddihn que eu vou escrever aos poucos. Este primeiro é o chamariz.

São Paulo, 14 de Junho de 2019

A Importância de Viver Desentribado: Uma Defesa do Liberalismo

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Mario Vargas Llosa
[Credit: Christopher Anderson/Magnum, for The New York Times]

Acabei de ler o capítulo inicial do mais recente livro de Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura de 2010, e um dos meus escritores favoritos. O nome completo dele é Jorge Mario Pedro Vargas Llosa. O livro, que ganhei de presente de minha mulher pelo meu aniversário de 75 anos (que será no dia Sete de Setembro, mas a semana inteira é de comemoração), tem o título sugestivo de La llamada de la tribuA chamada da tribo, The call of the tribe. Poderia bem se chamar, alternativamente, A atração do entribamento, embora a palavra “entribamento” soe meio feio. Se a palavra “entribamento” não existe (e parece que não existe), acabo de cria-la, com o verbo correspondente, com o sentido de “ato de entribar (-se)”, “condição de pertencimento a uma tribo”. “Entribar”, ou, talbez melhor, “entribar-se”, teria o sentido, naturalmente, de “tornar-se membro de uma tribo”, ou mesmo de “pertencer a uma tribo”.

Mário Vargas Llosa sabe do que fala. Pertenceu à tribo vermelha dos comunistas, em sua juventude, à tribo rosa escuro dos socialistas, logo depois, e à tribo rosa claro dos sociais democratas, ainda um pouco mais tarde. Depois, desiludido com as tribos da esquerda, desentribou-se (esse verbo também fica criado).

Engana-se quem pensa que, tendo se desentribado das tribos da esquerda, Vargas Llosa simplesmente mudou de tribo, passando a pertencer à tribo liberal clássica (com alguns ajustes aqui e ali). Ele se desentribou de vez, “überhaupt”. Decidiu não mais pertencer a nenhuma tribo. Tornou-se o que os americanos chamam de “rugged individualist”, um individualista vigoroso e resistente. O livro, que é, em grande medida, uma autobiografia, procura mostrar por que o entribamento é um perigo para a liberdade, para a autonomia, para o ser dono do próprio nariz, para o viver “my way”, “à mi manera”, “de ma façon”, “auf meine Weise”, do meu jeito, à minha moda, sem precisar dar satisfações a quem seja… (exceto no caso daqueles deveres que o afeto e respeito impõe).

Como disse, li apenas o primeiro capítulo, até agora. O livro tem oito. Os outros sete discutem sete influências liberais sobre a vida do autor (os nomes estando ordenados pela data do nascimento): Adam Smith (1723-1790), José Ortega y Gasset (1883-1955), Friedrich August von Hayek (1899-1992), Sir Karl Popper (1902-1994), Raymond Aaron (1905-1983), Sir Isaiah Berlin (1909-1997), Jean-François Revel (1924-2006). Todos estes estão entre meus autores favoritos. Deles, Ortega y Gasset é o que menos li. Dos demais, tenho e já li de dez livros para cima, de cada um.

Confesso que sinto falta de alguns nomes, em especial dos de (ordenando pelo mesmo critério) Ludwig von Mises (1881-1973), Ayn Rand (1905-1982), e de Milton Friedman (1912-2006) nessa lista. Eu completaria a lista com esses três nomes, deixando-a com dez – com, além do próprio Vargas Llosa, dois Prêmios Nobel de Economia, von Hayek (1974) e Friedman (1976), e dois Sirs, Karl Popper e Isaiah Berlin. Nada mal.

Voltemos, porém, ao primeiro capítulo do livro. Ali Vargas Llosa esclarece, com precisão e rara felicidade, a diferença entre o Liberalismo (estilo clássico) e o Conservadorismo, o Liberalismo e o Libertarianismo, o Liberalismo e o Anarquismo, etc. Discute ainda por que o Liberalismo (desse matiz) não é uma Ideologia. E defende, com cuidado, no final do capítulo, a importância da Educação para o Liberalismo – para que, na corrida da vida, todos possam ter uma linha de largada mais ou menos comparável, e se possível equivalente – certamente não intolerantemente desigual. A busca por uma linha de largada exata e impecável, igualíssima para todos, é uma utopia não liberal.

Recomendo. É uma excelente análise do Liberalismo Clássico — e é uma defesa, também. No processo, é uma interessante autobiografia intelectual. E, por fim, é uma discussão, importante e pertinente, da questão da atração, em alguns casos quase que irresistível, que tem sobre nós o entribamento.  Muitos anseiam por uma tribo que, fazendo-os sentir aceitos e devidamente entribados e enturmados, os dispense de buscar / construir sua identidade pessoal individual, própria e única e de pensar por si próprios. Passam a se ver apenas como membros de uma tribo, daquela tribo, que pensa por eles. Esta é a essência do “group think“. Os entribados precisam esperar que o pajé da tribo revele o que ele pensa para saber o que eles próprios pensam.

Não creio que o livro já esteja em Português. Saiu no primeiro semestre deste ano.

Em 5 de Setembro de 2018.

Preâmbulo a uma Defesa do Liberalismo

Preâmbulo a uma Defesa do Liberalismo [1]

Eduardo O C Chaves

A finalidade deste artigo é modesta. Não se trata, aqui, de defender o liberalismo, mas, sim, de preparar um terreno para uma defesa que virá em número subseqüente desta revista. Minha intenção é primeiro deixar claro o que se pretende defender para, só depois, me preocupar em defendê-lo.

O leitor com bom conhecimento da história da filosofia, em particular da filosofia política, não deixará de constatar, neste artigo, um tom bastante didático. O artigo, na sua feição atual, foi escrito para que alunos do Curso de Pedagogia se familiarizassem com esse ideário de uma forma razoavelmente neutra.

Na literatura filosófica e política brasileira o termo “liberalismo” virou termo de opróbrio, tendência que é mister contestar. Dada a natureza didática do texto, também não me preocupei em tornar a sua leitura mais complicada atravacando-o com citações e notas de rodapé.

Esclareço, inicialmente, que ao falar em liberalismo estarei me referindo, principalmente, ao liberalismo clássico, ou laissez faire. Não estou, portanto, preocupado em elucidar os vários significados atribuídos ao termo “neo-liberalismo”.

