Transcrevo aqui revisto e um pouco modificado, um artigo que escrevi, originalmente, em 2008, com base em materiais que havia redigido bem antes (no ano 2000), para servir de Introdução a um curso de História da Filosofia Moderna na UNICAMP. Eduardo Chaves [1]}
o O o
Não pretendo, neste trabalho, abordar o tema elaborando uma crônica de eventos ou pessoas relevantes à educação na Antiguidade e na Idade Média.
Também não pretendo historiar o que pensaram sobre a educação eminentes autores do Mundo Antigo e do Mundo Medieval.
Vou fazer algo, de um lado, mais ambicioso, mas, de outro, menos trabalhoso: tentar capturar a essência da contribuição do era Clássica e do período Medieval (isto é, da Pré-Modernidade) para a educação de hoje. Reconheço que numa época em que se discute ad nauseam a Modernidade e até mesmo a Pós-Modernidade, discutir a Pré-Modernidade pode parecer deslocado. Que seja.
Assim, não farei pesquisa histórica, no sentido estrito, nem exegese e crítica textual. Procurarei me situar no plano filosófico para procurar captar o que me parece ser o aspecto mais importante da contribuição de cada um desses dois períodos para a educação de hoje — sem me preocupar se vivemos ainda na Modernidade ou se já passamos para a Pós-Modernidade.
A primeira parte enfocará a Antiguidade Clássica; a segunda, o Período Medieval.
Numa terceira parte, resumirei o que me parece ser a principal contribuição desses dois períodos, em seu conjunto, para algo que transcende a educação, embora seja extremamente importante para ela: a visão de mundo — a nossa visão de mundo hoje, em pleno Século 21. A Antiguidade e a Idade Média estão de certo modo unidas em uma visão de mundo extremamente importante, e que serviu por muito tempo de alicerce para a cultura e o pensamento ocidental, e que, lamentavelmente, corre o risco de se esvair nos ceticismos e relativismos de nossa época que se pretende multicultural, na qual a razão, como padrão objetivo, perde lugar para modismos intelectuais admitidamente arbitrários.
Antes de entrar na discussão do tema, porém, gostaria de propor a tese geral que pretendo defender.
A grande contribuição do Mundo Antigo para a educação foi no plano conceitual – propondo um referencial teórico que fornece um interessante enquadramento para a educação ainda hoje.
Essa contribuição inclui tanto uma visão extremamente criativa e frutífera do que é a educação (conceito de educação) como sugestões interessantes sobre como, em linhas gerais, essa educação deve se dar (metodologia).
A grande contribuição do Mundo Medieval para a educação, por outro lado, deu-se no plano da prática pedagógica – e continua a ser extremamente relevante nos dias de hoje.
Mais especificamente, o que de mais importante a Idade Média nos legou foi uma proposta curricular para a Educação Fundamental (o chamado Trivium) e uma metodologia de aprendizagem (conhecida como Escolasticismo).
I. O Mundo Antigo e a Educação
Quando falo em Mundo Antigo, tenho em mente a Antiguidade Clássica — o mundo em que predominaram, primeiro, os Gregos e, depois, os Romanos. Esse mundo tem limites cronológicos difíceis de precisar, mas vou estipular, mais ou menos arbitrariamente, que o Mundo Antigo cobre desde a época em que se presume que Homero tenha vivido (por volta do século VIII ou VII antes de Cristo) até o fim oficial do Império Romano (final do século V de nossa era), com a queda de Roma em 476 AD). A influência do Império Romano demorou muito tempo para desaparecer, e depois se criou um novo Império Romano, supostamente Santo, mas a data é útil, porque permite caracterizar como a Antiguidade Clássica um período que dura perto de um milênio. (A Idade Média, como veremos, também vai durar perto de um milênio).
Os períodos mais importantes dentro do milênio clássico são: no caso da Grécia, os séculos V e IV antes de Cristo – época de Sócrates, Platão e Aristóteles; no caso de Roma, o último século antes de Cristo e os dois primeiros da nossa era talvez sejam os mais importantes – época de Cícero, Sêneca, Lucrécio, Marco Aurélio, etc.
Considerar como se fosse uma unidade um período histórico relativamente curto até mesmo dentro de um espaço geográfico pequeno e bem delimitado, e com cultura relativamente homogênea – como, por exemplo, o século XVIII na França – já é problemático. Muito mais problemático ainda é tomar como se fosse uma unidade um período de cerca de mil anos, que abrange espaços geográficos amplos e não bem delimitados, que foi local de origem e de disseminação de duas culturas diferentes, embora com sobreposições significativas: a grega e a romana. Dentro de cada uma dessas culturas já é difícil encontrar significativa unidade de ponto de vista entre dois pensadores. Além disso, alguns dos autores desse período escreveram sobre a educação, e, às vezes, as ênfases principais do que disseram contradizem as ideias aqui apresentadas e são inaceitáveis hoje. Outros, por sua vez, nem tocaram explicitamente no assunto. Mas, ainda assim, acredito ser possível chegar a dois ou três pontos de vista que são essenciais – e que permanecem relevantes até hoje. Esses são os pontos de vista que sobreviveram no tempo, sem perder sua importância e relevância.
A. A Visão da Educação
Parece-me que a noção de “paideia” – aquilo que os alemães do século XIX vieram a chamar de Bildung – está no centro da visão clássica da educação. Embora o termo “paideia” seja geralmente traduzido por educação, e, de vez em quando, até por instrução, talvez a melhor tradução do termo seja, hoje, formação (embora, diferentemente de instrução, educação também seja uma tradução aceitável).
Paideia é o processo mediante o qual um ser pequeno, incompetente, dependente, incapaz de assumir responsabilidade pela sua vida, se torna um adulto competente, autônomo, responsável, capaz de definir seu destino e de controlar sua vida para que o destino visado se torne realidade. Paideia é o processo mediante o qual o homem transforma seu potencial em atualidade, em que ele se realiza como pessoa (individual e única), como cidadão (membro de um grupo), como criador e artífice de seu próprio destino. Paideia é o processo mediante o qual a essência se transforma em existência e o homem encontra sua natureza verdadeira. Paideia é o processo mediante o qual o homem se dá a forma de humano – donde, formação.
