A Liberdade

Post com três componentes: um meu (o do meio) e dois de autores portugueses.

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1. Artigo de José Manuel Fernandes, do jornal (na verdade, meio de comunicação) português Observador, sobre o dia 25 de Abril lusitano — o “Dia da Liberdade Readquirida”, recebido, por email, do autor (que não encontrei, enquanto tal, no site da publicação):

A minha reflexão sobre o 25 de abril

“Caro leitor,

‘Quando encontramos pessoas que constituem uma excepção à aparente unanimidade do mundo a respeito de um assunto qualquer, mesmo que o mundo esteja certo é provável que os dissidentes tenham alguma coisa a dizer que vale a pena ouvir e que a verdade perca algo com o seu silêncio’.

Estas palavras foram escritas por John Stuart Mill, um dos filósofos da liberdade, há mais de 150 anos mas continuam muito actuais, tão actuais que as recordo agora que passa mais um aniversário do 25 de Abril – o 48º.

Mais um aniversário e mais uma oportunidade para recordar que liberdade é liberdade e que isso muitas vezes parece contrariar a vontade da maioria. Para recordar também que a liberdade reconquistada nesse dia não vinha com outro programa político senão o de devolver aos portugueses a palavra sobre o seu destino.

No Observador levamos muito sério esta ideia de liberdade – a ideia de que ela naturalmente contraria a unanimidade, até porque a minoria de hoje pode ser a maioria de amanhã. E que todas as vozes têm direito a exprimir-se, até para discordarmos delas.

Num tempo em que a cultura de cancelamento ameaça a liberdade de expressão, numa era em que regressam discursos autoritários, num país onde muitas vezes há receio de discordar e de divergir, o Observador procura a verdade com a noção de só pode fazê-lo se quebrar silêncios e interditos.

É uma missão em que nos empenhamos há quase oito anos (vamos celebrar em Maio o nosso oitavo aniversário), é uma missão de enorme urgência nestes tempos aflitivos e de guerra, é uma missão só possível de levar por diante com os nossos leitores (e ouvintes da Rádio Observador) e sobretudo com os nossos assinantes.

É também a eles que agradecemos em mais este aniversário da liberdade readquirida.”

José Manuel Fernandes
Publisher do Observador

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2. Meu Comentário
(de Eduardo Chaves), a seguir:

A lição de John Stuart Mill é que a liberdade seria fácil de exercer, e dificilmente seria reprimida, se nós apenas a utilizássemos para dizer aquilo com que todo mundo está de acordo. Mas ela precisa ser exercida, e não deve nunca ser reprimida, quando se trata da voz de um que clama sozinho num deserto intelectual, quando se trata da voz das minorias e dos minoritários. O democracia liberal não implica apenas a tomada de decisão pela maioria. Implica isso, mas também exige a preservação do direito das minorias, ainda que de um só, de externar o seu ponto de vista, de dizer e defender o seu ponto de vista, ainda que ele seja, mais do que apenas discordante, desagradável e ofensivo. Se quem foi ofendido julga que a ofensa é mentirosa e lhe causa dano (material ou à honra e a reputação), pode apelar à Justiça. Mas esse é um direito individual e nominado. Não se aplica à própria Justiça à qual cabe apurar se houve dano. Primeiro, porque a Justiça, ou qualquer tribunal, não é um indivíduo, que é o senhor dos direitos individuais. Segundo, porque, ainda que ela assim fosse considerada, ela estaria julgando em causa própria, o que é sempre inadmissível. Nos julgamentos colegiados, juízes que estejam direta ou indiretamente envolvidos, têm de se declarar incapazes de julgar, por falta de objetividade — princípio que, no Brasil foi julgado no lixo pelos membros do nosso tribunal maior.

Está na hora de lutar para recuperar as liberdades que estamos perdendo. É fácil perdê-las: é só não fazer nada que os ladrões da liberdade nô-la roubam e a levam embora.

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3. Artigo publicado também no Observador, de autoria de João Marecos, com o título A Liberdade da Expressão que Ofende (este disponível no site no endereço https://observador.pt/opiniao/a-liberdade-da-expressao-que-ofende/ (06 fev 2018, 06:0018). Ei-lo:

“As redes sociais, este paraíso de comunicação livre, tem vindo a tornar-se num espaço de expressão governado por uma ditadura da maioria – aquilo a que se usa chamar o politicamente correto.

Nunca conheci quem não fosse pela liberdade de expressão, a começar pela sua. Ainda que naturalmente limitada – a difamação, a injúria, o incitamento à violência ou à fraude, por exemplo, são crimes previstos na lei penal -, não restam dúvidas de que é absolutamente central em qualquer sociedade que se queira dizer livre.

Mas para que serve a liberdade de expressão? Por exemplo: posso defender que a cor da pele determina a capacidade intelectual de uma pessoa? Posso acreditar que um género é biologicamente inferior ao outro? Posso mentir sobre mim? Posso mentir sobre os outros? Posso dar opiniões com base em factos falsos? Posso defender realidades que a ciência atual rejeita?

Tudo isto são formas de expressão que, com grandes diferenças de grau – eu sei que estou a misturar muita coisa diferente – reputamos como de menor ou nenhum valor: mentiras, insultos, discurso de ódio, discriminação. E, ainda assim, a questão põe-se: se eu sou verdadeiramente livre para me expressar – se tenho um direito à liberdade de expressão -, não poderei ser racista? Não poderei ser machista? Não poderei ser mentiroso?

Como é, afinal: toleramos o discurso intolerante?

Vamos imaginar que dizemos coletivamente que não: não, o direito à liberdade de expressão não inclui estes discursos ofensivos, vis ou de menor valor. É um conforto: limpamos o espaço público deste tipo de intervenções e passamos a viver num lugar mais asseado.

Ficamos então com o que sobra: o que não ofende, o que não exclui, o que é verdadeiro. Mas quem define o que é ofensivo? Quem define o que é verdadeiro? A maioria? É uma hipótese. Afinal, em democracia, vinga a maioria.

Contudo, a maioria não é estanque. A maioria muda, evolui. E a verdade que aceitamos hoje é a mentira ofensiva de amanhã. Antes, a Terra era plana e as mulheres não votavam. Ai de quem viesse defender o contrário: fogueira com eles. Hoje, rimos com gosto e incredulidade, porque anda por aí um movimento que defende que a Terra é plana e erguemo-nos contra as desigualdades de género. E ainda bem: chegámos a um sítio melhor. Mas precisámos de quem contrariasse a maioria. Precisámos de dar espaço a todo o tipo de discurso, para que do confronto entre duas mundividências resultasse a melhor.

Vem-me tudo isto a propósito deste admirável novo mundo das redes sociais: o paraíso da comunicação livre, onde todos têm uma voz, uma oportunidade de expressar os seus pontos de vista e de entrar em diálogo.

Acontece, porém, que este paraíso de comunicação livre se tem vindo a tornar, progressivamente, num espaço de expressão governado por uma ditadura da maioria – aquilo a que se usa chamar o politicamente correto – onde se põe em causa não só o que foi dito pelo outro, mas o próprio direito do outro a dizê-lo.

O politicamente correto é, no fundo, um manual de regras para uma expressão higienizada. Regula-nos o conteúdo, a forma, o tempo e o meio da expressão.

Há palavras que não se podem usar nunca. Outras que não se podem usar com certas pessoas. Outras que não se podem usar em certas situações. Há coisas que não se dizem. Há momentos para dizer as coisas. Há palavras que podem ser ditas por uns, mas não podem ser ditas por outros. Há coisas com que não se brincam. Há brincadeiras que não são para agora. Há conversas que não se têm. Esta não é a altura certa. Isso não vem a propósito. Isso não se diz. Isso não se faz. Isso não se pensa.

O politicamente correto apresenta-se de cara lavada e com boas intenções: pretende defender os outros da ofensa, do mau trato, da discriminação. Tem, contudo, a perversidade de nos tornar polícias do discurso, dos outros e do nosso, que monitorizamos selvaticamente em busca de transgressões expressivas. E assenta, sobretudo, num engano generalizado e perigoso: o de que o espaço público de expressão não permite a expressão que ofende, que discrimina, que é falsa ou de que simplesmente não gostamos.

Ora, isso não é verdade: nem nós temos autoridade para dizer ao outro o que ele pode ou não pode dizer – insultando-o e perseguindo-o até ele se calar -, nem temos qualquer pretensão a que o discurso dos outros não magoe os nossos sentimentos, ofenda as nossas crenças ou, de um modo geral, nos provoque qualquer alteração negativa de estado de espírito.

O que me leva à questão com que comecei: para que serve a liberdade de expressão? Porque é que a Constituição – a nossa e muitas outras – fez questão de assegurar esse direito? Será que era preciso garanti-lo para proteger as opiniões maioritárias? Para permitir o discurso que não causa desconforto a ninguém? Para afirmar verdades universais e pacíficas?

Faria pouco sentido. Não: o direito à liberdade de expressão serve precisamente para proteger a liberdade, nossa e dos outros, de nos expressarmos, mesmo – ou sobretudo – quando essa expressão é incómoda. Não é grande feito reconhecer ao outro a liberdade de me tratar bem, de concordar comigo ou, no geral, de ser uma pessoa decente. O que precisa de defesa é a expressão que desagrada, a opinião que incomoda, o comentário que suja ou a atitude que escandaliza.

A liberdade de expressão serve para proteger aquilo que nós não gostamos que os outros digam, façam ou pensem. O racista pode ser racista. O homofóbico pode ser homofóbico. O mentiroso pode ser mentiroso. E toda a gente pode ter opiniões insultuosas e sem sentido.

É uma pena que existam? Será. Pessoalmente, acho lamentável. Mas não me cabe a mim proibi-los: cabe-me contrariá-los. É assim que funciona o jogo da livre expressão: cada um tem a sua visão e no final de uma longa, suja, incómoda e barulhenta refrega, provavelmente vai cada um à sua vida com a opinião que já tinha. Contudo, há em cada debate a pequena possibilidade de persuadirmos alguém, seja o outro ou os que assistiram. É também essa possibilidade que a liberdade de expressão quer proteger.

Nas redes sociais, como fora delas, cada um é responsável pelo que diz e justamente avaliado pelos outros em função disso. Aos racistas, aos homofóbicos, aos machistas, aos mentirosos e àqueles que estão simplesmente errados, deve responder-se sempre, incansavelmente, com discursos de sinal contrário, com argumentos, com factos e com críticas.

É através do confronto público, aceso e constante, dessas formas de expressão com as suas falhas lógicas, com os seus erros de base e com os seus preconceitos que as combatemos e derrotamos. Suprimir este tipo de discurso – proibindo-o, ostracizando-o – é escondê-lo na penumbra, é levá-lo para onde não o vemos nem o podemos criticar, mas onde ele continua a fazer o seu silencioso trabalho. Esse discurso tem direito a um espaço na discussão pública – e é só por isso que o podemos vencer.

Tolerar uma expressão não significa aceitar o seu conteúdo. Mas significa aceitar a sua existência. Da próxima vez que se escandalizar, lembre-se disso.”

[João Marecos tem 26 anos, é advogado e estudante de mestrado na New York University. Integrou os Global Shapers de Lisboa em 2014. É um dos autores da página “Os Truques da Imprensa Portuguesa”]

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Parabéns ao João Marecos, por escrever com tanta competência aos 26 anos.

Em Salto, 24 de Abril de 2022

Liberalismo, Progressivismo e Conservadorismo

Ao mesmo tempo que este, estou a escrever um outro texto que não é uma História do Liberalismo, mas, sim, uma Visão Geral dos Liberalismos — aquilo que os americanos chamam de “a bird’s eye view” — uma visão do alto, como se fosse através do olho de um pássaro que passa por cima da coisa e vê o todo, mas de longe, perdendo a maior parte dos detalhes…

Esse artigo era para ser diferente dos meus artigos de sempre, que geralmente são demasiado longos, meio prolixos, recheados de pequenos detalhes que eu considero interessantes e curiosos mas que a maioria dos leitores acha supérfluos. (Em regra, pelo menos 20% dos meus livros consistem de Notas de Rodapé ou de Fim de Texto — não chego ao extremo de Popper que geralmente alcançava um texto balanceado: Fifty-Fifty – metade texto normal, metade notas explicativas e referências).

Mas à medida que a coisa progrediu, e eu mapeei os Liberalismos, resolvi mapear também (nada mais do que isso) as tendências com as quais os Liberalismos se degladiam, e até mesmo aquelas tendências que, mesmo não sendo parte integrante do Liberalismo, são parentes próximos, às vezes amigos, às vezes inimigos, como é o caso dos Libertarianismos. E cheguei a doze tendências ao todo, a saber:

  • Liberalismos
    • O Liberalismo Clássico
    • O Liberalismo Americano
    • O Liberalismo Social
    • O Neoliberalismo
    • A Democracia Liberal
  • Socialismos
    • O Socialismo Liberal
    • O Socialismo Democrático
    • O Socialismo Marxista
    • O Comunismo
    • A Social Democracia
  • Libertarianismos
    • O Libertarianismo Comunitário
    • O Libertarianismo Anárquico

Mas, apesar de a lista já ser excessiva, senti que me faltava ainda algo: esclarecer a relação entre Liberalismo e Progressivismo, de um lado, e Liberalismo e Conservadorismo, do outro.

Assim o artigo que eu pretendia enxuto foi crescendo. Terminei apenas o Capítulo 1, sobre o Liberalismo Clássico, e parte do Capítulo 2, e o texto já tem 25 páginas (15% de Notas). A continuar nesse ritmo, provavelmente não será um simples artigo, mas um livrinho — e demorará muito mais tempo para ser concluído.

Mas eu sou um crente na Provincidência — aquela coisa que a gente não sabe direito se é Providência ou Coincidência…

Hoje recebi uma propaganda da Amazon (todo dia recebo umas cinco) anunciando o lançamento de um livro novo, de George F. Will, com o título de The Conservative Sensibility, publicado agorinha, no dia 4 deste mês de Junho (Hachette Books, New York). Li aquele material que a Amazon fornece de graça, para fazer com que a gente morda o anzol: Índice, Prefácio, Apresentação, um pedaço da Introdução, e Resenhas — e resolvi morder o anzol: fui fisgado. O livro trata exatamente do assunto que eu queria acrescentar ao artigo/livrinho que vinha escrevendo. Resolvi deixa-lo de lado por um dia e escrever este artiguete.

A tese geral de Will é que o Liberalismo Clássico, aquele que está na base da fundação da nação americana pelos seus “Pais Fundantes” (Founding Fathers), era, naquela época, segunda metade do século 18, algo profundamente inovador e revolucionário como base teórica para a construção de uma nova nação. Ele foi integrado à Declaração de Independência (redigida por Thomas Jefferson em 1776 e apresentada ao mundo em 4 de Julho de 1776) e à versão original da Constituição Americana, que foi criada e apresentada em Setembro de 1787, ratificada pelas treze colônias (futuros estados) em Junho de 1788, entrando em vigor em Março de 1789.

