A História Acontecida e a História Narrada

Existe um dito, bastante conhecido, segundo o qual “a história é narrada pelos vencedores”. Ele sugere que a História Narrada – aquilo que em alemão geralmente se designa Geschichte – prevalece sobre a História Acontecida – aquilo que em alemão geralmente se designa Historie. Se ninguém narrar algo que de fato aconteceu, parte do que de fato aconteceu não vai aparecer na História Acontecida porque não tem como pertencer à História Narrada – que é a que chega até nós.

Muitos exemplos podem ser dados dessa distinção. A História da Guerra do Paraguai (da guerra entre o Brasil e o Paraguai no século 19) que é contada em nossos livros didáticos e em nossas salas de aula é a História Narrada por nós, brasileiros. É muito provável que os paraguaios tenham uma outra História Narrada da mesma guerra. E onde fica a História Acontecida nessa – bem, nessa história? Ela fica para sempre uma História Escondida? Quem sabe uma História Inacessível? Ou é possível recuperá-la, através de algo que poderia ser chamado de História Científica, ou História Crítica, que consegue atravessar as diversas Histórias Narrativas, alcançar os fatos ocorridos, através da evidência disponível, cientificamente comprovada como tal, e assim chegar a algo que possa ser descrito como, em alemão (pois os alemães criaram esse debate), “Historie, wie es [sie] eigentlich gewesen ist” – a História, como ela de fato aconteceu. Leopold von Ranke (1795-1876) é o historiador alemão que levantou essa lebre. Vide o artigo sobre ele na Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Leopold_von_Ranke.

Mais recentemente, Karl Mannheim (1893-1947), nascido na Hungria, mas que teve, além de uma fase húngara, uma fase alemã e uma fase inglesa, sugere, em sua obra Ideologia e Utopia, que, talvez, não seja o caso de tentar “atravessar as narrativas”, que ele chama de “perspectivas”, mas, sim, de tentar junta-las e integra-las num “todo”, algo que o cientista seria capaz de fazer, por ser capaz de, por sua capacidade crítica, transcender os perspectivismos (representados por nação, região, classe, cultura, religião, época, quem sabe raça e sexo) e o relativismo que eles implicam. O “todo” seria algo “relacional”, mas não “relativo” ou “relativista”.

Mannheim também sugeriu, na mesma obra, que o que chamamos de ideologia deve ser visto, em sua origem, como uma “deliberada tentativa de obscurecer os fatos” – talvez até camuflando-os, quem sabe escondendo-os… O que esse insight parece indicar é que criamos ideologias, para obscurecer, camuflar ou esconder os fatos, quando os fatos não nos parecem aceitáveis – quando é difícil engoli-los e degluti-los… Dentro dessa visão, a História Narrativa seria, possivelmente, uma história cujos fatos são obscurecidos, camuflados e mesmo ocultados para que o de fato acontecido dê lugar ao que gostaríamos de fazer crer que tivesse acontecido (dadas as exigências da nossa ideologia).

Isso o tornou muito mal visto pela maioria dos marxistas, não é muito difícil entender por quê. Vide o artigo sobre Mannheim na Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Karl_Mannheim.

Essa questão toda está na ordem do dia. Estamos vendo, hoje, os fatos da história contemporaníssima do Brasil acontecer diante dos nossos olhos, na televisão, e podemos constatar que os discípulos de Marx, 170 anos depois do Manifesto Comunista, continuam a se esforçar por criar narrativas, que se adaptam aos seus preconceitos ideológicos (sua maneira de ver a realidade), para nos fazer crer que os fatos que vemos acontecer não são o que parecem. Na verdade, que os fatos, na realidade, são outros – que nem parecem ser… Aqui, na verdade, a tentativa não é de obscurecer, camuflar e esconder os fatos: a tentativa é de trocar os fatos (digamos, os fatos verídicos, se isso não é pleonasmo) por outros (por fatos falsídicos, inventados para tentar, na marra, impor uma narrativa histórica que descreve, não o que de fato ocorreu (ou que de fato esteja ocorrendo), mas o que eles gostariam de fazer crer que tivesse acontecido (ou estivesse acontecendo). O que está acontecendo, segundo eles, não é um impeachment, como o que de fato aconteceu, em 1992, com o apoio dos petistas, contra o então presidente Collor. O que está acontecendo agora seria um golpe. Mas como um golpe, pergunta-se, se os militares estão nas casernas, se o rito prescrito pelo Supremo Tribunal Federal (STF) está sendo seguido, se o STF, frequentemente chamado a se pronunciar, o mais das vezes pelos petistas, tem sacramentado o que está ocorrendo? Ah, trata-se de um golpe diferente, um golpe especial: um golpe parlamentar, comandado pelo Vice-Presidente (que atualmente não é parlamentar). Mas como um golpe, pergunta-se ainda, se, ao longo dele, a presidente vai passear em Nova York, no avião oficial, com uma enorme comitiva, deixa no cargo o Vice-Presidente supostamente golpista, em Nova York fica hospedada em hotel caríssimo (como sempre), conta um monte de mentiras para os gringos (como sempre), visita uma exposição num museu, onde almoça, à noite pega o avião, volta para o Brasil, e reassume o cargo (que o Vice-Presidente não move um dedo para impedir)? Ah, mas é um golpe, mesmo assim. É, porque é. Ponto.

A única forma de impor uma narrativa falsa é através da mentira. Da mentira, ainda que deslavada, contada com a cara mais limpa. Por isso, os chefes da nossa esquerda petista, Lula e Dilma, são mestres na arte da mentira. Eles acreditam piamente que a mentira repetida mil vezes passa, pelo cansaço gerado pela oitiva da repetição, a ser vista como verdade pela maioria da população.

Vocês já viram um vídeo do Lula admitindo, orgulhosamente, ser um grande artista da mentira? Um artista que inventa números, tirando-os da algibeira, sem critério algum, para enganar os trouxas dos gringos? Vejam em https://www.youtube.com/watch?v=8Kgo-PykDhk o vídeo em que o Lula admite que mentia deslavadamente para os gringos sobre o número de crianças na rua no Brasil, o número de abortos no Brasil, etc. Quando ele mentiu dessa forma, esclarece, estava em companhia do Roberto Marinho e do Jaime Lerner e não tinha a menor vergonha – e os gringos aplaudiam! O Jaime Lerner teve de adverti-lo para não exagerar demais porque uma hora alguém descobre que ele está mentindo. A audiência diante da qual ele admitiu tudo isso também o aplaudiu pela sua capacidade de mentir. Embora o relato que ele fez pudesse também ter sido inventado! Vai-se saber.

No entanto, um tempo depois, já bem mais recentemente, o mesmo Lula teve a coragem de dizer: “Se tem uma coisa [de] que eu me orgulho neste país . . . é que não tem nesse país uma viva alma mais honesta do que eu” (vide https://www.youtube.com/watch?v=H6KIR5VRxyM). Está mentindo agora ou quando disse que era mentiroso? O caso me faz lembrar de uma conversa do Tim Maia com o Jô Soares, no programa deste, em que o Jô lhe perguntou se era verdade que ele tomava drogas, bebia feito uma esponja, era devasso e promíscuo, etc. e ele negou em todos os casos. Daí esclareceu: o único defeito que eu tenho é que eu sou meio chegado a uma mentirinha…

A história real (a que de fato aconteceu) prova que marxistas e petistas têm certa razão em tentar. O “golpe” deles já deu certo algumas vezes. Na História Acontecida, os militares ganharam de fato a guerra contra a esquerda no período de 1964 a 1984. Mas a esquerda ganhou “a guerra das narrativas”. É a narrativa da esquerda que está transcrita nos livros didáticos e é ensinada nas escolas. A esquerda conseguiu impor a sua História Narrativa (porque ela, seguindo a orientação de Gramsci, se infiltrou nos “aparelhos ideológicos do Estado”: a educação, a mídia, a arte…). Recentemente, estando no poder, a esquerda criou até uma comissão para tentar desenterrar, ou, caso isso se mostrasse impossível ou difícil, gerar ou inventar, fatos que comprovassem sua narrativa do regime militar de 64. Em verdadeiro Newspeak (Novilíngua), chamou a comissão criada de Comissão da Verdade. A “verdade”, no caso, quer dizer “a verdade que queremos narrar e perpetuar”. Vide o vídeo sobre a “Comissão da ‘Verdade’”, com Percival Puggina, em https://www.youtube.com/watch?v=7yK4T9XQa6k.

[Nota: A crítica que faço aqui vai além da que fez à “Comissão da ‘Verdade’” o meu amigo Eliezer Rizzo de Oliveira, em seu livro Além da Anistia, Aquém da Verdade: O Percurso da Comissão Nacional da Verdade. Ele criticou a “Comissão da ‘Verdade’” por ter escolhido investigar apenas um lado, o dos militares, não o outro, o dos terroristas. Assim, criticou a comissão por ter ficado “aquém da verdade”, por ter deixado verdade fora (sem questionar se o que ela concluiu que era verdade de fato o era). Eu critico a tentativa de criar uma narrativa oficial, de reescrever a história, de ir “além da verdade” ou até mesmo procurar criar uma narrativa, “em vez da verdade”, mas uma narrativa que viesse a ficar universalmente reconhecida como a “História Oficial”. A esquerda faz isso ao mesmo tempo que critica a narrativa dos militares como sendo a “História Oficial”. Vide o filme argentino com esse nome. Descrição na Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Hist%C3%B3ria_Oficial]

Antes de criar a “Comissão da ‘Verdade’” para tentar “comprovar” a narrativa da esquerda petista, esta já havia transformado os guerrilheiros que queriam implantar a ditadura do proletariado no Brasil em “combatentes pela democracia”, em “heróis da resistência democrática”. De igual modo, durante a Guerra Fria, as ditaduras comunistas na Europa Oriental eram chamadas de “Repúblicas Democráticas”, conspurcando não só o termo “democracia” como o termo “república”…

Essas coisas se passam diante de nossos olhos. Vejamos um post que circula no Facebook descrevendo o que aconteceu ontem, 29 de Abril de 2016, no Senado Federal. A advogada Janaína Paschoal estava defendendo o impeachment da presidente quando foi interrompida por uma senadora petista do Rio Grande do Norte, chamada Fátima Bezerra. Disse a senadora, criticando a advogada por pedir o impeachment “de uma presidenta eleita”:

“Não é uma presidente qualquer. É uma mulher que traz no corpo as marcas da tortura que sofreu POR DEFENDER A DEMOCRACIA no Brasil.”

Foi esta a resposta da advogada Janaína Paschoal:

“Prezada senadora: se Dilma foi ou não torturada, não sei. Ela diz que foi, mas ela também diz que nunca soube de corrupção na Petrobras; a senhora decide se a palavra dela merece ou não seu crédito, senadora. Agora, quanto a ter Dilma lutado pela democracia, prezada senadora, veja se consegue entender: Dilma foi membro da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), organização MARXISTA-LENINISTA (a senhora sabe o que é isso, certo?) que praticava assaltos, atentados e sequestros. Tais ações tinham como finalidade (que constava dos estatutos da referida organização, a senhora pode pesquisar) implantar no Brasil uma ditadura do proletariado, um regime de partido único que não permite liberdade de expressão, liberdade de associação partidária, imprensa livre, eleições, nada que vagamente se assemelhe à democracia que a senhora mencionou.”

É isso…

Percival Puggina, em artigo recentíssimo (29/4/2016), critica “O Compromisso com a Mentira”. Diz ele:

“É de autoria da jovem escritora norte-americana Veronica Roth a observação, tão interessante quanto significativa, que determinou o título deste artigo: a mentira exige compromisso. De fato, quem mente faz  um pacto com essa falsidade, agravando de modo crescente seus efeitos e a corrupção da própria consciência. O que descrevi ganha enorme significado no campo político. Neste caso, a mentira pode fraudar a democracia e determinar as mãos para onde vai o poder; pode frear e inibir a Justiça; pode promover a injustiça e pode causar severos danos aos indivíduos e ao interesse público.

Imagine agora, leitor, quanto mal pode advir quando a mentira, corrupção da verdade, é repetida milhões de vezes por multidões que, deliberada ou iludidamente, a reproduzem sem cessar como papagaios de barbearia. Temos visto muito disso por aqui. Impeachment é um instrumento constitucional da democracia, de rito lento e severo definido pelo STF, que exige quorum elevadíssimo em sucessivas deliberações nas duas casas do Congresso. No entanto, sua legitimidade vem sendo contestada através de uma mentira que me recuso a reproduzir aqui em respeito ao leitor cujos ouvidos, certamente, já doem de tanto a escutar.

Agora, um novo mantra está em fase de propagação. É o tema deste artigo. Ouvi-o pela primeira vez há poucos dias: “Se Temer assumir vai acabar com a Lava Jato”. Ué! Em seguida ouvi novamente. E de novo, e de novo. A mentira passou a ser difundida por uma nuvem de papagaios. Em bem pouco tempo, como era de se prever, de tão repetida a mentira virou assunto de entrevistas e comentários em rádio e TV. Ora, quem ouviu a mentira várias vezes proferida por repetidores comprometidos, viva voz ou nas redes sociais, e logo vê o tema sendo abordado em meios de comunicação, aos poucos passa a entender como informação aquilo que repetidamente ouviu. É gigantesca a disparidade de forças entre a verdade e a mentira incansavelmente proferida!

Vamos à verdade. Quem tentou controlar a operação Lava Jato foi o governo. Quem manifestamente odeia o juiz Sérgio Moro são: a presidente Dilma, o ex-presidente Lula, seu partido, seu governo e seus seguidores. Eram os parlamentares do governo que assediavam José Eduardo Cardozo enquanto foi ministro da Justiça para que contivesse as ações da Polícia Federal. Foi por pressão partidária, especialmente de Lula, que ele deixou o ministério onde seu sucessor, o ministro Aragão, já no dia da posse, começou a ameaçar a Polícia Federal. Ou não? Num país onde os absurdos se sucedem abundantes, em cascata e por dispersão, as pessoas esquecem essas coisas e abre-se o campo para quem mantenha relação descomprometida e inamistosa com a verdade.

Ninguém pode deter a operação Lava Jato. Ainda que alguns parlamentares investigados por ela tenham se mudado do governo para a oposição, a operação funciona numa esfera que não pode ser alcançada por cordéis acessíveis aos comandos políticos. O governo, que descobriu ser inútil sonhar com isso, também sabe que pode se valer da ideia para propagar uma falsidade que lhe convém.

[http://www.puggina.org/artigo/puggina/compromisso-com-a-mentira/7849; os grifos são meus]

Na verdade, como sugere Puggina, os mentirosos compulsivos, de tanto mentir, acabam acreditando nas próprias mentiras, acabam por considera-las verdades – mais que isso, verdades evidentes, que apenas a maldade (“o direitismo”, “o reacionarismo”, etc.) dos que as negam os levam a negar.

Vou terminar no mesmo tema, mas noutro tom…

Rudolf Bultmann, um dos maiores teólogos protestantes do século 20, crítico do chamado Historicismo, afirmou, em um dos seus livros, contrariando de certo modo São Paulo (que disse que, “se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” – I Cor 15:14), que, mesmo que a ressurreição não tivesse sido um fato histórico (historisch), e mesmo que Jesus não houvesse realmente vivido, o que importa é o kerygma (a mensagem, a pregação) da igreja, que é baseada na crença na ressurreição, a narrativa da ressurreição – ou seja, a História Narrada (geschichtlich), não a História Acontecida. Se se perguntar a ele como é que surgiu a crença na ressurreição, se ela não foi decorrente do fato da ressurreição (como descreve a “narrativa oficial” da Igreja, contida no Novo Testamento), ele provavelmente dirá que não está interessado nessa questão – que é, novamente, historisch, relacionada aos fatos, não à narrativa. Pode ter sido deliberadamente inventada pelos discípulos, ou alguém mais a inventou e iludiu os discípulos, que ingenuamente acreditaram nele. O importante, para ele, Bultmann, é a História Narrada – não a História (de fato) Acontecida.