Dentro dessa visão, não é um homem que dá a forma de humano ao outro. Cada um se forma, cada um se dá a forma humana – mas, admitidamente, não sozinho, em isolamento. Embora essa formação seja mais autoformação do que heteroformação, ela não acontece em isolamento. Cada um se forma à medida que, interagindo com os demais, se torna capaz de se apropriar dos sentidos existentes na cultura que lhe permitem ressignificar o mundo — e sua própria vida. É nesse processo que as pessoas se tornam competentes, autônomas e responsáveis. Um mundo ressignificado é um mundo recriado por mim: é o meu mundo, o local em que existo, vivo, faço planos, defino projetos de vida — e os vivo.
A vida humana deve ser, para a maior parte dos pensadores desse período, orientada por fins. A teleologia era, em especial para os gregos, uma característica não só de humanos e da vida humana, mas, também, da própria natureza. Não só os humanos devem ter fins – as próprias coisas os têm. A singularidade do ser humano está no fato de que ele pode, curiosamente, diferentemente dos demais seres, tentar renegar o seu fim natural…
Para vários dos pensadores desse período, em especial dentre os gregos, com destaque especial para Aristóteles, o fim natural do homem é a busca de sua própria felicidade.
Hoje em dia, no clima relativista que impera, se argumentaria que cada um entende a felicidade como bem quer: “Liberdade”, por exemplo, “é uma calça velha, azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser…”, dizia o jingle da US Top de uns 50 anos atrás, talvez mais. Consequentemente a noção de felicidade, como o fim da vida, não parece ajudar muito… Falta-lhe, pelo que parece, objetividade.
É aqui que os gregos recorrem a uma noção fundamental, que, infelizmente, parece totalmente perdida nos dias de hoje: cada tipo de coisa tem uma natureza própria – e é essa natureza que condiciona a descoberta e determinação de seu fim.
O ser humano tem uma natureza – mas também a têm os diferentes tipos de animais, de plantas, de coisas. A natureza da videira é diferente da natureza da oliveira. É verdade que é parte da natureza de ambas ser plantas frutíferas. Por isso, o fim de uma e de outra tem alguma coisa em comum, em um nível de abstração mais genérico: produzir os frutos que são coerentes com a sua natureza. Mas, num nível de abstração mais específico, a natureza da videira é claramente diferente da natureza da oliveira. Consequentemente, o fim da videira é diferente do fim da oliveira: o daquela é produzir uvas, o desta, olivas. No mundo natural não se dá o caso de, num determinado momento, videiras decidirem que vão produzir olivas e oliveiras, uvas. As coisas no mundo natural obedecem à sua natureza e, assim, sempre operam para alcançar seu fim. Essa operação é automática: não é uma ação, que depende de consciência, intenção e tomada de decisão.
O caso dos humanos, porém, é mais complicado. Humanos têm uma natureza: são animais racionais. Isto é, são animais, mas são animais de um tipo especial: racionais. Como animais, têm corpos e, assim, participam do mundo natural, como tantos outros animais. Como estes, nascem, precisam se alimentar, reproduzem-se, morrem. Compartilham com as plantas alguns desses processos. Compartilham com as coisas não vivas que habitam este mundo outros processos.
Mas como animais racionais participam de um mundo superior, das ideias, um mundo que é conhecido apenas por outros seres racionais – que em geral são incorpóreos, como deuses. A nossa mente é, como se fosse, uma centelha divina que habita a nossa animalidade e deve com ela se reconciliar, fazendo com que sejamos um ser único, que tem uma natureza híbrida, animal e racional, mas unida, fazendo parte, assim, de dois mundos: o natural e o mental, o corpóreo e o incorpóreo, o animal e o divino.
Embora alguns dos antigos, como por exemplo Platão, tendessem a privilegiar o lado de nossa natureza considerado divino e a depreciar o lado animal, e, assim, a elevar a mente e a rebaixar o corpo, para a maioria deles mente e corpo devem se unir e reconciliar, o ideal sendo mens sana in corpore sano – uma mente sã num corpo são. Não é rebaixando ou mortificando o corpo que se fortalece a mente. Pelo contrário: esta só se fortalece num corpo sadio e forte (não debilitado).
Aristóteles, por exemplo, incorpora melhor a tendência greco-romana de valorizar o corpo tanto quanto a mente. A saúde do corpo é vista como essencial para a saúde da mente – mas não era apenas a saúde do corpo que era por ele valorizada: a sua beleza também. É por isso que a arte greco-romana desse período, na parte em que representa o corpo humano, contém algumas das mais belas representações da figura humana jamais produzidas.
Além disso, o corpo é também visto como fonte de prazer. A noção de prazer é admitidamente complexa, porque o prazer frequentemente contém componentes eminentemente mentais. Do ponto de vista meramente corporal o sexo forçado – o estupro – é virtualmente indiferenciável do sexo livremente consentido. A revulsão que um traz e o prazer que envolve o outro são componentes muito mais mentais do que propriamente físicos. No entanto, é forçoso admitir que sem o corpo não haveria esse tipo de prazer. (Sexo puramente mentalizado, sem componentes corporais, parece impossível — mas nunca se sabe…)
É verdade que, quando o prazer é focado no corpo, e dissociado da mente, temos uma distorção – a tentativa de separar, ou desreconciliar, mente e corpo. Essa distorção é bem representada pelas bacanais romanas. Mas é forçoso reconhecer que essa tendência é uma distorção e, como tal, rejeitada pelos principais filósofos da antiguidade. Mais importante, talvez, nesse contexto, se bem que criticável do ponto de vista hoje aceito, é a preferência sexual que os homens gregos tinham por seus congêneres mais novos – os mancebos. A pederastia praticada nas escolas (academias, liceus) decorria do fato de que a maioria dos homens gregos acreditava que as mulheres eram apenas meio humanas, algo entre o homem e os animais. O verdadeiro prazer sexual de um homem, segundo essa visão, não advinha de sua relação sexual com uma mulher, um ser que considerava inferior, com a qual mantinha relações sexuais apenas para finalidades procriadoras. O prazer sexual verdadeiro advinha de seu relacionamento sexual com outro homem — alguém com quem podia manter uma conversação interessante, de igual para igual… Apesar da ideia absurda da inferioridade feminina, essa atitude prova que, para os gregos, o corporal, sem o mental, não traz o prazer a que os humanos têm direito e que, pela sua natureza, têm razão de esperar.
Sexo puramente corporal, dentro dessa visão, é antinatural, contrário à natureza humana. Mas, por outro lado, e contrariando a visão que se atribui a Platão, de que o amor pode ser “platônico” (não envolver sexo, propriamente dito, ou outras interações corporais), o amor sem sexo seria igualmente antinatural — contrário à natureza do ser humano. (Dentre os filósofos contemporâneos Ayn Rand, que é fundamentalmente aristotélica, é a que mais enfaticamente tem batido nessa tecla. Basta ler seus romances para encontrar comprovação. Amor platônico é, para ela, algo tão depravado quanto sexo sem amor.)