Foi por causa desse caráter inovador e revolucionário, que dá ênfase à liberdade e aos direitos individuais, e que busca limitar as atribuições do estado, impedindo que este aprove legislação que elimine, viole ou restrinja a liberdade e os direitos individuais, ou mesmo interfira com eles, que eu, que aceito esse postulado, desde 1966, nunca me considerei um conservador.

O que o livro de George F. Will mostra, porém, é que esse postulado básico do Liberalismo Clássico foi virtualmente abandonado pelo Progressivismo que assaltou os Estados Unidos em especial no período de 1870-1920, que vai do final da Guerra Civil até os chamados “Roaring Twenties“, depois da Primeira Guerra Mundial — e antes da Grande Depressão Econômica iniciada em com a Quebra da Bolsa em 1929. Foi esse clima de decepção com a política que fez com que os pobres — os velhos pobres e aqueles que se tornaram pobres com a Depressão — acabaram por eleger para a Presidência (não só uma, mas quatro vezes seguidas) um milionário podre de rico que, entretanto, adotava um discurso e uma plataforma progressista. Nesse clima, o New Deal americano, introduzido por Franklin D. Roosevelt (FDR), a partir de 1933, em uma tentativa de livrar o país da Depressão, acabou por liquidar (por um bom tempo, quase cinquenta anos, até 1980, com a eleição de Ronald Reagan, por aí) o Liberalismo Clássico (que, na época, ainda era simplesmente Liberalismo, sem qualificativo).

Usando um rolo compressor político, e fazendo uso máximo do clima de desespero que havia se implantado no país quando ele foi eleito, FDR, inspirado pelos princípios progressistas — que representavam  uma tendência político-econômica (com reflexos sociais na educação, na religião, etc.) que veio a aumentar radicalmente as atribuições e funções do estado, deixando lá atrás, a perder de vista, o Estado Mínimo dos Pais Fundantes, que desejavam um estado que interferisse o mínimo necessário (indispensável) na vida do cidadão.

“Melhor é o governo que menos governa” é a frase atribuída a Thomas Jefferson. Contudo, Jefferson e seus colegas sabiam que um estado / governo era necessário — eles não aceitavam o possível corolário anárquico de que, se melhor é o governo que menos governa, então melhor ainda é uma sociedade sem nenhum governo… Para eles um estado / governo é necessário, mas ele não pode ir além das atribuições de legislar (através do seu mecanismo Legislativo, nas esferas em que isso lhe é permitido pela Constituição) e de manter a ordem, interna e externa (através dos seu mecanismo Judiciário e de seu mecanismo Executivo, este com funções policiais e militares). Enfim: Law and Order.

Esses postulados básicos do Liberalismo foram abandonados claramente a partir do New Deal, com Emendas Constitucionais aprovadas a toque de caixa, bem como com um trabalho jurisprudencial de reinterpretar os preceitos constitucionais em uma direção progressista, etc. Na verdade, sob pressão do Progressivismo já haviam sido aprovadas Emendas Constitucionais contrárias ao espírito liberal, como, por exemplo, a Emenda 16, aprovada em 1913, criando o Imposto de Renda (que até então inexistia), a Emenda 18, aprovada em 1919, proibindo a produção e a venda de bebidas alcoólicas, etc. (Essa Emenda chegou a tamanho exagero que foi revogada pela Emenda 26, aprovada em 1933, já no governo de FDR, que gostava muito de uma bebidinha — importada da Escócia, naturalmente).

Hoje, os Estados Unidos estão longe de ser um país que adota o Liberalismo Clássico. O país adota uma versão de Social Democracia, que, entretanto, seus defensores insistem em chamar de Liberalismo, em um sentido sui generis, só adotado nos Estados Unidos. Para eles, se você não revoga a Carta de Direitos (Emendas 1-10 à Constituição), você é liberal, não importa o que você acrescente às atribuições clássicas do estado / governo… Foi por causa desse confisco do termo que os Liberais originais foram constrangidos a se denominar “Liberais Clássicos”: para diferenciar dos “Liberais Progressistas” de FDR, acampados no Partido Democrata. Mas como haviam sido bem sucedidos no confisco do termo, os sociais democratas americanos se viram no direito de se chamar simplesmente de “Liberais”, criando uma confusão enorme dentro e principalmente fora dos Estados Unidos.

Enfim, hoje, os Liberais Clássicos, nos Estados Unidos, diante do assalto de que o Liberalismo Original tem sido vítima, lá e alhures, acabaram se tornando, na defesa do Liberalismo Clássico, Conservadores, porque desejam voltar ao Liberalismo Original defendido pelos Pais Fundantes. Progressistas, lá nos Estados Unidos, bem como aqui e em todo lugar, são hoje considerados os esquerdizantes, entre os quais estão sociais democratas (Clinton lá, FHC aqui). O PT se pretendia uma opção mais à esquerda ainda, Socialista, embora à direita dos Comunistas. Preferiu roubar a implantar o Socialismo, e se viu desacreditado e defenestrado. Espero que para sempre.

Isso explica, em parte, as diversas alianças, nos Estados Unidos, entre Liberais Clássicos e Conservadores (Políticos e até mesmo Religiosos) nos Estados Unidos para conseguir derrotar candidatos que se denominam Liberais (sendo, na verdade, “Liberais” Progressistas, ou Esquerdizantes), como, por exemplo, os dois Clintons (Bill e Hilary), o Obama (Barak), etc. Foi assim, com base nessas alianças meio esquisitas, que se elegeram candidatos como o Nixon (Richard), o Reagan (Ronald), os dois Bushes (George Sr e Jr), e o Trump (Donald).

No Brasil, os Liberais (como os do Partido Novo) ficaram meio constrangidos de se aliar aos Conservadores (entre os quais os Evangélicos) e quase colocaram a perder a eleição do Bolsonaro (Jair). Felizmente, na última hora deu certo. E se os Liberais deixarem de ser frescos, vai continuar a dar certo. A política é a arte do possível. Não podemos deixar que o outro lado torne impossível o nosso avanço e o nosso progresso. Os Liberais precisam perceber que, com a Esquerda no poder, especialmente a Esquerda corrupta e corrompedora, eles só podem retroceder. Eles só vão avançar se aliando a quem comunga de alguns de seus princípios, mesmo que não totalmente, nem de todos. Enquanto mantiverem a postura de virgens vestais, que não se aliam com quem não concorda 100% com eles, vão pastar.

É isso — por enquanticamente, como dizia um conhecido meu que gostava de usar um linguajar parecido com o do Odorico Paraguaçu.

Em Salto, 24 de Junho de 2019 (dia em que minha neta mais nova, Madeline Kay Mathews, faz 14 anos).

Erik Ritter von Kuehnelt-Leddihn – Capítulo 1

Erik Ritter von Kuehnelt-Leddihn — que nome impressionante, não? — nasceu na Áustria em 31/07/1909 (na época, ainda Império Austro-Húngaro). Morreu também na Áustria , em 26/05/1999 (no apagar das luzes do século 20), também na Áustria. Viveu, portanto, uma vida relativamente longa: basicamente noventa anos (que se espalharam pelo século 20 e por inúmeros países do globo): faltavam apenas dois meses e cinco dias para ele completar noventa anos, quando morreu.

Falava com fluência oito línguas — nas quais era capaz também de escrever mais do que competentemente. Lia, sem problemas, além de nessas oito, em mais dezessete. Dominava, de alguma forma, 25 línguas — em parte porque morou em diversos países que falavam línguas diferentes.

Escreveu vários livros, em especial na área de Filosofia Política, tendo escrito também ficção. Admiradíssimo por uns poucos, a quem eu muito respeito, e totalmente desconhecido por aquele segmento da população que David Hume gostava de chamar de “the generality of mankind” (a maioria generalizada da humanidade).

Tenho, já há algum tempo, em ebook, formato Kindle, três livros dele — os que eu considero os melhores, e que menciono a seguir em ordem cronológica, do mais antigo para o mais recente:

The Menace of the Herd or Procrustes at Large (1943) [A Ameaça do Rebanho, ou Procrusto à Solta]

Liberty or Equality: The Challenge of our Time (1952) [Liberdade ou Igualdade: O Desafio do Nosso Tempo]

Leftism: From de Sade and Marx to Hitler and Marcuse (1974) [Esquerdismo: De de Sade e Marx até Hitler e Marcuse]

Os títulos são sugestivos e instigantes, mas podem requerer alguma exegese. Por isso, eu a forneço.

A parte inicial do título do primeiro livro faz referência a rebanho. O termo inglês “herd” quer dizer, literalmente, “rebanho”: aquele conjunto de animais que normalmente é pastoreado em bandos. Em um bando, eles, que em geral já se parecem uns com os outros, gostam de estar juntos de seus iguais, se comportam de forma igual, e, por isso, são relativamente fáceis de pastorear. O termo “the herd” tem um sentido derivativo e figurado em Inglês: “a plebe”, “o povão”, “the generality of mankind“. Essa parte do título afirma que o rebanho, ou a plebe, ou o povão, é uma ameaça.

A parte final do título do primeiro livro faz referência a Procrusto, personagem da mitologia grega, e afirma que ele está à solta em nossa sociedade. Procrusto era um ferreiro que detestava coisas de tamanhos desiguais, e, por conseguinte, de aparência diferente. Ele tinha em sua oficina uma cama, e tentava atrair para ela as pessoas que passavam em frente da oficina. Dentro da oficina, ele colocava a pessoa na cama. Se ela fosse menor do que a cama, ele a espichava, usando sua arte de ferreiro, para que ficasse do tamanho exato da cama; se fosse maior, ele lhe cortava um pedaço (cortar um pedaço é sempre mais fácil do que esticar) para que ela também ficasse do tamanho exato da cama. Ao sair da oficina, todas as pessoas tinham exatamente o mesmo tamanho, e, assim, eram, pelo menos no tocante ao tamanho, iguais. O autor não diz no título, mas ele achava Procrusto, tanto quanto o rebanho, uma ameaça.

Procrusto detestava a desigualdade e gostava de rebanhos, em que todos animais têm a mesma aparência, gostam de seus iguais, e se comportam, em geral, da mesma maneira. Mas Procrusto era um perigo: se você passasse em frente da oficina dele corria o risco de ser espichado ou de ser encurtado para ficar igual aos demais.

O título do segundo livro remete, portanto, ao título do primeiro: Liberdade ou Igualdade. O que é preferível, liberdade ou igualdade? Uma sociedade de pessoas livres, até mesmo radicalmente livres (como cavalos selvagens, difíceis de domar e impossíveis de pastorear), ou uma sociedade-rebanho, em que todo mundo pensa igual, se comporta igual, acaba ficando igual, e, por isso é mais fácil de governar? A primeira é impossível de “pastorear” — pode até ser governada, mas não mediante pastoreio; a segunda, parece que foi criada para viver debaixo do cajado do pastor e do ladrar (e morder) de seus cães pastores. Esse, considera o autor, é o grande desafio de nosso tempo. Esse desafio representa uma escolha: temos de decidir o que preferimos.

O título do terceiro livro indica o que o autor vê naquilo que ele chama de Esquerdismo. Os esquerdistas, como todos sabem, se conhecem pela sua opção pela Igualdade e pela sua luta contra as Desigualdades, em vez de pela Liberdade. Quem luta pela Liberdade são os liberais. Até aqui, não há novidade. A novidade é que o autor vai analisar o Esquerdismo a partir do Marquês de Sade (o homem que deu nome ao Sadismo) e de Karl Marx até Adolf Hitler e Herbert Marcuse. Que Marx e Marcuse são esquerdistas notórios, um do século 19, o outro do século 20, também não é novidade. Mas estariam o Marquês de Sade e Hitler, ambos personagens funestos, também identificados com o Esquerdismo, representantes da Esquerda, que estaria associada ao Sadismo e ao Nazismo? Essa a grande questão…

Este é Capítulo 1 de uma série de artigos sobre Kuehnelt-Leddihn que eu vou escrever aos poucos. Este primeiro é o chamariz.

São Paulo, 14 de Junho de 2019

O Direito de Possuir e Portar Armas de Fogo

Mais de treze anos atrás, em 2005, publiquei, neste blog, três artigos meus e dois de terceiros sobre o plebiscito que se avizinhava acerca do desarmamento total do brasileiro. A esquerda, acompanhada pelos perfumados e cheirosos, era a favor do voto SIM. Também as emissoras de TV, em especial a Globo. Achavam, os esquerdosos perfumosos que já haviam ganham. Perderam: o NÃO ganhou.

Agora, segundo consta, o Presidente Jair Bolsonaro vai publicar um decreto que autoriza a posse (propriedade) de armas, nas condições que especifica — isto é, amplia o alcançe da legislação que permite que algumas categorias de brasileiros tenham posse de arma (algo que não confunde com o porte de armas nas ruas).

O PT já vomitou a informação de que vai tentar bloquear o Decreto que, por enquanto, nem existe ainda. A Folha de S. Paulo, através do seu DataFolha, um suposto serviço de pesquisa de opinião, diz que 61% dos brasileiros agora são contra o decreto que o ainda a ser empossado Presidente afirmou que vai baixar.

Neste contexto, resolvi republicar os meus três artigos (que estão nos endereços abaixo) e dois outros artigos que o meu terceiro artigo comentou. Fiz pequenas modificações no texto para corrigir expressões que deixavam a desejar ou tentar melhorar a qualidade do texto.

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São estes os três artigos meus:

1) As Falácias da Campanha do Desarmamento (20/08/2005)

https://liberal.space/2005/08/20/as-falacias-da-campanha-pelo-desarmamento/

2) Amanhã, Voto NÃO! (22/10/2005)

https://liberal.space/2005/10/22/amanha-voto-nao/

3) A Tentativa de Desconstruir o NÃO já Começou! (24/10/2005)

https://liberal.space/2005/10/24/a-tentativa-de-desconstruir-a-vitoria-do-nao-ja-comecou/

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1) As Falácias da Campanha do Desarmamento (20/08/2005) 

https://liberal.space/2005/08/20/as-falacias-da-campanha-pelo-desarmamento/

Estamos em plena campanha para votar “Sim” ou “Não” no plebiscito do desarmamento. Eu vou votar “Não” por uma série de razões, que vou explicitar aqui.

A razão básica para o meu voto negativo está no fato de que sou um liberal e, como tal, só aprovaria uma interferência do governo em minha vida no caso de ela ser muitíssimo bem justificada. No caso da proibição da posse e do porte de armas de fogo, os que pretendem que o governo os proíba não me parecem ter nem mesmo uma justificativa fraca.