I. Conceituação Inicial

O liberalismo é, basicamente, uma filosofia política. Embora tenha se tornado famoso no final do século XVII e, principalmente, no século XVIII, o liberalismo tem uma nobre linhagem que remonta à antigüidade – aos gregos e mesmo aos hebreus (como bem demonstra Lord Acton).

A filosofia liberal se sustenta no princípio fundamental de que, no contexto da relação do indivíduo com o estado (e mesmo com a sociedade), a liberdade do indivíduo é o bem supremo, que, enquanto tal, tem preponderância sobre qualquer outro que possa ser imaginado. Defender o liberalismo, portanto, é defender a liberdade que lhe empresta o nome.

É esse princípio fundamental que sustenta o corolário de que melhor estado é aquele que governa menos, deixando, portanto, aos indivíduos mais liberdade. O melhor estado, assim, é o “estado mínimo”, que deixa aos indivíduos o máximo de liberdade compatível com a vida em sociedade. Este princípio do estado mínimo é, assim, uma decorrência do princípio da liberdade do indivíduo como bem supremo.

Poder-se-ia imaginar, porém, que o ordenamento social mais compatível com a preservação da maior liberdade possível do indivíduo fosse aquele em que não existisse estado – ou seja, o ordenamento social em que as pessoas se auto-governam sem necessidade de instituições políticas (governos). Essa alternativa, que podemos chamar de anarquista, tem sempre tido uma atração especial para os liberais. A única razão pela qual os liberais rejeitam a alternativa anarquista é que o liberalismo tem uma visão razoavelmente pessimista da natureza humana (em relação à visão da natureza humana pressuposta pelos anarquistas). Os liberais acreditam que, sendo a natureza humana o que é, não é possível preservar a liberdade dos indivíduos sem um estado que defenda o indivíduo contra violações de sua liberdade (de seus direitos) por outros indivíduos, que sirva de árbitro para julgar desavenças entre indivíduos, e que se ocupe em defender a liberdade dos seus cidadãos contra agressões externas.

Essas funções do estado, relacionadas com a proteção dos indivíduos uns contra os outros (função policial), com a arbitragem de desavenças (função judicial) e com a proteção dos indivíduos contra agressão externa (função militar), são, portanto, para os liberais, necessárias e legítimas, indispensáveis para a preservação de um máximo de liberdade para os indivíduos no ordenamento social. Sem um estado que as desempenhe, os indivíduos ficarão presa fácil dos mais fortes ou mais espertos, tanto dentro como fora da comunidade em que vivem.

Mas não sendo otimista em relação à natureza humana, o liberal também não o é em relação ao estado, e, assim, ao mesmo tempo que reconhece a sua necessidade, procura limitar drasticamente as suas funções e colocar um freio aos seus poderes (através de uma constituição que basicamente garanta os direitos básicos do indivíduo e terminantemente proíba o estado de, através de legislação, restringir esses direitos. Vide adiante.) Tendo, portanto, definido aquelas três como funções necessárias e legítimas do estado, os liberais vão além e sustentam que elas são as únicas funções que o estado deve exercer.

Assim, se o liberalismo se distingue, de um lado, do anarquismo, por defender a necessidade do estado, distingue-se, de outro, tanto da democracia social como do socialismo (que serão discutidos adiante), por negar, contra a primeira (democracia social), que o estado deva ter funções sociais (na área da educação, saúde, trabalho, seguridade social, infraestrutura, meio ambiente, etc.) ou funções reguladoras da atividade econômica (definindo normas que restrinjam ou ordenem a liberdade dos agentes econômicos), e, contra o segundo (socialismo), que o estado deva, ou possa, ter participação direta e ativa na economia (como detentor, total ou mesmo parcial, dos meios de produção). Assim, os liberais sustentam que o estado não deve ter funções sociais nem, muito menos, funções econômicas, na sociedade, restringindo-se suas funções às três apontadas atrás: a função policial, a função judicial e a função militar.

Resumindo:

(a) quando aplicado à chamada área social, o liberalismo sustenta a tese de que é a iniciativa privada que deve prover, com exclusividade, serviços e eventualmente bens na área da educação, da saúde, do trabalho, da seguridade social, de infraestrutura, do meio ambiente, etc. O estado deve se abster não só de prover serviços e bens nessas áreas como de regulamentar (através de legislação e normatização) as atividades que nelas são exercidas pela iniciativa privada;

(b) quando aplicado à economia, o liberalismo sustenta, com maior razão, a tese de que o mercado é o melhor regulador da atividade econômica, e que o estado deve, portanto, se abster de envolvimento na economia, tanto no que diz respeito à produção como no que diz respeito à distribuição de riquezas, ou mesmo à regulamentação do processo.

É preciso registrar, aqui, que tanto o liberalismo como o anarquismo são implacáveis defensores da liberdade do indivíduo. Para ambos a liberdade do indivíduo é o bem supremo. Ambos estão unidos, portanto, em relação ao objetivo final: a maximização da liberdade do indivíduo. Divergem, entretanto, quanto aos meios de alcançar esse objetivo maior. Os anarquistas acreditam que a não existência do estado é a melhor forma de maximizar a liberdade do indivíduo, visto que consideram possível a vida social regulada apenas pelos próprios indivíduos, voluntariamente, sem necessidade de um poder maior que os coaja ou coerça. Os liberais, menos otimistas (ou mais realistas) em relação à natureza humana, acreditam que, sem um estado que garanta a liberdade de todos os indivíduos, essa liberdade tende, facilmente, a se reduzir e, eventualmente, a desaparecer. Liberais e anarquistas concordam, portanto, em relação ao fim: divergem apenas em relação aos meios. Na luta contra as outras filosofias políticas tendem a ficar do mesmo lado.

Isto posto, deixarei de lado, em grande medida, na discussão que segue, o anarquismo, porque não há tantos defensores dessa tendência no cenário político de hoje. Vou concentrar a atenção, portanto, nos inimigos do liberalismo (e, a fortiori, do anarquismo) – que hoje, a despeito das aparências, são legião.

II. Os Inimigos do Liberalismo

Os grandes inimigos do liberalismo são as filosofias políticas que procuram aumentar a função do estado. Dentre estas, as duas principais são a democracia social e o socialismo (já mencionados).