A ideia de que somos animais racionais, corpo e mente, de que nosso fim é a felicidade, e de que o prazer é parte legítima da felicidade é uma contribuição especialmente positiva que nos deixa a Antiguidade – especialmente diante da tendência cristã, surgida posteriormente e exacerbada na Idade Média, de flagelar e mortificar o corpo (com açoites, jejuns, abstinências), para enfraquecê-lo e, assim, supunha-se, fortalecer a mente (locus, entre outras coisas, da espiritualidade).
Mas voltemos à educação…
A paideia, com sua concepção de formação integral, é ainda mais rica. A formação integral deve abranger a mente e o corpo, como acabamos de ver. Mas a mente humana não é algo simples. Para os gregos a mente humana possuía pelo menos cinco componentes, ou “faculdades”: pensar, valorar (atribuir valor), sentir, decidir e fazer. É por isso que os gregos, quando falavam da mente, falavam, alternadamente, de pensamento, valoração, emoção, decisão (vontade) e ação.
A formação integral exigida pela paideia precisa, pois, envolver, não apenas os aspectos cognitivos da pessoa, mas também os seus aspectos valorativos, emocionais, volitivos — ou “deciditivos” – e ativos.
A união desses vários aspectos da mente nos permite também imaginar estados de coisas que não existem, deseja-los, e cria-los no plano virtual, que é uma realidade criada pela mente, onde a arte e a sensibilidade encontram seu lugar. A arte é a tentativa de recriar a realidade, ou criar uma realidade virtual, que se conforme aos valores do artista. A finalidade desse exercício é não só permitir que a sensibilidade do artista fale com a sensibilidade dos que admiram a sua obra, mas, também, mostrar possibilidades de vida – potenciais de vida – que os circundantes e conterrâneos não conseguem perceber por si sós.
Além do mais, o ser humano é, para os antigos, um ser gregário, que vive em grupos que, num determinado contexto histórico e geográfico, formam a sociedade daquele tempo e lugar. Isto sendo assim, a formação integral também exige preparo para as relações interpessoais, para o respeito aos direitos dos outros, para o trato das questões morais que regulam a nossa vida.
A filosofia política surgiu entre os gregos e prosperou entre os romanos. Suas perguntas básicas são: Qual a melhor maneira de organizar a nossa vida em sociedade? Qual a função do estado? Quais as leis que devem regular o nosso comportamento? Através de que critérios devemos avaliar as leis da sociedade? Serão esses critérios meramente utilitários ou existem critérios objetivos – um direito natural – que nos permite avaliar o direito positivo? Obviamente, todas essas questões devem fazer parte do processo de formação de qualquer pessoa.
Mas também deve fazer parte dessa formação a ideia de que, embora gregários, somos seres individuais, diferentes um do outro, únicos, na verdade, e que, além do espaço público em que necessariamente vivemos, devemos preservar espaços privados para nós, que, no limite são individuais, que apenas compartilhamos com pessoas de nossa escolha, quando o desejamos e nos termos que especificamos.
Concluindo essa seção, resumo:
- A Antiguidade Clássica nos legou a ideia de que a educação, entendida como formação, é um processo de desenvolvimento humano, que se dá traduzindo potenciais em atualidades, transformando seres incompetentes, inautônomos, irresponsáveis, em seres competentes, autônomos e responsáveis, capazes de definir seu próprio projeto de vida e transformá-lo em realidade;
- A Antiguidade Clássica também nos legou a ideia de que a formação deve ser integral: abranger não só a mente, como o corpo, e, no caso da mente, incluir o plano cognitivo, valorativo, afetivo (ou emocional), volitivo (ou “deciditivo”), ativo e interpessoal (social).
B. A Forma de Aprender (Metodologia)
Durante milênios os processos de formação foram tipicamente orais – até porque a escrita é uma invenção (tecnologia) relativamente recente, quando comparada com a linguagem oral. Na verdade, nos séculos que imediatamente antecederam a Antiguidade Clássica a fala chegou próximo de tornar-se uma arte. A Odisseia e a Ilíada de Homero foram, inicialmente e por muito tempo depois, transmitidas oralmente (por declamação). Entre os gregos, o teatro, a retórica, a dialética e especialmente a lógica se tornaram objeto do mais sério estudo, mesmo antes da invenção da escrita. Se a fala, em si, já era uma tecnologia, i.e., uma técnica inventada pelo homem para melhor descrever a realidade e se comunicar com outros seres humanos, a declamação, o teatro, a retórica, a dialética e a lógica foram tecnologias assessoriais da fala, que permitiram que o ser humano usasse a fala de forma mais eficaz – em especial nos processos formativos (nas conversas, nas discussões, nos debates).
Talvez a melhor ilustração da filosofia da educação que corresponde a essa fase que está no limiar do nosso período esteja na filosofia de Sócrates – que foi construída quando essa fase já estava chegando ao fim, sendo, portanto, talvez, o seu “Canto de Cisne”. Sócrates já viveu no limiar da importante transição de uma cultura predominantemente oral para uma cultura que iria colocar cada vez mais importância na escrita.
Sócrates é admirável não só como filósofo, mas também como educador. Para ele, a melhor forma de formar (ou educar) é a interação oral, o diálogo, a conversa pessoal, o debate, a discussão racional, em que um diz uma coisa e ou outro analisa e questiona o que foi dito, apresentando contraevidências, contraexemplos e críticas, sugerindo alternativas, provocando seu interlocutor a continuar.
Esse método foi tradicionalmente chamado de “maiêutica” – palavra que vem do termo grego que quer dizer “parteira”. Para Sócrates o formador é, como se fosse, uma parteira para o conhecimento do aluno. Quem dá à luz (constrói?) o conhecimento, quem aprende, é o aluno – mas o formador ajuda, apoia, facilita, por vezes dificulta, complexifica…
No Teeteto [2], Sócrates explica a seu interlocutor que ele era filho de uma parteira, Fenarete, e que, como sua mãe, ele próprio é um parteiro. Sua mãe ajudava as mulheres a dar à luz seus filhos; ele ajuda os homens a dar à luz suas ideias.