Ou vejamos.

Como liberal defendo a tese de que a única justificativa defensável da existência de um governo é a garantia, defesa e proteção dos direitos individuais à vida, à liberdade e à propriedade dos cidadãos. Para o liberal, a única função que o governo deve ter é prover a segurança de seus cidadãos – contra quem não respeita esses seus direitos individuais. Mas não é preciso ser liberal como eu para concordar que, ainda que não seja a única, essa função do governo é essencial.

Assim, quando o crime aumenta significativamente, em especial o crime contra a pessoa e a sua propriedade, o governo está falhando em sua função essencial – ou em uma de suas funções essenciais: a de prover a segurança de seus cidadãos.

Essa falha pode ter uma série de causas, das quais as três principais são:

*   A legislação contra o crime é fraca ou omissa;

*   O aparato policial não consegue dissuadir ou reprimir o crime;

*   O sistema judicial não pune de forma certa, adequada e exemplar o crime cometido;

Em suma, a causa da falha ou é legislativa, ou é policial, ou é judicial – ou abrange uma combinação dessas causas.

Em vez, porém, de pressionar o governo para que se equipe melhor para o exercício da sua função essencial de combater o crime e prover segurança para os cidadãos, grupos de esquerda tentam hoje, aqui no Brasil, criar uma cortina de fumaça alegando que a verdadeira causa da criminalidade não está na incompetência do governo, está na conduta das vítimas. . . . Segundo essa absurda tese, a criminalidade tem aumentado descontroladamente no Brasil, não porque o governo (incidentalmente, de esquerda) é incompetente, inapto e inepto, mas porque parte da população insiste em manter armas de fogo em casa e em carrega-las consigo quando sai. Logo, a posse e o porte de armas de fogo deve ser proibido.

Que essa tese é absurda se revela com facilidade.

Em primeiro lugar, a principal razão por que parte da população insiste em possuir e portar armas de fogo é, exatamente, para se defender do crime, porque o governo não cumpre a contento a função de protegê-la adequadamente. Se aqueles que se opõem à posse e ao porte de armas de fogo não gostam de saber que alguns cidadãos possuem armas de fogo em casa ou as portam na rua, que façam uma campanha para que o governo melhore a segurança pública. Essa medida sozinha faria mais para reduzir a posse e o porte de armas de fogo do que a campanha que a esquerda vem conduzindo.

Em segundo lugar, admito, sem problemas, que há um percentual pequeno de crimes contra a pessoa que se cometem no calor do momento e que, se não houvesse uma arma de fogo à mão, provavelmente não seriam cometidos com outro tipo de arma. Mas o número desses crimes é, relativamente falando, estatisticamente insignificante. A maior parte dos crimes contra a pessoa e contra a propriedade é cometido por pessoas que os planejam e, nesse processo, buscam os meios necessários para perpetrá-los – entre os quais estão as armas de fogo. A maior parte dos que perpetram crimes nessas condições são criminosos profissionais, pessoas frias que não hesitam em matar, com qualquer arma que tenham à mão. Sabem que, ao fazer o que tencionam, estão quebrando leis importantes que já proíbem atacar, assaltar, ferir, roubar, estuprar, sequestrar, matar – sem que essa proibição os detenha ou iniba. As armas de fogo que usam no momento não foram compradas com Nota Fiscal numa casa de armas nem muito menos registradas na polícia. É crível imaginar que o número desses criminosos seria reduzido pela existência de uma lei adicional que proíba a posse e o porte de armas de fogo???

A ingenuidade da proposta da esquerda é evidente. O criminoso profissional, que fez uma opção pela vida de crime, ou a pessoa fria que planeja cometer um crime, se não tiver a arma à mão vai procura-la: vai roubá-la (ou até mesmo compra-la!) de um policial corrupto, adquiri-la no mercado negro, contrabandeá-la do Paraguai ou da Bolívia… O que certamente NÃO vai fazer é comprar uma arma numa casa autorizada a vendê-la. As armas de fogo hoje usadas não são adquiridas legalmente no mercado e registradas na Polícia. Por que imaginar que uma lei idiota como a que se propõe vai alterar esse quadro?

Em terceiro lugar, a experiência de outros países mostra que a proibição da posse e do porte de armas de fogo pela população produz um aumento da criminalidade. Os livros de Thomas Sowell estão cheios de estatísticas a esse respeito. Mas um mero exercício de reflexão comprova isso. Ponha-se no lugar de quem contempla realizar, digamos, um roubo. Se eu sei que a pessoa que pretendo roubar pode estar armada, vou pensar duas vezes. O fato de que a vítima pode estar armada claramente funciona como um dissuasor. Agora, se eu sou um criminoso contemplando um determinado crime, e eu estou seguro de que minha vítima prospectiva vai estar desarmada (porque a punição por andar armado é pior do que a perspectiva de um assalto!), fico muito mais tranqüilo.

Isso tudo parece tão evidente que até me sinto constrangido em afirmá-lo.

A legislação hoje em vigência não obriga ou incentiva nenhum cidadão cumpridor da lei a comprar e portar uma arma. Ela preserva a liberdade de quem não quer comprar e portar e de quem pensa diferente. Os esquerdistas, que têm ojeriza à liberdade, querem, como sempre, remover essa liberdade, tornando a nossa sociedade menos livre.

Em Campinas, 20 de Agosto de 2005

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2) Amanhã, Voto NÃO! (22/10/2005) 

https://liberal.space/2005/10/22/amanha-voto-nao/

Quem me dá a honra de acompanhar este blog sabe que sou uma pessoa argumentativa. Gosto de discutir os prós e os contras de várias questões que me afetam ou interessam. Chego a ser até chato nas minhas firulas argumentativas. Muito cedo (durante o Ensino Médio, antigamente chamado de Clássico, na modalidade que cursei) me apaixonei pela filosofia e pela lógica. Sempre tive um certo desprezo pela retórica. Pareceu-me, desde sempre, que a retórica (a velha ou a nova) só é chamada quando a lógica não encontra argumentos convincentes… Por isso, resolvi ficar com o que realmente importa.

Por que digo isso? Porque vou apresentar, adiante, meus argumentos para votar NÃO amanhã, 23 de outubro, no referendo inventado por políticos que não têm o que fazer e ficam procurando jeito de interferir com os direitos da gente, a duras penas conquistados.

Antes de entrar nos meus argumentos, porém, devo confessar que desenvolvi algo que os americanos chamam de “rule of thumb” (literalmente, “regra de polegar” ou “regra de bolso” – uma regra prática) que me permite firmar um posicionamento inicial, sempre provisório, é verdade, acerca de questões sobre as quais não estou tão bem informado como desejaria. Conforme a questão, depois me informo melhor e tomo uma posição mais bem fundada em fatos e argumentos. Mas para um posicionamento inicial provisório a “regra de bolso” em questão é quase infalível. Ei-la: “Se um desses, Marilena Chaui, Emir Sader, ou Rubem César Fernandes, for a favor, eu me inclino a ser contra. Se os três forem a favor, não tenho dúvida nenhuma de que, levantados os fatos e analisados os argumentos, serei contra”. Como disse, essa regra me tem sido quase infalível. (Poderia tentar explicar por quê, mas isso me levaria muito longe do tópico deste artigo).

Na questão objeto do plebiscito, os três são unânimes: vão votar sim. Logo, eu, mesmo antes de estudar a questão com maior profundidade, tinha certeza de que iria votar NÃO. O estudo da questão apenas confirmou essa “intuição original”.

Diferentemente do Reynaldo Azevedo, editor da revista Primeira Leitura, que, no último número da revista, escreveu magistral artigo sobre o assunto, justificando o seu voto NÃO, e disse que iria votar assim apesar de ter muitos amigos cuja opinião ele respeitava que iriam votar sim, eu praticamente não tenho amigos cuja opinião eu realmente respeite que vão votar sim. Encontrei, isto sim, várias pessoas cuja opinião eu não respeito que vão votar NÃO – o que significa que várias pessoas vão fazer a coisa certa pelas razões erradas…

Vou iniciar com meus argumentos mais fracos – progredindo para os mais fortes.

Primeiro, ressalto a forma meio sem-vergonha, malandra (ou então totalmente inapta) com que foi formulada a pergunta do referendo. “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?” A pergunta correta teria sido algo assim: “A aquisição de armas de fogo e munição para a defesa pessoal, para a caça, e para o lazer deve continuar a ser um direito individual no Brasil?” Ninguém teria dúvidas ou faria confusão com essa segunda pergunta – como tem e faz com aquela.

É verdade que os defensores do NÃO exploraram bem a redação ruim (ou mal intencionada) da pergunta do referendo. Imagino que os defensores da proibição tenham imaginado que o povo diria mais facilmente sim do que NÃO. Acabaram por enganar-se redondamente. Os defensores do NÃO convenceram o povo de que o governo estava querendo engana-lo, para roubar-lhe mais um direito. Capitalizaram no clima anti-governo que os escândalos no Congresso vem gerando: o NÃO soa como um não ao governo e à corrupção que grassa no governo e no PT, partido que lhe dá sustentação. Aproveitaram para deixar claro que a segurança pública é a função número um do governo e que este não vem dando a mínima atenção a essa questão – preferindo prender espalhafatosamente a dona da Daslu e os Malufes que, com certeza, nunca deram um tiro em ninguém durante toda sua vida. Mostraram que a proibição do comércio de armas de fogo e munição não iria desarmar os bandidos, que obtêm suas armas no mercado negro (inclusive roubando ou comprando do Exército e da polícia).

Com isso, a frente do NÃO, com programas de TV e rádio muito bem feitos pela equipe de Chico Santa Rita, pode criar anúncios rápidos bem eficazes, como este, no rádio: “Sinceramente, você acha que esse governo está investindo o suficiente em segurança pública? NÃO!!! Você acha que a polícia tem condições de proteger a população? NÃO!!!! Você acha que os bandidos vão ser desarmados? NÃO!!! Então dia 23 diga: NÃO!!!”. Habilidade marqueteira, é verdade – mas muito eficaz, e que só foi possível porque alguém tentou formular a pergunta do referendo de forma meio malandra.

Em segundo lugar, não gosto de ver a Rede Globo usando seu poder de fogo (desculpem o trocadilho) e seus artistas globais – que andam todos com seguranças armados – para defender o sim. Lembrei-me da reação do povo quando a Globo tentou fazer de conta que a campanha das Diretas Já não existia: “O povo não é bobo, fora a Rede Globo!” Os próprios coordenadores da campanha do sim perceberam que não foi uma boa botar todos os artistas globais falando a favor do sim. Caiu mal. O povo não é trouxa… E a frente do NÃO explorou bem a brecha: “Nosso artista é o povo…”

Em terceiro lugar, a frente do sim e a Rede Globo procuraram, desde o início, caracterizar a questão enfocada no referendo como sendo o desarmamento – até que a Justiça os proibiu de fazer isso. Sabidamente, a questão não é o desarmamento, e os defensores do sim sabem disso. Mas tentaram enganar a população. Foram em parte impedidos de fazê-lo – mas ainda assim a frente parlamentar continuou a se denominar “Frente Brasil Sem Armas”. Deveria ter sido impedida de fazer isso. Mas mesmo assim, o povo, que não é trouxa, não se deixou enganar.

Em quarto lugar, os programas da frente do sim mentiram deslavadamente – tanto que a Justiça Eleitoral os proibir de dizer certas coisas com a maior cara lavada. Diziam, por exemplo, como se fosse evidente, que habitantes de áreas isoladas não seriam proibidos de comprar armas e munição. Isso sabidamente não é verdade. O que o Estatuto do Desarmamento diz é que habitantes de áreas isoladas, que provem que precisam de armas para sua sobrevivência (que vivam da caça, portanto), podem ser autorizados a adquiri-las.

Em quinto lugar, os programas da frente do sim exploraram o sentimentalismo, os casos de gente que foi morta por disparos acidentais, ou em assaltos, ou em balas perdidas… Tentaram dar a impressão que, eliminando essas mortes pela proibição da comercialização de armas de fogo e munições, o problema da violência estaria eliminado e o da segurança pública resolvido…

Em sexto lugar, achei de uma baixeza sem igual a tentativa da frente do sim de caracterizar os que pretendiam votar NÃO como sendo fascitoides, ou gente que estava a mando da indústria de armamentos, ou, então, de patetas. Aquela atitude petista de que só nós somos bons, o resto é picareta ou corrupto, não pega mais. O problema, durante toda a campanha, foi colocado como se fosse simplesmente uma questão de lucro vs vida. A questão da liberdade e do direito à legítima defesa foram sumariamente ignoradas. Deu-se a impressão, em alguns programas da frente do sim, que a maioria dos assassinatos no Brasil se dá com armas de fogo usadas descuidadamente, ou com armas de fogo usadas numa situação passional, ou, então, com armas de fogo roubadas por bandidos de quem tentou se defender de um assalto no trânsito. Nem o Márcio Thomaz Bastos, soi-disant ministro da Justiça do governo, acredita nisso.

Em sétimo lugar, o referendo está previsto no Estatuto do Desarmamento – mas a data do referendo, não. O referendo poderia ter esperado um pouco, mas não: o governo e sua base no Congresso e na sociedade tentaram, a todo custo, aprovar uma data ainda este ano. As razões foram, no fundo, duas: (a) aproveitar o que parecia ser um clima favorável à aprovação da posição favorecida pelo governo, o sim; (b) colocar uma outra questão na pauta dos jornais e das conversas de botequim em substituição à corrupção no governo e à ladroagem do PT. Quem tem pressa, come cru.

Passo agora aos argumentos mais fortes. Os apresentados até aqui são corroborativos. São os argumentos que apresentarei daqui para a frente que dão sustentação à minha posição.

Primeiro argumento: Não é segredo para ninguém que sou um liberal radical, “laissez faire”, daqueles à moda antiga. Para mim, a única função do governo é garantir os direitos da população, zelando pela sua segurança, mantendo a ordem pública. Para o bom funcionamento da sociedade, os cidadãos delegam ao governo o monopólio na iniciação do uso da força. Reservam para si, entretanto, o direito de defesa, caso alguém use, ou tencione usar, a força contra eles, numa situação em que não seja possível ou viável chamar a polícia. De nada adianta, porém, ter o direito de defesa se me são proibidos obter os meios de me defender. A proibição do comércio de armas de fogo e de munições é, portanto, um atentado ao meu direito de defesa contra a agressão alheia. Este o meu primeiro argumento principal.