Seria Bultmann um petista, estivesse ele vivo e vivesse ele no Brasil de hoje?

Em Salto, 1 de Maio de 2016.

P.S.

Quatorze dias depois de  eu escrever o post acima, encontrei um artigo do Senador Cristovam Buarque, em O Globo de 14/5/2016, que aborda o mesmo tema discutindo a diferença entre “Teses e Narrativas”.

Teses, afirma ele, são itens de programas que se pretende defender — é algo que se pretende construir.

Narrativas são mentiras e invenções acerca de algo que ocorreu que se pretende ver adotadas como se fossem verdade histórica. Não é história ocorrida: é a história narrada que não leva em conta a história ocorrida, mas atende aos interesses do grupo que constroi a narrativa.

O artigo de Cristovam Buarque está disponível em http://oglobo.globo.com/opiniao/teses-narrativas-19304817. Eis o seu texto completo.

Teses e narrativas

O Partido dos Trabalhadores adotou, durante anos, a prática democrática de debater teses apresentadas por seus grupos organizados, chamados de “tendências”. Ao chegar ao poder, esta prática foi reduzida pela centralização criada para fazer o governo funcionar. As “tendências” foram perdendo força e suas teses, aos poucos, abandonadas.

Nos últimos meses, o partido passou a adotar “narrativas”, criadas conforme a interpretação de alguns dirigentes ou seus marqueteiros, para serem transformadas em lendas acreditadas sem contestações, o contrário do debate de teses. À exceção de alguns poucos líderes, a exemplo de Tarso Genro, que se mantêm fiéis a teses.

Foi propalada a lenda de que os programas de transferência de renda foram inventados e criados, em 2004, pelo governo Lula. A narrativa ignora o programa Bolsa Escola, criado pelo governo do PT no Distrito Federal, em 1995, espalhado para diversas cidades, inclusive São Paulo, no governo da Marta Suplicy, e depois adotado pelo governo Fernando Henrique, em 2001. O programa foi ampliado com o nome de Bolsa Família, mas, ao relegar o aspecto educacional, transformou-se em instrumento de assistência social.

Em 2009, foi criada a narrativa de que o pré-sal era um produto do governo Lula e que suas receitas salvariam o Brasil, especialmente educação e saúde. Anos depois, estes setores não viram os resultados prometidos, e a Petrobras luta para sobreviver após a rapinagem do petrolão.

Vendeu-se a narrativa de que o Brasil havia superado o quadro de pobreza e que 35 milhões ingressaram na classe média, como a família que recebesse em 2012 renda per capita mensal entre R$ 291 e R$ 1.091. Este baixo valor e a elevada e persistente inflação desmoralizaram a narrativa.

Apresentaram a lenda de que as generosas desonerações fiscais seriam capazes de transformar a crise mundial em uma marolinha brasileira. Graças às cotas, positivas, mas localizadas e restritas a raras pessoas, houve a narrativa de que os filhos de todos os pobres tinham vagas nas universidades, mesmo sem a melhoria da educação básica, porque raríssimos pobres terminam o ensino médio com qualidade.

Agora, passa-se a narrativa de que o impeachment é golpe, mesmo se for comprovado crime de responsabilidade previsto na Constituição. Individualmente, cada um pode ter razões para duvidar se as gravidades dos fatos apresentados na petição do impeachment justificam a destituição de uma presidente eleita por mais de 53 milhões de votos. Mas não há razão para acreditar na narrativa de golpe, se o procedimento estiver seguindo as normas, leis e ritos constitucionais, conforme seguiu no caso do ex-presidente Fernando Collor.

Esta narrativa é, porém, um direito do partido na estratégia eleitoral para 2018. É lamentável, porém, que o partido das “teses” tenha se transformado no partido das “narrativas”.

Cristovam Buarque é senador (PPS-DF)

20 Séculos de Cristianismo em 3 Dias

Na semana que vem, nos dias 14 a 16 (Julho, 2015), das 19h30 às 21h, ministrarei um curso de quatro horas e meia sobre o tema acima. Há quem considere impossível falar sobre 20 séculos de Cristianismo em menos de cinco horas. Mas esse é o desafio que me propus.

JUSTIFICATIVA DO TEMA

Indivíduos e instituições têm identidade.

Nossa identidade, como indivíduos, está intimamente ligada a nossas memórias — às coisas que somos capazes de lembrar acerca de nós próprios. E nossas memórias estão intimamente ligadas à nossa história. Embora seja possível inventar memórias, ou seja, criar memórias fictícias, e até mesmo acreditar que elas são verdadeiras, a maior parte de nossas memórias decorre de nossa história, ou seja, daquilo que de fato aconteceu conosco, ou que nós próprios fizemos acontecer, ao longo de nossa vida.

O mesmo se dá com instituições — como, por exemplo, o Cristianismo. O Cristianismo é uma instituição extremamente complexa. Tem pelo menos três grandes ramos: o Ortodoxo, predominantemente Oriental, o Católico, predominantemente Ocidental, e o Protestante, hoje, basicamente Global (não é à toa que as igrejas neo-evangélicas criadas no Brasil usam e abusam de adjetivos que indicam isso: Universal, Mundial, Internacional, etc.).

Talvez o Cristianismo, tout court, tenha uma identidade básica que o diferencie de outras religiões: Judaísmo, Islamismo, etc. Possivelmente essa identidade básica tenha que ver de alguma forma com a pessoa de Jesus Cristo — afinal, a religião cristã dele deriva seu nome. Mas há muita divergência acerca do que, na pessoa de Jesus Cristo, seria responsável pela identidade cristã. Para os cristãos ortodoxos (num outro sentido, não envolvendo necessariamente os Ortodoxos Orientais), Jesus Cristo era Deus — a segunda pessoa da Trindade. Mas muitos grupos no Cristianismo antigo — definidos como heréticos — rejeitavam essa tese (embora reconhecendo que Jesus foi um ser superior). Mais recentemente surgiu o movimento Unitarista, que rejeita a divindade de Cristo. A maior parte dos cristãos chamados liberais também rejeita, afirmando que Cristo era o maior dos profetas ou dos mestres.

Mas além da identidade básico do Cristianismo, cada um dos ramos do Cristianismo tem uma identidade básica. No caso dos Católicos, ela aparentemente está ligada ao reconhecimento da Sé Romana e do Papa como sua liderança real.

No caso do Protestantismo, talvez ele também tenha uma identidade básica e várias identidades específicas, que diferenciariam as diversas denominações ou igrejas que se consideram protestantes ou evangélicas.

A gente estuda a História da Igreja para poder encontrar uma resposta a questões como “Os Mórmons são Cristãos? São Protestantes? E os Testemunhas de Jeová? E os Adventistas do Sétimo Dia? E a Ciência Cristã? E o Espiritismo?”.

Mas a gente estuda a História da Igreja principalmente para entender por que a gente é Cristão, Protestante, Presbiteriano, e Independente e não alguma outra coisa. Para entender isso, a gente precisa saber o que caracteriza a especificidade de cada um desses “centros de identidade”.

Um corolário desse estudo é que a gente é capaz de dar uma resposta plausível acerca de quem é irmão, quem é primo, quem é cunhado, e quem nem parente é, em termos de afiliação religiosa…

PROGRAMA DO CURSO

Temos apenas cerca de dez horas, distribuídas em três dias, para discutir 20 Séculos de Cristianismo. Se fizéssemos uma média, teríamos mais ou menos meia hora por século. . . É evidente, portanto, que não faz sentido passar em alta velocidade pelos vinte séculos. Faz bem mais sentido dar uma ideia geral da periodização da História da Igreja e concentrar em grandes marcos.

Isso será feito no início do primeiro dia — é rápido. Dedicaremos o restante do primeiro dia para cobrir os grandes marcos dos primeiros quinze séculos do Cristianismo — a Antiguidade Clássica e a Idade Média.

No segundo dia discutiremos os grandes marcos da Idade Moderna e da Era Contemporânea, cobrindo da Reforma Protestante de 1517 até os dias de hoje — com foco global.

O terceiro e último dia será usado para discutir o Cristianismo no Brasil. O Cristianismo Católico chegou aqui muito cedo, através dos colonizadores portugueses e especialmente, a partir da criação da Companhia de Jesus, dos Jesuítas que vieram com eles. Houve, antes do século 19, tentativas reformadas de trazer o Protestantismo para o Brasil através dos Huguenotes Franceses e dos Reformados Holandeses. Mas eles foram expulsos pelos Portugueses Católicos. Foi só no século 19, quando o Brasil deixa de ser Colônia e se torna Império, que imigrantes ingleses e alemães trouxeram o Anglicanismo (Episcopalismo) e o Luteranismo para o Brasil, e, depois, missionários, especialmente americanos, nos trouxeram o Presbiterianismo, o Congregacionalismo, o Metodismo, o “Batistismo”, e, um pouco mais tarde, o Pentecostalismo. Altamente minoritários, os Protestantes eram uma pequena minoria até a segunda metade do século 20, quando através do Neopentecostalismo, teve um crescimento espantoso, que hoje nos permite indagar se o Brasil ainda será, quem sabe ainda no século 21, um país predominantemente protestante.

Em resumo, o Plano de Curso é o seguinte:

Dia 1:
O Cristianismo até a Reforma: 1500 Anos de uma Igreja Mais ou Menos Unida

Dia 2:
Da Reforma aos nossos Dias: Um Novo Conjunto de Atores em Cena

Dia 3:
O Cristianismo no Brasil: Corremos o Risco de nos tornar um País Protestante?

Você está convidado a participar dessa experiência e é instado a torna-la um sucesso, trazendo sua dúvidas e inquietações — na forma de perguntas.

O curso será ministrado nos dias 14, 15 e 16 de julho deste ano (terça, quarta e quinta), das 19h30 às 21h, na Faculdade de Teologia de São Paulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (FATIPI), à rua Genebra, 180, na Bela Vista, em São Paulo.

Detalhes sobre como se inscrever podem ser encontrados no site da FATIPI:

http://fatipi.edu.br/semana-faculdade-aberta-2015/

Eduardo Chaves

Em São Paulo, 6 de Julho de 2015.

Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo

Conteúdo

  1. Considerações Iniciais
  2. O Problema
  3. Um Interlúdio Histórico e Autobiográfico
  4. A Culpa foi de Rudolf Karl Bultmann
  5. A Construção de um Novo Eu
  6. O Princípio e o Fim da Teologia Liberal
  7. O Legado da Teologia Liberal
  8. Considerações Finais

1. Considerações Iniciais

Como já informei num post no Facebook, finalmente, nesta viagem que acabo de fazer aos Estados Unidos (fim de Junho, começo de Julho de 2015), consegui completar minha cópia da coleção de 90 livretos escritos por vários autores e publicados de 1910 a 1915 sob o título de The Fundamentals (Os Fundamentos — mais corretamente, Os Princípios Fundamentais).

A coleção é considerada até hoje a (evidentemente segunda) Bíblia do Fundamentalismo Religioso Americano. A primeira é, naturalmente, a própria.

A coleção, hoje esgotada, e encontrada, portanto, apenas em sebos, foi preservada para a posteridade, em forma razoavelmente acessível, em uma edição em quatro volumes, preparada, em 1917, a pedido do Bible Institute of Los Angeles (hoje Biola University – BIOLA é uma sigla formada pelas iniciais do nome antigo), depois de revisada pelos dois principais editores da série original: R. A. Torrey e A. C. Dixson. Aparentemente, nem todos os livretos originais foram incluídos na edição em quatro volumes, mas apenas os considerados mais importantes pelos editores. A Baker House publicou essa edição em quatro volumes, reimprimindo-a várias vezes. Mesmo assim a coleção está hoje esgotada.

A iniciativa de solicitar a eminentes autores fundamentalistas (ou, em alguns casos, apenas conservadores) que escrevessem livretos sobre diferentes aspectos da doutrina cristã da ótica fundamentalista partiu de dois empresários conservadores americanos, que financiaram a iniciativa e contrataram os editores que a gerenciariam. Os empresários eram irmãos: Lyman e Milton Stewart, magnatas californianos da indústria petrolífera.

Levei quase dois anos coletando esses livros — e acabei ficando com alguns volumes duplicados. Tenho, por exemplo, duas cópias do volume três e do volume quatro dessa edição em quatro volumes.

Quase no fim de minha busca encontrei uma nova edição dos livretos, agora em um volume só. Para celebrar seu jubileu em 1958, o Bible Institute de Los Angeles (BIOLA) lançou uma nova edição dos livretos, que incluía 64 dos 90 livretos incluídos na edição em quatro volumes (que já não incluía todos os livretos). A escolha e revisão do volume, que teve o título de The Fundamentals for Today (Os Fundamentos para Hoje), ficou a cargo de Charles L. Feinberg. No mesmo ano, essa coleção menor em um volume foi também publicada pela Kregel Publications que acrescentou Introduções Biográficas preparadas por Warren W. Wiersbe e manteve o título original (The Fundamentals), mas acrescentou um subtítulo: The Famous Sourcebook of Foundational Biblical Truths (O Famoso Livro-Fonte de Verdades Bíblicas Fundacionais).

Assim, estou bem munido para terminar meu livro sobre a Controvérsia Fundamentalista – Modernista na Igreja Presbiteriana Americana, que, como já informei alhures, está virando uma Breve História do Presbiterianismo Americano, contada da perspectiva do conflito (aparentemente perene) entre seus Fundamentalistas (conservadores radicais) e seus Modernistas (liberais).

Como sempre acontece quando escrevo sobre questões históricas, meu texto tem um cunho bastante biográfico. Dentro da história maior, é o entendimento e a explicação de minha própria história que eu busco.

2. O Problema

Faz 15 anos (em 1990) eu escrevi um artigo, em Inglês, para apresentar na Second Assembly of the World’s Religions, em Los Angeles, patrocinada pela New Ecumenical Research Association (New ERA), no final daquele ano. O título do artigo foi “How Far Can a Doctrine Change Before Becoming Something Else?” (“Até que Ponto uma Doutrina Pode Mudar Sem se Tornar uma Alguma Outra Coisa?”). A transcrição do artigo original pode ser encontrado em meu blog Liberal Space no endereço: https://liberal.space/2014/05/26/how-far-can-a-doctrine-change-before-becoming-something-else/. Embora tenha sido escrito em 1990 e disponibilizado no blog apenas em 26/5/2014, o foco do artigo foi um tema que sempre me preocupou desde por volta de 1965, quando percebi que estava deixando de ser um cristão presbiteriano ortodoxo (conservador fundamentalista) para me tornar, digamos, um cristão liberal (frequentemente chamado de modernista), meio calvinista, meio luterano, meio adepto da chamada Reforma Radical, meio católico, meio ateu — não mais “apenasmente” presbiteriano.

Discuti essa minha passagem da ortodoxia para o liberalismo, que foi extremamente importante em meu processo de “desconversão”, em dois artigos e em um vídeo que também disponibilizei recentemente no meu blog.

Um dos artigos se chama exatamente “Processo de Desconversão”, e foi transcrito em meu blog no mesmo dia do artigo anterior — ou seja, em 26/5/2014. Trata-se, porém, na verdade, de transcrição comentada de pedaço de uma carta que escrevi por volta de 1990 — um pouco depois do artigo de 1990, pois faço referencia a ele. Esse novo artigo está disponível em https://liberal.space/2014/05/26/processo-de-desconversao/.

O outro artigo foi escrito no dia anterior à transcrição dos dois artigos que acabo de mencionar (25/5/2014). Ele não havia sido publicado ou mesmo escrito antes e tem o título de “Duas Crises Hermenêuticas”, podendo ser consultado em https://liberal.space/2014/05/25/duas-crises-hermeneuticas/.

Nesse artigo (“Duas Crises”) está contido um vídeo, que pode ser encontrado também em meu canal no YouTube https://www.youtube.com/watch?v=I30kYgh3A1o, com o título “Eduardo Chaves: Da Hermenêutica Bíblica ao Liberalismo”. Esse vídeo é um depoimento meu prestado ao meu sobrinho Vitor Chaves de Souza, também teólogo, por insistência dele, sobre a evolução (ou involução, como meu pai certamente acharia) de minha visão teológica.