Sócrates leva a analogia adiante, explicando que as parteiras, em geral, são mulheres que já passaram, elas mesmas, da idade em que poderiam parir seus filhos – por isso ajudam as outras. De igual modo, ele, Sócrates, já teria passado da idade em que poderia dar à luz ideias próprias – ficando na posição de quem agora só pode ajudar os outros a conceber e dar à luz as suas…
Mas Sócrates aponta também para um contraste importante entre sua função e a das parteiras:
“A tarefa das parteiras é importante – mas não tão importante quanto à minha; pois as mulheres não trazem ao mundo crianças verdadeiras numa hora, falsificadas noutra. Se o fizessem, a arte de diferenciar as crianças verdadeiras das falsificadas seria o ápice da arte da parteira. . . . A minha arte, conquanto em muitos aspectos semelhante à das parteiras, envolve cuidar da mente, não do corpo. O triunfo de minha arte está no exame exaustivo do pensamento que a mente de um jovem traz ao mundo para determinar se é uma concepção verdadeira – ou um ídolo falso. Como as parteiras, sou estéril; e a crítica que me fazem – de que faço perguntas que não consigo, eu mesmo, responder – é muito justa. A razão disso é que os deuses me compelem a ser parteira – mas não me permitem parir. E, por isso, eu mesmo não sou sábio, nem tenho nada a mostrar que seja invenção ou descoberta minha – mas aqueles que conversam comigo se beneficia. . . É claro que não aprendem nada de mim; as muitas ideias que apresentam são geradas por eles próprios – eu só os ajudo a trazê-las ao mundo. . .” [3]
(Será que textos recentes sobre Construtivismo, que parecem sugerir que as raízes mais remotas desse movimento se reportam a Piaget, conseguiriam dar uma idéia mais precisa e sucinta de suas teses fundamentais do que esse parágrafo de Platão? Ou, numa outra vertente, será que nossos professores socialistas, doutrinadores de sala de aula, não se beneficiariam com a sugestão de Sócrates de que eles próprios não deveriam parir ideias próprias, mas ajudar os alunos a parir as deles?)
É interessante que, segundo os relatos que Platão nos legou acerca de Sócrates, este não ia atrás de seus interlocutores, dizendo: “Venha aqui que eu tenho algo para lhe ensinar”. Ele ficava esperando que as pessoas tivessem questões, perguntas, dúvidas e viessem até ele – daí ele procurava ajudá-las, à sua moda.
Digamos que (juntando pedaços de alguns diálogos socráticos), um jovem viesse até Sócrates e dissesse:
“Mestre, o que é a justiça? Quando é que agimos de forma justa?”
Sócrates nunca dava uma resposta direta à pergunta. Ele fazia outra pergunta ao seu interlocutor:
“O que você acha que é a justiça?”
O jovem tentava:
“Ser justo é fazer o que é certo”.
“Ótimo”, dizia Sócrates. “Mas o que quer dizer ‘fazer o que é certo?’. Quando é que fazemos o que é certo, e quando é que fazemos o que é errado?”
O jovem tentava mais uma vez:
“Creio, Mestre, que faz o que é certo aquele que executa a vontade de Deus, aquilo que Deus manda, e faz o que é errado aquele que desobedece a Deus”.
Sócrates continuava:
“Interessante sua resposta. Mas responda-me isso: Você acha que um curso de ação se torna certo porque Deus nos manda segui-lo, ou será que Deus nos manda segui-lo porque é o curso certo de ação? O que você acha?”
E a conversa ia por aí em frente. Através de perguntas bem feitas, Sócrates ia ajudando seus interlocutores a dar à luz uma compreensão mais adequada do que significava ser justo e agir corretamente. Ele nunca dizia. Ele nunca ensinava. Ele ajudava o aluno a pensar por si só, a aprender, a se tornar um aprendente autônomo.
Sócrates não usava nenhuma tecnologia além de sua fala. Não seguia um currículo – eram as questões dos alunos que lhe colocavam a pauta da conversa. Ele não tinha material didático – era contra materiais escritos (nunca escreveu nada – como Jesus Cristo também não). Não fazia prova para seus alunos, porque ao longo da conversa ele percebia que, ou o aluno tinha entendido (parido a ideia), ou a conversa (o trabalho de parto) não havia ainda terminado. Além disso, a conversa dele não tinha lugar numa escola, mas sim na praça – no lugar em que as pessoas vivem.
Notem bem: um educador sem currículos, sem conteúdos predeterminados, sem materiais didáticos, que não ensinava, que não transmitia informações, que não avaliava se os alunos haviam assimilado o que ele tentara lhes transmitir, porque ele nada tentava lhes transmitir (no sentido em que usamos o termo). E que não usava nem a parca tecnologia da escrita já disponível então. E que era interativo e dialógico, e que ficava o mais próximo possível de seus alunos, onde estes viviam. A educação que ele tornava possível ou propiciava era personalizada. . .
Sócrates valorizava o diálogo – o diálogo entre pessoas que se colocavam num mesmo patamar, não o suposto diálogo entre quem sabe e quem não sabe, entre quem tem o conhecimento e quem o recebe passivamente.
No parto, a mãe faz todo o trabalho. É ela que é ativa. É ela quem trabalha (donde a expressão “trabalho de parto”). A parteira ajuda, apoia, orienta, auxilia, facilita. Na filosofia da educação socrática, quem deve trabalhar são os alunos, não o mestre-parteiro. Quem deve estar ativo e procurar construir suas próprias competências e seu próprio conhecimento são os alunos. São eles os protagonistas da história. O mestre-parteiro fica nos bastidores, apoiando, orientando, ajudando, facilitando, fazendo uma massagem motivadora, quando necessária ou recomendável, passando uma pomada quase milagrosa quando o cansaço nos dá cãibras e nos causa dor, incentivando aqui, desafiando ali, provocando acolá. A educação se processa é na troca, na conversa, no diálogo.
A definição do método mais adequado para o processo formativo se faz dentro da “matética”, não dentro da didática [4].
C. A Tecnologia
A filosofia da educação de Sócrates, como vimos, foi construída quando a tecnologia da fala começava a ser complementada com a tecnologia da escrita alfabética [5].
Depois da invenção da fala, o passo tecnológico mais significativo, na área relevante para a educação, foi o da invenção da escrita alfabética, muitos milênios depois. A escrita é uma tecnologia que nos permite, num primeiro momento, registrar a fala, para que outros possam receber as palavras que a distância e/ou o tempo os impede de escutar. Hoje em dia há tecnologias que gravam a fala em si, ou que a levam a locais remotos, mas antes da invenção de fonógrafos, telefones e de outros meios de telecomunicação sonoros, tínhamos de depender da escrita para levar a fala codificada a locais remotos. Com a escrita temos comunicação verbal remota ou a distância [6].