Segundo argumento: Se o argumento anterior já faz sentido em uma sociedade em que o governo cumpre com a sua função de garantir os direitos dos cidadãos, zelando pela sua segurança e mantendo a ordem pública, faz muito mais sentido em uma sociedade, como a nossa, em que o governo é totalmente omisso na questão da segurança pública, em que a polícia (e mesmo o Exército) do governo têm medo de subir nos territórios (especialmente morros) controlados por bandidos profissionais. Nossa sociedade não corresponde ao estado da natureza de Locke, em que não há governo mas há ordem, em respeito a uma lei natural: ela corresponde ao estado da natureza de Hobbes, em que todos estão em guerra contra todos. Nessa guerra, o governo, para dar a impressão de que está finalmente fazendo alguma coisa, e já que não consegue desarmar os bandidos, quer desarmar a gente de bem. As armas dos bandidos não vão ser afetadas mesmo que o sim ganhe. Eles não compram armas e munição em lojas autorizadas. Eles não carregam porte de arma. Eles compram suas armas no contrabando ou as roubam (ou compram!) da polícia e do Exército. Ainda que o sim viesse a ganhar (o que parece improvável no momento, a levar a sério as pesquisas do Ibope e do Datafolha), os bandidos continuariam a ter acesso a armas e munições – só nós, os cidadãos de bem, é que seríamos impedidos de adquiri-las, para nos defender deles. Na verdade, se o sim ganhar, e viermos a obter uma arma no mercado paralelo, provavelmente seremos considerados pelas autoridades como mais bandidos do que os próprios bandidos. Este o meu segundo argumento principal.

Terceiro argumento: Muita gente não tem arma em casa hoje. E muita gente não quer nunca ter. Mas os bandidos não sabem quem tem e quem não tem. Essa dúvida os faz pensar duas vezes antes de invadir a casa de alguém. Se o sim vier a ser aprovado, essa dúvida dos bandidos estará eliminada: eles saberão que virtualmente ninguém terá armas em casa. O voto sim lhes dará um tranquilo “salvo conduto” para entrar na minha e na sua casa, sabendo que não teremos com que reagir. Isso explica porque, em todos virtualmente os países em que houve uma proibição de comércio de armas e munições, como o que agora se pretende aqui, os crimes (especialmente os roubos) envolvendo violência contra a pessoa aumentaram. Este o meu terceiro argumento principal.

Quarto argumento: Mas não serão só os crimes de violência contra a pessoa que aumentarão. O contrabando e o mercado paralelo também aumentará, porque agora não serão apenas os bandidos que terão de recorrer a eles (como, de resto, já fazem), mas, sim, toda a população que não concordar com à restrição ao seu direito de defesa que a eventual vitória do voto sim lhe imporá. O governo não consegue controlar o contrabando e o mercado paralelo de nada no Brasil – controlaria o de armas e munições? Este o meu quarto argumento principal.

Quinto argumento: Matar ou tentar matar uma pessoa, sem que seja em legítima defesa, já é crime no Brasil (como em qualquer outra nação do mundo). A aquisição de uma arma de fogo, em si, nada tem de criminoso. A arma pode ser usada para caçar, para lazer (tiro ao alvo) e, naturalmente, para a legítima defesa – todas atividades perfeitamente legítimas e não criminosas. Se o governo não consegue impedir que se cometam inúmeros crimes de assassinato ou tentativa de assassinato, algo que já é claramente proibido por lei, por que proibir o comércio de armas de fogo, que têm usos legítimos, a não ser que seja para criar uma cortina de fumaça que impeça a população de ver o seu fracasso na tarefa de garantir nosso direito à vida e à integridade pessoal, zelando por nossa segurança e mantendo a ordem pública? O governo quer nos fazer crer que essa criminalidade toda que está por aí decorre do fato de que alguns babacas insistem em comprar armas de fogo para se defender, só conseguindo, assim, segundo diz, aumentar o estoque de armas que os bandidos vão roubar… Este o meu quinto argumento principal.

Sexto argumento: O Estatuto do Desarmamento já é uma lei extremamente severa no controle de quem pode legalmente adquirir e portar armas. Faz pouco tempo que ele entrou em vigor. Na realidade, não foi nem testado ainda. Por que proibir, adicionalmente, e com tanta pressa, o comércio em si de armas e munições? Este o meu sexto argumento principal.

Poderia acrescentar alguns outros argumentos. Mas estes já são suficientes para justificar, no domingo, o meu voto NÃO.

Em Campinas, 22 de outubro de 2005

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3) A Tentativa de Desconstruir o NÃO já Começou! (24/10/2005) 

https://liberal.space/2005/10/24/a-tentativa-de-desconstruir-a-vitoria-do-nao-ja-comecou/

O que salva a Folha de S. Paulo [veja a data do artigo acima] é ter o Demétrio Magnoli como colunista… Vide, abaixo, o texto completo de seu artigo na edição de hoje. Mas transcrevo o início aqui:

“Agora, os santarrões têm de substituir a festa por uma narrativa política e já começam a manufaturar uma nova mentira: inspirados num Pelé de 30 anos atrás, dizem que o povo não sabe votar. Que o povo é ‘conservador’ e vota contra seus próprios interesses. E que eles, os ‘esclarecidos’ e ‘progressistas’ isto é, Lula, Márcio Thomaz Bastos, Chico Alencar, Sarney, ACM Neto, Raul Jungmann, Marco Maciel e Renan Calheiros continuarão a lutar ‘pela paz’, explicando ao povinho burro que a culpa pela criminalidade não é do Estado mas dos cidadãos ávidos por armas e sempre prontos a atirar uns nos outros. Eles destilaram uma santimônia pegajosa, abraçaram lagoas e cristos, mas não conseguiram falar em nome do povo. Agora, precisam sequestrar a mensagem do povo e torcer seu significado.”

O mais importante da coluna do Magnoli é isto: a denúncia de que está em curso a elaboração de uma “narrativa política”, mentirosa, que “sequestra a mensagem do povo e torce seu significado”.

Ontem à noite ouvi no Canal 40 da Net (Canal de Notícias da Globo) um cara de São Paulo (esqueço seu nome), que mal disfarçava a sua irritação com o resultado do referendo, dizer que, na verdade, o voto havia sido a favor do Estatuto do Desarmamento, e contra apenas um de seus artigos, e que a “voz do povo” era no sentido de que o governo, agora, deveria aplicar com toda a seriedade os demais 34 artigos do citado Estatuto… Bela reconstrução do resultado, não?

Hoje a própria Folha diz, no seu Editorial, continuando a mentiragem:

“A vitória do ‘não’ no referendo de ontem foi um triunfo publicitário. A frente parlamentar contrária à proibição do comércio de armas e munições mostrou-se mais competente do que os partidários do ‘sim’. Conseguiu pespegar a idéia de que restrições mais severas à comercialização desses itens violaria o direito à autodefesa dos cidadãos. Uma vitória do ‘sim’ não teria suprimido direitos, tampouco teria implicado a proibição total do comércio de armas, o qual permaneceria lícito para os que possuem porte.”

Está certo. Não nego que a campanha do NÃO tenha sido infinitamente superior à do sim. Mas caracterizar a vitória do NÃO como mera manobra publicitária é dar uma de avestruz — e avestruz de elite, porque acha que o povão é facilmente enganado… É verdade que o exemplo da eleição de Lulla em 2002 está aí pra provar que o povão e até mesmo as elites políticas podem ser vítimas de propagandas e publicidades que resultam em estelionato eleitoral. Mas no referendo, o povo, que inicialmente tendia para o sim, conseguiu ver que estavam tentando fazê-lo de trouxa de novo e reagiu à altura.

E a mentira da Folha, de que “Uma vitória do ‘sim’ não teria suprimido direitos”… OK, estou acreditando… Se a Folha não tivesse se declarado a favor do sim, quando o parecia que o sim iria ganhar, soaria mais plausível…

Também na Folha de hoje vem o Jânio de Freitas anunciando que, a despeito das aparências, “nem o ‘sim’ nem o não’ venceram o referendo . . . O vencedor do referendo foi o Grande Medo”… Quem foi que explorou o medo na campanha??? Foi a campanha do sim, que insistiu em trazer fotos e depoimentos de gente que tinha perdido parente por assassinato a bala. O sim explorou o medo da população — e perdeu feio, em todos os estados da Federação. A vitória do NÃO é a vitória do anti-medo.

Na rádio, hoje cedo, se dizia “Venceu o medo, perdeu a paz”… Venceu o anti-medo. Ganhou a paz. No Rio Grande do Sul, o estado mais armado do país (proporcionalmente ao número de habitantes), o NÃO ganhou a maior das lavadas. Isso porque o Rio Grande do Sul, apesar de ser o estado mais armado do país, é, segundo Lúcia Hypólito na TV ontem, o estado em que há o menor número de homicídios por arma de fogo (proporcionalmente ao número de habitantes). Mais armas, menos crimes…

Triste mesmo é ler as entrevistas com os intelectuais partidários do sim (a “burritsia”, não a “intelligentsia”). Para a maioria deles, ganhou o país, que provou que a democracia direta pode funcionar… Se o Jânio de Freitas acha que nem o sim nem o não ganharam, esses intelectuais acham que todo mundo ganhou… Tentativas vãs de desconstruir a vitória do NÃO…

Agora (dois anos depois de instituído o referendo, período em que eles imaginavam que iriam ganhar fácil) a burritsia partidária do sim critica o referendo em si, que foi “mal posto”, “inoportuno”, “um equívoco”, “um erro de enfoque”, “totalmente descabido”… Vide, abaixo, “Para intelectuais, referendo errou alvo”, matéria da Folha de hoje que transcrevo depois do artigo do Magnoli. Culpam o governo por ter “confundido os votantes”. ERRADO: o governo TENTOU confundir os votantes — mas não conseguiu… O resultado do referendo não decorre de confusão dos votantes, mas, sim, de clareza de visão.

Prossigo citando a matéria sobre a burritsia. “O cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), vê a vitória do ‘não’ como ‘resultado de um eleitorado desinformado e pouco atento’. Para Reis, que votou no ‘sim’ [precisava dizer???], não havia razão para levar o tema a consulta popular”.

O povo não sabe votar, diz a elite da esquerda. É desinformado, desatento, facilmente manipulável. Para ela a campanha do NÃO “confundiu o eleitor”. Num raro momento de certa candura, porém, o professor Fábio Wanderley Reis não esconde o que pensa. Ele acha que foi um erro ter feito uma consulta popular sobre essa questão… Diz com todas as letras que se a gente (i.e., a burritsia) tivesse resolvido esse problema aqui entre nós, a solução teria sido muito mais adequada…

José de Souza Martins, professor de sociologia da USP, afirma que a população foi “enganada, como se estivesse decidindo entre marcas de cigarro ou marcas de salsicha”, por “uma concepção mercantil de disputa”… Dá vontade de rir.

Roberto Romano, meu colega na UNICAMP, “ataca o pouco respeito à ‘inteligência da cidadania’, que é manipulada ‘com propaganda ou carismas pré-fabricados'”. Parece-me que quem tem pouco respeito para com a inteligência da cidadania é ele, que acha que ela pode ser facilmente manipulada… É verdade que, numa admissão que parece pouco coerente com o que acabei de citar, ele afirme, corretamente, que “o eleitorado . . . percebeu as manobras dos seus representantes oficiais” — e que “muitos políticos [juízes, advogados, promotores] brasileiros insistem em tratar a cidadania como fossem seus tutores, considerando-se os únicos adultos num país de crianças”.

É isso. Por enquanto.

Em Campinas, 24 de outubro de 2005

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Segue transcrição de matérias da Folha

Folha de S. Paulo

24 de outubro de 2005

ARTIGO

A mensagem dos cidadãos

DEMÉTRIO MAGNOLI

Colunista da Folha

Eles armaram o circo, instalaram a confusão e fabricaram uma pergunta capciosa. Contrataram os fogos e a fanfarra. Programaram a comemoração. Mas o povo disse “NÃO!”.

No referendo de ontem, o povo derrotou o governo, a maioria absoluta da elite política, a organização hegemônica de mídia e as ONGs milionárias.

Agora, os santarrões têm de substituir a festa por uma narrativa política e já começam a manufaturar uma nova mentira: inspirados num Pelé de 30 anos atrás, dizem que o povo não sabe votar. Que o povo é “conservador” e vota contra seus próprios interesses. E que eles, os “esclarecidos” e “progressistas” isto é, Lula, Márcio Thomaz Bastos, Chico Alencar, Sarney, ACM Neto, Raul Jungmann, Marco Maciel e Renan Calheiros continuarão a lutar “pela paz”, explicando ao povinho burro que a culpa pela criminalidade não é do Estado mas dos cidadãos ávidos por armas e sempre prontos a atirar uns nos outros.

Eles destilaram uma santimônia pegajosa, abraçaram lagoas e cristos, mas não conseguiram falar em nome do povo. Agora, precisam sequestrar a mensagem do povo e torcer seu significado. Indiferentes ao ridículo, chegam a sugerir que os cidadãos votaram contra o “mensalão”, não contra a proibição, como se a quadrilha dos corruptores já não estivesse exposta dois meses atrás, quando o “sim” tinha dois terços das intenções de voto.

O povo não é burro: decifrou a pergunta, desarmou a armadilha e enviou uma série de mensagens claras e nítidas.

1 – A esmagadora maioria dos brasileiros não tem armas. Mesmo assim, os eleitores disseram que o Estado não pode tomar-lhes um direito natural, que é o direito de defender a sua casa e a sua vida;

2 – Os eleitores disseram que o Estado não pode dividir os cidadãos em duas classes jurídicas, permitindo a proliferação de empresas de segurança privada enquanto proíbe a autodefesa armada dos homens de poucas posses;

3 – Os eleitores votaram contra o governo, mas com pertinência. Eles exigiram o fim da empulhação e do papo furado. Disseram que o culpado pela liberdade do crime é o governo, que não cumpriu a promessa de elaborar um plano nacional de segurança pública e não reformou, unificou e limpou as polícias.

Que ninguém se engane. Ficou registrado na memória coletiva que, em dezembro passado, os ministros do Trabalho, Ricardo Berzoini, e da Cultura, Gilberto Gil, negociaram com os traficantes do Complexo da Maré as condições da visita à favela da Vila São João, onde lançaram um programa de qualificação profissional. Por imposição do tráfico, as autoridades subiram o morro sem segurança armada, protegidos pela milícia dos bandidos.

Os cidadãos disseram “não!” exatamente a isso. Os brasileiros não correram atrás dos brucutus armados que têm saudade da ditadura. Simplesmente, estão fartos das autoridades que “são da paz”. Querem guerra à corrupção e à violência policial. Querem guerra às prerrogativas dos traficantes, não uma hipócrita “guerra às drogas” que criminaliza os usuários e provoca chacinas de crianças. Querem a restauração da ordem pública e dos direitos das pessoas. Os candidatos a presidente deveriam tomar nota.

(Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo e colunista da Folha)

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Folha de S. Paulo

24 de outubro de 2005

Para intelectuais, referendo errou alvo

De acordo com eles, há questões muito mais importantes a serem discutidas no país no que diz respeito à questão da segurança

MARCOS FLAMÍNIO PERES

Editor do Mais!

