Não tenho religião. Há cerca de 35 anos que me reconheço ateu. Se não acredito em Deus, não posso crer que Jesus seja seu filho – nem reconheço o suposto milagre de ter ele nascido de uma virgem. Logo, segundo alguns, eu não teria razão para comemorar o Natal. Mas o comemoro — exatamente pela razão que os pios defensores do cristianismo o criticam.
Ainda ontem ouvia a CBN entrevistar um teólogo — de sobrenome germânico e sotaque típico de padres católicos — acerca do significado do Natal. Foi a mesma ladainha de sempre: crítica ao "comercialismo" que cerca a festa, crítica ao "presentismo", crítica às ceias elaboradas. Para o teólogo, se se vai dar presentes, deve-se dar um presentinho simples, barato, simbólico — simbólico do fato de que o presente que Deus nos teria dado no Natal foi dado de graça… (mas será que, mesmo dentro da simbologia cristã, não teria custado nada?). Para o teólogo, se vamos cear (e todos nós temos de comer), devemos optar por uma refeição singela, pouco calórica — também simbólica da pobreza em que Jesus teria nascido, numa mangedoura…
Todo Natal ouço / leio analistas repetindo essas bobagens.
Quanto a mim, o que acho bonito nessa época é o esforço que as pessoas fazem para se reunir com aqueles a quem amam, o esforço para, pelo menos uma vez no ano, sentarem-se todos ao redor de uma mesa farta, o esforço para presentar aqueles de quem gostam. O Natal é o Dia de Ação de Graças brasileiro — já que, diferentemente dos irmãos do Norte, não celebramos a quarta quinta-feira de Novembro.
Algum astuto pode perguntar: mas se você é ateu, a quem dar graças?
"Dar graças", na minha sintaxe pessoal, é uma expressão que não precisa ter um destinatário específico — dispensa, portanto, um objeto transitivo indireto. A expressão representa o nosso reconhecimento de que boa parte do quinhão que nos cabe nessa vida é derivado da sorte. A gente poderia ter nascido no Iraque. Nascemos aqui. Tivemos sorte. A gente poderia ter sido filho de Saddam Hussein. Não fomos. Tivemos sorte. A gente vai atravessar a rua e é quase tolhido por um caminhão em velocidade: mais um passo nosso e estaríamos mortos, mas não demos esse passo. Tivemos sorte. Quem acredita em Deus prefere acreditar, nesse último caso, num pequeno milagre. Eu digo que tivemos sorte.
Muita gente morre num primeiro infarto. Eu tive sorte. Muita gente tem filhos que são vabagundos, drogados, salafrários. Eu tive sorte. Muita gente tem, como Sócrates, uma mulher que o faz preferir tomar cicuta. Eu tive sorte. Muita gente não tem por que, ou com quem, ou com que comemorar o final de mais um ano bem sucedido. Eu tive sorte.
Portanto, tenho muito pelo que dar graças.
Os impertinentes vão dizer que, ao reconhecer o papel da sorte, eu contradigo meu ponto de vista já conhecido de que nosso sucesso na vida depende em grande medida de nosso talento e de nosso esforço. Não creio que me contradiga. Quando afirmo isso, que é algo em que sinceramente acredito, sempre reconheço que há, no sucesso ou no fracasso de nossos projetos de vida, ao lado do talento, ou da falta dele, e do esforço, ou da falta dele, sempre um elemento de sorte — alguns chamam esse fator de "serendipity", que meu dicionário Inglês – Espanhol traduz como "hallazgo casual beneficioso, hallazgo afortunado, hallazgo no esperado; buena racha". Buena racha é bom…
Passo meu Natal aqui com a família no meu recanto em Salto. Os dias aqui têm sido lindos — mas terrivelmente quentes. Bons para serem curtidos dentro da piscina, protegidos por um bom filtro solar.
Eu tenho sorte de que posso celebrar a festa de Natal junto aos filhos, aos netos, e, naturalmente, à mulher, companheira de mais de 31 anos. Apenas minha filha e minhas netas que moram nos Estados Unidos não estarão aqui.
Mas elas chegam em aproximadamente três semanas.
Um abraço a todos. Que os presentes lhes agradem e que a comida seja farta e gostosa — e que o ambiente seja propício à confraternização.
Em Salto, 25 de dezembro de 2005
E eu dou muitas graças (a Deus), por tê-lo conhecido! Quisera que a metade dos cristãos pudessem falar com tanta serenidade da felicidade de se ter uma família para comemorar, ao menos uma vez no ano, a alegria da vida.Você sabe bem que sou evangélica e creio sim num Deus vivo, mas em muitos aspectos concordo com você. Concordo inclusive com Karl Marx, quando ele diz que a religião é o ópio do povo. Eu abomino a religiosidade existente nas pessoas, especialmente nos cristãos, que os impede de enxergar a simplicidade do evangélio.Para mim, o Natal, enquanto comemoração pelo nascimento de Jesus, deve ser vivido todos os dias, mesmo porque é sabido que Jesus não nasceu exatamente no dia 25 de dezembro. Além disso, para mim, a data máxima do cristianismo não é o Natal, mas sim a Páscoa, pois muitos líderes espirituais nasceram, mas somente Jesus ressuscitou. De qualquer forma, não faço da Páscoa mais um dia religioso de comemoração, pois creio que ele está realmente vivo, em espírito, e celebro sua vida em minha vida diariamente!Beijinhos…Paloma
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