Na verdade, é plausível argumentar que, do outro lado das trincheiras, o socialismo representa, em relação à democracia social, a mesma função que o anarquismo representa em relação ao liberalismo. Do lado do anarquismo o estado é reduzido a nada – do lado do socialismo sua função é inflada de tal forma que o estado passa a ser tudo (nada do que acontece na sociedade está fora da esfera de alcance do estado). Didaticamente, portanto, é mais fácil entender a democracia social depois de compreender o socialismo.

O socialismo, como o liberalismo, é uma filosofia política que se tornou popular principalmente no século XIX, embora tenha importantes antecedentes no século XVIII e mesmo antes. O socialismo defende a tese de que o estado deve controlar ao máximo a sociedade (“governar o máximo possível”), planejando, de forma centralizada, toda a atividade econômica, chegando até mesmo ao ponto de ser proprietário de todos os meios de produção, e, portanto, ficando na posição não só de planejador, mas, também, de executor da atividade econômica. Nesta formulação radical, a propriedade privada dos meios de produção seria terminantemente proibida: todo trabalhador seria, em princípio, um funcionário público que faria apenas aquilo que o estado determinasse. A remuneração dos trabalhadores seria fixada levando em conta as necessidades do indivíduo, não a sua capacidade, produtividade, ou mesmo o número de horas que dedicasse ao trabalho. O princípio consagrado na Crítica do Programa Gotha é: “De cada um segundo a sua habilidade; a cada um segundo as suas necessidades”. Como se supõe que as necessidades dos indivíduos sejam basicamente semelhantes, não haveria maiores diferenciais na escala salarial, não importa que trabalho o indivíduo fizesse nem qual fosse a sua habilidade ou produtividade ao realizá-lo.

Colocado, assim, nesta forma crua, o socialismo dificilmente seria atraente, porque parece plausível imaginar que, quanto mais se aumentem as funções do estado, tanto menor se torna o espaço reservado à liberdade dos indivíduos – e, normalmente, os indivíduos prezam a sua liberdade. A estratégia usada pelo socialismo para enfrentar essa dificuldade tem sido argumentar que há bens maiores do que a liberdade. Entre esses bens maiores destacam-se as chamadas igualdade e justiça social (que, na verdade, em última instância acabam sendo a mesma coisa para os socialistas [2]). Argumentam os socialistas que o liberalismo, ao enfatizar a liberdade, inclusive na área econômica, deixa a porta aberta para o surgimento de desigualdades econômicas e, conseqüentemente, sociais (algo que, de resto, nenhum verdadeiro liberal jamais negou). Sustentam, ainda, que essas desigualdades são injustas – colocando-se, portando, como defensores da justiça (que freqüentemente qualificam denominam de justiça social, para distingui-la da “velha justiça”, segundo a qual o justo seria dar a cada um o que lhe é devido em função de que fez).

Os liberais, embora admitam que sistemas políticos liberais produzem grandes desigualdades econômicas e sociais, negam que essas desigualdades sejam, por isso, necessariamente injustas – segundo o conceito tradicional de justiça. Assim, dourando a pílula, o socialismo defende a tese de que o estado, como detentor de todos os meios de produção, não poderia deixar de ser, também, o grande agente na área social, provendo aos cidadãos (gratuitamente) os serviços e bens necessários nas áreas da educação, da saúde, da seguridade social, do transporte, da moradia, da infraestrutura, etc. Assim todos os indivíduos teriam, basicamente, acesso aos mesmos serviços e bens na área social, havendo, portanto, além de igualdade econômica, igualdade social.

Além da força bruta, a única forma que o socialismo encontrou de persuadir os indivíduos a abrirem mão de suas liberdades, assim permitindo a implantação do ideário socialista, foi prometendo-lhes um bem supostamente maior: a igualdade (econômica e social) e, com ela, a justiça (qualificada de social). Historicamente, porém, todas as vezes que se tentou implantar o socialismo, a liberdade individual não foi apenas reduzida: foi totalmente eliminada (União Soviética a partir de 1917, Leste Europeu depois da Segunda Guerra Mundial, Cuba, a partir de 1960, etc.). A sede de liberdade, entretanto, parece ser maior, nos indivíduos, do que o desejo de igualdade. Os últimos dez anos parecem ter provado isso (escrevo em 1999).

A democracia social pretende ser uma forma mais branda de socialismo: um socialismo parcial e democrático, que, como tal, mantém uma quantidade módica de liberdade. A democracia social abre mão da propriedade de todos os meios de produção pelo estado e mesmo da tese do planejamento centralizado de toda a economia. A democracia social alega que deixa a produção, tanto quanto possível, nas mãos da iniciativa privada, só intervindo no setor produtivo para regulamentá-lo, em especial em seus aspectos distributivos, e para suprir lacunas ou omissões (áreas em que a iniciativa privada não teria interesse). O que realmente interessa à democracia social é a chamada distribuição das riquezas produzidas pela atividade econômica, ainda que privada, algo que a democracia social se propõe fazer através de legislação tributária que rotula de “progressista”. (É interessante notar que os democratas sociais geralmente falam em “redistribuição das riquezas”, como se o mercado houvesse feito uma primeira distribuição que agora, em nome da justiça social, é preciso corrigir).

O ideário da democracia social inventou um sem número de conceitos e mecanismos para convencer os indivíduos de que deveriam, democraticamente (isto é, agora sem força bruta), concordar em abrir mão de parte de seus bens (dinheiro) em benefício dos “desfavorecidos”, das vítimas das “injustiças sociais”, assim colaborando para a criação de uma sociedade mais igualitária e menos injusta. A democracia social inventou a tese de que ninguém é realmente livre enquanto é pobre e criou um sem número de “direitos sociais”: direito à educação, à saúde, ao trabalho, à seguridade social, ao transporte, à moradia, etc.

Registre-se, aqui, que a aceitação da democracia social pode até se fazer sem força bruta (tanques, fuzis, “Gulags”, “paredóns”, etc.), mas certamente não se faz sem força – como qualquer cidadão que decidir não pagar impostos destinados a funções estatais que ele considera indefensáveis facilmente descobrirá, como o fez Henry David Thoreau, no século passado, nos Estados Unidos.