A escrita foi, portanto, a primeira tecnologia que permitiu que a fala fosse congelada, perpetuada, e transmitida a distância. Com a escrita, deixou de ser necessário capturar a fala de alguém naquele instante passageiro e volátil antes que ela se dissipasse no espaço. A escrita tornou possível o registro da fala e a transmissão da fala para localidades distantes no espaço e remotas no tempo.
Na realidade, com o passar do tempo, a escrita acabou por criar um novo tipo de informação (registros e assentamentos de vários tipos, como escrituras, contratos, etc.) e um novo estilo de comunicação: a linguagem tipicamente escrita, que não é a mera transcrição da fala. Além disso, a escrita também criou um novo estilo de fala. O teatro, por exemplo, é a fala decodificada da escrita [7]. Alguém escreve a peça, ou o roteiro, e outros a representam, falando. Literalmente, não havia teatro antes da escrita – só improvisação (em maior ou menor grau). No teatro, portanto, a comunicação se dá em dois tempos: da fala imaginada pelo autor da peça para o texto escrito, e do texto escrito para a fala interpretada do ator. (Pressupõe-se, aqui, que ler uma peça não é equivalente a assistir a ela representada no teatro).
Muitos expressaram receio, quando a escrita se disseminou, de que ela fosse subverter a memória e, consequentemente a educação, até então calcada na memória e na fala, e de que ela fosse uma forma de comunicação essencialmente inferior à fala.
O primeiro a fazer isso foi, pelo que consta, Sócrates, que nunca escreveu nada. A julgar pelos relatos que dele e de suas ideias nos deixa Platão, isso não se deu por acaso: Sócrates, o defensor por excelência da fala, tinha preconceitos contra a escrita. Pelo menos é isto que fica claro no famoso diálogo Fedro.
No capítulo XXV de Fedro, Sócrates conta a seguinte história, que ele chama de mito, acerca da invenção da escrita, que ele atribui ao deus egípcio Teuto (a quem os Gregos chamavam de Hermes). Teuto, orgulhoso de sua principal invenção (ele também teria sido o inventor do número e do cálculo, da geometria e da astronomia), veio mostrá-la ao rei Tamos, que lhe perguntou qual a utilidade da invenção. Eis o que disse Teuto:
“Aqui, ó rei, está um conhecimento que melhorará a memória do povo egípcio e o fará mais sábio. Minha invenção é uma receita para a memória e um caminho para a sabedoria”.
A isso o rei ceticamente respondeu:
“Ó habilidoso Teuto, a um é dado criar artefatos, a outro julgar em que medida males e benefícios advêm deles para aqueles que os empregam. E assim acontece contigo: em virtude de teu apreço pela escrita, que é tua filha, não vês o seu verdadeiro efeito, que é o oposto daquele que dizes. Se os homens aprenderem a escrita, ela gerará o esquecimento em suas almas, pois eles deixarão de exercitar suas memórias, ficando na dependência do que está escrito. Assim, eles se lembrarão das coisas não por esforço próprio, vindo de dentro de si próprios, mas, sim, em função de apoios externos. O que você inventou não é uma receita para a memória, mas apenas um lembrete. Não é o verdadeiro caminho para a sabedoria que você oferece aos seus discípulos, mas apenas um simulacro, pois dizendo-lhes muitas coisas, sem ensiná-los, você fará com que pareçam saber muito, quando, em sua maior parte, nada sabem. E eles serão um fardo para seus companheiros, pois estarão cheios, não de sabedoria, mas da pretensão da sabedoria.” [8]
Ou seja: Sócrates fez uma importante advertência à vista do surgimento de uma tecnologia. Quando surge uma tecnologia, que nos ajuda a fazer alguma coisa nova, ou nos ajuda a fazer de uma forma nova alguma coisa que já fazíamos, a tendência é que desaprendamos de fazer as coisas velhas, ou de fazer as coisas da maneira antiga. A calculadora nos faz desaprender de fazer contas à moda antiga; o processador de texto nos faz desaprender de escrever bonito (a arte da caligrafia virou peça de museu; por um tempo, ainda ornamentava diplomas; com o surgimento de processadores de texto e impressoras a laser, nem esse uso arcaico sobreviveu).
II. A Idade Média e a Educação
Neste capítulo, analisarei a proposta curricular contida no Trivium Medieval e a metodologia da aprendizagem contida na Escolástica.
A. O Currículo Medieval: O Trivium
O Trivium envolvia o aprendizado da Linguagem, da Lógica e da Retórica e era a base da Educação Fundamental na Idade Média. A ele se acrescentava o Quadrivium, que correspondia mais ou menos à nossa Educação de Nível Médio, e que envolvia o estudo da Matemática [Aritmética e Geometria], das Ciências [Astronomia] e das Artes [Música]. (Entre colchetes estão os nomes das quatro disciplinas que compunham o Quadrivium).
Aqui concentrarei a atenção em especial no Trivium.
a. A Linguagem
Estuda-se a Linguagem, não por pedantismo, mas porque a Linguagem é o veículo através do qual o pensamento se expressa. É verdade que a correção da expressão linguística não garante, por si só, que o pensamento nela veiculado seja de boa qualidade. Isso significa que é possível ter conteúdo sem qualidade em forma correta. Contudo, no caso de pensamento e linguagem, dificilmente ocorre o oposto: conteúdo de boa qualidade em forma inadequada. A relação existente entre pensamento e linguagem é tão íntima que uma linguagem inadequada dificilmente permite que se expresse um pensamento claro e preciso. Na realidade, a inadequação linguística geralmente é sintomática de pensamento obscuro e impreciso, de confusão nos conceitos e enunciados (entidades lógicas) que subjazem aos termos e às orações (entidades linguísticas).
