O termo “casamento” tem sentidos diferentes em várias “comunidades de sentido”.
Para a Igreja Católica, e para os legisladores brasileiros até 1977, influenciados pela tradição católica, casamento era uma união INDISSOLÚVEL (a não ser pela morte de um deles) entre UM HOMEM E UMA MULHER. Se um dos dois morresse, a união estaria desfeita, e o que ficava poderia se casar de novo.
Algumas religiões vão além. O casamento, para eles, é uma união INDISSOLÚVEL E ETERNA entre UM HOMEM E UMA MULHER. Neste caso, nem a morte os separa — isto é, nem a morte dissolve o casamento. Quem ficar, está obrigado a manter-se fiel ao cônjuge morto, vivendo sozinho, até que a sua morte lhe torne possível continuar o casamento com seu cônjuge na eternidade.
Os Muçulmanos, por sua vez, defendem a POLIGAMIA (do homem), permitindo que UM HOMEM se case, ou melhor, esteja casado, com VÁRIAS MULHERES, ao mesmo tempo, sem esperar que uma morra, ou sem precisar de alguma forma se separar dela, para se casar com outra.
Para ateus e para membros de religiões menos exigentes ou mais liberais, o casamento era uma UNIÃO, regida por CONTRATO, entre um HOMEM e uma MULHER que poderia ser desfeito, nos termos da lei, nada impedindo que os ex-contratantes celebrassem novo contrato com outras pessoas.
As situações em que o divórcio era possível eram bastante estritas no passado. Na própria Bíblia se admite o divórcio em caso de adultério, por exemplo. Mas essas situações foram se ampliando até o que são hoje, em que o “desamor”, ou o fim do amor, ainda que apenas de um dos cônjuges, é causa suficiente (embora não necessária) para o divórcio. (Que não é causa necessária é evidente: quem quiser continuar casado, mesmo sem amor, pode).
Mais recentemente, a partir do reconhecimento por parte das sociedades (principalmente ocidentais) de que a homossexualidade é um fenômeno muito mais generalizado do que se imaginava, do reconhecimento, na jurisprudência, de que relacionamentos estáveis entre homossexuais geram efeitos jurídicos (direito a pensão, participação em herança, etc.), e reconhecimento do fato inegável que os envolvidos demonstram claramente o desejo de que esses relacionamentos sejam rotulados de CASAMENTO (palavras são importantes — mais sobre isso adiante), muitos países (ou estados, no caso de confederações mais descentralizadas), passaram a reconhecer o direito de homossexuais se casarem, no pleno sentido legal do termo. O casamento, no caso, deixa de ser entre UM HOMEM E UMA MULHER e passa a ser entre DUAS PESSOAS, independentemente de seu sexo, em reconhecimento de que, no caso desse tipo de contrato, o sexo das partes é irrelevante. Um “casal”, nesse caso, passa a ser dois parceiros comprometidos em união estável, independentemente de seu sexo.
Essa evolução tem caminhado em paralelo com uma outra, igualmente importante, que tornou a primeira bem mais plausível do ponto de vista jurídico.
Deixando de lado razões religiosas ou teológicas, a principal razão para se considerar que o casamento precisava ser entre UM HOMEM E UMA MULHER é que se acreditava que a principal, se não a única, função do casamento era procriar. Entre os gregos cultos, por exemplo, entre os quais muitos filósofos respeitados até hoje, a mulher não era igual ao homem. Ela servia apenas para que o homem gerasse filhos e tivesse uma descendência. Ficava apenas um pouco acima dos animais, porque, afinal de contas, era capaz de comunicar-se linguisticamente e através de outros comportamentos simples que requerem (alguma) inteligência. Como o amor, no entender dos gregos, só podia ter lugar entre iguais, o amor era, necessariamente, homossexual – na verdade, o amor pleno aconteceria apenas entre homens.
Em parte com o surgimento do Cristianismo, mas plenamente só depois do Iluminismo, a mulher gradativamente conseguiu um status de igualdade com o homem – embora mesmo um país em certos sentidos “prafrentex” como a Suíça apenas lhe tenha dado direito de voto em 1947.
Foi só a partir da pílula anticonceptional e de outros métodos contraceptivos eficazes e relativamente simples, como o Dispositivo IntraUterino (DIU), que se tornou claro e evidente que poderia tranquilamente haver casamentos sem nenhuma intenção procriativa – apenas para apoio e prazer mútuo, inclusive o prazer que o sexo descontraído evidentemente traz, mesmo que envolva comportamentos ou ações que não exigem a penetração de uma vagina por um pênis.
Métodos de concepção que não envolvem a relação sexual e bancos de esperma permitiram também que mulheres produzissem filhos “autonomamente”, fora do casamento, novamente, sem a penetração de uma vagina por um pênis.
Separou-se, assim, de um lado e de outro, o elo que ligava o casamento e a procriação eliminando daquele a necessária relação sexual digamos convencional.
Se, porém, um homem e uma mulher podem se casar mesmo que não queiram e não contemplem ter filhos, simplesmente pelo prazer de estar juntos e de se apoiarem mutuamente, por que não duas pessoas do mesmo sexo?
Se, entre duas pessoas, há união afetiva e relacionamento estável e duradouro, e o casamento não tem mais, como única ou mesmo principal função, gerar prole por meios convencionais (em cujo caso a presença de um homem e de uma mulher era necessária), por que continuar negando aos homossexuais o direito de ter o seu relacionamento afetivo reconhecido como casamento, posto que o sexo biológico diferente dos envolvidos não é mais um componente essencial da relação matrimonial?
Quanto a palavras. Nossa sociedade brasileira não nega o direito aos heterossexuais que apenas vivem juntos sem se casarem de, querendo, se denominarem marido e mulher. Mesmo sem ter se casado legalmente, todo mundo que vive junto diz “esta é minha mulher”, “este é meu marido” — e se diz e considera casado.
Nos EUA as pessoas não legalmente casadas uma com a outra são mais cuidadosas na linguagem que usam: geralmente se referem à outra como “partner”, “significant other (SO)”, etc.
Mas aqui no Brasil, ninguém, nessas situações, se refere à sua mulher ou ao seu marido como “amásia/o”, “amante”, muito menos “concubina/o”, “parceira/o”, “companheira/o” (este último sendo o termo que a lei usava até há pouco tempo). Os costumes aqui, inclusive os linguísticos, são mais liberais.
Só para dar mais um exemplo. Nos EUA, quem tem 1/64 (que seja) de ascendência negra, é negro, mesmo que, em aparência, seja louro. Aqui no Brasil a gente deixa a pessoa se rotular se é branca, preta (sic), parda, etc. Se a pessoa se acha branca aqui, é branca, acabou. Se se acha preta, seja apenas para fins de cotas, é preta, acabou.
Outro exemplo… Houve época, aqui no Brasil, em que “pastor” era alguém formado em um curso regular de Teologia de pelo menos três ou quatro anos. Hoje, quem quer se chamar pastor (ou até bispo, apóstolo, etc.), se chama assim e é chamado assim, sem maiores controvérsias.
Nesse contexto, não vejo nenhuma justificativa (a não ser religiosa ou teológica) para se recusar o termo CASAMENTO à união estável de homossexuais, se eles querem que seu relacionamento seja assim enquadrado, linguística e legalmente.
É isso.
Em São Paulo, 19 de Maio de 2013, levemente revisado em Salto, 6 de Abril de 2017
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