Os três artigos e o vídeo apontam para o que sempre me pareceu um dilema ou quase uma aporia que persegue a História do Pensamento Cristão desde o seu início: como atualizar o objeto de nossa fé, face a novos contextos históricos, sociais, econômicos, políticos e principalmente culturais, e os novos desafios que eles apresentam à fé, preservando, ao mesmo tempo, de um lado, a “relevância” dessa fé e, de outro lado, a sua “identidade” e “continuidade”?

É relativamente fácil “atualizar” o objeto da nossa fé, fazendo sua “acomodação” a novos contextos, se não estamos muito preocupados com a questão da preservação de sua identidade e continuidade.

Por sua vez, uma preocupação excessiva com a identidade e continuidade da fé pode levar ao seu “afastamento” e até mesmo “isolamento” do contexto em que essa fé deve ser proclamada.

As alternativas do dilema ou da aporia são: uma atualização ou acomodação que torna relevante uma fé que não parece ser mais distintamente cristã, ou uma recusa a essa atualização e acomodação que preserva a identidade e continuidade de uma fé que, entretanto, parece ter perdido sua relevância no novo contexto.

Foi isso, em essência, e usando aqui novos conceitos, que discuti no meu artigo de 1990: “Até que Ponto uma Doutrina Pode Mudar Sem se Tornar uma Alguma Outra Coisa?”. John Gresham Machen (1881-1937), chamado de o fundamentalista mais brilhante que o presbiterianismo já teve, defendeu, em seu famoso livro Christianity and Liberalism (Cristianismo e Liberalismo), de 1923, a tese de que a Teologia Liberal do século 19 (e início do século 20) era até um esforço intelectual interessante — mas não era mais Cristianismo: havia se tornado uma nova religião. Ou seja, no esforço de buscar relevância para o “homem moderno”, atualizou-se e acomodou-se tanto que se tornou uma “outra coisa”. Acho essa uma posição interessante.

3. Um Interlúdio Histórico e Autobiográfico

Cresci na Igreja Presbiteriana do Brasil, filho de um pastor extremamente conservador — hoje eu o caracterizaria como fundamentalista. Cresci nesse ambiente e foi nesse ambiente que resolvi estudar teologia com o intuito de ser pastor, como meu pai. Fui para o Seminário Presbiteriano de Campinas em Fevereiro de 1964 e lá cheguei, depois de três anos no Instituto José Manuel da Conceição, bastante conservador do ponto de vista teológico, moral e político. Hoje percebo que nunca fui fundamentalista porque me faltavam quatro características que me parecem (hoje) ser essenciais no fundamentalista:

Certeza absoluta de suas convicções: o fundamentalista não tem a menor dúvida de que está de posse da verdade, de toda a verdade, e de nada mais senão a verdade;

Intolerância de convicções discordantes: se o fundamentalista está de posse da verdade, e alguém discorda dele, essa pessoa só pode estar errada — e ele não entende por que deva deixar o erro prosperar;

Beligerância, ou disposição de combater opiniões discordantes, até que os que as mantêm se convençam de que estão errados e se disponham a abandonar suas opiniões;

Dogmatismo, ou fechamento de mente, ou ainda indisposição para buscar a verdade através da leitura, da reflexão e do debate acerca de suas próprias opiniões, e, assim, aprender, pois ele acredita já estar de posse de toda a verdade, não contaminada por nenhum erro: não precisa, pois, aprender mais nada.

Eu certamente tinha minhas convicções quando cheguei ao Seminário. Minhas convicções eram conservadoras, mas eu não era fundamentalista, porque logo descobri que minhas convicções não eram inabaláveis, nem muito firmes. Eu tinha dúvidas, não certeza absoluta, acerca da veracidade daquilo em que acreditava. Por isso, tinha muito interesse em estudar, refletir, debater aquilo em que acreditava — e, assim, aprender mais.

Logo no primeiro ano de Seminário li um livrinho fundamental de John Stuart Mill (1806-1873): On Liberty (Da Liberdade). Ali ele faz notar, com toda razão, que silenciar a expressão de uma opinião é roubar a raça humana, tanto a geração presente como a posterior, sendo ainda mais prejudicados os que discordam do que os que mantêm a opinião, pois, se a opinião é correta, aqueles que dela discordam estão perdendo a oportunidade de trocar o erro pela verdade, e, se é errada, os dela discordantes perdem o grande benefício de adquirir uma percepção mais clara e mais viva da verdade, proveniente de sua colisão com o erro. Essas observações de Mill me marcaram, porque me pareceram totalmente convincentes. Ninguém consegue endossar essas palavras e ser um fundamentalista. (Num dos artigos que desencadeou a crise de 1966 no Seminário Presbiteriano de Campinas, eu fiz referencia a essa passagem de Mill).

Para aprender, é preciso ouvir e ler acerca de ideias diferentes das da gente — e estar disposto a refletir seriamente sobre elas e a discuti-las. A atitude adequada, nesse caso, é de debate de nossas próprias ideias — não de combate às ideias diferentes das nossas: estas precisam fazer parte do debate!

Mas essa combinação de atitudes (dúvida, tolerância, busca da verdade, abertura para debate, desejo de aprender) pode vir a ser fatal para as convicções originais — e o foi, no meu caso. Ela representou o fim do meu eu conservador e me mostrou que a Igreja Presbiteriana do Brasil, com o seu conservadorismo (na realidade, um fundamentalismo disfarçado, que tenta se esconder atrás de um verniz acadêmico intelectualizado), não era lugar para mim. Na verdade, a igreja percebeu isso antes de mim. Tentou me manter, proibindo-me de estudar por um tempo, na ilusão de que eu era “recuperável”. Mas eu não tinha mais jeito.

4. A Culpa foi de Rudolf Karl Bultmann…

O principal agente desencadeador de minha gradual perda de fé — não reconhecida como tal inicialmente: eu achava que estava apenas deixando de ser conservador — foi Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), teólogo alemão de confissão luterana, professor de Novo Testamento na Universidade de Marburg. Não vou apresentar em detalhe suas ideias aqui: elas são bem conhecidas. Só vou dizer que ele considerava mítica a visão de mundo do Cristianismo primitivo. Para os cristãos primitivos o mundo era o cenário de uma batalha entre seres e poderes sobrenaturais, bons e maus. O confronto entre os espíritos bons e os maus era constante. O mundo, cenário desse confronto, era plano, mas dividido em três níveis: o do meio, em que vivemos e em que esse conflito se dava; o de cima, local habitado por Deus e os espíritos do bem que são seus instrumentos e mensageiros; e o de baixo, local habitado por Satanás, o inimigo de Deus, e os espíritos do mal, seus agentes, que se aliam a ele. O que acontece aqui, no nosso nível, é em grande medida determinado pelas ações desses poderes sobrenaturais. São eles que nos tornam doentes (a doença em boa parte sendo considerada possessão demoníaca), são eles que nos curam (libertando-nos dos espíritos maus que nos afligem), são eles que nos amaldiçoam e que nos abençoam, fazendo com que, no primeiro caso, as coisas não deem certo para nós, e, no segundo caso, que nossa vida dê certo. Nosso fracasso e nosso sucesso não dependem de nós — dependem do desfecho desse embate entre os espíritos do mal e os espíritos do bem.

Toda essa maneira de entender o mundo, dizia Bultmann, é mitológica. Interpretado literalmente, esse conjunto de mitos é totalmente inaceitável ao homem moderno — para quem o que acontece aos seres humanos aqui na terra é decorrência de suas ações e de ocorrências que se passam no mundo natural, onde as causas são sempre ações humanas ou outras ocorrências naturais. A interpretação literal do conjunto de mitos contido no Novo Testamento deve ser abandonada. O Novo Testamento só será relevante para o homem moderno e contemporâneo se for interpretado não literalmente: se conseguirmos encontrar nele um novo “sensus plenior” (sentido mais profundo, mais pleno).

Diante de mitos do tipo dos que encontramos no Novo Testamento, temos basicamente duas alternativas, segundo Bultmann:

  • ou rejeitamos o mito, considerando-o uma forma de discurso ultrapassada, e nos tornamos agnósticos ou ateus, abandonando a nossa identidade cristã;
  • ou interpretamos o mito como linguagem cifrada que, corretamente decodificada e interpretada, pode ter um significado importante para as nossas vidas.

Bultmann optou pela segunda alternativa. Sua Teologia do Novo Testamento é uma tentativa de desenvolver uma hermenêutica existencial que seja capaz de extrair, dos textos míticos do primeiro século (o Novo Testamento), algum sentido importante para o homem do século 20. Todo o universo conceitual da filosofia existencial de Martin Heidegger, colega de Bultmann em Marburg, é colocado a serviço desse projeto hermenêutico: a existência fora da fé, ou segundo a carne, é uma existência inautêntica; a existência na fé, ou segundo o espírito, é a existência autêntica; a fé é, de certo modo, a decisão (um “salto no escuro” existencial, do tipo kierkegaardiano) de uma forma de existência para outra. E assim caminha a nossa vida.

Fiquei fascinado com a teologia de Bultmann e virei um bultmanniano. Traduzi seu artigo do Alemão para o Português (com a ajuda das traduções para o Inglês, do Francês e do Espanhol, que eu dominava melhor do que o Alemão). Quem revisou a tradução foi o Rev. Osmundo Affonso Miranda, professor de Novo Testamento em Campinas e meu mentor nos dois primeiros anos de seminário. Ele queria me convencer a fazer do Novo Testamento minha área de especialização. O Osmundo saiu do Seminário em meados de 1966, indo para os Estados Unidos. Fiquei sem mentor. Os eventos que se desenrolaram no primeiro semestre desse ano de 1966 (e que estão relatados em outros posts de meu blog) refletiram um pouco a ausência de apoio e aconselhamento de uma pessoa amiga, mas mais velha e experiente, que eu passei a ter a partir da saída do Osmundo do Seminário. Eu 1966 eu tinha 22 anos. Herdei dele vários livros que ele não quis levar para os Estados Unidos.

Um breve parêntese. Acabou de ser publicado nos Estados Unidos um livro extremamente detalhado e bem escrito sobre o pensamento de Bultmann, que chega a quase mil páginas: The Mission of Demythologizing: Rudolf Bultmann’s Dialectical Theology, de David W. Congdon (Fortress Press, lançado em 1 de Junho de 2015). Recomendo a leitura. Fim deste parêntese.

5. A Construção de um Novo Eu

Procurei, inicialmente, me dedicar à área do Novo Testamento, como Bultmann (e como o Osmundo havia me sugerido). Em 1967, depois de ter sido expulso em 1966 do Seminário Presbiteriano de Campinas, vim a estudar na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, no Morro do Espelho (Spiegelberg), em São Leopoldo, fiz um trabalho exegético para o Professor Gerhard Barth (*) acerca de uma passagem de Romanos que era central para Bultmann: Romanos 8:12-17. O título do trabalho (enorme, como sempre) foi: “Bultmann e a Exegese de kata sarkis [segundo a carne] e kata pneuma [segundo o espírito] em Romanos 8:12-17”.

Enfim… Parecia que meu destino estava traçado quando fui para Pittsburgh, fazer meu Mestrado no Pittsburgh Theological Seminary, em Agosto de 1967. Seria um teólogo (ou scholar) do Novo Testamento. Fiz até um esforço nesse sentido. No meu primeiro ano, escrevi uma exegese (também longa) para meu professor de Exegese do Novo Testamento, William F. Orr, sobre a narrativa da ressurreição de Jesus no Evangelho de Marcos (Marcos 16:1-8). Essa narrativa era tida por muitos como a descrição mais antiga no Novo Testamento dos acontecimentos que compõem a história da ressurreição. O título do meu trabalho foi: “The Gospel Resurrection Narratives: An Exegesis of Mark 16:1-8” (As Narrativas da Ressurreição nos Evangelhos: Uma Exegese de Marcos 16:1-8). Ousadamente, discordei da tese de que a narrativa (pericope) marcana da ressurreição fosse a mais antiga e mesmo mais confiável do Novo Testamento. Atribuí essas características à narrativa do Evangelho de João. Na realidade, o trecho que vai do versículo 9 até o fim do capítulo 16 de Marcos é hoje considerado uma interpolação posterior que não fazia parte dos manuscritos mais antigos do Novo Testamento. Ele é omitido na maior parte das edições e traduções críticas da Bíblia. Esse fato não empresta credibilidade aos oito versículos anteriores — pelo contrário.

No entanto, a partir do momento em que comecei a estudar História do Pensamento Cristão (História da Doutrina), com Ford Lewis Battles (1915-1979), o grande tradutor para o Inglês das Institutas da Religião Cristã, de João Calvino, na edição Library of Christian Classics, mestre que cobria o período antigo até a Reforma, e com Dietrich Ritschl (1929-), sobrinho neto do velho teólogo liberal alemão Albrecht Ritschl, que cobria o período moderno e contemporâneo, fiquei fascinado pela História das Ideias e pela Filosofia da Religião. A primeira disciplina investiga como é que a igreja veio a acreditar naquilo que hoje acredita, em especial diante dos desafios do pensamento não-cristão e do pensamento cristão desviante (heresia). A segunda disciplina investiga os fundamentos da fé cristã do ponto de vista epistêmico no contexto atual: que razões e evidências há, hoje, para continuar a acreditar na fé cristã, diante dos desafios da modernidade e da contemporaneidade? Em Pittsburgh meu interesse teológico se consolidou nessas duas áreas. Essa combinação não raro é letal para a preservação e manutenção de uma fé cristã ortodoxa, e o foi no meu caso.

Faço aqui um novo parêntese para dar uma ideia do que era (e ainda é) o Pittsburgh Theological Seminary. Ele resulta de várias fusões e consolidações de seminários presbiterianos anteriormente existentes, oriundos dos vários ramos em que a denominação se desdobrou, ao longo dos anos, à medida que os presbiterianos se dividiam e, posteriormente, se uniam de novo em sua conturbada história de cismas e reunificações. Sua última “encarnação”, na qual estudei, surgiu quando, em 1959, o Pittsburgh-Xenia Theological Seminary (pertencente à Igreja Presbiteriana na América do Norte), e o Western Theological Seminary (da Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América), ambos localizados em Pittsburgh, PA, se consolidaram, formando o seminário em sua atual “personalidade”, em decorrência da fusão das duas igrejas. Pittsburgh-Xenia tinha suas raízes no primeiro seminário teológico presbiteriano organizado em terra americana, em 1794 — dezesseis anos, e, portanto, antes do mais bem conhecido (e bem mais conservador) Princeton Theological Seminary. O seminário de Pittsburgh tem, hoje, portanto, mais de 220 anos a serviço do presbiterianismo. Quando lá estudei, de 1967 a 1970, esse número era quase 50 anos menor. Neste ano de 2015 foi comemorado o aniversário de 45 anos da formatura de minha turma de Mestrado — e 48 anos do meu ingresso no seminário.

Vários teólogos e professores famosos trabalharam lá. Além de Orr, Battles e Ritschl, já mencionados, Markus Barth (1915-1994), professor de Teologia do Novo Testamento, filho de Karl Barth (1886-1968, que doou ao seminário a escrivaninha em que seu pai trabalhou por longos anos), Hans Eberhard von Waldow (?-?), professor de Teologia do Velho Testamento, alemão que passou algum tempo no Brasil, na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), e John Henry Gerstner (1914-1996), professor de História da Igreja, um dos mais famosos defensores do conservadorismo presbiteriano na segunda metade do século 20, que acabou por deixar a Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América para ingressar na conservadora e ortodoxa Igreja Presbiteriana na América, criada em 1936 por John Gresham Machen (1881-1937), chamado de o fundamentalista mais erudito que o mundo já conheceu. Antes da consolidação mencionada de 1959, trabalharam no Western Theological Seminary dois professores que vieram a fazer parte dos luminares da chamada “Teologia de Princeton”: Archibald Alexander Hodge (1823-1886, filho do mais famoso teólogo americano, Charles Hodge, 1797-1878, de Princeton Theological Seminary), que, depois de vários anos em Pittsburgh, foi chamado para suceder o pai naquele seminário, e Benjamin Breckinridge Warfield (1851-1921), que, também foi chamado para Princeton, depois de vários anos em Pittsburgh. Hodge, o filho, e Warfield são autores da chamada “Teoria da Inspiração Plenária” da Bíblia, ainda muito respeitada por fundamentalistas e conservadores até hoje. Vide o longo artigo deles na revista Presbyterian Review, Abril 1881, pp. 225-260, em http://www.bible-researcher.com/warfield4.html. Fim do novo parêntese.

