O Leitor / The Reader: Uma Resenha

[NOTA: Este post é um estraga-prazeres para aqueles que gostam de assistir filmes sem saber o que vai acontecer. Se você é um desses, não leia.]

Assisti na tarde de ontem (24/02/2009) ao filme O Leitor / The Reader – filme dirigido por Stephen Daldry e baseado em livro, com o mesmo título, de Bernhard Schlink. O filme concorreu ao Oscar (referente a 2008, ano em que foi lançado) nas categorias Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, e “Cinematografia”, sem ganhar, e, na categoria Melhor Atriz em Papel Principal, merecidamente trouxe para Kate Winslet, o seu primeiro Oscar. Kate Winslet ganhou ainda inúmeros outros prêmios por este filme (vide http://www.imdb.com/title/tt0976051/awards/). 

Minha primeira sensação, ao sair do cinema, foi de que esperava mais do filme do que ele trouxe… Mas, depois, com conversa, leitura de resenhas e fóruns (no site http://imdb.com), e, naturalmente, com minha própria reflexão, minha opinião sobre o filme foi melhorando… Pode ser que melhore ainda mais.

Apesar de ser descrito como um filme sobre o Holocausto, O Leitor se desenrola por inteiro na Alemanha do pós-guerra. A primeira data referência, em que a história começa a se desenvolver, é 1995. O local, Berlin. Michael Berg, um advogado que aparenta ter uns 45 anos (muito bem conservados – vamos ver depois que nasceu em 1943), representado por Ralph Fiennes, com um olhar distante, triste, melancólico mesmo, reflete sobre sua vida. (Poucos atores conseguem ser tão convincentemente melancólicos como Ralph Fiennes: vide Fim de Caso, O Paciente Inglês, Jardineiro Fiel…). O objeto de sua reflexão é seu relacionamento com Hanna Schmitz, uma mulher que, à época, tinha mais do dobro da idade dele (representada magnificamente por Kate Winslet, no papel que lhe valeu o primeiro Oscar em seis indicações)… Mas já se revela que Michael foi casado (não com Hanna) e que tem uma filha jovem.

O cenário se altera. O tempo volta para 1958, mas o local ainda é Berlin. Michael Berg tem 15 anos (e é agora representado por David Kross, num magnífico desempenho) – o que significa que nasceu durante a guerra, em 1943 (o mesmo ano em que eu nasci…). Hanna Schmitz nasceu em 1922 – o que significa que, em 1958, tinha 36 anos – mais do dobro da idade de Michael. Ele começa a passar mal numa rua, entra no pré-vestíbulo de um prédio, vomita – e é socorrido por Hanna, que age de forma aparentemente grosseira, lavando a calçada, ordenando que ele levante os pés para que ela possa jogar água… Ele volta para casa e é diagnosticado com escarlatina. Fica isolado por três meses, mas, quando liberado, compra flores e vai agradecer Hanna. Na sequência, ele a visita mais vezes. Numa dessas, ela lhe pede que traga, do porão, dois baldes de carvão. Ele volta imundo. Ela lhe ordena que tire a roupa (que ela lava) e tome um banho. Depois do banho, ela, já nua, o abraça – e, na sequência, transa com ele. A frase é correta: foi ela que tomou a iniciativa. Não se pode nem dizer que ela o tenha seduzido. Ela virtualmente o atacou (embora com delicadeza e com a sensibilidade de uma mulher experiente que sabe estar lidando com um iniciante). O caso não fica só nessa transa. Eles têm um affair intenso e bonito – embora ela nada revele a ele sobre si própria, além do nome.

O relacionamento entre os dois não é apenas físico. Ela pergunta a ele sobre a escola, e ele lhe fala sobre os textos que tem de ler: A Odisséia, As Aventuras de Huckleberry Finn, A Mulher e o Cachorrinho, peças de Tchekov… Ela lhe pede que leia para ela – e ele o faz. Ela elogia a leitura dele – que não imaginava que fosse bom naquilo… O fato de estar tendo um caso com uma mulher mais velha e bonita, e o elogio que ela lhe faz, fazem com que Michael ganhe a auto-confiança necessária para melhorar sensivelmente até o seu desempenho nos jogos de basquetebol… Tudo influência dela…

Na sequência, Mchael descobre que Hanna é cobradora de bonde… A história mostra que ela está para ser promovida. Mas, um dia, ela desaparece misteriosamente, deixando Michael perto do desespero.