III. O Chamado Neo-Liberalismo

E o chamado “neo-liberalismo”, o que é? Registre-se, primeiro, que esse termo, em regra, raramente é usado por liberais para se referir a si próprios. Ele normalmente é usado pelos socialistas e democratas sociais para designar toda e qualquer pessoa ou iniciativa voltada para “reduzir o tamanho do governo”. As pessoas ou iniciativas designadas como neo-liberais normalmente estão longe de ser liberais no sentido clássico do termo, que esboçamos atrás. O Presidente Fernando Henrique Cardoso, ex-socialista, têm sido rotulado de “neo-liberal” pela esquerda. Ele próprio fez uma tímida tentativa de negar, dizendo-se “neo-social”, não “neo-liberal”. Esta é uma das poucas afirmações do Presidente com a qual concordo. As iniciativas que lhe valeram o ódio da esquerda socializante foram, principalmente, as que envolveram a venda de empresas estatais. Ora, se a conceituação que fizemos está correta, o governo FHC, ao vender as estatais, está, na realidade, procurando dizer ao povo que o Presidente, anteriormente, socialista, está vindo para o mais para o centro, na direção da democracia social, em que a participação do estado na setor produtivo não é considerada essencial. Em nenhum momento, porém, o governo FHC deixou de propugnar por um ativo envolvimento do estado na área social e por sua ativa participação na distribuição das riquezas produzidas e na regulamentação do setor produtivo. Por isso, o rótulo de “neo-social” é muito mais apropriado do que o de “neo-liberal”. Liberal, sem qualificativos, é algo que o Presidente Fernando Henrique Cardoso absolutamente não é – nem vai ser.

IV. Liberalismo, Liberdade e Direitos Individuais

O liberalismo sempre foi um defensor ferrenho dos direitos individuais – que não devem ser confundidos com os chamados “direitos sociais” propugnados pela nossa Constituição (que, nisso, imitou a Declaração de Direitos Humanos da ONU, indo, porém, muito além do modelo). Como já assinalado, o liberalismo é zeloso defensor da liberdade dos indivíduos. Essa liberdade é sempre concebida, porém, de forma negativa: o indivíduo é tão mais livre quanto menos ele é impedido de realizar seus desejos e objetivos por fatores externos a ele. A única restrição legítima à liberdade do indivíduo que o liberalismo admite é aquela decorrente do princípio de que todos devem ser igualmente livres. A liberdade de um indivíduo só pode ser restringida, portanto, quando sua não restrição implique restrição indevida da liberdade de outros. Em suma, a liberdade de um termina onde começa a do outro.

Como definir isso? Em tese, usa-se um princípio (“regra de bolso”) bastante próximo da lei áurea negativa: não fazer aos outros o que não queremos que eles nos façam. Minha liberdade estará indevidamente interferindo com a liberdade de outrem, e, portanto, poderá ser restringida, se, estando nós em posição trocada, eu concluír que está havendo interferência indevida com a minha liberdade.

Digamos que eu resolva tocar pistão, sem surdina, à meia-noite, em um prédio de apartamento sem isolamento acústico. Seria essa ação uma interferência indevida com a liberdade dos meus vizinhos? Sim, se eu concluir que, fosse o tocador de pistão o meu vizinho, sua liberdade deveria ser restringida para não perturbar a minha liberdade de dormir sossegado. Na prática, esses comportamentos acabam sendo regulamentados de forma que todos consideram justa.

O liberalismo geralmente exprime sua defesa da liberdade dos indivíduos através de uma defesa dos chamados direitos individuais. Os direitos individuais básicos que o liberalismo reconhece são quatro:

  • O direito à vida, isto é, o direito de não ser morto por terceiros, e, naturalmente, de não ter minha vida, minha saúde e minha segurança colocadas em perigo por terceiros;
  • O direito à propriedade, isto é, o direito de não ser privado por terceiros, sem o meu consentimento, daquilo que é meu (inclusive dos meus rendimentos) e, naturalmente, de não ser obrigado por terceiros a dispor do que é meu;
  • O direito à expressão, isto é, o direito de não ser impedido por terceiros de dizer o que penso e de viver como acho mais interessante ou satisfatório e, naturalmente, de não ser obrigado, por terceiros, a dizer o que não pense nem a viver como não queira;
  • O direito à busca da felicidade, isto é, o direito de não ser impedido por terceiros de fazer o que queira fazer na busca do que me interessa, satisfaz e faz feliz e, naturalmente, de não ser obrigado por terceiros a fazer o que não queira.

É preciso observar, porém, que todos esses direitos também são concebidos de forma negativa, como prova o fato de que a expressão “não ser …” aparece em todos eles (tendo sido sublinhada para destaque).

Se o indivíduo tem direito à vida, por exemplo, isso implica apenas que nenhum outro indivíduo, ou nenhuma instituição, tem direito de lhe tirar a vida, ou de colocá-la em risco. (Só ele mesmo pode tirar sua vida ou colocá-la em risco). Esse direito, sendo negativo, não implica (exceto no caso de crianças) que alguém (indivíduo, instituição, ou o próprio estado) tenha o dever de lhe dar os meios de manter-se vivo (terra, emprego, alimentação, atenção médica, educação, conhecimento, treinamento, etc.). Esses meios de subsistência é o próprio indivíduo que tem que prover para si próprio através de seu trabalho. (No caso de crianças, é responsabilidade dos pais, ou dos parentes, prover esses meios de subsistência até que as crianças possam provê-los por si próprias — nunca do estado).

O direito à propriedade implica tão apenas que ninguém tem o direito de dispor dos bens de um indivíduo sem seu consentimento. Não implica que alguém tenha o dever de prover-lhe os bens de que necessita ou que deseja: essa é uma responsabilidade exclusivamente sua.

O direito à expressão só implica que ninguém deve impedir o indivíduo de pensar o que quer que seja (de resto algo impossível), de dizer o que pensa, de viver como queira, enfim, de exprimir seu modo de pensar, ser, e viver. Esse direito, sendo negativo, não implica que alguém tenha o dever de lhe fornecer os meios de se exprimir (um forum, um palanque, um microfone, uma coluna no jornal, etc.) ou de viver como queira (roupas, moradia, meios de transporte, etc.). Esses meios é o próprio indivíduo que tem que conquistar por si mesmo.

O direito à busca da felicidade, finalmente, implica apenas que o indivíduo não deve ser impedido de buscar a felicidade na forma que ele julgar mais adequada. Esse direito não implica que alguém tenha o dever de fazê-lo feliz ou garantir que ele esteja feliz. (Se o direito anterior é de mera expressão, algo que pode ser feito através da forma em que o indivíduo se veste, se penteia, se adorna, etc., aqui o direito é de ação efetiva, que envolve trabalhar no que queira, sozinho ou com outros, criar empresas e outras instituições, etc.).