Temos, como seres humanos, necessidade de comunicação constante com nossos semelhantes. Essa necessidade nos coloca diante de um imperativo: ou aprendemos a pensar com clareza e precisão e a comunicar esse pensamento de maneira correta, ou seremos deixados ou passados para trás por aqueles que o sabem. Embora, possivelmente, sempre vá haver semianalfabetos, ou mesmo analfabetos, que alcançam uma certa medida de sucesso, o número destes tende a reduzir-se, no tipo de sociedade em que vivemos, ao nível do estatisticamente desprezível. Por isso, o estudo da linguagem é, geralmente, um primeiro e importante passo para quem deseja ser bem sucedido, pessoal e profissionalmente.
b. A Lógica
O segundo passo é estudar a estrutura Lógica do discurso, isto é, dos conceitos, enunciados e argumentos que subjazem à nossa linguagem. A lógica é que nos ajuda a pensar, a organizar e estruturar o pensamento, a fazer inferências, a raciocinar, a argumentar. Sem ela, ainda que dominemos as ferramentas linguísticas, nossa linguagem será vazia de conteúdo.
c. A Retórica
O terceiro passo é estudar as técnicas de persuasão e convencimento — aquilo que antigamente se chamava de Retórica. A lógica nos ajuda a organizar e estruturar o discurso. A retórica nos ajuda a apresentar o que temos a dizer de forma a persuadir e a convencer os outros — ou, pelo menos, a chamar sua atenção.
d. O Conjunto
Se em nossa Educação Fundamental (que hoje se estende por nove longos anos) conseguíssemos que nossos alunos se tornassem competentes no manejo da Linguagem (em especial na língua materna), no domínio das formas de pensar, raciocinar, tirar inferências, argumentar (Lógica) e na arte de bem apresentar suas ideias, de modo a se comunicarem bem, serem persuasivos e convincentes (Retórica), nossa tarefa estaria mais do que desempenhada. Sobre essa base qualquer outro edifício pode ser facilmente construído.
B. A Metodologia da Escolástica
O que geralmente se chama de Escolasticismo é, na realidade, uma metodologia de aprendizagem, que consiste em:
- Tomar uma questão;
- Analisá-la com cuidado;
- Formular uma tese clara acerca da questão;
- Apresentar as melhores evidências e os argumentos mais fortes que dão sustentação a essa tese;
- Em seguida, formular a antítese, ou contra tese, ou tese oposta;
- Buscar as melhores evidências e os argumentos mais fortes que possam lhe dar sustentação à antítese;
- Analisar e avaliar os dois lados da questão;
- Por fim, chegar a uma conclusão, que pode ser favorável à tese ou à antítese, ou que pode, ainda, ser uma síntese das duas.
Por detrás dessa metodologia está a convicção, tão bem representada por Sócrates, na Antiguidade, de que aprendemos através da interação, do diálogo, da conversa, do debate, da discussão racional, em que um diz uma coisa e ou outro analisa e questiona o que foi dito, apresentando contra-evidências, contraexemplos e críticas, sugerindo alternativas, provocando seu interlocutor a continuar. A escolástica representou a institucionalização desse método.
III. A Contribuição Perene da Pré-Modernidade
Para entender a Filosofia Moderna – período que se sucedeu aos dois que acabei de analisar — é necessário entender (em sua essência) a filosofia que a precedeu: a Medieval e Antiga – a Pré-Modernidade.
Embora haja consideráveis diferenças entre a Filosofia Antiga e a Filosofia Medieval, e mesmo entre as diversas correntes que constituíram uma e outra, é possível detectar uma certa tendência básica naquilo que poderíamos chamar de “Filosofia Pré-Moderna”, e que engloba elementos básicos de uma e de outra.
Para a Filosofia Pré-Moderna, em primeiro lugar, a existência daquilo que na Filosofia Moderna se convencionou chamar de “mundo exterior” (a realidade externa à nossa mente) não é um problema. Para ela, é pacífico que existe um mundo fora de nossa mente, que é objeto de nosso conhecimento. Isso não precisava ser demonstrado, porque não havia se tornado um problema.
Para a Filosofia Pré-Moderna, em segundo lugar, a realidade contém objetos e fatos. Objetos são coisas e fatos são estados de coisas. Tanto objetos como estados de coisas existem, na realidade: eles são descobertos, não constituídos.
Além disso, e em terceiro lugar, para a Filosofia Pré-Moderna o mundo exterior é objetivamente ordenado. A realidade não é composta meramente de objetos e fatos isolados uns dos outros. Objetos e fatos se vinculam uns aos outros, através de várias relações, dentre as quais a principal é a de causalidade.
A relação de causalidade, para a Filosofia Pré-Moderna, existe objetivamente na realidade: um evento realmente causa o outro, e isto é um fato que pode ser constatado. A realidade não é composta apenas por “fatos atômicos” — evento a e evento b, por exemplo — mas também por fatos complexos — evento a causando evento b, por exemplo. A relação de causalidade, portanto, não é redutível à relação de contiguidade espaço-temporal, como diria David Hume, já no período moderno (Século XVIII). Ela comporta também o nexo causal.
Isto significa que o mundo possui ordem, e que essa ordem existe independentemente do ser humano. Não é o ser humano que impõe ordem à realidade: esta já é ordenada, cumprindo ao ser humano apenas descobrir a ordem que já existe. É esse fato que possibilita o conhecimento.
A realidade, para a Filosofia Pré-Moderna, portanto, contém fatos, atômicos e complexos. Esses fatos, como visto, são estados de coisas que existem, na realidade: são descobertos, não constituídos. Conquanto possam existir estados de coisas imaginários, fictícios, eles não devem ser descritos como “fatos imaginários”. Fatos são coisas reais.
Para a Filosofia Pré-Moderna, em quarto lugar, a verdade é uma relação de correspondência ou adequação entre os juízos de um sujeito e os fatos que são objeto desses juízos. Se o juízo emitido por um sujeito corresponde aos fatos, é verdadeiro; se não existe essa correspondência entre o juízo emitido e a realidade, ele é falso. A realidade não é nem verdadeira nem falsa: ela simplesmente é. São nossos juízos acerca da realidade que podem ser verdadeiros ou falsos.
Para a Filosofia Pré-Moderna, em quinto lugar, temos evidência da verdade ou não de nossos juízos através principalmente dos sentidos, pela percepção sensorial. E aquilo que nos é dado na percepção é nada mais nada menos do que a realidade, propriamente dita, os objetos e os fatos que compõem o mundo externo a nós. Embora seja notório que às vezes nos enganemos em nossa percepção, a essa constatação não se dá importância muito grande na Filosofia Pré-Moderna, porque a mesma realidade que, às vezes, nos leva a juízos errôneos, depois nos ajuda a corrigir os erros cometidos.
Para a Filosofia Pré-Moderna, em sexto lugar, é possível, partindo dos sentidos, descobrir fatos sobre a realidade que transcende os sentidos: a chamada realidade suprassensível (ou o que comumente se chama de “sobrenatural”). Em geral, acreditava-se que era possível descobrir fatos acerca de Deus (por exemplo) pela chamada “via natural”, ou seja, apenas refletindo sobre os fatos descobertos pelos sentidos.