O referendo sobre a proibição de vendas de armas de fogo foi um instrumento legítimo da democracia, mas errou o alvo, conforme apontam cinco intelectuais ouvidos pela Folha.

Para a antropóloga Alba Zaluar, professora do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e referência no estudo da violência urbana no país, o referendo foi um “equívoco”.

Para ela, que votou no “sim”, há questões muito mais importantes a serem discutidas no país no que diz respeito à segurança, como a corrupção policial e o controle dos arsenais das Forças Armadas e das polícias. Ela avalia a vitória do “não” como um voto de protesto, um claro recado ao governo de que a população está insatisfeita com a política de segurança”.

Autora de livros como Integração Perversa – Pobreza e Tráfico de Drogas (ed. FGV), Zaluar cita dados de várias pesquisas para afirmar que o “Brasil não tem uma população armada”: menos de 5% dos domicílios brasileiros possuem armas de fogo, enquanto nos Estados Unidos esse índice atinge 34%.

Em cidades consideradas violentas, como São Paulo e Rio de Janeiro, esses índices são de 2,5% e 4,5%, respectivamente.

Portanto, não é daí que provêm as armas utilizadas pelos criminosos, conclui, mas do exterior e de arsenais da polícia e das Força Armadas. Nesse sentido, o referendo foi “um erro de enfoque”, diz.

É essa também a opinião de Roberto Romano, professor titular de ética e filosofia política na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), para quem “as armas continuarão a penetrar no território brasileiro por meio do contrabando”, além de poderem ser adquiridas “por meio de furto de integrantes das polícias e das forças armadas”. O problema da segurança no Brasil “sofre com a incompetência governamental”, diagnostica Romano.

Para José de Souza Martins, professor de sociologia da USP, o “governo propôs uma questão grande e fez uma pergunta pequena, o que confundiu os votantes”.

Embora considere o referendo um instrumento legítimo, ele foi “mal utilizado”.

Eleitorado desinformado

É legítimo “porque representa um alargamento das alternativas democráticas na expressão do ponto de vista do povo”. Foi mal utilizado “porque o legislador não levou em conta a complexidade do problema da violência e circunscreveu a pergunta ao comércio legal de armas, que é só uma parte da questão”. Mas Martins, autor de Exclusão Social e a Nova Desigualdade (ed. Paulus), pondera que o referendo contribuiu “para alargar nossa restrita concepção de democracia”.

Menos entusiasta, o cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), vê a vitória do “não” como “resultado de um eleitorado desinformado e pouco atento”. Para Reis, que votou no “sim”, não havia razão para levar o tema a consulta popular.

É da mesma opinião Ronaldo Vainfas, professor de história na Universidade Federal Fluminense (UFF), que considera “totalmente descabido” submeter o comércio de armas e munições a voto popular. Trata-se de uma “ilusão de cidadania”, afirma o historiador, que é especialista em Brasil Colônia e no estudo nas formas de coerção utilizadas pela Igreja e pelo Estado.

Para ele, “o “sim” ou o “não” pouco importam: a violência continuará, as mortes também continuarão, com armas de fogo comercializadas sobretudo no contrabando, pois o percentual de armas legais vendidas no país é mínimo. Todos sabiam disso, mesmo os que defendiam o sim na base do “paz e amor'”.

A banalização da campanha também é alvo de duras críticas.

Para Reis, o grupo que apoiava o “não” contrapôs de maneira “muito maniqueísta o bandido ao indivíduo desarmado”, confundindo o eleitor.

Já para Martins, o referendo foi alvo de “uma concepção mercantil de disputa” que levou a população a ser “enganada, como se estivesse decidindo entre marcas de cigarro ou marcas de salsicha”.

Ele culpa os tribunais eleitorais por terem tratado o referendo “de modo tão primário”.

Romano, autor de “O Caldeirão de Medéia” (ed. Perspectiva), entre outros, vai na mesma direção e ataca o pouco respeito à “inteligência da cidadania”, que é manipulada “com propaganda ou carismas pré-fabricados”.

Ele vê a vitória do “não” como um “alerta”, pois “o eleitorado amadureceu nos últimos 20 anos e percebeu as manobras dos seus representantes oficiais”. Para ele, “muitos políticos [juízes, advogados, promotores] brasileiros insistem em tratar a cidadania como fossem seus tutores, considerando-se os únicos adultos num país de crianças”.

Pois, arremata, “os representantes sabem que, em duas palavras, nenhuma verdade concreta é obtida em questões complexas. As duas respostas exigem árduas razões jurídicas e técnicas”.

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Os cinco artigos, três meus e dois de terceiros, foram transcritos aqui novamente em 31 de Dezembro de 2018, véspera da posse do Presidente Jair Messias Bolsonaro.

Salto, SP, 31 de Dezembro de 2018

A Escola e a Liberdade

Este artigo meu dá continuidade a (pelo menos) quatro outros artigos meus, que publiquei neste mesmo blog, Liberal Space:

O mais recente é “A Controvérsia Acerca do ‘Escola Sem Partido’ Continua: PL 867/2015“, publicado em 14/5/2018, neste endereço: https://liberal.space/2018/05/14/a-controversia-acerca-do-escola-sem-partido-continua/.

Antes, do anterior, publiquei, “Doutrinação e Educação: A Esquerda Pretende Argumentar que Doutrinar não Passa de um Jeito ‘Crítico’ de Educar“, no dia 28/5/2016, no endereço: https://liberal.space/2016/05/28/doutrinacao-e-educacao-a-esquerda-pretende-argumentar-que-doutrinar-nao-passa-de-um-jeito-critico-de-educar/.

Antes do anterior, publiquei ainda “‘Educação Sem Doutrinação’ e ‘Escolas Sem Partido’“, que foi publicado em 10/4/2010, já há mais de oito anos, neste endereço: https://liberal.space/2010/04/10/educacao-sem-doutrinacao-e-escolas-sem-partido/.

Por fim, o mais antigo dos artigos, “Dogmatismo e Doutrinação“, foi publicado em 3/4/2009, há quase dez anos, no endereço https://liberal.space/2009/04/03/dogmatismo-e-doutrinacao/.

Este é, portanto, o quinto artigo de uma série que começou há quase dez anos neste blog que defende o Liberalismo Clássico e uma educação que o leve a sério, combatendo uma educação que foi moldada para impedi-lo e para promover uma educação de viés socialista, quando não comunistizante.

o O o

Críticos da Proposta “Escola Sem Partido” (ESP), alguns deles encastelados até mesmo no Supremo Tribunal Federal (STF), acusam a proposta de trazer a censura para dentro da escola, pois essa proposta impediria os professores de exercer a sua “liberdade de ensinar”, violando, por conseguinte, a vetusta “liberdade de cátedra” (que nem sei se, quando foi criada, foi com a intenção de que se aplicasse até mesmo à Escola Básica – à qual vou me limitar neste artigo).

Antes de discutir essa questão – se o ESP viola a liberdade de ensinar no professor, e, portanto, propõe a implantação de censura em sala de aula – eu quero discutir uma outra questão, que está contida nas duas perguntas a seguir, que formam uma disjunção:

  • A escola (básica) existe para que professores possam ensinar?

OU

  • A escola (básica) existe para que crianças, adolescentes e jovens possam aprender?

Assumindo que haja uma liberdade para proteger dentro da escola, pergunto eu: De quem é a liberdade que é preciso proteger na escola?

  • A liberdade de ensinar do ensinante?

ou

  • A liberdade de aprender do aprendente?

A mim não resta a menor dúvida de que:

  • Há uma liberdade que é mister proteger dentro da escola;
  • A liberdade a ser protegida dentro da escola é a liberdade de aprender do aprendente.

Vou procurar demonstrar essa tese – a de que há uma liberdade que é mister proteger dentro da escola, mas que essa liberdade é a liberdade de aprender do aprendente, não a putativa liberdade de ensinar do ensinante – enunciando e discutindo algumas premissas básicas cuja verdade me parece auto-evidente (mas, mesmo assim, existem bons argumentos que as impõem) :

  1. Se a escola tem alguma função (além de custodiar crianças, adolescentes e jovens) é contribuir para a educação de quem a frequenta – que, no caso da educação básica, são crianças, adolescentes e jovens.
  2. A educação, no entanto, é algo que começa no nascimento de uma pessoa e só termina com sua morte – e, portanto, a escola participa apenas de uma pequena parte da educação de uma pessoa.
  3. A principal responsabilidade pela educação de uma criança é de seus pais, que a geraram ou adotaram, assumindo responsabilidade pela vida dela em todos os seus aspectos, entre os quais a sua educação, até que ela possa cuidar da própria vida de maneira autônoma e competente.
  4. As crianças, quando nascem, não são capazes de fazer virtualmente nada, exceto aquilo que seus instintos animais lhes permitem fazer: respirar, chorar, mamar, excretar resíduos alimentares, etc.
  5. Entre os instintos humanos há um extremamente importante, sem o qual as crianças não sobreviveriam para se tornar adultos autônomos e competentes, e, por conseguinte, livres: uma incrível capacidade de aprender.
  6. Essa capacidade de aprender, que é inata, e não precisa ser aprendida (sendo falacioso, portanto, que, para aprender, é preciso primeiro aprender a aprender) é a força motriz que torna possível a educação.
  7. Aprender, em seu sentido mais básico, não é, essencialmente, receber e assimilar informações e conhecimentos: é, no seu mais fundamental, tornar-se capaz de fazer aquilo que não se era capaz de fazer anteriormente.
  8. Assim, antes de ir para a escola, as crianças já começaram a se educar, em interação com o mundo e, em especial, com sua família.
  9. Ao serem colocadas na escola, as crianças, em sua grande maioria, já progrediram bastante em sua educação, já tendo dominado, em regra, as seguintes aprendências:
    • Já aprenderam a reconhecer padrões visuais e auditivos e a reconhecer a face e a voz da mãe, do pai, dos irmãos e de vários outros parentes;
    • já aprenderam, certamente, a engatinhar, a ficar de pé sozinhas, a andar, a pular, a correr;
    • já aprenderam, por descoberta, que alguns sons emitidos pelos seus próximos têm sentido, e já aprenderam a identificar o sentido de um bom número de palavras;
    • já aprenderam a balbuciar e, pouco tempo depois, em interação com outros humanos, e com o apoio e o incentivo deles, a falar, isto é, a dotar de sentido alguns dos sons emitidos pela sua boca;
    • já aprenderam, com um pouco mais de tempo, a cantar, e, muito provavelmente, se tornaram capazes de memorizar a melodia e a letra de várias canções infantis ou mesmo não-infantis, mas simples;
    • já aprenderam a brincar, sozinhas ou em companhia de outras crianças, assim se entretendo e se divertindo;
    • já aprenderam a ouvir histórias com atenção e a desenvolver preferências por umas histórias sobre outras;
    • já aprenderam a assistir, na tela, a desenhos animados e pequenos filmes feitos para crianças;
    • já se tornaram capazes de focar sua atenção em um brinquedo ou uma brincadeira, em uma história ou um desenho animado;
    • já desenvolveram interesses, desejos e preferências;
    • já desenvolveram, ou demonstram possuir, talentos e habilidades especiais para algumas coisas ou em algumas áreas;
  10. Já aprenderam, em muitos casos, a fazer muitas outras coisas, por emulação ou, neste caso, porque estas coisas lhes foram explicitamente ensinadas: algumas escovam os dentes pelo menos duas vezes por dia, algumas toman banho todos os dias, algumas dão graças antes de comer, algumas oram antes de ir dormir, algumas desenvolveram o hábito de frequentar uma igreja ou um clube social desde pequeninas, e lá possuem um círculo de amigos, etc.
  11. Assim, quando chegam à escola, as crianças já são seresinhos humanos (“ser-humaninhos”) até bem desenvolvidos: não são uma tabula rasa, ou uma folha de papel em branco, que agora os pais encarregam a escola de educar; não são uma massinha de modelar, que agora os pais entregam aos professores para que estes modelem; são pequenos seres humanos, já bem desenvolvidos, mas não ainda totalmente, que têm interesses, desejos e preferências, bem como potenciais, talentos (alguns já aflorados) e habilidades, seres humanos únicos e inconfundíveis, que estão aprendendo a ser – ser livres – e a exercer essa sua liberdade, a praticar a sua independência “em dependência” (ou seja, a ser independente sem negar sua interdependência), e a entender o que é responsabilidade…
  12. A quem recebe essa criança na escola, a professora, ou, cada vez mais, o professor, incumbe reconhecer que a criança já vem para escola com um itinerário de aprendizagem já formado, que é preciso respeitar, que ela tem um espaço de liberdade, que inclui o desejo e a vontade de aprender algumas coisas em preferência a outras, que inclui o desejo e a vontade de não aprender algumas coisas (que, talvez, a professor quisesse lhe ensinar), e que sua liberdade, inclusive de aprender, precisa ser plenamente respeitada; ela vem de um ambiente familiar em que crenças, valores e costumes são vivenciados, nos quais ela se encaixou, porque, afinal de contas, aquele ambiente é a sua família…
  13. A professora ou o professor tem o dever de ajudar a criança em sua aprendizagem e de facilitar a sua jornada em busca do que ela um dia irá ser… Muitas vezes a criança não sabe o que deseja se tornar, e é mister ajuda-la a descobrir / construir o seu projeto de vida. Nunca impor. Nunca obrigar. Nunca proibir. Nunca ensinar. Como disse Sócrates, o professor é uma parteira. Ele não concebe nada, não traz nenhuma concepção para dar à criança. É a criança que deve conceber – ideias, valores, projetos – e dá-los à luz. Depois de dá-los à luz é a criança que deve nutri-los, cuidar que se desenvolvam e se tornem realidade. É a liberdade do aprendente – criança, adolescente, jovem – e de sua agenda de aprendizagem que deve ser respeitada, por que é da vida dele que se trata.
  14. A professora ou o professor podem perguntar: e a minha liberdade de pensamento e de expressão? Ela vai ser censurada? Não. A escola não vai interferir com ela. A escola, como a instituição à qual aquela criança preciosa e única foi confiada pelos pais, vai, e com todo direito, impedir que a professora ou o professor interfira com a liberdade de aprender das crianças que foram trazidas de boa fé para a escola, na expectativa que a escola, através das professoras ou dos professores, não violasse a integridade e inviolabilidade de sua pessoa, de sua mente, que são, no mínimo, tão preciosas quanto a integridade e inviolabilidade do seu corpo (que todos reconhecem que não deve ser violado).
  15. É um princípio básico da Democracia Liberal que todos são igualmente livres, mas que a liberdade de qualquer um nunca é absoluta: ela vai até onde começa igual liberdade do outro. A liberdade da professora ou do professor, na escola e em sala de aula, encontra seu limite natural e inquestionável na liberdade do aluno. A liberdade de ensinar do professor é limitada pela liberdade de aprender do aluno, em função do qual a escola existe e o professor exerce a sua função, que é de ajudar o aluno a aprender, e não de inculcar em sua mente ideias, crenças, teorias, doutrinas, valores, posturas, atitudes, por mais caro que esse conjunto de lhe seja e por mais verdadeiro que lhe pareça.
  16. A liberdade de aprender do aluno na escola é parte da liberdade de ser, de vir a ser, de conviver, de perseguir seus sonhos (interesses, desejos, paixões). Há mais uma razão muito forte para que o professor respeite essa liberdade do aluno. O aluno da escola básica é um ser em formação, em regra bem mais novo do que o professor, já adulto, já formado, já de cabeça feita. Imaginar que esse ser adulto, formado e de cabeça feita, possa ter liberdade de se postar diante de uma criança, um adolescente, um jovem, que não é seu filho, e fazer a cabeça dela, ensinar-lhe o que deve crer, o que deve fazer, como deve viver, que valores deve adotar, é um absurdo: essa liberdade simplesmente não existe. Se o professor não tem o direito de fazer isso nem com um outro adulto, como ele, fora da escola, por que teria ele o direito de fazer isso com um ser ainda não plenamente formado, que é colocado, cativo, à sua frente, em relação ao qual ele, professor, está em posição de autoridade, que ele pode punir com ironias, sarcasmos e insinuações, para não dizer com notas, com envio para a diretoria, com detenção depois do fim da aula, com dever extra para casa, etc.?
  17. Fazer isso é doutrinar, não é educar. Catequisar ou doutrinar no contexto de uma igreja ou em reunião de um partido político, que uma pessoa, criança ou adulto, frequenta de livre e espontânea vontade ou em respeito à vontade de seus pais, até poderia parecer defensável, em comparação. Mas admitir que um adulto, um total estranho, com sabe-se lá que crenças, que valores, que costumes, que hábitos, investido de uma função de autoridade que lhe permite penalizar, punir, castigar, pôr o aluno fora da classe, manda-lo para a diretoria, recomendar a sua expulsão, possa dizer para um aluno ainda não adulto o que pensar e como pensar, possa tentar cativa-lo ou seduzi-lo com ideias que os pais do aluno consideram detestáveis, possam alicia-lo para fazer isso ou aquilo, se comportar desta ou daquela maneira, só porque ele, como professor, teria um direito inalienável de falar, ensinar, convencer, persuadir, condicionar, lavar o cérebro de uma criança que nem parente dele é… ISSO É TOTALMENTE INADMISSÍVEL.
  18. É contra esse estado de coisas que investe a proposta Escola Sem Partido. O ESP quer proteger a liberdade, da criança, de aprender o que ela, ou, dependendo da idade dela, os seus pais, acham que ela precisa, deve, ou deseja aprender. A escola existe por causa e em função do aluno, não do professor.
  19. Se a escola e os professores não querem respeitar a liberdade de aprender dos alunos, e preferem achar que a liberdade que é preciso defender é a deles, de ensinar, doutrinar, convencer, persuadir, condicionar… OS PAIS DEVEM TER O DIREITO DE TIRAR AS CRIANÇAS DA ESCOLA E EDUCA-LAS EM CASA EM ALGUM OUTRO LUGAR EM QUE ELAS POSSAM SER EDUCADAS COMO ELAS QUEREM OU, DEPENDENDO DE SUA IDADE, COMO SEUS PAIS PREFEREM. Mas até essa liberdade de tirar as crianças da escola para educa-las em casa o Supremo Tribunal Federal negou aos pais.
  20. Nos Estados Unidos os Amish não admitem que suas crianças sejam obrigadas a frequentar escolas do governo ou de quem quer que seja que não seja Amish. E lá o governo reconhece esse seu direito. Como reconhece o direito de Home Schoolinge até de Unschooling.
  21. No Brasil, país atrasado, as escolas e os professores acham que são donos das crianças, que podem fazer suas cabeças, mudar suas crenças, alterar suas lealdades, modificar seu comportamento, como eles acham que têm o direito de fazer. Lavam os cérebros dos alunos e estes ocupam as escolas para que possam continuar a ser escravos de seus professores. Até pomposos ministros da Suprema Corte se manifestam. Nem percebem as contradições em que caem. Acham que nas Universidades um bando de alunos intolerantes tem a liberdade de coagir os demais a aceita-los e a conviver com eles – mas negam que uma família tenha o direito de, por não concordar com o que se ensina e doutrina na escola, educar seus filhos em casa… punindo os pais se não enviarem seus filhos à prisão que a escola se tornou, ocupando cada vez mais anos de sua vida, cada vez mais dias do seu ano, cada vez mais horas do seu dia, a ponto de se tornar uma “escola de tempo integral”.