V. Liberalismo e os Chamados “Direitos Sociais”

Por aí se vê que o liberalismo não reconhece como direitos os chamados “direitos sociais” que se infiltraram na nova Constituição Brasileira, como os supostos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à seguridade social, à moradia, ao transporte, etc. Esses supostos direitos não são negativos.

Quando alguém reclama um suposto direito à educação, não está reivindicando que ninguém o impeça de buscar a educação que deseja: está pretendendo, isto sim, que alguém (geralmente o estado) assuma a sua educação (em geral, em ônus para ele).

Quando alguém reclama um suposto direito à saúde, não está reivindicando que ninguém o impeça de cuidar de sua saúde como achar melhor: está pretendendo, isto sim, que alguém (geralmente o estado) cuide da saúde dele (novamente, sem ônus).

Da mesma forma com o trabalho, a seguridade social, a moradia, o transporte, etc.

Esses chamados direitos sociais não são reconhecidos como direitos pelo liberalismo porque eles impõem a terceiros deveres que estes não assumiram livremente, e, portanto, violam a liberdade daqueles que (se forem reconhecidos esses supostos direitos) eventualmente serão obrigados a arcar com o custo do seu atendimento.

Geralmente a responsabilidade (o “dever”) de atender a esses supostos direitos é atribuída ao estado (“Saúde/Educação/Transporte/etc.: direito do cidadão, dever do estado”). Dessa forma, atribuem-se ao estado funções além daquelas que o liberalismo reconhece como legítimas, das quais o estado só se desincumbe (geralmente mal) confiscando recursos dos cidadãos, através de impostos e taxas, obrigando-os, assim, a custear atividades que podem não desejar custear e, portanto, violando a sua liberdade.

No que diz respeito à educação, pode-se perceber, por esse breve resumo, que o liberalismo é, em princípio, contrário a teses como a da obrigatoriedade da educação e a do dever do estado de oferecer educação (mesmo que não gratuita). Para o liberalismo, não é função do estado oferecer nem mesmo regulamentar a educação, que só deve ser regulada pelo mercado. Por aí se vê que o liberalismo se contrapõe a alguns dos principais movimentos e tendências da educação atual. O progressivismo e o movimento chamado da escola nova, por exemplo, embora compatíveis com o liberalismo em vários aspectos, não são liberais na medida em que encampam a luta pela escola pública.

VI. O Liberalismo e o Atendimento aos Carentes e Necessitados

Os inimigos do liberalismo geralmente procuram pintá-lo de cores negras, afirmando que os liberais são desalmados, que deixariam os pobres morrer de fome, de frio, ao desabrigo, sem atendimento médico, e que deixariam os mais necessitados sem casa, sem escolas, etc. Nada mais falso. Liberais convictos têm estado entre os maiores filântropos que este mundo já conheceu. Os liberais se preocupam, e muito, com a sorte dos pobres e dos necessitados. Os orfanatos, os asilos de velhos, as Santas Casas, as Casas de Saúde, etc., que até há bem pouco tempo eram as únicas formas de atender aos carentes e necessitados, não foram instituídos pelo estado e só recentemente passaram a contar com alguma subvenção governamental. O Exército da Salvação, no mundo inteiro, e a Legião da Boa Vontade, aqui no Brasil, são iniciativas muito conhecidas para merecer destaque. (Se essas iniciativas têm diminuído, a causa mais óbvia deve ser vista na reivindicação dos governantes de que é o estado que deve cuidar de tudo e na criação desenfreada de impostos e encargos para fazer face a essas novas funções do estado).

Fica, portanto, claro que os liberais não se opõem ao atendimento dos carentes e necessitados. Muito pelo contrário. Opõem-se, isto sim, a que o estado faça isto. E a razão é simples: quando o estado atende aos carentes e necessitados, ele é obrigado a retirar dinheiro, mediante impostos e contribuições, dos indivíduos (e das empresas) para cumprir (e mal) suas funções. Assim obriga a todos, mesmo os que não desejam contribuir (ou não desejam contribuir com as quantidades impostas), a ajudar os outros. O liberalismo, partidário da liberdade, acredita que devemos ajudar os que precisam – mas voluntariamente.

Um exemplo que chamou a atenção de muita gente ilustra bem a diferença. O governo brasileiro fez passar uma lei, há algum tempo, que tornava todo indivíduo um doador de órgãos obrigatório, na hipótese de ser declarado legalmente morto. Os liberais, sem exceção, e mesmo muitos não liberais, se opuseram a essa lei. Isso não quer dizer que os opositores da lei fossem contra a doação de órgãos: muitos eram favoráveis, mas à doação voluntária. Opunham-se, corretamente, à obrigação de doar (caso não houvesse declaração em contrário). O certo teria sido a medida oposta, já em vigência por omissão: ninguém é doador – a menos que tenha expressamente declarado essa intenção, ou, na ausência, a menos que a família autorize.

A ajuda feita aos carentes e necessitados pela iniciativa privada geralmente é preferida, pela população, à suposta ajuda do governo. Ninguém que possa estudar na Fundação Bradesco prefere estudar na escola pública – embora em ambos os casos a pessoa nada pague.

VII. O Liberalismo e a Questão da Segurança

Mas se liberalismo defende que o atendimento a carentes e necessitados deve ser feito pela iniciativa privada, porque não a segurança interna e externa? Por que atribuir ao estado essas duas funções?

Alguns críticos do liberalismo têm procurado demonstrar que há uma incongruência na posição do liberal. Para ser coerente, afirmam, o liberal não deveria defender a tese de que é função do estado prover segurança aos seus cidadãos: deveria, isto sim, defender a tese de que também a segurança pode e deve ser prestada através de agentes privados.

A aceitação dessa sugestão acabaria reduzindo o liberalismo ao anarquismo. Não resta dúvida de que a tese é, de certo modo, atraente para o liberal. Todo liberal suspeita do estado, e, portanto, se conseguisse se convencer de que até mesmo o estado mínimo pode ser dispensado, o faria – e se tornaria um anarquista.