Para a Filosofia Pré-Moderna, em sétimo lugar, o conhecimento é o conjunto de juízos verdadeiros e evidenciados nos fatos que compõem a realidade (sensível ou suprassensível). Para que haja conhecimento é necessário que haja um sujeito, que conhece, e um objeto, que é conhecido.
A Filosofia Pré-Moderna não duvida de que tenhamos conhecimento da realidade: ela é plenamente confiante no conhecimento humano. Na verdade a confiança é tanta que ela pode falar, sem embaraço, em milagres. No Período Pré-Moderno não há maiores problemas no conceito de milagre. Um milagre é um evento que, se ocorrer, viola ou suspende a ordem objetiva existente na realidade. Para a Filosofia Pré-Moderna, milagres, se de fato existem, acontecem no nível da realidade, e não apenas no nível de nosso conhecimento da realidade. Sua definição envolve referência ao plano ontológico e metafísico, não apenas epistemológico. Milagre não é apenas um nome para nossa ignorância da ordem (como diria Spinoza mais tarde): o milagre é uma violação ou suspensão da ordem objetiva existente na realidade. Por isso é que se acreditava que eles eram de sua importância: se de fato existem, eles provam alguma coisa. Falar em milagres, porém, não quer dizer acreditar neles. Se realmente acontecem ou não é outra questão. Nem todos os filósofos pré-modernos acreditavam que milagres aconteciam. Mas não tinham dificuldade com o conceito.
Para a Filosofia Pré-Moderna, por fim, e em oitavo lugar, a pedagogia é o processo através do qual a criança é levada a conhecer e a descobrir fatos, é o processo de condução do sujeito ao objeto.
A filosofia moderna, iniciada por Descartes, e que encontrou seu ponto culminante em Kant e Hegel, passando pelos Racionalistas Continentais (Leibniz e Spinoza) e pelos Empiristas Britânicos (Locke, Berkeley e Hume), infelizmente veio a questionar todos esses oito pontos – e esse questionamento não redundou em progresso, mas, sim, em regressão.
A filosofia era considerada, pelos pré-modernos, como a mais perfeita expressão da racionalidade humana.
Na filosofia moderna, entretanto, a razão é frequentemente utilizada para combater a razão. Dentro da filosofia moderna existe uma corrente irracionalista tão forte que, encontrou no século XXI um terreno fértil para a sua propagação. É a razão que perdeu o rumo, e que tenta agora demonstrar sua própria fragilidade.
As principais armas do irracionalismo são o ceticismo e o relativismo.
O ceticismo é, fundamentalmente, a tese de que a verdade e o conhecimento não existem. Só existem pontos de vista, opiniões, crenças, coisas desse tipo. Mas nada disso é verdade, nada disso merece o título de conhecimento. Os pontos de vista que adotamos (se é que adotamos algum) são tão inválidos quanto quaisquer outros.
O relativismo é, fundamentalmente, a tese de que a verdade e o conhecimento existem, mas cada época, cada cultura, ou mesmo cada indivíduo, tem a sua verdade e o seu conhecimento. O relativismo, no fundo, afirma que tudo pode ser verdade, dependendo do contexto. Quaisquer outros pontos de vista são tão válidos quanto os que adotamos.
Note-se que tanto o ceticismo como o relativismo apelam para sentimentos nobres.
O ceticismo tem sido o principal crítico do dogmatismo e do fanatismo. Como a verdade e o conhecimento não existem, não devemos nos apegar aos nossos pontos de vista (caso os tenhamos): devemos reconhecer a falibilidade de nossas faculdades de conhecimento, e, portanto, evitar qualquer dogmatismo e fanatismo.
Da mesma forma, o ceticismo tem sido o maior defensor da tolerância. Devemos tolerar os pontos de vista dos outros, mesmo os que nos parecem mais estapafúrdios, porque, embora careçam de fundamento, não estão em pior situação do que nossos próprios pontos de vista.
Igualmente, o ceticismo tem sido um proponente da modéstia, da humildade, da ausência de soberba, da ausência de arrogância: tudo o que sei, dizem Sócrates e o cético, é que nada sei.
Os céticos são simpáticos: haja vista David Hume, talvez o filósofo mais simpático que já pôs os pés sobre a terra. Revestindo-se desse caráter nobre, o ceticismo conquista as pessoas — e espalha o irracionalismo.
O relativismo também é uma filosofia simpática.
O relativismo procura nos convencer as pessoas de que os pontos de vista de outras pessoas (ou as de outras épocas, ou de outras culturas) são tão válidos quanto os nossos próprios (ou quanto os pontos de vista de nossa própria época, ou de nossa própria cultura).
Isso é assim, afirma o relativismo, porque as ideias são geradas em determinados contextos, e adquirem validade somente a partir daquele contexto. É inválido, portanto, criticar um ponto de vista a partir de um contexto que não é o seu próprio.
Assim sendo, não é válido (por exemplo) criticar o budismo a partir do catolicismo romano, ou, na verdade, criticar qualquer religião, a partir de uma outra, ou mesmo a partir de um ponto de vista ateu. Todas religiões são boas, e até o ateísmo é uma forma de religião, às avessas, igualmente válida.
Por isso, também o relativismo propõe a rejeição do dogmatismo e do fanatismo e a adoção de uma postura tolerante. A arrogância, o sentimento de superioridade de nossos pontos de vista, a falta de empatia para com pontos de vista diferentes, tudo isso é pecado mortal para o relativismo.
Os relativistas também são, em regra, simpáticos. Muitos deles se embrenham por florestas quase virgens para estudar pontos de vista e costumes que os demais mortais poderiam considerar primitivos. Para o relativista, não há superior e inferior, quanto se trata de ideias, de pontos de vista, de cultura, enfim.
Revestindo-se desse caráter nobre, o relativismo também conquista as pessoas — e espalha o irracionalismo.
Na verdade, a maior parte das pessoas adota, hoje, um misto de ceticismo e relativismo, sem distinguir bem entre eles.
É por isso que o irracionalismo é hoje moda. Se a verdade e o conhecimento não existem, ou se tudo é verdade e conhecimento, então não há como ser racional. Por que adotar este — e não aquele — ponto de vista? Por que pronunciar este — e não aquele — ponto de vista? Porque preferir esta — e não aquela — obra de arte?
A filosofia pré-moderna (antiga e medieval) sabia como resolver essas questões. A filosofia moderna desaprendeu de fazer isso.
Ser racionalista é, hoje, ser alvo de críticas, mesmo de ridículo.