6. O Princípio e o Fim da Teologia Liberal

Neste capítulo vou sucintamente resumir a contribuição de Schleiermacher, Troeltsch, e Harnack — três dos mais importantes teólogos liberais.

A. Schleiermacher

A Teologia Liberal é filha das críticas feitas pelo Iluminismo à religião e à teologia tradicional. Friedrich Schleiermacher (1768-1834) é considerado o pai da teologia moderna e o fundador da Teologia Liberal. Karl Barth (um dos grandes críticos da Teologia Liberal) disse dele o seguinte:

“O primeiro lugar na história da teologia da época mais recente pertence, e sempre pertencerá, a Schleiermacher. Ele não tem rival. . . . Schleiermacher não criou escola, não deixou discípulos: ele fundou toda uma era, e todos nós somos alunos dele.” (From Rousseau to Ritschl, p. 306).

Como fundador da Teologia Liberal, Schleiermacher lhe deu o tom com o qual influenciou o restante da teologia do século 19.

Antes de discutir esse tom, é bom esclarecer que Schleiermacher foi o primeiro teólogo na história do Cristianismo:

  • A perceber quão radical e profundo foi o desafio das críticas do Iluminismo à teologia cristã;
  • A concluir que era impossível continuar fazendo teologia da mesma forma que antes;
  • A extrair de uma parte da tradição cristã (o Pietismo) os elementos para a construção de um outro edifício teológico: a Teologia Liberal;
  • A construir uma teologia que se alicerça, não na razão, ou na revelação, ou na tradição, como tais, mas no sentimento, usando a razão, a revelação e a tradição para esclarecer os sentimentos que produzem a experiência religiosa.

O tom que Schleiermacher deu à Teologia Liberal é, no meu entender, o seguinte: ele promoveu uma revolução copernicana na teologia no início do século 19 ao defender a tese de que a teologia — inclusive a bíblica — tem que ver com o homem, e não com Deus. Para ele, a teologia se caracteriza, não como uma discussão da revelação de Deus ao homem, mas como uma discussão dos esforços do homem para alcançar a Deus, vale dizer, para transcender seu sentimento de dependência, suas limitações, sua finitude.

Da mesma forma que Copérnico percebeu que os diversos problemas da astronomia não seriam resolvidos se a Terra fosse considerada o centro do sistema planetário, e ali colocou o Sol, Schleiermacher percebeu que os diversos problemas que o Iluminismo colocou para a teologia não seriam resolvidos se Deus fosse considerado o foco da reflexão teológica, e ali colocou o Homem, seus sentimentos, sua experiência de dependência, sua frustração com sua limitação, sua impotência diante de sua finitude.

A partir de Schleiermacher, e durante toda a duração da Teologia Liberal, que só terminou (se é que terminou… — para mim, Bultmann é um liberal) nas primeiras décadas do século 20, em grande parte em decorrência da crítica barthiana, a teologia passa a ser a discussão dos esforços humanos — quase sempre frustrados (o que não quer dizer que sejam inúteis) — de buscar o infinito.

É através do estudo do homem, de sua vida, de sua experiência, de seus sentimentos, que se pode chegar a alguma compreensão, mas ainda assim muito limitada, do que se entende por Deus — o Infinito.

A principal característica do homem, e que se revela de forma cabal em sua experiência, é sua finitude, evidenciada no fato de que sua vida tem fim, tem um limite que não depende dele próprio. A experiência humana de finitude implica, pois, também a experiência de dependência. Buscar a Deus é buscar o Infinito que está além de nossa finitude, o Ilimitado que nos impõe limites, é reconhecer o nosso caráter dependente.

Para cristãos, em especial os mais tradicionais, Schleiermacher capitulou ao Iluminismo, quando se recusou a considerar a Bíblia como revelação divina e regra de fé e prática, e relegou as confissões e as doutrinas a papel secundário.

Para os iluministas, Schleiermacher capitulou ao Romanticismo, abandonando o racionalismo da ciência e da filosofia e sucumbindo ao sentimento, à emoção, ao belo, à arte.

De certo modo Schleiermacher deixou aberta para Ludwig Feuerbach a possibilidade de dizer, de forma chistosa, que a teologia tradicional afirmava que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, enquanto a teologia moderna, por seu lado, afirmava que o homem criou Deus, ainda que como contraste, à sua imagem e semelhança…

A religião, como entendida por Schleiermacher, é elemento constitutivo e irredutível da natureza humana, que, como tal, não pode ser reduzido, de um lado, à razão ou ao intelecto, ou de outro lado, à ação moral.

Ao colocar o proprium da teologia no sentimento, Schleiermacher achou que não só respondia às críticas do Iluminismo e do Kantianismo, mas, também, que havia tornado a religião imune às críticas da razão e da moralidade.

E o infinito e ilimitado que faz com que nós, os seres humanos, nos reconheçamos tanto finitos como limitados não é uma criação humana: ele também é dado, da mesma forma que nossa experiência de finitude, limitação e dependência

Assim, Deus não é uma projeção humana, mas uma realidade, que, porém, não nos é dado conhecer a não ser como enigma, como reflexo, como contraste e negação de nossa finitude, limitação e dependência. Deus é uma realidade que escolheu se esconder de nós (Deus absconditus).

B. Troeltsch

Um dos últimos grandes representantes da Teologia Liberal — na realidade, o penúltimo — foi Ernst Troelstch (1865-1923).

No tocante ao seu entendimento da religião, em si, e de Deus, Troeltsch basicamente repete os pontos de vista de Schleiermacher

A essência da religião está no homem, não em Deus: entender a religião é entender o anseio e a busca pelo infinito por parte do ser humano e o sentimento de finitude, limitação e dependência que essa experiência produz, que é o sentimento religioso por excelência. Conhece-se Deus ao conhecer os limites do homem — inclusive os seus limites cognitivos.

Quando Troeltsch fala em revelação divina ele não se refere a um movimento de Deus em busca do homem, de cima para baixo, como se fosse, mas, sim, a um movimento, de baixo para cima, por assim dizer, do homem em busca de Deus, e ao que essa busca nos revela sobre a natureza do homem e, negativamente, e de forma obscura, sobre a natureza de Deus.

A revelação que acontece é, portanto, da natureza do homem em sua busca pelo infinito — buscar por aquilo que se contrasta com ele e contrapõe a ele.

Cada religião revela um aspecto dessa busca. Troeltsch não estava interessado apenas no Cristianismo: interessava-se por todas as religiões e sua evolução — vale dizer, sua história. É considerado um dos fundadores da chamada Religionsgeschtliche Schule (Escola [Teológica] Voltada para Estudar [e Comparar] a História das Religiões).

Troeltsch assim colocou a ênfase na história, na relação do Cristianismo com a sociedade e o estado, e no desenvolvimento dessa relação. Dá mais importância ao pensamento ético-social-político-econômico do Cristianismo do que ao pensamento dogmático, à teologia sistemática

Por isso Troeltsch se propõe a estudar a religião cristã dentro do quadro do estudo comparativo das religiões, tanto históricas como atuais, em sua rica diversidade.

Em decorrência desse estudo, Troeltsch viu o Cristianismo como um movimento religioso que, como tal, deve ser analisado:

  • No contexto social, político, econômico e religioso no qual surgiu e se desenvolveu;
  • No contexto de suas relações movimentos não-religiosos com os quais veio a interagir;
  • No contexto do estudo as Religiões Comparadas

Por isso, Troeltsch se interessou (como já observado) muito mais pela História da Igreja e pela História do Pensamento Cristão (em especial na área ética / social / político / econômica) do que pela Teologia Sistemática e a História do Dogma.

Em outras palavras, seu interesse pela História da Igreja está muito mais voltado para o que se dá “do Cristianismo para fora” do que “dentro do Cristianismo em si”.

Se chamarmos de “mundo” tudo aquilo que, em um determinado momento, não é “Cristianismo”, podemos dizer que o que interessa a Troeltsch é mais a relação entre o Cristianismo e o mundo do que o desenvolvimento interno da Igreja Cristã e suas estruturas próprias, seus sacramentos, seus rituais, sua liturgia, seus credos e confissões, seus dogmas, suas doutrinas. Ou seja: interessa-lhe seu pensamento e sua prática no âmbito ético / social / político / econômico.

Interessa-lhe em especial descobrir um modelo de interação do Cristianismo com o mundo, que ele definiu como uma tensão dialética entre as seguintes atitudes, em relação ao mundo:

  • Indiferença: convivência relativamente pacífica, um aqui, o outro lá
  • Rejeição: recusa de convivência, crítica, combate
  • Envolvimento: interação, interpenetração, transformação mútua

No terceiro estágio desse modelo há, fatalmente, interpenetração e, consequentemente, adaptação e mudança da herança recebida, pela necessidade de lidar com novas realidades (“acomodação”).

Quase sempre, na história do Cristianismo, essas três atitudes conviveram uma com as outras no seio da Igreja, mas não sem tensões e conflitos. A partir do Século 6, no Ocidente, com a queda do Império Romano Ocidental, a terceira atitude veio a prevalecer, sem que, entretanto, as outras duas atitudes deixassem de existir e até mesmo criticar severamente a acomodação.

A Reforma Protestante produz uma luta entre duas visões distintas da acomodação. Para Troeltsch o verdadeiro início da Era Moderna não se dá com o Renascimento e a Reforma, mas sim, com o Iluminismo.

Dados os seus interesses e seu referencial teórico, Troeltsch conclui que na Reforma não houve uma mudança de atitude, alterando-se só detalhes da vida interna da igreja, com pequenos ajustes na atitude adotada pela igreja para com o mundo, que, porém, continuou a ser de acomodação, i.e., de interação, interpenetração, e transformação.

Em compensação, no Iluminismo houve uma clara revolução que totalmente inverteu o equilíbrio de poder entre o Cristianismo e o mundo.

O mundo, de dominado, e condenado a viver num universo em que todas as dimensões, até mesmo a política e a econômica, tinham uma natureza de certo modo sagrada, virou totalmente a mesa e conseguiu dominar o Cristianismo, condenando-o a viver num universo secularizado ou mundano.

A questão que Troeltsch coloca é como pode o Cristianismo sobreviver, depois de tantos séculos em que foi a verdade absoluta, em um ambiente em que não há absolutos nem verdades, mas só instituições em evolução através do tempo?

Entre as verdades que sucumbiram no século 18 está a de que o Cristianismo é único, diferente das demais religiões e instituições, porque tem origem sobrenatural e é mantido graças à providência de seu Criador: todas as religiões reivindicam a mesma coisa.

Consequentemente, o desafio do Cristianismo nos séculos posteriores ao Iluminismo é manter-se e encontrar seu espaço em um ambiente em que ele não é senão uma dentre várias religiões em posição de relativa igualdade, e, num clima de secularização total.

O desafio é tanto mais difícil quanto até mesmo para os cristãos “o mundo” passou a ter maior importância do que “a igreja”.

A posição fundamentalista, intransigente, está fadada a fracassar na prática. A se insistir nela, só se pode terminar em desastre. A história do Cristianismo é altamente instrutiva a esse respeito. Ela é, olhada de longe, como um compromisso e uma acomodação constante entre as demandas utópicas do Reino de Deus e as permanentes condições da vida real no mundo.

C. Harnack

Adolf von Harnack (1851-1930) foi o último grande teólogo liberal.

Embora tenha vivido até 1930, Harnack atuou, até 1900, mais como historiador e teólogo, e, a partir de 1900, como homem de ação — gestor — que se dedicou mais a importantes atividades culturais, políticas e administrativas, tais como:

  • Reitor da Universidade de Berlin
  • Diretor da Biblioteca Nacional Alemã
  • Presidente da Academia Alemã de Ciências
  • Principal Consultor do Kaiser para assuntos culturais

Como historiador, a principal obra de Harnack é História do Dogma, 3 volumes no original Alemão e 7 volumes na tradução Inglesa, em que tem 2.407 páginas, indo até Lutero (Harnack era Luterano). Ele escreveu essa obra de 1894 a 1898.

Como teólogo, sua principal obra é A Essência do Cristianismo (que recebeu o título, em Inglês, de What is Christianity? (O Que é o Cristianismo?), escrita nos anos 1899-1900.

Como historiador, Harnack é uma unanimidade: é considerado simplesmente o maior historiador que a Igreja já teve. Como teólogo, foi muito controvertido e muito criticado.

Eis o que diz Wilhelm Pauck em seu livro Harnack and Troeltsch: Two Historical Theologians (p. 8):

“A História do Dogma terá um lugar permanente entre as obras primas da literatura teológica. Ainda que ela venha a ser ultrapassada em partes específicas, será sempre considerada, em seu todo, o trabalho mais criativo de interpretação histórica jamais feito da igreja e de sua evolução teológico-dogmática, concebido com grandeza e executado com habilidade inigualável, tanto no que diz respeito ao conteúdo como à forma.”

Embora Harnack seja unanimemente considerado o maior historiador que a Igreja já teve, sua tese principal, em relação à História do Dogma e da Igreja, também é controvertida e muito criticada. Seu livro teológico mais importante é um resumo e uma sistematização dessa sua tese.

a. O Historiador

Sua tese histórica é que o foco da mensagem de Jesus ao longo de seu ministério é a chegada do Reino de Deus, enquanto o foco da mensagem dos apóstolos, depois da morte de Jesus, é o significado da pessoa de Jesus, em especial de sua morte e ressurreição, e não mais a mensagem que Jesus pregou enquanto vivo. Isso quer dizer que a religião de Jesus (“Jesusismo”) é uma variante não legalista e não ritualista da religião judaica, enquanto o Cristianismo é uma invenção dos apóstolos.

O Evangelho de João e as Cartas de Paulo são o principal instrumento dessa transformação: o conteúdo do quarto Evangelho é teológico, não histórico, e Paulo, que não conheceu Jesus, teve papel importante nessa mudança. Sob sua tutela, e sob a influência do pensamento helenístico, o Cristianismo foi se tornando, a partir do século 2, uma religião doutrinária e dogmática, que se afasta da religião de Jesus e a nega.

As principais doutrinas definidas nos Concílios de Niceia e de Calcedônia, que serviram de base para o desenvolvimento da ortodoxia cristã, não tinham base alguma na pregação de Jesus, como, por exemplo:

  • A Divindade de Cristo, ou seja, a tese de que Jesus de Nazaré, sem deixar de ser plenamente homem, também é plenamente Deus, e, portanto, eterno, tendo sido gerado (não criado) por Deus Pai antes da criação do mundo, convivendo, assim, em uma só pessoa, as duas naturezas, a humana e a divina;
  • A Trindade, doutrina que se tornou necessária em decorrência da tese da Divindade de Cristo;
  • A Trindade é a tese de que uma única natureza divina é compartilhada por três pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito, sendo Deus, portanto, trino, sem que isso implique em triteísmo (três Deuses) e signifique, consequentemente, negação do monoteísmo (um só Deus) herdado dos Judeus
  • A tese da Divindade do Espírito parece ter sido uma conclusão meio de última hora: o Espírito foi também considerado divino e eterno, tendo “emanado” de Deus antes da criação do mundo.

A Igreja Ocidental acrescentou a cláusula, que não consta das decisões de Calcedônia, e que nunca foi aceita pela Igreja Oriental, de que o Espírito Santo emanou do Pai e do Filho: esta a famosa cláusula filioque, que teve papel muito importante na teologia Medieval e no cisma do Ocidente com o Oriente.