É isso.

Em São Paulo, entre 1 e 10 de Novembro de 2018

NOTA de 11/5/2018

Como salientado no início deste artigo, ele é parte de uma série de cinco artigos que começou há quase dez anos neste blog Liberal Space e que defende o Liberalismo Clássico e uma Educação Liberal, que leve o Liberalismo Clássico a sério, combatendo uma educação que não merece o nome, pois é mais doutrinação do que educação, que foi moldada para combater o Liberalismo Clássico e para promover uma educação de viés socialista, quando não comunistizante.

São estes os cinco artigos:

O mais antigo dos artigos, “Dogmatismo e Doutrinação“, foi publicado em 3/4/2009, há quase dez anos, no endereço https://liberal.space/2009/04/03/dogmatismo-e-doutrinacao/.

Em seguida, “‘Educação Sem Doutrinação’ e ‘Escolas Sem Partido’“, que foi publicado em 10/4/2010, no endereço https://liberal.space/2010/04/10/educacao-sem-doutrinacao-e-escolas-sem-partido/.

O terceiro artigo, “Doutrinação e Educação: A Esquerda Pretende Argumentar que Doutrinar não Passa de um Jeito ‘Crítico’ de Educar“, que foi publicado em 28/5/2016, no endereço https://liberal.space/2016/05/28/doutrinacao-e-educacao-a-esquerda-pretende-argumentar-que-doutrinar-nao-passa-de-um-jeito-critico-de-educar/.

O quarto artigo, “A Controvérsia Acerca do ‘Escola Sem Partido’ Continua: PL 867/2015“, publicado em 14/5/2018, no endereço https://liberal.space/2018/05/14/a-controversia-acerca-do-escola-sem-partido-continua/.

Por fim, o quinto artigo, “A Escola e a Liberdade”, publicado em 10/11/2018, no endereço https://liberal.space/2018/11/10/a-escola-e-a-liberdade/.

Eduardo CHAVES

Dogmatismo e Doutrinação

Embora esteja perfeitamente ciente das dificuldades envolvidas no empreendimento, não hesito em defender a tese de que a pessoa dogmática (no sentido em que venho usando a expressão neste meu blog Liberal Space) em geral foi doutrinada em algum momento de seu desenvolvimento – e não conseguiu, posteriormente, se livrar dos efeitos perniciosos da doutrinação.

Uma das dificuldades na defesa dessa tese está nos próprios conceitos envolvidos: dogmatismo e doutrinação.

Nos últimos posts (e em diversos outros, anteriores) venho discutindo o conceito de dogmatismo – relacionando-o com os conceitos de verdade, orgulho e intolerância.

Agora vou discutir um pouco o conceito de doutrinação, usando, para isso, material que elaborei a partir de 1975, quando comecei a pesquisar a questão da Educação vs Doutrinação na UNICAMP. Essa foi minha primeira área de pesquisa na UNICAMP, o que mostra, pelo menos, a persistência de alguns interesses meus…

Tem havido muita controvérsia, nos últimos tempos, em relação ao conceito de doutrinação. Não vou, aqui, tentar solucionar todas as disputas e divergências: vou apenas me situar dentro da controvérsia, apresentando e defendendo um conceito de doutrinação e mostrando como o conceito de doutrinação aqui caracterizado se relaciona com o meu conceito de educação.

Não tenho nenhuma dúvida, hoje, de que a educação é um processo amplo de desenvolvimento humano que abrange não só a dimensão cognitiva das pessoas mas também sua dimensão física ou psico-motora, ativa ou empreendedora, afetiva ou emocional, social ou interpessoal, moral ou ética, e, até mesmo, sua espiritual. Pode ter até faltado alguma dimensão aqui, mas, se faltou, a sua ausência dificilmente afetará o curso da argumentação.

Quando se trata de educação, dentro dessa visão, mesmo que nos restrinjamos à dimensão estritamente cognitiva do processo, o foco está no desenvolvimento de competências e habilidades de natureza cognitiva (pensar, raciocinar, argumentar, imaginar, etc.), não na tentativa de incutir ou inculcar na pessoa pontos de vista específicos, com o objetivo de que se tornem crenças suas.

Quando falo em doutrinação, porém, o escopo é bem mais restrito. Aqui não se trata do desenvolvimento do ser humano em suas múltiplas dimensões, nem mesmo de seu desenvolvimento na dimensão cognitiva: trata-se, simplesmente, de um processo que visa conseguir que a pessoa venha a adotar determinados pontos de vista, isto é, que venha a acreditar neles – mais (e pior) ainda: que venha a acreditar neles de forma inabalável, não importa que evidências e argumentos possam existir ou vir a aparecer…

O principal objeto da doutrinação são, portanto, pontos de vista, ideologias, visões políticas ou religiosas do mundo, etc. – ou seja, aquilo que se convencionou chamar de doutrinas. Explicarei adiante por que digo “principal objeto da doutrinação”: faço-o porque estou convicto de que até mesmo teorias científicas podem ser objeto de doutrinação.

Atitudes, hábitos, sentimentos, etc., por outro lado, claramente não podem ser objetos de doutrinação. Parece-me absurdo dizer que alguém foi doutrinado a adotar uma atitude passiva diante da violência, por exemplo, ou a tomar banho diariamente, ou a assumir um sentimento de solidariedade com os desvalidos, ou qualquer coisa desse tipo. Alguém pode ter sido condicionado a adotar uma atitude passiva diante da violência, ou a banhar-se diariamente, ou a sentir-se solidário, mas condicionamento e doutrinação não são a mesma coisa. Condicionamento tem que haver com comportamento, atitudes, hábitos, sentimentos. Doutrinação tem que haver com pontos de vista, ideologias, visões políticas ou religiosas do mundo, etc. (ou, excepcionalmente, com teorias – até mesmo científicas).

Alguém pode, portanto, ser doutrinado no ponto de vista de que se deva tomar uma atitude passiva diante da violência – mas isto já é outra coisa: estamos lidando, agora, com um ponto de vista e não com uma atitude (embora a atitude possa vir a decorrer do ponto de vista). Não há, por exemplo, garantia de que quem acredite que se deva tomar uma atitude passiva diante da violência venha a assumir esta atitude quando confrontado com a violência: há sempre a possibilidade de que haja incoerência entre o pensamento e comportamento de uma pessoa, e já os gregos nos alertavam acerca da “akrasia”, ou fraqueza da vontade.

Parece haver pouca dúvida, portanto, de que o objeto da doutrinação são pontos de vista, ideologias, visões políticas ou religiosas do mundo, etc., excluindo-se da esfera da doutrinação até mesmo competências e habilidades cognitivas ou intelectuais.

Uma segunda consideração geral que devo fazer acerca do conceito de doutrinação é a de que, muito embora a educação possa ocorrer de modo não-intencional, a doutrinação parece ser sempre intencional. Além disso, a educação pode ocorrer, e freqüentemente ocorre, em situações que não envolvem ensino: seu vínculo é com a aprendizagem, não necessariamente com o ensino, e não há dúvida de que pode haver, e freqüentemente há, aprendizagens que não são decorrentes do ensino. A doutrinação, porém, parece sempre ocorrer em situações, mesmo fora da escola, que podem ser caracterizadas como de ensino: alguém supostamente sabe alguma coisa (acredita em alguma coisa) e quer transmitir esse suposto saber a outra pessoa, para que esta também o adote.

Na mesma linha, parece-me fazer bastante sentido dizer que alguém educou-se, isto é, aprendeu determinadas coisas, ou desenvolver determinadas competências e habilidades, não me parece fazer o menor sentido afirmar que alguém doutrinou-se: sempre optamos por dizer que alguém foi doutrinado.

Feitas essas colocações preliminares, estou em condições de conceituar, mais precisamente, a doutrinação: doutrinação é o processo através do qual uma pessoa ensina a outra determinados pontos de vista, ideologias, visões políticas e religiosas de mundo, etc., com a intenção de que esses pontos de vista (etc.) se tornem crenças, isto é, sejam aceitos pela pessoa que é objeto do processo doutrinatório – até mesmo não obstante evidências e argumentos que possam existir ou vir a aparecer. (No caso da doutrinação, a “vítima” é sempre objeto, nunca sujeito, do processo).

Isso posto, passo a discutir rapidamente os três critérios de doutrinação que têm sido sugeridos na literatura pedagógica: conteúdos, métodos, intenções e conseqüências.

Desde que, como acabei de observar, doutrinação tem que haver apenas com pontos de vista, ideologias, visões de mundo, etc., a tese de que o critério que permite demarcar a doutrinação da educação é o conteúdo, isto é, o objeto específico do processo, faz certo sentido.

Por outro lado, também faz sentido a tese de que a educação faz uso de métodos abertos e liberais, em que se propõem, analisam e discutem livremente idéias e abordagens alternativas e se faz um exame crítico e rigoroso dos fundamentos epistemológicos das idéias e abordagens em questão, com a expectativa de que a escolha cabe a quem está se educando, enquanto a doutrinação, posto que tem por objetivo conseguir que a pessoa aceite (acredite em) determinados pontos de vista, ideologias, visões de mundo, etc., faz uso de métodos fechados e iliberais, em que, freqüentemente, se omitem abordagens e alternativas que podem conflitar com esse objetivo (ou, se elas são mencionadas, o são já com as “respostas” a elas previamente elaboradas e empacotadas…)

Mas, a meu ver, o que realmente distingue a educação da doutrinação é basicamente a intenção das pessoas que conduzem o processo.

Essa tese tem implicações importantes:

Primeiro, não são apenas pontos de vista, ideologias e visões de mundo que podem ser objeto de doutrinação: até mesmo teorias científicas podem sê-lo, se são ensinadas com a intenção de que sejam aceitas (cridas) como a verdade final, irrespectivamente de evidências e argumentos.

Segundo, até mesmo ideologias e visões políticas e religiosas do mundo podem fazer parte de um processo educativo, se a intenção é discuti-las, com o objetivo de compreendê-las, com base nas evidências e argumentos que levaram determinadas pessoas a propô-las um dia – e não simplesmente conseguir que sejam aceitas (cridas).