Para o liberal, os anarquistas, de um lado, e, de outro lado, em menor ou maior grau, os social-democratas e socialistas, têm algo em comum: a confiança na bondade natural do ser humano. Os anarquistas acham que todo ser humano possui essa inclinação natural para o bem, e que, deixados sós, sem estado, os seres humanos conseguirão resolver suas divergências pacificamente, sem recurso à força. Os social-democratas e os socialistas não acreditam na bondade natural de todos: acreditam apenas que aqueles no poder são dotados de inclinações altruístas, capazes de agir em benefício alheio. Por isso, confiam-lhes seu dinheiro (recolhido por impostos e taxas) para que os burocratas do estado previdenciário ou socialista o distribuam pelos carentes (sem embolsar nada).

O liberal não acredita na bondade natural do ser humano. Acredita, sim, que, para que os seres humanos vivam em sociedade, é necessário que se submetam a normas consensualmente aceitas (leis) que viabilizem a vida em sociedade e que algum órgão detenha o monopólio da iniciação do uso da força para prevenir e punir a violação dessas normas. O liberal acha que esse órgão que tem o monopólio da iniciação do uso da força não pode ser privado, porque, se o fosse, poderia haver vários deles, concorrendo entre si, e o que teríamos é uma série de milícias particulares que poderiam até mesmo chegar ao confronto. Por isso o liberal acredita que o estado deve existir, mas ser mínimo: deve prover segurança (função judicial, policial e militar) e nada mais. Sem segurança, não há convivência social livre – e é a liberdade que o liberal preza acima de tudo.

Por isso, é errado atribuir ao liberalismo a tese de que o estado é um mal necessário (como até mesmo um grande liberal como Roberto Campos de vez em quando faz). Para o liberal o estado, desde que corretamente concebido e dimensionado, é um bem.

VIII. A Garantia do Liberalismo

O liberalismo, como sistema político, requer uma garantia. Se o estado não tiver um freio, algo que eficaz e eficientemente o limite, sua tendência é acrescentar funções e, conseqüentemente, crescer até o ponto em que não tem mais nenhuma semelhança com o estado mínimo dos liberais. A grande maioria dos pensadores liberais vê essa garantia do liberalismo, que freia o crescimento do estado, numa constituição liberal.

A Constituição Brasileira está longe de ser liberal – talvez seja a mais anti-liberal de todas as constituições vigentes hoje em dia. A Constituição Americana é o melhor modelo de constituição liberal que temos – e mesmo ela não conseguiu impedir que o estado americano ficasse tão inflado a ponto de se tornar irreconhecível como estado liberal.

O que torna a Constituição Americana peculiar é que grande parte dela (a chamada “Carta de Direitos” [“Bill of Rights”], que apareceu inicialmente na Constituição do Estado de Virginia, redigida em 1776) é gasta limitando os poderes do estado diante do indivíduo – isto é, especificando um conjunto de áreas em que o estado (no caso, o governo) está terminantemente proibido de legislar. Assim, o Congresso Americano se vê impossibilitado de exercer sua fúria legislativa em inúmeras áreas. Se legislar, a legislação provavelmente será declarada inconstitucional com presteza pelo Judiciário americano.

Mas não pode o Congresso Americano alterar a Constituição? O processo de alteração constitucional nos Estados Unidos é extremamente complicado. A Constituição Americana levou cerca de 10 anos (de 1781 a 1791) para ser formulada, o período mais importante sendo o da Convenção Constitucional de Filadélfia (que durou quatro meses, de Maio a Setembro de 1787). Os quatro anos restantes, de 1787 a 1791, foram gastos tentando obter a ratificação dos 13 estados, o que só aconteceu em 1791 (embora a Constituição, em si, tenha entrado em vigor em 1789, quando ainda faltava a ratificação de North Carolina (ratificou em 1790) e Rhode Island (ratificou em 1791).

Para facilitar a ratificação dos estados, a Constituição aprovada pelo Congresso já veio com 10 emendas aprovadas pelo Congresso em Setembro de 1789 – que caracterizam a chamada “Carta de Direitos”. Todas elas foram aprovadas por pelo menos três quartos dos estados até Dezembro de 1791.

Uma pequena alteração na Constituição Americana pode levar anos e até décadas para entrar em vigor, porque, para ser considerada, a proposta de emenda constitucional deve vir referendada por dois terços dos estados ou por dois terços dos votos das duas casas do Congresso. Independentemente da forma em que é proposta, a emenda constitucional, caso aceita pelo Congresso, tem que ser referendada pelos legislativos ou por convenções constitucionais de três quartos dos estados americanos para entrar em vigor. Assim, a menos que haja absoluto consenso sobre a medida, é extremamente difícil alterar a Constituição Americana. Ela é a “lei acima da lei”, a norma através da qual as outras leis são julgadas, o conjunto de princípios básicos que nem o governo consegue alterar com facilidade.

E a Constituição Americana é relativamente simples (especialmente quando comparada com a nossa): tem apenas sete artigos, quando não se incluem as emendas, que, em papel impresso atual, compreendem cerca de onze páginas. Todas as emendas não compreendem mais do que outro tanto (as dez emendas originais compreendendo apenas duas páginas). Depois de um breve preâmbulo (“We the people…”), o primeiro artigo trata do Congresso, o segundo do Executivo, o terceiro do Judiciário, o quarto dos estados da federação, o quinto do procedimento a ser adotado no caso de emendas, o sexto de disposições gerais e transitórias e o sétimo do processo de ratificação da própria Constituição.

IX. O Liberalismo na Constituição Americana

A chamada “Carta de Direitos” da Constituição Americana (aprovada pelo Congresso em 25 de setembro de 1789 e ratificada pelos estados de 1789 a 1791) proibe o Congresso Americano de fazer leis nas seguintes áreas:

  • Criando uma religião oficial (Artigo I)
  • Proibindo o exercício da religião (Artigo I)
  • Limitando a liberdade de opnião e da imprensa (Artigo I)
  • Limitando o direito de o povo pacificamente se reunir (Artigo I)
  • Limitando o direito de o povo requerer ao governo a correção de erros (“redress of grievances”) (Artigo I)
  • Limitando o direito de o povo portar armas (Artigo II).

(O número dos artigos é o número não do corpo da constituição, mas do conjunto de emendas, em que os artigos começam a ser numerados a partir do primeiro, novamente.)