Várias outras doutrinas, como:

  • Igreja (vários ofícios, estrutura hierárquica, centralização das decisões no Papado, a afirmação de que fora da Igreja não há salvação, etc.);
  • Sacramentos (Batismo, Eucaristia, Confirmação, Penitência, Unção de Enfermos, Ordenação para o Sacerdócio e Matrimônio);
  • Outras (Purgatório, Oração pelos Mortos, intercessão de Maria e dos Santos, etc.);

criaram dogmas que nada têm que ver com a mensagem pura e simples do Jesus histórico.

Segundo Harnack, que era luterano, nem mesmo Lutero e os principais Reformadores, que tentaram saltar sobre a Idade Média e voltar para o Cristianismo Primitivo, estavam dispostos a recuperar a religião de Jesus, retomando apenas temas complexos da teologia paulina, como, por exemplo, justificação pela graça, fé como dádiva divina, predestinação, expiação de pecados pela morte de Cristo na Cruz, a ressurreição de Cristo, sua ascensão e sua Segunda Vinda

Ao aplicar à Bíblia o método histórico-crítico, que ele herdou de teólogos liberais anteriores, Harnack a considera como livro puramente humano, vindo, portanto, a rejeitar a historicidade de qualquer relato que tenha qualquer conotação sobrenatural:

  • O nascimento virginal de Jesus;
  • Os milagres atribuídos a Jesus e aos apóstolos;
  • A ressurreição e a ascensão de Jesus; etc.

Harnack também rejeitou a tese tradicional de que o fato de Jesus ter sido batizado e ter participado de uma ceia pascal represente a instituição dos sacramentos.

Harnack encontra alguns elementos que considera históricos, que lhe permitem definir a mensagem (não os detalhes da vida) de Jesus, apenas nos três Evangelhos Sinóticos (os três primeiros: Mateus, Marcos e Lucas). Isso não quer dizer, porém, que considere histórica toda a narrativa dos Sinóticos. Considera como interpolação teológica posterior a maior parte das referências ao cumprimento de profecias (“Isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito…”), as referências que sugerem que Jesus pudesse se considerar divino, etc.

Por não encontrar nos Evangelhos, mesmo nos Sinóticos, material suficiente para sequer esboçar uma história da vida de Jesus, Harnack não se insere na chamada “Busca do Jesus Histórico”, tão magistralmente historiada por Albert Schweitzer em The Quest of the Historical Jesus (1906). É por isso que Schweitzer mal lhe dá atenção em seu livro clássico acerca da tentativa de vários autores do século 18 e 19 de reconstruir o que veio a se chamar “a história do Jesus Histórico”

Tendo se convencido, através de seu trabalho sobre a história da Igreja no período apostólico, que a mensagem de Jesus é totalmente diferente da mensagem e da teologia da igreja que veio a ser criada pelos apóstolos, e que Jesus não teve a menor intenção de criar, nem sequer antecipou, uma nova religião, o desafio de Harnack, como historiador, é explicar como um Jesus não divino e morto pôde se tornar a figura central de uma instituição eclesiástica complexa, hierarquizada, autoritária, com práticas e doutrinas que nada deviam a Jesus.

Harnack desejava enfrentar esse desafio, que, para ele, implicava total rejeição da estrutura institucional, prática e doutrinária (dogmática) da igreja cristã criada pelos apóstolos, sem, no entanto, perder, nesse processo, o que ele via como a “essência” do Cristianismo, a saber, a mensagem de Jesus.

Por isso, logo depois de terminar a História do Dogma, elaborou um curso, publicado, sobre A Essência do Cristianismo. Harnack não usa o termo “Jesusismo”: ele usa o termo “Cristianismo” para a religião de Jesus, e reserva o termo “Catolicismo” para se referir à religião que foi criada pelos apóstolos e por seus sucessores.

A Reforma Protestante, no entender dele, deveria, ao rejeitar o Catolicismo, ter optado claramente pelo Cristianismo de Jesus, isto é, pela religião de Jesus.

Harnack achava que estava fazendo, no limiar do século 20, aquilo que a Reforma Protestante do século 16 deveria ter feito e não fez: rejeitar todo o arcabouço institucional, prático, litúrgico, e, especialmente, doutrinário da Igreja (Católica E Protestante) e voltar à pura e simples mensagem de Jesus, que contém o essencial do Evangelho.

Por isso ele se considerava cristão e protestante, e acreditava que estava prestando um serviço de valor inestimável para a Igreja — serviço esse que a igreja a que pertencia rejeitou.

Harnack e Troeltsch são, ambos, defensores do método histórico para analisar o desenvolvimento do Cristianismo.

Mas Troeltsch vê de forma positiva a acomodação da mensagem cristã ao meio cultural em que ela era apresentada, a penetração, na doutrina e na teologia da igreja, de elementos oriundos de um contexto que, até ali, era estranho ao Cristianismo — mas que passava a se integrar a ele.

Harnack, no entanto, não vê essa acomodação como positiva — muito pelo contrário. Apesar da natureza reduzida das fontes históricas, e de sua contaminação por elementos teológicos, Harnack acredita ser possível chegar ao “núcleo central” da mensagem de Jesus, removendo as “cascas” que lhe foram sendo acrescentadas.

O que ele encontra é, admitidamente, pouco — mas, em sua qualidade, ele considera esse núcleo sublime — quiçá divino, num sentido metafórico.

b. O Teólogo

Segundo Harnack, o núcleo da mensagem de Jesus é o seguinte:

  • “O Reino de Deus e sua vinda”
  • “Deus como Pai e o valor infinito da alma humana”
  • “O amor, uma justiça mais elevada”

Quanto ao Reino de Deus e sua vinda, Harnack ressalta que havia, na época de Jesus, duas visões do Reino de Deus: uma, escatológica, a outra, imanente. Não se distinguia muito claramente, então, entre uma e outra. Entre os ditos atribuídos ao Jesus há elementos das duas. A visão escatológica prevalecia entre seus contemporâneos, mas a visão que Jesus privilegiava era a imanente. Para Jesus, o Reino de Deus não é uma noção que se refere ao futuro: o Reino de Deus, em um sentido importante, já está presente. As parábolas de Jesus são mais importantes aqui do que os outros ditos acerca do Reino de Deus que são atribuídos a ele “O Reino de Deus vem quando o indivíduo o aceita e deixa que ele entre em sua alma, passando a controla-la. O Reino de Deus é de Deus, mas ele é um reino em que Deus governa o coração do indivíduo. Entrar no Reino de Deus é estabelecer uma relação especial com Deus, através de Jesus, vale dizer, pela aceitação de sua mensagem. Essa relação com Deus é ativa, dinâmica, “gerundial”, algo que está sempre acontecendo — não algo que se dá através da aceitação de doutrinas e dogmas e passa a ser estático e imutável. Embora ela envolva um conduta diferente, ela não se limita a um sistema de ética.

Quanto à teoria de Deus como Pai e o valor infinito da alma humana, Harnack vê nela não só parte da essência do Cristianismo, mas a essência mesma da religião: ver Deus como Pai, como quem cuida, apoia e ajuda, e não como Juiz, como quem vigia, julga e condena — e ver a alma humana como algo de valor infinito e inestimável: é nela que Deus habita e é através dela que ele nos transforma. “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”

Quanto à teoria de que o amor é uma justiça mais elevada, Harnack concorda com Agostinho: “Ama e faze o que quiseres”. O amor não é um conjunto de regras, mas o foco em uma disposição e uma intenção pura. O amor deve ser a única raiz e a única motivação de nossas ações. É por isso que Jesus pode colocar o amor a Deus e o amor ao próximo lado a lado.

A religião é a alma da moralidade, e esta o corpo da religião. Dessa forma Jesus redefine a esfera do ético de uma forma que ninguém antes dele havia feito. Comparada com a forma em que o Judaísmo definia o ético, a visão de Jesus é um progresso que só pode ser descrito como incomparável — incomensurável.

Harnack discute ainda nesse livro a questão da relação entre o Evangelho e o mundo. Para ele, o asceticismo, a renúncia do mundo, não tem nenhum lugar no Cristianismo de Jesus. Pelo contrário: Jesus foi acusado de conviver com comilões e com beberrões e de ser tolerante com prostitutas e adúlteras.

Também não tem lugar no Evangelho de Jesus o confronto com o mundo, a visão do mundo como um lugar de conflito e combate. O mundo, para Jesus, é lugar de amor e serviço ao próximo.

Essa afirmação o leva a discutir a questão da relação entre o Evangelho e o pobre. “Ama o teu próximo como a ti mesmo”. Essa a essência do ensino de Jesus em relação à pobreza. Não se trata de casuísmos e regrinhas, mas de uma atitude básica. “As pessoas não devem falar de amor ao próximo se permitem que pessoas do seu lado passem fome, vivam em miséria” (Harnack, referindo-se ao núcleo do chamado “Evangelho Social”, que ele defendeu). “O objetivo do Evangelho hoje é transformar um socialismo que se nutre de conflito entre classes em um socialismo que se alicerça na consciência de uma unidade espiritual da humanidade” (Harnack, idem).

O Evangelho de Jesus não nos oferece orientação sobre como mudar a estrutura política e econômica da sociedade: ele se posiciona acima de questões mundanas relativas ao desenvolvimento. O Evangelho está preocupado, não com mudanças estruturais na sociedade, mas com a alma do ser humano, com o estabelecimento de uma unidade espiritual no seio da humanidade.

Ao chegar ao final do livro, Harnack discute a questão da relação entre o Evangelho, a cultura e a civilização. O Evangelho de Jesus não visa o desenvolvimento cultural e o progresso da civilização. Ele visa a criação de uma rede de serviço ao próximo.

Quanto ao papel do dogma e da doutrina no Cristianismo, Harnack não deixa dúvida: o Evangelho de Jesus não é um sistema de doutrina. Fazer a vontade de Deus amando e servindo o nosso próximo é mais importante do que estar a declamar e endossar credos e confissões.

Harnack conclui seu livro, num tom de aparente contradição, falando sobre o Evangelho, o tempo e a história. Surpreendentemente para um historiador, Harnack vê o Evangelho de Jesus como transcendendo o tempo e a história. Isso acontece, segundo ele, porque a mensagem de Jesus se dirige ao homem, que, em todo lugar e em todo tempo, é sempre o mesmo.

7. O Legado da Teologia Liberal

Dado o caráter da Teologia Liberal, especialmente como revelado em Schleiermacher, Troeltsch e Harnack, não é difícil entender a ameaça que ela colocava ao Cristianismo Ortodoxo.

  • Para o Liberalismo, o Cristianismo não é uma religião única e totalmente diferente de outras: na verdade, ele é uma religião histórica, como todas as outras;
  • A evolução histórica do Cristianismo se deu em contato com o seu ambiente, contato através do qual ele deu e recebeu, influenciou e foi influenciado, numa dialética de acomodação;
  • Na visão liberal, o Cristianismo, como religião, não se baseia numa revelação de Deus para o homem, mas, sim, na busca do homem pelo infinito;
  • Segundo o liberal, conhecer a Deus é, na realidade, conhecer os sentimentos que levam o homem a tentar transcender sua limitação, sua dependência, sua finitude;
  • O núcleo essencial do Cristianismo está localizado na mensagem ética de Jesus que afirma que o amor a Deus se expressa no amor ao próximo;
  • A ética cristã não consiste de uma série de princípios ascéticos que determinam o afastamento do mundo, mas, sim, numa disposição e intenção pura voltada para implantar a unidade espiritual entre os homens e para criar uma rede básica de serviço ao próximo;
  • No Evangelho simples de Jesus (em contraposição à ortodoxia complexa do Catolicismo) dogmas e doutrinas não têm lugar, sendo substituídos pelo amor a Deus que se expressa no serviço ao próximo.

8. Considerações Finais

Espero que tenha ficado claro, ao longo deste artigo, que o Cristianismo, sendo uma religião que se alicerça num livro que os cristãos acreditam conter a revelação divina de regras de fé e prática, tem a obrigação de interpretar o que esse livro espera que eles creiam e como ele espera que se conduzam.

Há razoável consenso de que o processo de interpretação requer normas que, em seu conjunto, constituem a disciplina chamada Hermenêutica.

Em se tratando de textos, a Hermenêutica em geral distingue o gênero dos textos. Narrativas, em regra, devem ser interpretadas literalmente — a menos que contenham elementos maravilhosos ou miraculosos que, no contexto em que se dá a interpretação, sejam considerados indignos de crença. Neste caso, frequentemente se opta por uma interpretação não literal que tenta encontrar, no texto, sentidos mais profundos, quiçá espirituais ou éticos — aquilo que os medievais chamavam de sensus plenior — sentido mais pleno.

O problema, quando se deixa de lado o sentido literal do texto, é que as interpretações que buscam o sentido mais profundo frequentemente divergem entre si sem que haja critérios que permitam adjudicar qual dessas interpretações é a mais próxima da verdade, a que mais bem revela aquele que pode ser chamado de o sentido natural (ainda que não literal) do texto. Assim, se produzem divergências que levam a conflitos.

Espero que o artigo deixe claro que, dados esses fatos, divergência e conflito são coisas naturais no Cristianismo (não só no Presbiterianismo) — mas que representam constantes ameaças para ele. O seu título, “Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo”, aponta para essa razão. O foco do artigo é que, para se manter relevante aos diversos contextos históricos e geográficos em que penetra, o Cristianismo precisa de alguma forma reinterpretar os seus escritos sagrados para se acomodar aos novos contextos, desincentivando, ou mesmo abandonando, uma leitura literal de suas Escrituras. Essa acomodação, porém, que é a proposta básica dos vários “modernismos” que a cada época aparecem, pode levar, e em vários momentos já levou, à perda da identidade e, portanto, da continuidade do Cristianismo. Por isso os “fundamentalistas” se opõem tão ferozmente a ela. Eles estão lutando pelo que entendem ser a preservação de sua religião como algo verdadeiro e relevante e que tem interesse além de meramente histórico.

Em São Paulo, 4 de Julho de 2015. [Revisado em 24 de Março de 2019.]

(*) Na versão original deste trabalho, eu, por lapso, dei o prenome desse professor como sendo “Markus Barth”. Seu prenome é “Gerhard Barth”, como agora está no texto. Markus Barth, filho do grande Karl Barth, foi meu professor de Novo Testamento no Pittsburgh Theological Seminary. Dois especialistas em Novo Testamento com o mesmo sobrenome famoso me levaram ao erro. Agradeço ao Pastor Werner Dietz, meu ex-colega na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em São Leopoldo, RS, em 1967, ter chamado a minha atenção para a troca de prenomes, através de e-mail de 23 de Março de 2019.

Meu livro avança…

Mudei o título do livro que estou escrevendo, que passa a ser BREVE HISTÓRIA DO PRESBITERIANISMO AMERICANO, VISTO DA ÓTICA DA CONTROVÉRSIA FUNDAMENTALISTA-MODERNISTA. Investi tanto na Pré-História e nos Antecedentes da Controvérsia, que o livro se tornou uma história, ainda que sucinta, do Presbiterianismo Americano.

O esboço está todo pronto e cerca de 80 páginas estão redigidas. Precisarei de, no mínimo, outro tanto.

O livro se baseia num trabalho que redigi em 1967-1968, quando fazia o Mestrado nos Estados Unidos, sobre a Controvérsia Fundamentalista-Modernista na Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos.

Eu estava encafifado, naquela época, pela seguinte questão: Por que os Fundamentalistas ganharam a briga na Igreja Presbiteriana do Brasil e a perderam fragrorosamente dentro da Igreja-Mãe, a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos?