Nova mudança no cenário… Oito anos se passam. O ano agora é 1966, a cidade, ainda Berlin. Michael, agora com 23 anos, é estudante de Direito e, como tal, vai com seus colegas e um de seus professores (Professor Rohl, interpretado por Bruno Ganz), assistir a um julgamento de seis mulheres que trabalharam no Serviço Secreto nazista durante a Segunda Guerra, como guardas de campos de concentração – e são acusadas da morte de centenas de mulheres judias. Uma acusação é a de que regularmente cada guarda tinha de selecionar dez mulheres para morrer. Mas a principal acusação é que essas guardas deixaram, uma vez, 300 prisioneiras morrer em uma capela que pegava fogo, sem abrir a porta para que escapassem…

Entre as guardas, para a surpresa de Michael, estava Hanna – agora com 44 anos. Cinco das acusadas estão unidas, negando a acusação, e afirmando que a responsável é Hanna. Interrogada, Hanna responde com simplicidade e uma sinceridade quase irrespondível… Ela não nega que indicava, regularmente, dez prisioneiras para morrer…

Por que fazia isso? Ora, o campo de concentração tinha lotação limitada e constantemente novas prisioneiras chegavam… A solução encontrada era enviar um certo número das prisioneiras mais antigas para a morte para que houvesse lugar para as novas… “O que o senhor faria, em meu lugar?”, pergunta Hanna ao juiz… Nos testemunhos ficou evidente que Hanna protegia algumas prisioneiras, as mais fracas e doentes, em troca de um favor: que elas lessem para ela… Quanto à capela, Hanna, arguida pelo juiz sobre por que não abriu a porta da capela quando o incêndio começou, redarguiu com lógica impecável: “Como eu poderia solta-las, se o meu emprego era mantê-las presas???” Apenas uma mulher se salvou (não se explica como) – e a filha dessa mulher (de nome, no filme, Ilana Mather) subsequentemente escreveu um livro sobre o episódio. Mãe e filha depõem no julgamento. (A mãe, no julgamento, e a filha, depois, são representadas pela grande Lena Olin, infelizmente em dois papéis pequenos).

Ao final, as demais acusadas afirmam que um relatório altamente incriminador havia sido redigido por Hanna apenas. O juiz quer confrontar a letra do relatório com a letra de Hanna Spitz, e ordena que ela escreva algo em um bloco de papel… Tensão na acusada, que finalmente se recusa a escrever e admite ter sido ela a autora do relatório.

Nesse ponto, Michael, na audiência, tem certeza de que ela é analfabeta! Um dia havia pedido que ela lesse um dos livros, e ela se recusou, dizendo que preferia ouvir a leitura dele… Ele se lembra de que, um dia, quando fez uma excursão de bicicleta pelo campo com ela, e pararam para comer algo, ela olhou o menu e o colocou de lado, dizendo a ele que iria comer a mesma coisa que ele escolhesse… Pelo testemunho ouvido no julgamento, Hanna, no seu serviço como guarda, protegia prisioneiras que liam para ela…

Conclusão: agora, para não sofrer o vexame de se ver revelada analfabeta, Hanna prefere mentir e admitir que foi ela a autora do relatório…

Dilema para Michael, que tem informação que pode, em princípio, inocentar Hanna. Ele conversa com seu professor – que não o ajuda muito. Tenta racionalizar, para si próprio, a decisão de ficar quieto, alegando que ela mesma havia optado por não revelar a verdade – por que iria ele, agora, agir diferentemente? Ela havia tomado uma decisão para não passar pelo vexame de se revelar analfabeta – que direito tinha ele de fazê-la passar por esse vexame, ainda que fosse para salvá-la de uma sentença mais dura?

O final é previsível. As outras cinco acusadas são condenadas, mas recebem penas leves. Hanna é condenada à prisão perpétua.

O tempo entre o cenário de 1958 e o cenário de 1966 não é preenchido no filme. Mas o tempo entre o cenário de 1966 e o de 1995 é preenchido como pequenos “flashes”. Michael, depois de casado e separado, redescobre o caderninho em que ele anotava os livros que tinha de ler na escola, e resolve começar a gravar em cassete os livros que um dia havia lido para ela, enviando as fitas para ela na prisão: dezenas e dezenas de fitas. Ela, na prisão, começa a retirar da biblioteca os livros que ele gravou, e, pouco a pouco, vai aprendendo a ler, comparando o que está escrito no livro com aquilo que ela ouve na fita… Manda pequenos bilhetes para ele, pedindo que grave este ou aquele livro…

Um dia, por volta de 1986, a responsável pelo presídio entra em contato com Michael, para dizer-lhe que Hanna vai ser libertada por ter cumprido vinte anos da pena – e que ele é o único contato que ela tem fora do presídio. Outro dilema, embora agora menor. Ele arruma um emprego e um apartamento, ambos simples, para ela, e comunica a ela o fato em um único contato face-a-face – em que ela tenta segurar a mão dele e ele, visivelmente embaraçado, a remove, depois de poucos segundos.