Isto quer dizer que não há conteúdos que estejam inevitavelmente fadados a serem objeto de doutrinação, como sugerem alguns, embora alguns conteúdos sejam, talvez, mais preferidos por doutrinadores do que outros. Com esta tomada de posição me contraponho àqueles que afirmam que em áreas como religião, moralidade, e política não há como evitar a doutrinação e que em áreas como a física e a astronomia não faz sentido falar-se em doutrinação, pois os que assim afirmam privilegiam o conteúdo como critério básico e fundamental de diferenciação entre educação e doutrinação. Dada minha conceituação de educação e doutrinação, tanto podem a religião, a moralidade e a política fazer parte de um processo verdadeiramente educacional, como podem a física e a astronomia fazer parte de um processo tipicamente doutrinacional, como bem mostram algumas pesquisas recentes na área da história e sociologia da ciência, notadamente o trabalho de Thomas S. Kuhn.

Por fim, é evidente que seja de esperar que as consequências do processo educacional e doutrinacional sejam diferentes. Em condições normais, é de esperar que a educação, se bem sucedida, resulte numa mente e numa atitude aberta, enquanto a doutrinação resulte numa mente e numa atitude fechada, visto que seu objetivo é a pura e simples aceitação de pontos de vista, ideologias, visão de mundo, teorias, etc.

É de esperar, consequentemente, que, em decorrência da educação, as crianças (ou as pessoas, em geral, porque adultos também continuam permanente a se educar) venham a ter uma mente e uma atitude mais aberta e flexível, que se preocupe com a análise e o exame das evidências e dos argumentos, condicionando sua aceitação ou não de determinados pontos de vista, ideologias, visões de mundo, ou mesmo teorias científicas, a esse exame das evidências e dos argumentos. Também é de esperar que, em decorrência da doutrinação, as crianças (ou as pessoas em geral, porque adulto também pode ser doutrinado, como os partidos políticos e as igrejas muito bem sabem) venham a ter uma mente mais fechada, uma atitude mais dogmática e menos crítica, um apego mais emocional do que evidencial às suas convicções, pois lhe foi ensinado preocupar-se mais com certas doutrinas ou teorias do que com a análise crítica, isenta de preconceitos, das evidências e dos argumentos que podem dar, ou não, sustentação a essas doutrinas e teorias.

É de esperar que a pessoa doutrinada acabe por assumir a seguinte atitude: “É nisto que acredito: vamos ver agora se encontro alguma evidência ou argumento para fundamentar minhas crenças”. Com essa atitude, é possível que suas razões para aceitar suas crenças não passem de racionalizações.

Concluo, portanto, chamando a atenção para o fato de que a educação é um processo que tem por objetivo a expansão de capacidades, a ampliação de horizontes, a abertura da mente, o incentivo à livre opção dos alunos, após análise e exame críticos das evidências e dos argumentos, enquanto a doutrinação é um processo que tem por objetivo a transmissão e mera aceitação de pontos de vista, ideologias, visões de mundo, teorias, etc., a redução de horizontes, a limitação de opções (frequentemente a uma só), o fechamento da mente, o “desprivilegiamento” das evidências e dos argumentos em favor da crença, o foco na persuasão e não no livre exame.

Assim, na educação busca-se, humildemente, a verdade, através do estudo e do exame das evidências e dos argumentos, enquanto na doutrinação quem ensina coloca-se na posição do orgulhoso possuidor da verdade – e espera que o doutrinado venha a adotar uma postura semelhante…

Desde que, na busca da verdade, não se pode negligenciar nenhum aspecto da evidência ou do argumento que possa ser relevante, a educação é tolerante, pois mesmo as críticas e a evidência negativa – diria mesmo que principalmente essas – podem contribuir para que nos aproximemos da verdade. Na medida, porém, em que a verdade já é considerada uma possessão, não há mais por que busca-la, por que tolerar pontos de vista alternativos e conflitantes, pois na medida em que esses divergem da “verdade” só podem ser errôneos ou falsos, e quem os propõe só pode ser ignorante ou mal-itencionado.

Daí a conexão, já mostrada nos posts anteriores, entre a crença na posse da verdade e a intolerância, mesmo a repressão, de pontos de vista divergentes, que ocorre quando há doutrinação.

Invertendo um pouco o foto, poderia dizer, num espírito popperiano, que a educação se preocupa muito mais em dar ao indivíduo condições de não ser facilmente persuadido, de evitar o erro, a falsidade, e, assim, aproximar-se, cada vez mais, da verdade, enquanto a doutrinação se preocupa muito mais com a persuasão, com a transmissão de crenças que se supõem verdadeiras (ou, mesmo, em alguns casos piores de doutrinação, crenças em que o próprio doutrinador não acredita, mas que, por algum motivo, deseja incutir nos outros – vide a triste figura do Grande Inquisidor em Irmãos Karamazov).

Diante do que foi dito fica claro por que a doutrinação é indesejável e moralmente censurável. Quem doutrina não respeita a liberdade de pensamento e de escolha de seus alunos, procurando incutir crenças em suas mentes e não lhes dando condições de livremente analisar e examinar as evidências e os argumentos, decidindo, então, por si próprios; quem doutrina desrespeita os cânones de racionalidade e objetividade, tratando questões abertas como se fossem fechadas, questões incertas como se fossem certas, enunciados falsos ou não demonstrados como verdadeiros como se fossem verdades acima de qualquer suspeita.

É verdade que esta tomada de posição contra à doutrinação já implica, ao mesmo tempo, um comprometimento com certos valores e ideais básicos, como o da liberdade de pensamento e de escolha dos alunos (e de qualquer pessoa), o da racionalidade, etc. É importante que se reconheça isto para que não se incorra no erro de pensar que a adoção desses valores e ideais não precisa ser defensável, e, mais que isto, defendida, através da argumentação. Argumentos contra a adoção desses valores e ideais precisam ser cuidadosamente analisados para que, ao propor a tese da indesejabilidade e falta de apoio moral da doutrinação, não o façamos de modo a imitar os doutrinadores, isto é, tratando como fechada uma questão que é realmente aberta.

Quando a esquerda ainda não estava totalmente enraizada no poder, aqui no Brasil, admitiu, embora a contragosto, que nossa última Constituição, de 1988 (logo depois do Período Militar), em seu Art. 206, Incisos II e III, preconizasse que, na escola, houvesse “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, e que isso se desse em um contexto de “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, tanto no caso de instituições públicas como até mesmo no caso de instituições privadas. (A Constituição Federal de 1988 não deu, portanto, nem mesmo a instituições educacionais confessionais, o direito de doutrinar na escola).

Agora que a esquerda se acha totalmente enraizada no poder, no nível federal, aqui no Brasil, já se acha à vontade para propor uma educação “partidária” — não, necessariamente, no sentido de uma educação que promove a agenda de um partido político, mas, sim, no sentido de uma educação que toma partido, que não explora, em um clima de liberdade, e num contexto de “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, todas as ideias, mas que tenta impor ou incutir uma espécie de “catecismo” político. . .

Quem sabe em um dia em que um governo de direita, ou, pelo menos, liberal, volte ao poder, e proponha uma escola sem partidarismo, a esquerda venha novamente a admitir, como medo de ser obliterada no processo, a liberdade de aprender em um contexto de pluralidade de ideias.

Em São Paulo, 3 de Abril de 2009, com pequena revisão e o acréscimo de três parágrafos, no final, em 11 de Novembro de 2018.

NOTA de 11/11/2018:

Este artigo é parte de uma série de cinco artigos que começou há quase dez anos neste blog Liberal Space e que defende o Liberalismo Clássico e uma Educação Liberal, que leve o Liberalismo Clássico a sério, combatendo uma educação que não merece o nome, pois é mais doutrinação do que educação, que foi moldada para combater o Liberalismo Clássico e para promover uma educação de viés socialista, quando não comunistizante.

São estes os cinco artigos:

O mais antigo dos artigos, “Dogmatismo e Doutrinação“, foi publicado em 3/4/2009, há quase dez anos, no endereço https://liberal.space/2009/04/03/dogmatismo-e-doutrinacao/.

Em seguida, “‘Educação Sem Doutrinação’ e ‘Escolas Sem Partido’“, que foi publicado em 10/4/2010, no endereço https://liberal.space/2010/04/10/educacao-sem-doutrinacao-e-escolas-sem-partido/.

O terceiro artigo, “Doutrinação e Educação: A Esquerda Pretende Argumentar que Doutrinar não Passa de um Jeito ‘Crítico’ de Educar“, que foi publicado em 28/5/2016, no endereço https://liberal.space/2016/05/28/doutrinacao-e-educacao-a-esquerda-pretende-argumentar-que-doutrinar-nao-passa-de-um-jeito-critico-de-educar/.

O quarto artigo, “A Controvérsia Acerca do ‘Escola Sem Partido’ Continua: PL 867/2015“, publicado em 14/5/2018, no endereço https://liberal.space/2018/05/14/a-controversia-acerca-do-escola-sem-partido-continua/.

Por fim, o quinto artigo, “A Escola e a Liberdade”, publicado em 10/11/2018, no endereço https://liberal.space/2018/11/10/a-escola-e-a-liberdade/.

Eduardo CHAVES

John Locke, o Pai do Liberalismo

1. Preâmbulo: John Locke e Adam Smith

Muito se fala em Adam Smith como o Pai do Liberalismo – com base no fato de que, em 1776, ano da Revolução Americana, ele publicou seu clássico A Riqueza das Nações. Mas quase cem anos antes da publicação desse livro, sem dúvida alguma um clássico, John Locke, em 1689, publicou seu não menos clássico Dois Tratados sobre Governo, que havia escrito, ou vinha escrevendo, há vários anos – provavelmente desde que passou a ser Secretário do Duque de Shaftesbury. (Na verdade, ele foi bem mais do que Secretário: foi também consultor, confidente, amigo, tutor e mentor dos netos do Duque – inclusive do famoso Terceiro Duque de Shaftesbury, que veio a influenciar Adam Smith – e David Hume — com sua teoria dos sentimentos morais).

Adam Smith, é verdade, deu mais atenção ao Liberalismo Econômico – a Economia de Livre Mercado. Mas foi John Locke que fixou as bases do Liberalismo Político que, inquestionavelmente, inclui o Liberalismo Econômico — e, por conseguinte, é mais abrangente.

Há uma outra questão histórica importante e interessante. Enquanto Adam Smith publicava seu livro no ano da Revolução Americana, fato que demonstra que sua obra não pode ter tido impacto na deflagração da revolta das Colônias Americanas contra a Inglaterra, John Locke era muito bem conhecido dos que fundaram a primeira República das Américas — que, na mente deles, americanos, ficou conhecida simplesmente como America. Thomas Jefferson, o autor da Declaração da Independência das Colônias, que oficialmente passaram a se denominar Estados Unidos da América, era um leitor atento de Locke – e traços da influência de Locke estão presentes na própria Declaração de Independência.

2. Principais Teses do Liberalismo de Locke

Vejamos no que consiste o Liberalismo de Locke descrevendo algumas de suas teses mais importantes:

a. A “Liberdade Natural” do Ser Humano

Locke defendia a tese de que o ser humano é naturalmente livre. Na ausência do estado (vale dizer, na prática, do governo), reina a liberdade. O que caracteriza, portanto, o chamado “estado da natureza” (a condição natural do homem vivendo sem estado)  é a liberdade – não (como pretendia Thomas Hobbes) a guerra de todos contra todos.

A tese da “liberdade natural” do ser humano se sustenta no argumento de que a liberdade não é um bem outorgado por um estado, por um governo, por uma autoridade civil, mas é inerente à própria natureza humana – e, portanto, inseparável da condição humana. O homem é naturalmente livre – não naturalmente escravo, nem, muito menos, dividido em duas classes, a dos livres e a dos escravos. É isso que se quer dizer quando se afirma que o ser humano nasce livre – ou que foi criado livre por Deus.

É bom que se esclareça aqui que o “estado da natureza” não é, para Locke, necessariamente um estado histórico, que tenha de fato existido e que possa ser localizado e datado. É um estado imaginado em contraposição ao estado em que existe o estado (e, portanto, um governo e uma sociedade civil). Na realidade, o estado da natureza nada mais é do que uma imaginada sociedade anárquica, sem estado e sem governo, que existiria, não houvessem os homens pactuado para criar um estado, um governo, uma sociedade civil.

b. Liberdade Natural e Direitos Individuais Básicos e Inalienáveis

A liberdade natural se expressa na forma de alguns direitos individuais básicos e inalienáveis: o direito à vida (que inclui os direitos à integridade, à inviolabilidade e à segurança da pessoa), o direito à liberdade (que inclui os direitos de pensar livremente, de expressar livremente o que se pensa, de ir e vir livremente, de se associar livremente, de livremente estabelecer contratos, e de agir livremente em busca da própria realização profissional e felicidade pessoal), e o direito à propriedade (que inclui os direitos de guardar para si, ou de livremente trocar ou permutar com terceiros, os frutos de seu trabalho — que, no século 17, era básica e quase universalmente concebido como a interação do indivíduo com a natureza).

Na verdade, esses três direitos, no fundo, são um só: o direito à vida. O direito à vida é o reconhecimento de que cada pessoa humana é proprietária única e inquestionável de seu próprio corpo e de sua própria mente (ou espírito) – isto é, de si mesma. A propriedade básica que o ser humano possui é a propriedade de si mesmo. É isso que significa o direito à vida.

O direito à liberdade é uma explicitação desse direito à vida – é o esclarecimento de que o indivíduo tem direito não só à sua integridade, inviolabilidade e segurança física mas à sua liberdade, que inclui o direito de pensar o que quiser, de expressar o seu pensamento, ou de se expressar, como queira, de se associar com quem queira, de ir e vir como queira, de buscar a sua realização profissional e pessoal (a sua felicidade, ou, como preferiam os gregos, a sua eudaimonia) como queira.

O direito à propriedade é também uma explicitação desse direito à vida: como é que posso ter direito à minha vida e direito à liberdade, se não tenho direito à propriedade daquilo que é fruto de meu trabalho – daquilo que (no contexto do século 17), não sendo de ninguém, é “apropriado” por mim na justa medida em que eu misturo o meu trabalho com algum elemento natural (em especial a terra). Aqui está a gênese da famosa teoria lockeana que vincula a propriedade ao trabalho exigido para transformar a natureza.

É preciso que se esclareça aqui, especialmente contra análises marxistas, que o fundamental, em Locke, é a liberdade, que é fundamentada na propriedade que todo indivíduo tem da própria vida. A propriedade dos frutos do trabalho é meio necessário indispensável de preservar a liberdade, sustentando a vida.