A questão que me preocupava pode ter uma redação um pouco diferente. Por que eu, um presbiteriano de nascença, filho de pastor presbiteriano, fui, aqui, escurraçado, em 1966, do Seminário Presbiteriano de Campinas, pertencente à Igreja Presbiteriana do Brasil, e, lá, em 1967, fui acolhido pelo Seminário Teológico de Pittsburgh, da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos. Aqui eu recebi ordem para, em uma semana, retirar todos os meus pertences do meu quarto no Dormitório do Seminário. Lá recebi bolsa completa por três anos, apartamento mobiliado, ajuda para livros, etc. e, por fim, bolsa para fazer o Doutorado. E lá era totalmente desconhecido, não tinha parentes na igreja, não tinha conhecidos na administração da igreja…

Por que os modernistas ganharam nos EUA e perderam aqui, na IPB? Por que lá o Fundamentalismo virtualmente deixou de existir dentro das principais igrejas presbiterianas, refugiando-se em minúsculas denominações, e, aqui, o Fundamentalismo ainda dá as cartas.

Sei que muitos pastores da Igreja Presbiteriana do Brasil não se consideram fundamentalistas, entre eles meu amigo e irmão Guilhermino Cunha​… Estou disposto a admitir que nem todos os sejam. Mas a diferença com a Igreja Presbiteriana americana é enorme — e com a Igreja Presbiteriana Independente, aqui do Brasil, da qual sou membro hoje, também.

Os Presbiterianos Americanos começaram o século passado divididos em quatro denominações relativamente grande: os Presbiterianos do Norte, os Presbiterianos do Sul, os Presbiterianos Cumberland, e os Presbiterianos Unidos. Ao final do século, essas quatro grandes denominações eram uma só, haviam se reunificado, e constituído uma igreja de cerca de 2 milhões de membros, que tinha uma confissão nova, que havia passado a considerar a Confissão de Westminster como apenas uma referência histórica, que ordenava mulheres, que estava engajada em trabalho ecumênico com outras igrejas cristãs, etc. Lá não se recua diante da discussão da aceitação de casamentos gays e mesmo da ordenação de pastores de orientação homossexual.

Aqui no Brasil, a Igreja Presbiteriana do Brasil começou o século 20 como uma igreja, em 1903 passou a ser duas, em 1986, três, sem contar as divisões menos significativas do ponto de vista numérico. Planos não há sequer para discutir uma reaproximação — quanto mais para discutir as outras coisas que a sua congênere americana já discutiu e aprovou.

No meu livro procuro encontrar respostas para essas e outras questões.

Em Salto, 4 de Junho de 2015.

Ortodoxia e Heresia – 3

I. A Construção da Ortodoxia

1. O Sentido Etimológico dos Termos “Heresia” e “Ortodoxia”

O termo “heresia” nos vem do Grego, através do Latim.

Em Grego, o termo αἵρεσις (hairesis, em transliteração para o nosso alfabeto) significava, originalmente, escolha, ou coisa escolhida, ou até mesmo grupo dos que fizeram uma escolha. Assim, podia significar uma aceitação de alguma ideia, crença, doutrina ou teoria, ou até mesmo, uma seita: o grupo daqueles que aceitavam um conjunto determinado de ideias, crenças, doutrinas, teorias.

No Novo Testamento o termo foi aplicado aos Fariseus, aos Saduceus, e mesmo aos Cristãos, entendidos, todos eles, como seitas do Judaísmo.

Em Latim o termo haeresis veio a significar forma de pensar, escola filosófica — inicialmente sem se indicar se a forma de pensar ou escola filosófica era considerada correta ou desviante.

Com o tempo, já na era cristã, o termo veio a ser usado para se referir a crenças e doutrinas que se desviavam da opinião (δόξα, termo grego que, transliterado, dá doxa) geralmente aceita, ou, com o tempo, do ensinamento, instrução, ou doutrina (διδαχń, em Grego, transliterado como didaché, ou, ainda, doctrina, em Latim) tido como certo, correto, verdadeiro, oficial (oρθός, transliterado como orthós): a “ortodoxia”.

2. Das Heresias à Ortodoxia

Mencionei de passagem, na seção anterior, que o movimento que veio a se tornar o Cristianismo, durante boa parte do primeiro século da era que veio a ser conhecida como cristã, foi visto, inicialmente, e de forma correta, como uma seita judaica — na verdade, uma heresia do Judaísmo. Diferentemente dos Fariseus e dos Saduceus, que no primeiro século já eram seitas (ou formas de pensar) judaicas bem aceitas e assimiladas, os seguidores de Jesus de Nazaré não foram bem aceitos na Palestina, durante boa parte do primeiro século.

A história nos mostra, e uma leitura atenta do livro de Atos dos Apóstolos comprova, que, logo depois da morte de Jesus, seus seguidores eram quase que exclusivamente judeus. Mas havia basicamente dois tipos de judeus naquela época:

  • Os judeus que moravam na Palestina (em especial na Judeia e na Galileia), que falavam judaico ou aramaico, e eram cumpridores fieis e zelosos das leis e dos regulamentos judaicos;
  • Os judeus que moravam fora da Palestina (na Diáspora), que falavam grego, e que, embora ainda seguidores da religião judaica, adotavam uma religião à qual se haviam misturado elementos do pensamento helênico, e cujos costumes, pela sua convivência diária com gentios, não eram mais tão rigorosos.

É de esperar que houvesse certa animosidade entre uns e outros, animosidade essa que aumentava nas ocasiões em que os judeus helênicos visitavam o Tempo de Jerusalém.

Os cristãos que habitavam a Palestina se viam, inicialmente, como judeus, não como membros de uma outra religião. Como os demais, iam ao Templo, observavam as normas alimentícias, circuncidavam-se (no caso dos homens, naturalmente), etc.

Mas os seguidores de Jesus logo se esparramaram por cidades fora da Palestina, que eram helênicas, nas quais os judeus existentes eram judeus helênicos. Em Antioquia, diz o livro de Atos, os seguidores de Jesus foram pela primeira vez chamados cristãos. Nessas cidades, muitos judeus helênicos e muitos gentios (os chamados de “pessoas tementes a Deus”) aceitaram as ideias que os seguidores de Jesus lhes apresentavam e se converteram, sendo batizados.

Por admitirem, entre seus adeptos, judeus helênicos (da Diáspora) e até mesmo gentios, os seguidores de Jesus que viviam em cidades fora da Palestina sofreram discriminação por parte daqueles que viviam na Palestina, que exigiam que eles seguissem as normas alimentícias e outras, e, no caso dos homens, fossem circuncidados.

Por volta do ano 50 AD, em Jerusalém, um encontro entre Paulo, Pedro e Tiago (o irmão de Jesus), supostamente acertou essa questão (vide Atos 15 e Gálatas 2). Mas mesmo depois desse “acerto” ainda houve conflitos entre os seguidores de Jesus da Palestina e os das cidades helênicas.

Mesmo em Jerusalém, seguidores de Jesus que eram suspeitos de não aceitar totalmente a Torah foram perseguidos, e, no caso de Estêvão, assassinados (vide Atos   ).

Os primeiros cinco séculos da história cristã, até, basicamente, o ano de 476, que marca, para muitos, o fim da Antiguidade e o início da Idade Média, foram um período que viram a transformação daquilo que era, inicialmente, uma heresia judaica em uma outra religião, a religião cristã, e viram a fixação da ortodoxia dessa religião.

3. Pluralismo e Relativismo de Pontos de Vista — e Tolerância

É evidente que, em contextos pluralistas e relativistas, isto é, em que vários pontos de vista divergentes são tolerados em relação a uma mesma coisa (pluralismo), e em que (indo além da mera tolerância) se acredita que um é tão bom, certo, correto, ou verdadeiro quanto os demais (relativismo), não faz sentido falar em heresia — exatamente por inexistir, nesse contexto, a ideia de um único ponto de vista correto ou verdadeiro (ortodoxia) em relação a algum tema. Tudo é tolerado, tudo é admitido.

Em um contexto assim, a única coisa não tolerada é a ortodoxia intolerante — isto é, a postura daqueles que, por estarem convictos de que estão certos e de que estão de posse da verdade, não toleram divergência — passam a resistir ao pluralismo e, com maior razão, ao relativismo.

De certo modo, na época em que nascia o Cristianismo o Império Romano era pluralista, relativista e, por isso, tolerante — mas os judeus, embora fossem tolerados pelos romanos, não tinham postura igualmente tolerante, porque se julgavam o povo escolhido, os únicos a quem o Deus único e verdadeiro havia se revelado. Como diz Rubem Alves, “a linguagem religiosa sente vertigens diante de qualquer tipo de pluralismo e relativismo” (Dogmatismo e Tolerância, 26).

A antipatia dos romanos para com o judeus, e, depois, para com os cristãos, têm origem nesse fato.

4. Ferramentas para a Construção da Ortodoxia Cristã

Como vimos no primeiro artigo desta série, muita gente acredita que a maioria dos cristãos nos quatro ou cinco primeiros séculos da era cristã subscrevia àquilo que hoje se considera ortodoxia em sua doutrina, as diversas heresias aparecendo apenas nas periferias, e sendo rapidamente combatidas e rechaçadas pela maioria ortodoxa.

Vimos, também, que provavelmente a coisa não era bem assim, e que o mais certo é supor que por um bom tempo vicejaram várias doutrinas ou escolas de pensamento que, posteriormente, quando fixada a ortodoxia, foram declaradas heréticas, mas que, antes dessa fixação, competiam de forma razoavelmente livre entre si. A ortodoxia, neste ponto de vista, foi uma construção lenta e cuidadosa que exigiu, por parte das lideranças do cristianismo nascente, a criação de várias ferramentas, entre as quais as mais importantes são:

  • A definição, ou o fechamento, do cânon do Novo Testamento.
  • A definição de fórmulas que definiam, de forma telegráfica, as principais doutrinas do cristianismo nascente — as chamadas “regras de fé” (regulae fidei), usadas por ocasião do batismo, e, que, oportunamente se tornaram os credos.
  • A concentração de poder nas mãos do clero, em especial dos bispos, para definir, entre outras coisas, o que é pensamento ortodoxo e o que é pensamento herético.
  • Quando os bispos não se entendiam, convocação de concílios onde as divergências eram debatidas e se tentava chegar a um consenso — dos quais o de Calcedônia, em 451, é considerado o mais importante (embora não tenha sido o último).

É fácil de lembrar: são quatro “c’s”: cânon, credo, clero e concílio.

II. As Principais Controvérsias

É de esperar que as principais controvérsias desses primeiros tempos tenham tido que ver com a natureza da principal figura do Cristianismo: Jesus de Nazaré.

1. Quem é Jesus de Nazaré?

Nem mesmo os livros que vieram a ser definidos como canônicos concordam acerca de quem era, em sua essência mais profunda, Jesus de Nazaré.

De um lado, eles dizem, com todas as letras, que Jesus era um homem, “nascido de mulher”, como diz a Bíblia, que tinha mãe (e pai — ele é chamado de “o filho do carpinteiro”), que sentia fome e frio, que foi tentado, sofreu e finalmente morreu e foi sepultado.

De outro lado, ele parecia ser um homem muito especial. Alguns livros do Novo Testamento dizem que sua concepção no ventre de Maria prescindiu da colaboração de seu marido (noivo), José, e que Jesus, portanto, era filho de uma virgem, que o concebeu por obra do Espírito Santo.

Além disso, ele era extremamente precoce (discutia com os doutores no Templo quando tinha apenas 12 anos), carismático, excelente mestre e pregador, realizador de inúmeros milagres e, em relação a algumas questões, profeta.

Por fim, embora tenha sem dúvida morrido, os livros do Novo Testamento afirmam que ele foi ressuscitado depois de três dias, havendo registro de que apareceu vivo a várias pessoas (embora em circunstâncias às vezes não inequívocas), e, finalmente, ascendeu aos céus onde continua vivo junto de Deus.

Até aí temos que Jesus foi um homem — mas um homem muito especial.

Os nomes que os escritores dos livros que vieram a se tornar parte do Novo Testamento aplicam a ele são diversos: Mestre talvez seja o mais comum. Os nomes que ele próprio aplica a si mesmo (segundo os escritores dos livros do Novo Testamento), Filho do Homem provavelmente sendo o mais comum.

Mas ele é chamado também de Cristo, Logos, Filho de David, Filho de Deus, Cordeiro de Deus, Rei dos Judeus (na cruz)…

Em nenhum lugar no Novo Testamento Jesus é chamado pura e simplesmente de Deus ou mesmo de divino.

Como é, então, que, a partir de toda essa diversidade, Jesus veio a ser considerado, no Credo de Calcedônia, de 451:

“Nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à [sua] divindade, e perfeito quanto à [sua] humanidade; verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo, consubstancial com o Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; em tudo semelhante a nós, excetuando o pecado; [mas] gerado segundo a divindade pelo Pai antes de todos os séculos, e nestes últimos dias, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, nascido da Virgem Maria, mãe de Deus; um e só mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis; a distinção de naturezas de modo algum [sendo] anulada pela união, antes [sendo] preservada a propriedade de cada natureza, concorrendo para formar uma só pessoa e em uma subsistência; não separado nem dividido em duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho, o Unigênito, Verbo de Deus, o Senhor Jesus Cristo, conforme os profetas desde o princípio acerca dele testemunharam, e o mesmo Senhor Jesus nos ensinou, e o Credo dos santos Pais nos transmitiu.”

[Vide http://pt.wikipedia.org/wiki/Credo_calcedoniano]

O processo foi gradativo, e, em sua maior parte, consistiu em negar a veracidade de determinadas afirmações que algumas pessoas e alguns grupos estavam fazendo.

A. Jesus de Nazaré é Mestre, Profeta, Ser Especial, mas é Menos do que Deus

a. Ebionismo (Ebionitismo)

Os Ebionitas, no segundo século, insistiam na necessidade de o Cristianismo observar a Lei e os costumes dos Judeus. Para eles, Jesus era o eleito ou escolhido de Deus, era um profeta verdadeiro (na linha dos profetas do Velho Testamento, mas não era um ser divino. Coerentemente, não aceitavam que ele fosse eterno, ou co-eterno com Deus, nem que tivesse nascido, miraculosamente, de uma virgem. Quem “incarnou” em Jesus foi um arcanjo celestial. Era admissível chama-lo de Messias e Cristo, porque ele cumpriu a Lei. Mas é a Lei que continua importante, não aquele, por mais honorável que seja, que a cumpriu.

[Cp. Leo Donald Davis, The First Seven Ecumenical Councils (325-787): Their History and Theology, 1983, p. 33]

b. Adocionismo

Teodoto de Roma (século II) e Paulo de Samosata (século III) foram dois pensadores que também negaram a plena divindade de Jesus, afirmando que ele era um homem que foi (por ocasião de seu batismo) adotado por Deus. Paulo de Samosata acreditava que o Verbo (Logos) havia se incorporado ao homem Jesus, mas sem torna-lo divino. É possível chama-lo, portanto, de Filho de Deus, segundo Teodoto, mas não se pode esquecer de que a filiação é por adoção, e que Jesus, portanto, não compartilha da substância, natureza, essência de Deus, embora tenha recebido poderes especiais quando de sua adoção. Paulo de Samosata admitia que se chamasse Jesus de Filho de Deus por causa do seu progresso moral, não porque ele fosse divino.

Paulo de Samosata, é bom que se registre, era um bispo em Antioquia (260-268) — embora seu comportamento fosse bizarro para um bispo.

c. Arianismo

Desafio maior do que o dos Ebionitas e dos Adocionistas foi o de Ário (nascido na Líbia, por volta de 256, mas que escreveu e atuou principalmente no século seguinte, isto é, no início do século IV. Ele era um cristão de Alexandria, na verdade um teólogo de primeira, com enorme capacidade de argumentação e que conhecia extremamente bem os escritos cristãos. A data do início da controvérsia ariana é geralmente tida como 318.

Ário era um padre sério, austero, de aparência acética. Aparentemente era alto e bonito, e fazia sucesso com as mulheres. Consta que tinha um séquito de 700 virgens consagradas que o acompanhavam.

Ário tinha Jesus em mui alta conta, admitindo que ele fosse melhor do que os demais homens, e mesmo que fosse, em alguns aspectos diferentes dos demais homens. Ou seja, Ário estava disposto a aceitar a tese de que Jesus era “mais do que humano”.