No dia em que ela deveria ser libertada, ele vai buscá-la – mas ela havia se suicidado no dia anterior. Aparentemente usou uma pilha de livros em cima da mesa para conseguir se enforcar. Não havia arrumado suas coisas para sair da cela, fato que indicava que não pretendia sair de lá viva…

Numa carta testamento, Hanna deixa para Ilana Mather, a filha da sobrevivente do incêndio na capela, uma latinha de chá com o dinheiro vivo que possuía, mais uma soma de cerca de sete mil marcos que tinha no banco, com instruções para que Michael entregasse o dinheiro à destinatária. Ele, durante uma viagem a New York, tenta entregar o dinheiro, mas Ilana se recusa a recebê-lo, ficando apenas com a latinha, que parecia uma que ela tinha tido durante o tempo em que ficara no campo de concentração, mas perdera. Ele pede sugestões sobre organizações filantrópicas judias às quais ele pudesse doar o dinheiro. Ela diz que organizações judias não precisariam desse dinheiro. Por fim ele sugere que o dinheiro seja doado a instituições voltadas para a alfabetização de adultos, e ela não vê por que não, mas deixa que ele decida e escolha…

O filme termina com Michael, já de volta em 1995, levando sua filha, da qual havia se afastado, depois do divórcio, para conhecer o túmulo de Hanna – local em que ele começa a lhe revelar a sua história.

o O o

Como disse, eu, depois de ver o filme, fiquei com a sensação frustrante de que esperava mais dele. Mas essa sensação vem, gradualmente, diminuindo, por razões que passo a expor.

O filme trata – dentro das limitações do “medium” (filme, cinema) – de alguns dilemas morais importantes.

O principal deles diz respeito às consequências de erros morais que cometemos, muitas vezes no que, no momento, parece ser o exercício do dever, e o sentimento de culpa, de revolta, de necessidade de fazer justiça que esses erros suscitam nas pessoas (tanto nas vítimas como, por vezes, nos perpetradores dos erros e, também, nos bystanders) bem como na sociedade em que aconteceram.

O filme levanta uma outra questão interessante. Tenho eu o direito, ou mesmo o dever, de revelar algo sobre uma outra pessoa, que pode reduzir sua pena ou até mesmo salvar sua vida, quando essa pessoa se recusa a fazê-lo ela mesma, por considerar o objeto da revelação vexatório? Tenho eu o direito ou o dever de agir no que presumo ser o melhor interesse da pessoa, quando ela própria acha que seu melhor interesse é preservar o segredo e a privacidade de uma condição que considera vergonhosa?

Outra questão importante: crimes, como os descritos, podem vir a ser expiados ou perdoados e produzir redenção ou reconciliação? Ou é tarefa das vítimas, e seus herdeiros, garantir que até o último culpado receba sua justa punição?

Ainda mais uma questão interessante. Numa aula, o professor de direito de Michael, um sobrevivente do Holocausto, afirma que “as sociedades gostam de imaginar que operam com base em princípios morais, mas isso não é verdade: elas operam com base na lei”… Agora, se a lei prescreve comportamentos que são considerados imorais, o que faz a pessoa simples, que quer apenas desempenhar bem o seu trabalho, que não é intelectual, que não filósofa??? Hanna Schmitz, mesmo em seu julgamento, em 1966, ainda está perfeitamente convencida de que seu trabalho era guardar as prisioneiras, evitar que fugissem… – como poderia ela abrir a porta da capela para deixa-las escapar do fogo, sim, mas também da custódia em que se encontravam??? Ela participou dos crimes nazistas porque “that was my job”, e ela acreditava ser seu dever fazer o seu trabalho bem feito, porque seus chefes estavam no poder legalmente, tinham a autoridade de lhe dizer o que deveria fazer e tinham o direito de esperar que ela fizesse o que lhe era ordenado…

A lei, a despeito da necessidade de interpretação, e do relativo subjetivismo do processo hermenêutico, tem por base um texto, que é algo razoavelmente objetivo. Mas a moralidade, ancora-se em quê? Se vamos julgar a lei por critérios morais, que moralidade vamos usar? Vamos usar a moralidade católica para impedir que o divórcio, ou o aborto, se tornem legais? Vamos usar a moralidade protestante puritana para impedir que a lei faculte que as pessoas andem seminuas nas praias, que as mulheres façam topless onde quiserem, que os assim chamados naturistas pratiquem o seu nudismo em praias reservadas para essa prática (praticando ali  tanto o topless como o bottomless)? Vamos usar essa mesma moralidade para proibir, com a força da lei, a edição e circulação de revistas que exibem pessoas nuas, filmes de sexo explícito, livros considerados pornográficos? Por outro lado, parece que, ao separarmos a lei da moralidade, e afirmarmos que, no mundo sócio-político, vale a lei, não a moralidade, nos curvamos ao cinismo daqueles que afirmam, ao ser flagrados em falcatruas de todo tipo, que seu comportamento ficou dentro dos limites da lei. E não é só de falcatruas financeiras que se trata: afinal de contas, Hanna Schmitz agiu dentro dos ditames da lei – e, por causa disso, trezentas mulheres inocentes morreram.