Os demais artigos garantem que:

  • Em tempo de paz, nenhum soldado será hospedado por nenhum indivíduo, exceto voluntariamente, prevendo que o mesmo se aplica em tempo de guerra, mas em forma que será regulamentada por lei (Artigo III).
  • O direito de a pessoa, as casas, os papéis e as propriedades dos indivíduos estarem seguros contra buscas e apreensões não razoáveis não será violado, devendo qualquer busca e apreensão ser precedida da competente autorização judicial, que se baseará em causa provável, garantida por juramento ou afirmação, e que especificará claramente o local em que se fará a busca e as pessoas ou objetos procurados (Artigo IV).
  • Exceto nas forças armadas, nenhum indivíduo terá que responder por crime capital ou infame a menos que seja indiciado por um “grande juri” (“grand jury”); ninguém será julgado pela mesma ofensa duas vezes; ninguém será forçado, em processo criminal, a testemunhar contra si próprio; ninguém será privado da vida, da liberdade ou da propriedade sem o competente processo judicial; nenhuma propriedade privada será tomada para uso público sem compensação justa (Artigo V).
  • Em processo criminal, o acusado terá o direito de ser julgado publicamente e com rapidez, através de juri, tendo o direito de confrontar as testemunhas contra ele e de intimar testemunhas em seu favor, sendo sempre auxiliado por advogado (Artigo VI).
  • Em processos civis cujo valor ultrapasse 20 dólares fica garantido o direito de julgamento por juri, direito esse que nenhum legislativo poderá restringir (Artigo VII).
  • Não se exigirão fianças exageradas nem se aplicarão multas excessivas nem punição cruel e incomum (Artigo VIII).
  • A enumeração pela Constituição destes direitos não implica inexistência ou restrição de outros direitos que o povo possa ter (Artigo IX).
  • Os poderes não atribuídos ao governo federal pela constituição, nem por ela proibidos aos estados, ficam reservados aos estados ou ao povo em geral (Artigo X).

Excluindo a “Carta de Direitos”, que foi aprovada junto com o texto do corpo da Constituição, apenas dezessete emendas foram feitas ao texto da Constituição Americana (e uma foi para repelir uma emenda anteriormente feita, proibindo a venda de bebidas alcoólicas).

X. O Liberalismo na Revolução Francesa

A chamada “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” da Revolução Francesa foi aprovada pela Assembléia Nacional nos meses de agosto a outubro de 1789 – ou seja, no mesmo tempo em que era aprovada a “Carta de Direitos” pelo Congresso Americano.

Ela faz as seguintes afirmações e assegura os seguintes direitos (tudo transcrito de forma resumida):

  • Os homens nascem e permanecem livres e iguais em seus direitos (Artigo I).
  • O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem, a saber, o direito à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão (Artigo II).
  • A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não perturba (“nuit”) a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada um não tem limites, exceto os impostos pela garantia de que todos tenham iguais direitos (Artigo IV).
  • A lei só tem o direito de proibir ações perturbatórias (“nuisables”) da sociedade, e tudo o que não for proibido pela lei não pode ser impedido, nem pode ser obrigado aquilo que a lei não ordena (Artigo V).
  • Todos os cidadãos têm o direito de, diretamente ou por seus representantes, participar da elaboração das leis e são iguais aos olhos da lei (Artigo VI).
  • Ninguém pode ser acusado, preso ou detido exceto nos casos previstos em lei e na forma por ela determinada, não cabendo direito de resistência, entretanto, quando tudo se processar na forma da lei (Artigo VII).
  • A lei deve estabelecer apenas as penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido exceto em função de uma lei homologada anteriormente ao presumido delito e legalmente aplicada (Artigo VIII).
  • Há que se presumir inocente todo indivíduo até que seja declarado culpado na forma da lei (Artigo IX).
  • Ninguém deve ser incomodado (“inquieté”) por suas opiniões, mesmo na área religiosa, desde que sua expressão não perturbe (“trouble”) a ordem pública, na forma estabelecida em lei (Artigo X).
  • A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem, podendo todo cidadão falar, escrever e imprimir livremente, respondendo, porém, por eventuais abusos na forma da lei (Artigo XI).
  • Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, exceto em caso de necessidade pública, constatada em lei, e mediante retribuição justa e antecipada (“préalable”) (Artigo XVII).

Como se pode facilmente constatar, há uma semelhança muito grande entre a “Carta de Direitos” da Constituição Americana e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” promulgada pela Revolução Francesa. Em ambos os casos os direitos são negativos. Os dois documentos podem, portanto, ser qualificados de plenamente liberais.

XI. A “Declaração Universal dos Direitos Humanos” da ONU

Um pouco mais de cinqüenta anos atrás, no dia 10 de Dezembro de 1948 (ou seja, cem anos depois da publicação do Manifesto Comunista) a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, que consagra os seguintes direitos (aqui transcritos de forma resumida e segundo a linguagem da tradução portuguesa [de Portugal] disponibilizada no site da ONU na Internet):

  • Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. (Artigo 1º).
  • Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. (Artigo 2º).
  • Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. (Artigo 3º).
  • Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão. (Artigo 4º).
  • Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. (Artigo 5º).
  • Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei. Todos têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. (Artigo 7º).
  • Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado. (Artigo 9º).
  • Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida. (Artigo 10).
  • Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas. (Artigo 11).
  • Ninguém será condenado por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam acto delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o acto delituoso foi cometido. (Artigo 11).
  • Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei. (Artigo 12).
  • Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado. (Artigo 13).
  • Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país. (Artigo 14).
  • Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países. (Artigo 14).
  • Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade e ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade. (Artigo 15).
  • A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos. (Artigo 16).
  • Toda a pessoa, individual ou colectiva, tem direito à propriedade. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade. (Artigo 17).
  • Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. (Artigo 18).
  • Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão. (Artigo 19).
  • Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. (Artigo 20).
  • Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto. (Artigo 21).

Até aqui a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” é razoavelmente liberal, apesar de bem mais verbosa do que os documentos anteriormente mencionados. A partir do Artigo 22, entretanto, a Declaração passa a ser social-democrata, enfatizando os chamados “direitos econômicos, sociais e culturais”, que impõem obrigações positivas ao estado ou aos membros da sociedade:

  • Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país. (Artigo 22).
  • Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de protecção social. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses. (Artigo 23).
  • Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e as férias periódicas pagas. (Artigo 24).
  • Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma protecção social. (Artigo 25).
  • Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. (Artigo 26)
  • Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam. Todos têm direito à protecção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria. (Artigo 27).
  • Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efectivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente Declaração. (Artigo 28).