No entanto, não podia se convencer de que ele chegasse a ser Deus, ou divino, porque cria que Deus só há um. Se viesse a admitir que Jesus era Deus, ou divino, teria de, em seu modo de ver, abandonar sua crença no monoteísmo. Assim, embora pudesse admitir que Jesus fosse “mais do que humano”, insistia em que ele era “menos do que divino”.

Jesus ficava, portanto, para Ário, numa posição intermediária entre “plenamente humano” e “plenamente divino”, não sendo, na verdade, nenhuma das duas coisas, mas compartilhando características de ambas.

Para Ário, Deus é um só, e só esse Deus único é “ingênito” (agenneton, não gerado, e, portanto, autoexistente; só esse Deus não tem princípio (anarchon), nem fim, e, portanto, é eterno; só esse Deus é perfeitamente bom, todo-poderoso, onisciente, criador de tudo o que existe, etc. etc. etc.

Por mais elevado que fosse o status de Jesus, Ário não admitia que ele fosse descrito em termos que se aplicam exclusivamente a Deus. Logo, não se pode dizer que Jesus fosse “ingênito”; mas pode-se dizer que ele era unigênito de Deus — o único gerado por Deus. A tese de Ário a esse respeito é compatível com João 3:16, em que Jesus é chamado de filho “unigênito” de Deus [vide também Rom 8:29 e Col 1:15, em que ele é chamado de “primogênito”), bem como com a linguagem de que Deus é Pai e Jesus, Filho (só que, para Ário, Jesus não é “Deus Filho”). Para Ário, dizer que Jesus foi gerado equivale a dizer que ele foi criado, isto é, faz parte da criação, como todas as outras coisas que existem (fora Deus).

A lógica do pensamento de Ário deveria ter levado a concluir que houve um tempo em que o Filho “não era”, não existia — e que ele só tivesse começado a existir a partir do momento em que Deus o gerou (criou). Contudo, Ário estava disposto a admitir que Jesus tivesse sido gerado (criado) “antes da criação do tempo” — sem que, entretanto, isso o tornasse eterno. . .

De qualquer forma, como gerado, ou como criatura, independentemente de ter sido gerado ou criado antes da criação do tempo, Jesus era claramente menos do que Deus e subordinado a Deus. É por isso que ele diz, em João 14:28, que o Pai é “maior do que eu”. Sendo menor do que Deus, num sentido essencial, Jesus não poderia ter acesso aos desígnios de Deus, razão pela qual não podia entender tudo o que Deus estava fazendo, nem mesmo com ele e através dele, Jesus.

Ário, embora possuidor de uma lógica implacável, e apesar de ser um conhecedor profundo das Escrituras, que ele era capaz de citar de forma espertamente seletiva, omitindo passagens que pudessem ser usadas contra ele, foi considerado herege no Concílio de Nicéia, de 325 (considerado o Primeiro Concílio Ecumênico, de sete que aconteceram). Assim, desde então, o arianismo — que, convenhamos, embora decretado heresia, custou a desaparecer — foi rejeitado, e a ortodoxia se comprometeu a aceitar a tese de que Jesus é divino, totalmente igual a Deus, da mesma “substância”, “natureza”, ou “essência” de Deus, embora reconhecendo que Deus e Jesus sejam duas “pessoas” diferentes.

O arianismo é considerado uma variante, ou uma categoria, de outras doutrinas rejeitadas pela igreja, como, por exemplo, o monarquianismo, doutrina antitrinitária que enfatiza que Deus é um único princípio e uma única pessoa, não mais, e o “subordinacionismo”.

[Cp. Williston Walker, História da Igreja Cristã, pp. 156-173; Vide especialmente Mark A. Noll, Momentos Decisivos da História do Cristianismo, pp. 53-58].

B. A Afirmação da Divindade de Jesus no Concílio de Nicéia (325)

Eis o Credo de Nicéia, que incorpora as decisões do Concílio convocado pelo Imperador Constantino para resolver a questão da natureza de Jesus:

“Cremos em um só Deus, Pai todo poderoso, Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis; E em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus, gerado do Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial do Pai, por quem todas as coisas foram feitas no céu e na terra, o qual por causa de nós homens e por causa de nossa salvação desceu, se encarnou e se fez homem, padeceu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus e virá para julgar os vivos e os mortos; E no Espírito Santo. Mas quantos àqueles que dizem: ‘existiu [um tempo] quando [Jesus Cristo] não era’ e ‘antes que nascesse não era’ e ‘foi feito do nada’, ou àqueles que afirmam que o Filho de Deus é uma hipóstase ou substância diferente, ou foi criado, ou é sujeito à alteração e mudança, a estes a Igreja anatematiza”.

[http://pt.wikipedia.org/wiki/Primeiro_Conc%C3%ADlio_de_Niceia]

Como se vê, o Credo de Nicéia admite que Jesus foi gerado — mas nega que geração seja equivalente a criação e nega que tenha havido um tempo em que ele não estava, ou houvesse sido, gerado. Fica aberta a porta para a afirmação posterior de que sua geração pelo Pai foi eterna — isto é, o Pai, em sua eternidade, sempre esteve a gerar o Filho. A geração do Filho não significa, portanto, que ele fosse menor do que o Pai.

2. A Questão Trinitária

O Concílio de Nicéia afirmou que Jesus é da mesma substância que Deus, que é “consubstancial” de (com) Deus. Isso significa que ele tem a mesma natureza ou essência de Deus. Mas não negou que cada um fosse uma “pessoa” diferente. E afirma, meio en passant, a crença no Espírito Santo — que seria ainda uma outra pessoa. O desafio agora é explicar como essas três pessoas de uma mesma substância (natureza, essência) não são “três deuses”. O desafio, em outras palavras, é afirmar a Trindade e negar o Triteísmo.

Como disse G. L . Prestige,

“Como seria possível, dentro do sistema monoteísta que a Igreja herdou dos Judeus, que é claramente explicitado na Bíblia, e que vinha sendo proposto e defendido pertinazmente contra os pagãos, ainda manter a unidade de Deus e, ao mesmo tempo, insistir na plena divindade de alguém que era uma pessoa distinta de Deus, o Pai”.

[G. L. Prestige, God in Patristic Thought, 1936, apud Leo Donald Davis, The First Seven Ecumenical Councils (325-787): Their History and Theology, 1983, p. 33]

É evidente que o primeiro grande problema doutrinário da Igreja não foi a definição da Doutrina da Trindade, mas, sim, a definição da divindade de Jesus.

A. Patripassianismo

A doutrina (que veio a ser considerada herética) do Patripassianismo era uma doutrina antitrinitária, que paradoxalmente, reconhecia a divindade de Jesus, mas enfatizava a tal ponto a unidade de Deus que negava que o “Pai” e o “Filho” fossem pessoas diferentes, reconhecendo, assim, apenas um Deus. Para os patripassianistas, foi o próprio Pai que encarnou, nascendo da Virgem, e que sofreu e foi morto. Noeto de Smirna afirmou que “Cristo era o próprio Pai, e que foi o próprio Pai que nasceu, sofreu e morreu”. Daí vem o nome da doutrina: pater é pai, passionismo tendo que ver com paixão, sofrimento.

Sabellius, da Líbia, foi outro que defendeu uma doutrina, se não idêntica, muito parecida com o Patripassianismo — embora alguns autores a rotulem de Monarquianismo ou Modalismo: um princípio (ou divindade) só, mas que aparece em diversos “modos” ou “modalidades”. O que caracteriza todas essas heresias é a tentativa de não negar a real divindade de Jesus (como o Ebionismo, o Adocionismo, o Arianismo) e de, ao mesmo tempo, afirmar a unidade (não a triunidade) de Deus: Deus é uma pessoa só que se manifesta de diversos modos, como Pai, como Filho, como Espírito.

B. A Defesa do Trinitarismo

[A SER COMPLETADO]

Em São Paulo, 11 de Março de 2015

Ortodoxia e Heresia – 2

Ortografia é grafia correta. Ortodoxia é opinião correta, ponto de vista correto.

Na História da Igreja Cristã o oposto de um ponto de vista correto é uma heresia. Uma heresia é, portanto, um ponto de vista incorreto. Uma pessoa que adota uma heresia, um ponto de vista incorreto, é um herege.

Na História da Igreja Cristã hereges eram em regra excomungados. Quando alguém que é membro da igreja é excomungado ele deixa de ser membro da igreja e perde os direitos que tinha como membro, como, por exemplo, o direito de comungar, vale dizer, o direito de ter comunhão com os demais membros, participar da Eucaristia ou da Ceia do Senhor, votar em assembleias, etc. A excomunhão é, por assim dizer, e para fins práticos, a revogação do batismo — a retenção da carteirinha de membro do indivíduo na entidade “igreja”.

Para que se conclua que alguém é herege, na igreja, é preciso saber, com bastante clareza e precisão, o que conta como ponto de vista correto — isto é, o que conta como ortodoxia.

Isso nem sempre é fácil.

Os pontos de vista classificáveis como ortodoxia ou heresia são, em regra, pontos de vista acerca de doutrina.

Uma doutrina, na religião, diferentemente de uma teoria, é um conjunto de enunciados acerca de um tema de importância para a religião que é colocado como objeto de fé ou aceitação pelos fiéis daquela religião.

No caso do Cristianismo, os enunciados

(a) “Jesus era filho de Maria”

(b) “Jesus era judeu”

não são exatamente doutrinas — são meras afirmações de fatos. Por outro lado, os enunciados

(c) “Jesus é filho de Deus”

(d) “Jesus é divino”

são afirmações de doutrinas (ou afirmações doutrinárias).

Por quê?

Uma razão é que qualquer um pode aceitar (com base em evidências históricas) a veracidade dos dois primeiros enunciados [(a) e (b)] sem ser, por isso, considerado cristão. Aceitar a veracidade dois enunciados seguintes [(c) e (d)] é, muito provavelmente, equivalente a identificar-se como cristão.

Por isso.

Também parece ser uma afirmação doutrinária dizer que

(e) “Maria, a mãe de Jesus, o concebeu e deu a luz a ele sendo virgem”

(f) “Maria, a mãe de Jesus, continuou a ser virgem mesmo depois de dar a luz a Jesus”.

Essa última doutrina é chamada de a doutrina da “virgindade perpétua de Maria”; a anterior é chamada de a doutrina do “nascimento virginal de Jesus”.

Disse atrás que decidir que um determinado ponto de vista é ortodoxo ou herético muitas vezes não é fácil.

Nossa evidência para aceitar os enunciados (a) e (b) é o fato de que a Bíblia afirma esses enunciados E (esse “e” é importante) não parece haver razão nenhuma para questionar essa afirmação.

O problema é que muita gente está convicta de que a Bíblia também afirma os enunciados (c) e (d) — enquanto, aqui, um bom número de pessoas contesta que esse seja o caso.

Mas antes de discutir enunciados (c) e (d), passemos rapidamente pelos enunciados (e) e (f).

A Bíblia afirma (e) e não afirma (f). Faz alguma diferença?

Bem, alguma diferença faz. A questão é: para quem e quanta.

Evidentemente, para quem já é cristão, faz (alguma) diferença se a Bíblia afirma ou não afirma algo. Para o cristão, o fato de que a Bíblia afirma que Jesus foi concebido em uma virgem e nasceu dela por obra do Espírito Santo de Deus torna esse enunciado merecedor de alguma atenção especial.

Se ele é um cristão, digamos, conservador, provavelmente esse fato é suficiente para justificar sua aceitação do enunciado (e).

Se ele é um cristão, digamos, liberal, o fato de a Bíblia afirmar esse enunciado pode não ser suficiente para que ele aceite o enunciado, embora ele provavelmente precise ter algum cuidado para se justificar, caso o recuse.

Para quem não é cristão, porque é, digamos, cético ou racionalista, o fato de a Bíblia afirmar (e) não quer dizer grande coisa — ou não significa nada. Dado o conteúdo do enunciado, essa pessoa simplesmente rejeita a sua veracidade, pois esse enunciado contraria, ou parece contrariar, sua experiência uniforme de como seres humanos funcionam (no caso, se reproduzem).

No caso do enunciado (f), que não está na Bíblia, muitos cristãos (por exemplo, todos os protestantes) e virtualmente todos os não-cristãos o rejeitam. Apenas os católicos, ou pelo menos alguns deles, o aceitam, por se tratar de uma doutrina consagrada pela tradição, ainda que não tenha respaldo bíblico. E a aceitam apesar de a Bíblia ser clara ao dizer que Jesus tinha vários irmãos — o que significa (provavelmente) que Maria teve outros filhos depois de Jesus. E a Bíblia não registra que a concepção e o nascimento dos irmãos de Jesus também tenham sido virginais.

Discutamos agora os enunciados (c) e (d).

A Bíblia afirma que Jesus era filho de Deus? A resposta a essa pergunta não é muito clara. Em alguns poucos lugares a Bíblia registra que algumas pessoas afirmaram que Jesus era filho de Deus. Em outros lugares, registra que algumas pessoas afirmaram que ele era o Messias que havia de vir, ou “aquele que está por vir” (erxomenos). Mas mesmo que a Bíblia afirmasse, taxativamente, não em um relato mas nas palavras do autor da passagem, que Jesus era filho de Deus, ainda restaria a questão de determinar o que a expressão “filho de Deus” significa — porque em outros lugares todos nós, ou, pelo menos, todos os que creem, são chamados de filhos de Deus.

Em nenhum lugar a Bíblia afirma taxativamente, nas palavras do autor, que Jesus é Deus ou que é divino. Afirma-se, por exemplo, em João 1:1, que, “no princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus”. É possível extrair daí, com uma boa exegese, a interpretação de que Jesus era Deus. Mas a passagem comporta outras interpretações também.

O que dizer?

Por um bom tempo, na História da Igreja, a questão da divindade de Jesus ficou, digamos, em suspenso. Por uma razão muito boa: os cristãos, como os judeus, dos quais descenderam, eram monoteístas. Afirmar que Jesus era Deus os colocava diante do sério problema de explicar como é que alguém que crê em dois deuses pode se considerar monoteísta — e abrir mão do monoteísmo parecia ser equivalente a chancelar o politeísmo dos pagãos.

A solução encontrada, lá pelo século quarto, foi dizer mais ou menos isto: Deus e Jesus possuem uma mesma e única natureza (substância, essência) divina mas são duas pessoas (hypostases) distintas, o Pai e o Filho. Depois o Espírito foi acrescentado, produzindo a doutrina da Trindade: um só Deus (uma só natureza / substância / essência divina compartilhada por três pessoas, o Deus Três-em-Um [Tri(ú)no].

Resolvido (de modo a satisfazer a maioria que importava) o problema da divindade de Jesus (ou o problema trinitário, da Trindade de Deus), surge o problema conhecido como cristológico: se Jesus é de fato Deus (eterno, espiritual, imaterial, incorpóreo, etc.) como pode ter ele nascido de mulher, andado aqui na Terra, sofrido, morrido e (segundo se crê) sido ressuscitado? [Interessante que a Bíblia em nenhum ligar diz que Jesus “se ressuscitou” dos mortos: ela afirma que ele “foi ressuscitado (por Deus)”].

A solução do problema cristológico foi, de certo modo, o oposto da solução do problema trinitário (ou da divindade de Jesus), mas operou nos mesmos pressupostos metafísicos. No caso da discussão do problema trinitário, postulou-se a existência de duas (na verdade três) pessoas em uma só natureza (essência, substância). No problema cristológico, postulou-se a existência, em uma só pessoa, mas com duas naturezas (essências, substâncias): a divina e a humana. Dessa forma, afirmou-se que Jesus (embora uma só pessoa) era “verdadeiramente Deus” e “verdadeiramente homem” (ou seja, tinha duas naturezas, ou essências, ou substâncias).

É evidente que ao falar em essência, substância, ou natureza, de algo (ou alguém), já se deixou muito para trás a linguagem do Novo Testamento para utilizar a linguagem da filosofia grega (helênica, helenista). Traduzir nessa linguagem o que diz a linguagem concreta e metafórica do Novo Testamento é sempre complicado.