Locke não escreveu seus Dois Tratados exclusiva ou primariamente para defender a propriedade privada: escreveu-os para defender a liberdade – mas a defesa desta implica a defesa daquela.

c. A Justificativa para a Criação do Estado

Locke reconhecia, porém, que, na ausência de um estado (que implica a existência de um governo e de uma sociedade civil), ou seja, no “estado da natureza”, a liberdade de alguns – exatamente os mais fracos, os menos poderosos — não fica adequadamente protegida. Ele defende, portanto, a existência de um estado — desde que este tenha, como finalidade precípua, a garantia da liberdade de todos – ou seja, a defesa dos direitos naturais básicos que todo indivíduo possui.

A existência de um estado (um governo, uma autoridade civil) depende, portanto, do consentimento daqueles que pactuam ou contratam para cria-lo. Estes, os agora cidadãos da sociedade civil, outorgam certos poderes – poucos e limitados – ao estadoem troca da garantia e da defesa da liberdade e dos direitos naturais básicos – de todos os indivíduos.

d. O Liberalismo de Locke e o Anarquismo

Locke, ao defender a tese de que o estado da natureza, embora seja um estado onde reina a liberdade, é uma condição em que a liberdade de todos não é garantida e protegida, está, na verdade, defendendo a tese da inviabilidade da opção anarquista.

A teoria política liberal proposta por Locke tem, portanto, umprimeiro contraponto: o anarquismo, representado pela alternativa, sempre possível, de uma sociedade sem estado e sem governo (o chamado estado da natureza) — mas no anarquismo não há garantia de que a liberdade será preservada e de que os direitos individuais serão respeitados. Contra essa alternativa, Locke defende a tese da necessidade de uma sociedade civil, ou seja, de uma sociedade com estado e governo formal – ou, em outras palavras, de uma sociedade política.

 e. O Contrato Social e o Direito à Rebelião

Locke, embora fale em contrato ou pacto social, não imagina que esse contrato ou pacto seja um evento histórico que tenha acontecido num determinado lugar e momento. O pacto ou contrato social é tácito. Sua existência é tacitamente reconhecida quando se reconhece mais um direito — este um direito civil do cidadão, não um direito natural do homem: o direito à rebelião, ou seja, à destituição de um governo que está abusando dos poderes que lhe foram outorgados, indo além da garantia da liberdade e da defesa dos direitos naturais individuais básicos.

Assim, a teoria política liberal de Locke tem um segundo contraponto – talvez até mais importante do que o primeiro. Há um outro perigo para a liberdade e para os direitos individuais, além do estado livre mas anárquico da natureza – tão grande quanto este ou, talvez, ainda maior. Esse é perigo representado pela possibilidade, contra a qual o cidadão deve estar sempre vigilante, de que o estado e o governo criados para garantir, defender a liberdade e proteger os direitos individuais, extrapolem essas funções assumindo outros poderes que acabem por representar um risco maior para a liberdade e os direitos individuais do que o anarquismo do estado da natureza (em que alguma liberdade sempre existe – pelo menos para alguns, os capazes de defendê-la na inexistência de um estado ou governo).

Essa terrível ameaça de que a própria instituição criada para garantir, defender e assim proteger a liberdade e os direitos individuais possa se tornar inimiga da liberdade se expressa, para Locke, em duas vertentes (claramente relacionadas entre si).

f. O Perigo do Estado Absoluto

De um lado, está a vertente do poder absoluto, e, portanto, ilimitado do estado e do governo. A luta de Locke contra o absolutismo do poder estatal é bem conhecida e dispensa maior explicitação. Basta dizer que tão conhecida quanto seus Dois Tratados é sua Carta sobre a Tolerância, em que ele defende a liberdade religiosa contra a pretensão do estado de determinar a religião que os cidadãos podem e devem praticar.

Na realidade, a tese é claramente defensável de que o Liberalismo de Locke tem raízes mais profundas na defesa da liberdade religiosa, que implica a liberdade de consciência, ou seja, do pensamento e de sua expressão, do que na defesa da propriedade privada – embora, como vimos, para ele as duas estejam intrinsecamente associadas.

No estado absolutista, o indivíduo não é cidadão: é súdito. Nele o indivíduo perde sua liberdade por inteiro. Só o detentor do poder estatal é livre e soberano. O indivíduo, para todos os fins, é súdito, o que equivale a escravo. O indivíduo, enquanto súdito, deixa de ter direitos: passa a ter apenas deveres. Na verdade, tem apenas um dever: obedecer às determinações do detentor do poder estatal.

É evidente, portanto, por que Locke se opunha ao absolutismo do poder estatal.

g. O Perigo do Estado Patriarcal

Mas qual é a outra vertente que, no entender de Locke, faz com que o estado e o governo venham a representar uma ameaça para a liberdade? É o perigo do “estado patriarcal”. Na verdade, o primeiro dos Dois Tratados (em geral menos prestigiado que o segundo) é todo ele um ataque à teoria patriarcal do estado defendida por, entre outros, Robert Filmer.

Embora alguns autores, como Nathan Tarcov (Locke´s Education for Liberty) afirmem que a tese de Robert Filmer pareça hoje “irrelevante e absurda” (p.9), ela, a meu ver, está longe de ser irrelevante e absurda hoje.

Vou mostrar por quê.

A tese de Filmer se chama de “patriarcalismo” por uma razão simples e facilmente inteligível. Segundo ele, há uma clara analogia entre o poder do estado sobre seus súditos e o poder do pai sobre seus filhos – daí o rótulo de patriarcalismo.

Eis um resumo exemplar da tese de Filmer, em suas próprias palavras:

“Se compararmos os deveres naturais de um Pai com aqueles de um Rei, veremos que esses deveres são idênticos, não tendo nenhuma diferença – a não ser em sua abrangência, na extensão que cobrem. Como um Pai para com sua família, o Rei, como pai de muitas famílias, tem o dever de preservar, alimentar, vestir, instruir e defender toda a comunidade do reino. . . . Assim, os deveres de um Rei se resumem no cuidado paterno e universal do seu povo”  (apud Tarcov, op.cit., p. 11 – ênfase acrescentada).

Ora, essa tese só é “irrelevante e absurda” por usar uma analogia – e, portanto, uma terminologia – que caiu em desuso: a comparação dos poderes do governante com os poderes do pai de família. Mas, em sua essência, o que é a tese de que o governo “tem o dever de preservar, alimentar, vestir, instruir e defender” todos os cidadãos senão aquilo que é expresso pelos defensores da doutrina do “estado previdenciário” ou do “estado do bem-estar social”, que tem como dever prover o cidadão com saúde, educação, seguridade social, e, quando não, com alimento, vestimenta, moradia, transporte e sabe-se lá mais o que (a lista dos chamados “direitos sociais”  cresce a cada dia). Embora o termo não seja usado com frequência, a doutrina do estado previdenciário ou do estado do bem-estar social é profunda e inerentemente patriarcalista: considera os cidadãos como crianças incapazes que não têm condições de prover para si próprias aquilo que é indispensável para a vida.

Assim, longe de ser “irrelevante e absurda”, a tese do patriarcalismo, que Locke sagazmente combateu, está presente, com outras roupagens, hoje em dia – e mais do que presente: está extremamente bem difundida. Na realidade, apesar de os esquerdizantes dizerem que o Liberalismo é hoje o pensamento hegemônico (chamado de “pensamento único”), a realidade mostra que é a tese patriarcalista do estado previdenciário ou do bem-estar social que está muito mais próxima de ser hegemônica hoje do que a tese liberal lockeana.

h. A Interconexão dos Dois Perigos

As duas vertentes combatidas por Locke como ameaças à liberdade (na realidade, mais do que meras ameaças, condições incompatíveis com a liberdade), a do poder estatal absoluto e a do poder estatal paternalista, estão claramente relacionadas entre si, embora Locke não tivesse como ver isso com clareza.

A tese do poder paternalista do estado gera reivindicações crescentes de “direitos sociais” adicionais que, se atendidos, fatalmente levam o estado a assumir poderes absolutos sobre os cidadãos, transformando-os em súditos, totalmente dependentes do estado para tudo. Friedrich von Hayek viu isso com clareza no século 20, registrando sua tese no também clássico O Caminho da Servidão (1944): o Socialismo pode até começar com boas intenções, mas, independentemente das intenções, seu resultado inevitável é o totalitarismo estatal, com a inevitável perda da liberdade e dos direitos individuais dos cidadãos, transformados em súditos dependentes do estado para tudo.

i. Breve Conclusão: A Relevância Político-Filosófica de Locke Hoje

Para terminar este artigo já longo, devo concluir que Locke não só foi o pai do Liberalismo dito Clássico mas seu pensamento, até hoje, é extremamente relevante – porque as teses que combateu ainda fazem parte do ideário do século 21, mais de 300 anos depois de ele ter escrito sua obra prima em defesa do Liberalismo.

3. A Relevância de Locke para a Educação

Qual a contribuição desse ideário lockeano para a educação?

Uma primeira contribuição é bastante evidente: por mais benéfica que possa ser a educação, não é dever do estado ministra-la, financia-la ou mesmo regulamenta-la. A educação é algo que diz respeito à esfera privada: cabe a iniciativa privada decidir como ministra-la e financia-la, sem regulamentação do governo.

Também é evidente uma segunda contribuição: dadas as diferenças individuais, e havendo respeito à liberdade humana, não há como defender a tese de que todo mundo deve ter o mesmo tipo de educação – uma “educação tamanho único”, um  tamanho serve para todos.

Em terceiro lugar, e para realçar as contribuições seguintes, é preciso deixar claro, aqui, que há, no ideário lockeano, uma diferença fundamental entre educação e escolaridade.

O ser humano, diferentemente de outros animais, nasce totalmente incapaz de fazer qualquer coisa por si só — por isso, nasce totalmente dependente e permanece dependente do cuidado alheio por bom tempo. Mas nasce com uma enorme capacidade de aprender (infinitamente superior à dos outros animais). O que chamamos educação é essa capacidade inata de o ser humano, através da aprendizagem, que envolve, necessariamente, interação com o ambiente (que compreende a natureza e outros seres humanos, em especial seus pais, sua  família, sua comunidade), se desenvolver, isto é, traduzir sua ausência de capacidades em um conjunto de competências, transformando, assim, sua dependência original em independência e, na sequência, em interdependência e autonomia.

Qualquer bebê humano criado em sociedade (e, se não for criado em sociedade, não sobrevive, malgrado as lendas dos meninos-lobo), se educa. (Talvez a maior contribuição de Paulo Freire à teoria educacional seja sua tese dupla de que “ninguém educa ninguém” e “ninguém se educa sozinho”: os seres humanos se educam, como ele diz, “em comunhão”, em interação, em diálogo, em colaboração, no contexto de viver suas vidas). Não é preciso que o ser humano frequente escolas para se educar. Ele pode muito bem educar-se em casa – e, na época de Locke, era assim que se educava. (O movimento em defesa do direito de “home education” é profundamente lockeano, pois ele era, no fundo, um “home educator” para os netos do Lord Shafestbury). Alguém pode muito bem educar-se simplesmente vivendo, ou trabalhando, ou se divertindo com aqueles que lhe são próximos (e, hoje em dia, a proximidade não precisa ser proximidade física) .

Disso decorrem duas outras contribuições do Liberalismo lockeano para a educação.

Em quarto lugar, não não faz sentido criar um sistema de educação único, que deve educar a todos.

Em quinto lugar, não faz sentido nenhum declarar a educação obrigatória.

A educação é indispensável: sem ela o ser humano não sobrevive. Mas a escola é perfeitamente dispensável (vide Ivan Illitch), e, portanto, a escolaridade não pode ser declarada obrigatória, nem mesmo numa faixa etária restrita – se levarmos o liberalismo de Locke a sério.

A educação, portanto, na visão de Locke, não deve ser pública (estatal), nem única, nem escolar, nem obrigatória…

E, naturalmente, em sexto lugar, não precisa ser obrigatoriamente laica. Se uma família é religiosa, não há porque não possa favorecer um ambiente religioso para a educação de seus filhos. A ideia de que educação e religião se contrapõem é, para Locke,  um mito. A educação pode muito bem se dar num ambiente religioso – como pode muito bem se dar num ambiente secular. O ambiente adequado para a educação dos filhos é escolhido pelos pais – até que os filhos tenham condições de decidir por si mesmos, autonomamente, o que querem, ocasião em que podem criticar e repudiar a decisão paterna e buscar para si próprios uma educação alternativa.

A preocupação, no século 19, com a laicidade da educação fazia sentido porque a educação que se contemplava, nos Estados Unidos, era uma educação escolar pública, isto é, estatal. Sendo estatal, era, segundo a Constituição Americana, que separa Estado e Igreja, fatalmente laica.

Mas não sendo a educação nem escolar nem estatal, como preconiza Locke, não é preciso que seja laica – porque as pessoas, em sua maioria, são religiosas.

Por fim, em sétimo, a educação, como tudo na vida, tem um custo – e, portanto, se delegada a terceiros, tem um preço… Logo, a menos que proporcionada no seio da família, em que tem um custo mas não tem um preço, nunca pode ser descrita como “gratuita”.

Em resumo:

  • A educação proposta e defendida por Locke é inerentemente privada (isto é, não é estatal, ou pública, no sentido que se dá ao termo hoje em dia);
  • A educação proposta e defendida por Locke não é única (devendo ser tão diferenciada quanto diferentes são os seres humanos);
  • A educação proposta e defendida por Locke não deve ser obrigatoriamente realizada em instituições especificamente criadas para esse fim, a saber, escolas (devendo ser integrada à vida, e ter lugar enquanto as pessoas vivem, se divertem, trabalham);
  • A educação proposta e defendida por Locke não precisa ser necessariamente laica (podendo ter lugar em contextos religiosos, se os pais, ou, eventualmente, as próprias pessoas assim houverem por bem);
  • A educação proposta e defendida por Locke tem, necessariamente um custo, que, quando envolvendo terceiros, pode claramente se traduzir em um preço (não sendo, portanto, necessariamente, gratuita).

Ora, a educação proposta por Locke é, portanto, em seus pontos fundamentais, oposta à educação defendida pelos proponentes da “Escola Nova”, geralmente tidos como liberais pela esquerda

Há um aspecto, porém, em que a educação proposta por Locke tem um ponto de contato com o ideário da escola nova: ela deve ser centrada no desenvolvimento de competências, que devem ser construídas com base nos interesses de cada criança, e a melhor forma de construir competências é deixar que a criança trabalhe em projetos de seu interesse. O facilitador da aprendizagem de uma criança  deve aproveitar os interesses das crianças para que elas aprendam, através deles, algo não só de interessante, mas, também, de útil.

Escrito em Campinas, 19 de agosto de 2005 (data do 38º aniversário de minha primeira ida aos Estados Unidos), revisado em São Paulo, em 20 de Março de 2018.