XII. A Atual Constituição Brasileira

O Título II da Constituição Brasileira de 1988 trata “Dos Direitos e das Garantias Fundamentais”. Esse Título tem cinco capítulos, dos quais os mais importantes são o primeiro e o segundo. O Capítulo I, que se limita ao Artigo 5º, trata “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”. O Capítulo II, que compreende os Artigo 6º a 11, trata “Dos Direitos Sociais”. (Os outros três capítulos tratam, respectivamente, “Da Nacionalidade”, “Dos Direitos Políticos”, e “Dos Partidos Políticos”.

Como o texto da Constituição Brasileira é facilmente encontrável, não vou citá-lo aqui, exceto pelo caput do Artigo 5º, que é o seguinte:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
. . .”

Essa declaração seria plenamente liberal se não fosse a expressão “à igualdade”, inserida ali no meio. A razão pela qual essa inserção precisou ser feita foi para fundamentar, mais adiante, a concessão dos direitos sociais, não liberais.

XIII. As Linhas de Defesa do Liberalismo

Embora uma defesa plena do liberalismo precise ficar para um outro artigo, por limitações de espaço, é necessário esboçar aqui as linhas em que se fará essa defesa.

Pareceria ser desnecessário defender uma filosofia política que erige a liberdade individual como o bem maior. Tendo escolha, todos os indivíduos preferem a liberdade à servidão, mais liberdade a menos liberdade. A prova disso está no fato de que nenhum país não socialista jamais precisou fechar suas fronteiras para obrigar os seus cidadãos a permanecer no regime. Na verdade, países de tendência liberal (mesmo que seu sistema hoje esteja longe dos princípios liberais clássicos aqui delineados) freqüentemente precisam fechar parcialmente suas fronteiras para controlar o ingresso de pessoas de outros países. Enquanto isso, os países socialistas da antiga Cortina de Ferro criavam muros para impedir que seus cidadãos fugissem. Diante disso, pode parecer que o liberalismo não precisa de defesa.

Essa impressão é errônea. Arma-se um ataque de dimensões gigantescas contra os princípios liberais – só que, fracassado o socialismo, o ataque agora vem mascarado de democrático, escondendo-se em princípios social-democratas – às vezes erroneamente chamados de neo-liberais. Para se chegar ao liberalismo não basta privatizar empresas estatais: é preciso redefinir drasticamente as funções do estado, reduzindo-as às funções essenciais que os liberais clássicos defendiam.

Aqui no Brasil o estado, reconhecendo o seu fracasso, está vendendo sua participação em empresas siderúrgicas, energéticas, de telecomunicações e de transportes. Mas ainda mantém o direito de controlar essas áreas e as empresas privadas que estão adquirindo o que antes era estatal. As rodovias são cedidas em regime de concessão. Na área de telecomunicações a ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações) ainda mantém atribuições totalmente incompatíveis com a total liberalização do setor. O mesmo é verdade nas outras áreas em que tem havido privatização. Não basta privatizar: é preciso sair do caminho, não atrapalhar, não interferir. Não é possível comer o bolo e continuar a ter o bolo: um ou outro há que ceder.

Além disso, na área social, em que a atuação do estado revela ainda maior fracasso do que na área econômico-industrial, nada foi feito em termos de privatização. Temos que privatizar as universidades estatais, a educação fundamental e média, o sistema de saúde, o sistema previdenciário, o sistema de transportes, a área de energia e de infraestrutura, limpar a área trabalhista do entulho paternalista desses últimos cinqüenta anos, retirar das mãos do governo o direito de regular ou subsidiar cultura, esportes, artes, tornar a moeda nacional plenamente conversível, abrir os portos para entrada e saída de pessoas e produtos – de forma gradativa mas eventualmente total. Em nossa sociedade global não deve haver, entre os países, empecilhos para a entrada e saída de pessoas e produtos – certamente não mais do que os que eventualmente existam entre dois estados de uma mesma federação.

Quando o estado for realmente enxugado, a reforma do sistema tributário, que deve ser feita simultaneamente, deixará tanto mais dinheiro nas mãos das pessoas e das empresas que este país experimentará uma onda de crescimento econômico nunca antes vista.

NOTAS:

[1]   NOTA ACRESCENTADA EM 18/03/2018, quando da publicação deste artigo no blog do autor, intitulado Liberal Space, na URL https://liberal.space. A primeira versão deste artigo foi escrita ao longo dos anos 1996-1997. No ano de 1997 ele foi apresentado e aceito para publicação pela revista Pro-Posições, editada pela Faculdade de Educação da UNICAMP, instituição da qual eu tive o privilégio de ser Diretor, primeiro Associado, depois Titular, em seus primórdios, de 1976 a 1984, em dois mandatos de quatro anos. Depois de cerca de quatro anos, em Junho de 2001, ele foi publicado no vol. 8, nº 2 [23] da revista, pp. 43-57, mas com a data de Março de 1999. Uma versão bastante ampliada e aprofundada deste artigo foi publicada no livro editado por José Claudinei Lombardi e José Luís Sanfelice, Liberalismo e Educação em Debate (Autores Associados, Campinas, 2007), pp.1-60, com o título “O Liberalismo na Política, Economia e Sociedade e suas Implicações para a Educação: Uma Defesa”. Como o título artigo indica, aqui não se trata mais de um “Preâmbulo a uma Defesa do Liberalismo”, mas, sim, da própria defesa. O novo artigo está disponível em meu blog Liberal Space na seguinte URL: https://liberal.space/2018/03/18/o-liberalismo-na-politica-economia-e-sociedade-e-suas-implicacoes-para-a-educacao-uma-defesa/.

[2]   Compare-se, neste contexto, meu artigo “Justiça Social, Igualitarismo e Inveja: A Propósito do Livro de Gonzalo Fernández de la Mora”, publicado nessa mesma revista Pro-Posições, Vol. IV, Março de 1991, pp.26.40. [COMPLEMENTO ACRESCENTADO EM 2018: Há uma versão revisada e mais ampla desse artigo neste meu blog Liberal Space, URL https://liberal.space/2007/12/08/justica-social-igualitarismo-e-inveja-parte-1/ e URL https://liberal.space/2007/12/08/justica-social-igualitarismo-e-inveja-parte-2/.]

Transcrito neste blog em 18 de Março de 2018