Hanna, apesar de ser descrita por suas vítimas, ou por aqueles que as representam, como um monstro, não é uma pessoa má… Ela é uma pessoa simples, que acha que tem de cumprir com o seu dever e fazer, da melhor forma possível, o que os seus chefes lhe ordenam e esperam dela… Quanta gente não pensa do mesmo jeito, e só não comete crimes, pequenos ou horrendos, porque seu chefe nunca lhe pediu que fizesse algo moralmente errado?

Enfim: a pessoa comum tem a obrigação de entender as questões mais intricadas da ética filosófica e da filosofia política? É razoável esperar isso, quando mesmo filósofos profissionais discordam frontalmente em relação a essas questões? 

O que fazer daqueles que, dentro de igrejas e partidos políticos, aceitam uma ética de segunda mão, sobre a qual nunca refletem? Os católicos que se opõem ao aborto, ou ao controle da natalidade, ou ao divórcio, porque é isso que a Igreja Católica Romana ensina que é certo, e eles não têm ou a vontade ou a capacidade de destrinchar essas questões morais complicadas, essas pessoas não estão, porventura, sem perceber, correndo o risco de agir erroneamente, ou até mesmo de cometer crimes contra determinadas pessoas, porque agem segundo uma moralidade recebida por autoridade, sobre a qual não refletem, ou porque não querem, ou porque não podem, ou porque não acham que é preciso?

A questão do analfabetismo de uma pessoa adulta, mesmo numa sociedade desenvolvida como a Alemanha da época da Segunda Guerra, embora central para a trama, parece ocupar um lugar claramente secundário diante dessas outras grandes questões.

Kate Winslet representa na tela uma personagem que muitas pessoas considerariam um monstro. Mas ela consegue fazer com que o mostro, sem deixar de ser monstro, tenha cara humana, sofra, goste de ouvir a melhor literatura, ria, faça amor, traga prazer e confiança para um menino (que ela chamava de “kid”)… Um grande feito. Poucas atrizes conseguiriam fazer isso. Sem dúvida o melhor papel de Kate Winslet até hoje. Com seus 33 anos, ela promete muito mais. Consegue ser convincente até quando, com a ajuda da maquiagem, evidentemente, representa uma mulher de quase sessenta e cinco anos.

Quando, em seu último encontro, Michael pergunta a Hanna se ela tem pensado muito sobre o passado, ela lhe pergunta: sobre o nosso passado? Ele diz que não: sobre o passado em geral. Ela lhe responde: “Não importa o que eu penso. Não importa o que eu sinto. Os mortos continuam mortos”.

Isso é verdade: os mortos continuam mortos. Mas o resto não é verdade: o que pensamos e o que sentimos importam. E vendo filmes como esse, somos forçados a pensar e a sentir. E se pensarmos e sentirmos, provavelmente corremos menor risco de cometer erros morais e mesmo crimes por estarmos vivendo e agindo em piloto automático.

Em São Paulo, 25 de Fevereiro de 2009; revisado em Salto, 20 de Maio de 2017.

Uma resposta

  1. Acho que, com a frase “Não importa o que eu penso. Não importa o que eu sinto. Os mortos continuam mortos”, ela quis dizer que não importa se ela sentisse culpa, ou pensasse que fez errado, os mortos continuariam mortos, quer ela quisesse ou não.

    Belo texto. Concordo muito em algumas coisas com você.

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  4. Bom dia! 8 anos depois de ser escrita, eis que leio sua resenha… Assisti ao filme ontem à noite, e não satisfeita com o que havia visto, resolvi fazer pesquisas sobre o mesmo, com a intenção de me aprofundar, e vim (por ironia do destino, ou não) parar aqui. Sua resenha é FENOMENAL. Linguagem culta mas simples, facilitando o entendimento, e apesar da linguagem simples, é rica em conteúdo, tanto sobre o filme quanto em subjetividade de opinião. Foi muito agregador para mim, na medida certa. Meus parabéns. Abraços.

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