A nossa é uma época em que se tornou lugar comum afirmar que a verdade é relativa; em que amplamente se acredita que, se duas pessoas discordam, isso significa apenas que a verdade de uma é diferente da verdade da outra; em que cientistas defendem a tese de que as teorias científicas nada mais são do que “paradigmas” semelhantes a dogmas religiosos (em relação aos quais já é costume dizer que todos são bons, desde que adotados com sinceridade); em que teorias e filosofias políticas são vistas como nada mais do que ideologias em conflito, reflexos superestruturais de infraestruturas econômicas alternativas, acerca das quais não cabe levantar a questão da verdade; em que a moralidade se tornou uma questão de gosto, levando até um homem da estatura moral de Bertrand Russell a afirmar que sua discordância básica com Hitler se reduzia ao fato de que ele não gostava do que Hitler fazia; em que as linhas demarcatórias entre a arte, de um lado, e, de outro, borrões, ferro velho, lixo e outras excrescências desapareceram, porque as pessoas têm medo de emitir um julgamento estético; em que interpretações de um texto, por mais intuitivas e estapafúrdias que sejam, são acolhidas com a mesma seriedade que as decorrentes de trabalho sério e rigoroso; em que auto-expressão se tornou sinônimo de criatividade; em que os contra-sugestionáveis são tidos como espíritos críticos; em que a noção de verdade, por fim, se admitida, é vista apenas em termos da coerência de um conjunto de enunciados, e não de sua correspondência com a realidade.
As chamadas “Leis da Lógica” – andar dos mais importantes do edifício filosófico da antiguidade grega — são hoje desprezadas. Essas leis são as seguintes:
- Toda afirmação (inclusive teorias científicas, juízos morais e juízos estéticos), ou é verdadeira ou falsa (Lei do Terceiro Excluído);
- Nenhuma afirmação, devidamente qualificada, é verdadeira num contexto (temporal, espacial, social, cultural, econômico) e falsa em outro (Lei da Não-Contradição);
- O que é verdadeiro, é sempre verdadeiro; o que é falso, sempre falso (Lei da Identidade).
Também são desprezadas hoje teses metafísicas e epistemológicas fundamentais da filosofia pré-moderna, como, por exemplo:
- A primazia da realidade sobre os conceitos. A realidade existe independentemente de nossa percepção e de qualquer conceito que possamos formar sobre ela. Através dos sentidos, o ser humano apreende a realidade, não a constrói (Realismo Metafísico);
- A primazia dos conceitos sobre as palavras. É o pensamento que condiciona a linguagem, não vice-versa (Realismo Epistemológico).
- A ciência é objetiva e racional (contra os proponentes da sociologia do conhecimento e da ciência);
- Existe conhecimento ético: julgamentos morais são verdadeiros ou falsos, e não são meramente emoções e sentimentos disfarçados de conhecimento (contra o emotivismo ético, etc.);
- Existe objetividade na arte (contra expressionismo, etc.)
No Período Pré-Moderno havia uma atitude de abertura para com a busca da verdade e uma convicção básica de que a racionalidade é a melhor arma nessa busca. Tanto essa atitude como essa convicção foram perdidas no período moderno. A maior contribuição que a educação atual pode dar ao nosso mundo é recuperar algumas tendências da educação e da visão de mundo da pré-modernidade.
Notas
[1] Ph.D. em Filosofia pela University of Pittsburgh, 1972. Professor Titular de Filosofia Política e Filosofia da Educação da UNICAMP de 1974 a 2007, hoje aposentado. Atualmente, Professor Colaborador de Filosofia da Educação no Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Campus de Americana, e Professor de História da Igreja da Faculdade de Teologia de São Paulo (FATIPI), da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil.
[2] Estou usando o texto traduzido para o Inglês por Benjamin Jowett e publicado, sob o título Theatetus, em The Library of Liberal Arts, por The Bobbs-Merrill Co., Inc. (Chicago, 1949)
[3] Theatetus, op.cit., pp.10-11.
[4] Vide o meu site www.mathetics.net. O conceito de matética foi discutido por Seymour Papert em seu livro The Children’s Machine: Rethinking School in the Age of the Computer. New York: Basic Books. 1993. Há um resumo, elaborado por Susan Ehrenfeld, das ideias apresentadas no livro, em http://mathforum.org/~sarah/Discussion.Sessions/Papert.html.
[5] Vide a esse respeito Eric A. Havelock, The Literate Revolution in Greece and Its Cultural Consequences (Princeton University Press, Princeton, 1982; tradução brasileira de Ordep José Serra, com o título A Revolução da Escrita na Grécia Moderna e Suas Consequências Culturais, publicada por Editora da UNESP e Paz e Terra, São Paulo e Rio de Janeiro, 1996). Cf. também Eric A. Havelock, The Muse Learns to Write: Reflections on Orality and Literacy from Antiquity to the Present (Yale University Press, New Haven and London, 1986).
[6] Acrescento o qualificativo “verbal” porque é possível comunicar-se remotamente através de sinais não verbais, como, por exemplo, os de fumaça, usados em contextos de comunicação relativamente primitivos.
[7] Walter Ong, em Oralidade e Cultura Escrita: A Tecnologia da Palavra (Campinas, Papirus, 1982, 1998; tradução do original Inglês por Enid Abreu Dobránszky), p.69, aponta para um importante fato, a saber, que numa cultura em que a escrita foi interiorizada a linguagem escrita afeta e modifica a fala: “Indivíduos que interiorizaram a escrita não apenas escrevem, mas também falam segundo os padrões da cultura escrita, isto é, organizam, em diferentes graus, até mesmo sua expressão oral em padrões de pensamento e padrões verbais que não conheceriam, a menos que soubessem escrever”.
[8] Plato, Phaedrus (The Library of Liberal Arts, Bobbs-Merrill Company, Inc., Chicago, tradução do grego por R. Hackforth). Acerca dessa passagem ver “From Internet to Gutenberg”, magnífica conferência apresentada por Umberto Eco na Academia Italiana de Estudos Avançados na América, no dia 12 de Novembro de 1996, disponível na Internet no seguinte endereço: http://www.italynet.com/columbia/internet.htm.
Revisto e transcrito aqui em 13 de Novembro de 2014, com base em um artigo escrito em 1 Agosto de 2008 (por sua vez redigido com base em material escrito em 2000) e revisado (e publicado aqui) em 3 Março de 2013. O artigo foi revisado mais duas vezes, posteriormente, em 13 de Janeiro de 2016 e em 23/05/2016.