O desafio dos ortodoxos foi justificar a afirmação, no caso da Trindade, que Deus era constituído de três pessoas mas que possuía uma só natureza. Afirmar que Deus era uma pessoa só ou possuía três naturezas era cair em heresia: a heresia monarquista (antitrinitarismo) ou a heresia triteísta.

O desafio dos ortodoxos foi justificar a afirmação, no caso de Cristológico, que Jesus tinha duas naturezas mas era uma só pessoa. Afirmar que Jesus tinha uma só natureza, ou que ele era de alguma forma constituído de duas pessoas era cair em heresia: a heresia monofisista, no primeiro caso, ou a heresia nestoriana, no segundo.

Aqueles que afirmavam que Jesus tinha apenas uma natureza (os monofisistas: phusis é natureza em Grego — donde vem física), não duas, foram condenados pela heresia do monofisismo.

Aqueles monofisistas que afirmavam que Jesus tinha apenas a natureza divina, e só a aparência de uma natureza humana, foram condenados (também) pela heresia do docetismo (dokeo, em Grego, quer dizer parecer, aparentar).

Aqueles monofisistas que afirmavam que Jesus tinha apenas a natureza humana, e só a aparência de um ser divino, foram condenados (também) pelas heresias do adocianismo (e outras variantes).

A discussão, na verdade, não parou aí. Se Jesus, embora uma só pessoa, tinha duas naturezas (essências, substâncias), o que dizer de sua vontade e de sua propensão a agir? Tinha ele uma só ou duas de cada uma dessas? Uma só vontade (telos)? Uma só propensão a agir (energia)? Ou duas? O monotelismo e o monergismo foram considerados heresia (em favor do duotelismo e do duergismo: duas vontades e duas propensões a agir).

Mas se duas, resta o problema: como elas se relacionavam uma com a outra? Qual prevalece? Em que condições?

E assim vai.

A seguir uma discussão interessante do monotelismo pelo apologeta contemporâneo William Lane Craig.

http://www.reasonablefaith.org/portuguese/Monotelismo

Monotelismo

PERGUNTA

Olá Dr Craig!

Estou lendo seu livro Philosophical Foundation for a Christian Worldview (Filosofia e Cosmovisão Cristã, ed. Vida Nova, 2005). Infelizmente, minha pergunta não foi respondida quando eu estava no seminário fazendo M. Div. uma década atrás. Após sua explicação, estou mais convencido de que a sua posição, o monotelismo (pg. 611), é a mais correta, apesar dessa conclusão ser apenas uma conclusão tentativa. Monotelismo está sempre ligado com monofisismo. Até onde eu entendo, o monotelismo não é, necessariamente, uma implicação do monofisismo. O Terceiro Concílio de Constantinopla condenou tanto o monofisismo quanto o monotelismo como heréticos. (A maioria dos evangélicos reconhece esse concílio ecumênico?) O Dr. Norman Geisler também reconhece o monotelismo como herético (Systematic Theology [Teologia Sistemática] Volume 2: God, Creation, [Grand Rapids, MI: BethanyHouse, 2003] pg. 296). Minha pergunta é a seguinte: você não se preocupa com o fato de que alguns evangélicos consideram você um herege por causa da sua crença no monotelismo? Como eu estou mais convencido de sua explicação, eu não quero ser considerado como um herege nesse caso.

RESPOSTA

William Lane Craig:

Nenhum cristão sincero quer ser considerado um herético. Mas nós, protestantes, reconhecemos apenas a Escritura como nossa regra de fé final (o princípio da Reforma de sola scriptura). Portanto, nós trazemos até mesmo as afirmações de Concílios Ecumênicos perante o crivo da Escritura. Sempre existe uma grande hesitação em discordar de pronunciamentos de um Concílio Ecumênico. Ainda assim, como nós não os vemos como detentores de autoridade divina, estamos abertos para a possibilidade de que eles erraram em algumas coisas. Parece-me que ao condenar o monotelismo como uma doutrina incompatível com a crença cristã a igreja foi além de seus limites.

O que é monotelismo? É a doutrina que afirma que o Cristo encarnado tem uma única faculdade de vontade. Em contraste, o diotelismo ensina que o Cristo encarnado tem duas faculdades de vontade, uma associada com sua natureza humana (sua vontade humana) e uma associada com sua natureza divina (sua vontade divina). O Terceiro Concílio de Constantinopla condenou o monotelismo, promulgando como obrigatório para Cristãos crerem em duas vontades em Cristo. Eu suspeito que a maioria dos evangélicos Cristãos declare fidelidade com seus lábios ao Terceiro Concílio e ao diotelismo sem ter refletido seriamente a respeito desse assunto.

Alguns de nós, no entanto, consideram o monotelismo como, pelo menos, uma opção legítima para o Cristão bíblico, sem dizer que seja verdade. O Concílio aparentemente pensou que negar uma vontade humana de Cristo implicaria que lhe faltava uma natureza humana completa, ou seja, Cristo não seria verdadeiramente homem nesta hipótese. Portanto, para proteger a integridade da natureza humana de Cristo, o Concílio promulgou o diotelismo como algo mandatório para uma crença cristã ortodoxa. A preocupação com a verdadeira humanidade do Cristo encarnado é louvável e importante. A doutrina cristã da encarnação requer que Cristo seja verdadeiramente homem e verdadeiramente divino. Mas por que pensar que o fato de Cristo ter uma única vontade reduziria sua natureza humana?

O que o Concílio presumia, e o que parece duvidoso para muitos, é que a faculdade da vontade pertence propriamente à natureza de alguém em vez de pertencer à pessoa. É por isso que o Concílio pensou que se a natureza humana de Cristo não tivesse a faculdade da vontade, então ela não seria uma natureza humana verdadeira e completa. Em contraste, me parece quase óbvio que a vontade é uma faculdade de uma pessoa. São pessoas que tem livre arbítrio e que o exercitam para escolher isso ou aquilo. Se a natureza humana de Cristo tinha sua própria vontade, o que significaria que Cristo tinha, literalmente, duas vontades, como o Concílio afirmou, então existiriam duas pessoas, uma humana e uma divina. Mas esta é a heresia conhecida como nestorianismo, que divide Cristo em duas pessoas. Eu não consigo compreender como a natureza humana de Cristo poderia ter uma vontade própria, distinta da vontade da Segunda Pessoa da Trindade, e não ser uma pessoa.

A pergunta, então, é se Cristo pode ter uma vontade, porém duas naturezas. Ou ter uma única vontade implicaria na heresia chamada Monofisismo, a doutrina que Cristo tinha uma única natureza? No Concílio de Calcedônia, a Igreja condenou o monofisismo e promulgou o diofisismo, a doutrina que Cristo tinha duas naturezas, humana e divina. A pergunta não é, como você colocou, se o monotelismo é, necessariamente, uma implicação do monofisismo – parece óbvio que sim, pois se há apenas uma pessoa e uma natureza no Cristo encarnado, de onde viria a segunda vontade? – mas se o monofisismo é, necessariamente, uma implicação do monotelismo, como o Concílio acreditava.

Eu não penso que é. No capítulo sobre a encarnação, no livro Filosofia e Cosmovisão Cristã, eu dou um possível modelo da encarnação de acordo com o qual a natureza humana de Cristo torna-se completa através de sua união com a Segunda Pessoa da Trindade. Como só existe uma pessoa em Cristo, existe apenas uma faculdade da vontade, e esta faculdade serve tanto à humanidade quanto à divindade de Cristo, sendo exercitada por meio tanto da natureza humana quanto da natureza divina. Assim, Cristo tem duas naturezas completas, mas uma única vontade, da mesma forma que – e porque – ele é uma única pessoa.

Portanto, embora eu não goste de contradizer os decretos de um Concílio Ecumênico, acredito que o perigo de cair em nestorianismo é muito maior do que o perigo de cair em monofisismo. Eu acho que podemos coerentemente e biblicamente ser monotelistas sem sermos monofisistas.

William Lane Craig

Leia mais: http://www.reasonablefaith.org/portuguese/Monotelismo#ixzz3RuhRzuBm

Em São Paulo, 16 de Fevereiro de 2015

(Faz 51 anos hoje que assisti à minha primeira aula no Seminário Presbiteriano de Campinas).

Ortodoxia e Heresia – 1

Comprei e estou lendo um livro (recentíssimo, publicado já em 2015) de História da Igreja muito interessante: Medieval Christianity: A New History, de Kevin Madigan (Yale University Press, 2015). Embora o livro seja, como indica o título, uma abordagem nova à História do Cristianismo na Idade Média, sua primeira parte é dedicada à História do Cristianismo na Antiguidade.

O autor, para justificar a sua “História Nova”, tenta provar, em relação ao Cristianismo na Era Antiga, uma tese complexa que vai contra o que normalmente se acredita.

O que normalmente se acredita é que a maioria dos cristãos nos quatro primeiros séculos da era cristã subscrevia àquilo que hoje se considera ortodoxia em sua doutrina, as diversas heresias aparecendo apenas nas periferias, e sendo rapidamente combatidas e rechaçadas pela maioria ortodoxa.

Contra essa crença convencional Madigan procura provar uma tese complexa:

  1. A construção do que hoje chamamos ortodoxia foi um processo longo e difícil, concluído apenas por volta do século V e VI, e que foi objeto de deliberação cuidadosa e intencional;
  2. A maioria dos cristãos durante os primeiros quatro ou cinco séculos subscrevia a pelo menos uma doutrina, geralmente a mais de uma, que veio a ser considerada herética posteriormente;
  3. A ortodoxia foi construída, de cima para baixo, à medida em que bispos e a liderança teológica (os pais da igreja que acabaram por não ser considerados heréticos em algum aspecto importante) se valeram de três instrumentos para forçar os demais cristãos a subscrever ao núcleo de doutrinas considerado ortodoxo por eles: a definição de fórmulas, regras de fé ou credos; a definição do cânon do Novo Testamento; a sujeição e submissão do pensamento da generalidade dos cristãos aos ditames do clero, em especial do bispo da região: Credo, Canon e Clero são os três C’s daquilo que vai a ser considerado ortodoxia no Cristianismo Católico (mais dois C’s aqui…);
  4. No processo, doutrinas que não se adequavam aos credos foram sendo consideradas heréticas e anatematizadas, bispos e teólogos discordantes foram sendo eliminados (por excomunhão) do rol das autoridades, e os escritos que de alguma forma não se ajustavam totalmente aos credos aprovados ficaram fora do cânon.

Interessante, não? A maioria dos cristãos (no centro, e não na periferia) era não-ortodoxa (pelo critério de ortodoxia adotado posteriormente), vale dizer, herege, e a ortodoxia se construiu por um processo gradual mas deliberado de eliminação de heresias e hereges.

Termino com um comentário pessoal… Tenho dificuldade para acreditar que pequenos pontos de divergência doutrinária tenham servido, ao longo da história da igreja, para inúmeras excomunhões de pessoas e grupos de pessoas, bem como para cismas e divisões da igreja. Às vezes, do ângulo da dedicação à igreja e da moralidade, não havia reparo a fazer a alguém… Mas seus pontos de vista tinham um “cheiro” de heresia (em geral arianismo ou pelagianismo)… Nada mais do que isso. Logo, excomunhão nele. Sempre achei isso lastimável. Que, porém, essa atitude ainda perdure no século 21 é ainda mais lamentável.

Em Salto, 14 de Fevereiro de 2015 (pequeno acréscimo em 16/2/2015)

Por que se dividem as igrejas?

I. Introdução ao Tema

Desde que comecei a me interessar pela História da Igreja Cristã me fascinaram as chamadas cisões (também chamadas de cismas, termo masculino) dentro da igreja. Igrejas, sejam elas, nos extremos, igrejas locais ou a própria religião cristã, como tal, se dividem: separam-se, (geralmente) em duas, passando a existir, na melhor das hipóteses, em relações amistosas, como instituições irmãs, ou, na pior hipótese, como instituições inimigas, que combatem (ou pelo menos regularmente criticam) uma à outra.

O que se chama, genericamente, de Protestantismo é resultado de uma cisão dentro da Igreja Católica Apostólica Romana — até aquela ocasião o principal ramo do Cristianismo. Consumada a cisão, entre 1517 e 1530, criou-se um novo ramo do Cristianismo: o ramo reformado, que, logo, não era um ramo unificado, nem mesmo muito unido, dividindo-se em luterano, calvinista, anglicano, radical, etc. Outros surgiram rapidamente, mas no devido tempo. Curiosamente, foi o ramo calvinista, o segundo criado, e não o luterano, que herdou, em alguns países, o nome de “Igreja Reformada” (que especialmente nos Estados Unidos e no Brasil é predominantemente presbiteriano).

Mas a própria Igreja Católica Apostólica Romana, cindida em 1515-1530, já era resultado de uma cisão anterior que separara, de forma aparentemente definitiva (já vai fazer mil anos), em 1054, um Cristianismo até então unificado. Ali criaram-se “dois Cristianismos”: o Romano (com sede em Roma) e o Bizantino (com sede em Constantinopla, cujo nome era conhecido também como Bizâncio. A Igreja Bizantina é geralmente chamada hoje em dia de Ortodoxa, porque, com a queda de Constantinopla na mão dos árabes em 1453, a sede da Igreja Bizantina saiu de lá e perambulou por países mais ou menos próximos, ficando, finalmente, em Moscou. Por isso se fala, muitas vezes, em “Igreja Ortodoxa Russa”.

Mas sempre houve cisões dentro do Cristianismo — mesmo do Cristianismo nascente, cuja identidade não estava ainda plenamente estabelecida. Por volta do ano 50 ficou caracterizado, no chamado Concílio de Jerusalém, um evento descrito em Atos dos Apóstolos cap. 15 e comentado por Paulo na Epístola aos Gálatas cap. 2, o princípio de uma divisão entre Cristãos Judaizantes, com sede em Jerusalém, e Cristãos Gentios, com sede em Antioquia. Paulo era claramente o líder desta facção, a outra sendo liderada por Pedro ou por Tiago, irmão de Jesus. Essa divisão, segundo tudo indica, não se consumou, por uma razão simples. Os Cristãos Judaizantes viam o Cristianismo não como uma religião independente, mas como um ramo (uma seita) do Judaísmo. Ao concordarem, no Concílio de Jerusalém, com a validade do Cristianismo Gentio, estavam, na realidade, sacramentando uma cisão no Judaísmo — o que torna o próprio Cristianismo, originalmente, uma cisão dentro do Judaísmo. Os Cristãos Judaizantes acabaram sendo absorvidos pela nova religião (o Cristianismo Gentio virou apenas Cristianismo) ou foram reabsorvidos pelo Judaísmo.

Fui, virtualmente desde que nasci (1943) até os meus 24 anos (1967). membro da Igreja Presbiteriana do Brasil — criada, por volta de 1859, pela Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, ela própria, de certo modo, criada (oficialmente, em 1709) principalmente pela Igreja Reformada da Escócia, esta criada (em por volta de 1560) dentro do conjunto das Igrejas Reformadas (calvinistas), que passou a existir (a partir de cerca de 1536-1541) dentro das igrejas da Reforma, movimento que (a partir de cerca de 1517-1530) se separou da Igreja Católica Apostólica Romana, que, por sua vez, se separou da Igreja Católica Apostólica Bizantina (em 1054). Nesse período de 24 anos, fui membro menor da Igreja Presbiteriana de Lucélia, SP, de Irati, PR, de Marialva, PR, de Maringá, PR, de Santo André, SP, e de São Paulo (Igreja do Jardim das Oliveiras, na Alameda Jaú, hoje não mais parte da Igreja Presbiteriana do Brasil). Na Igreja Presbiteriana de Santo André (então havia apenas uma desse ramo das presbiterianas na cidade) fiz minha pública profissão de fé, em 1960, deixando de ser “membro menor”, para ser “membro comungante”. Na transição de 1966 para 1967, transferi-me da Igreja Presbiteriana de Santo André (da qual meu pai era pastor) para a Igreja Presbiteriana do Jardim das Oliveiras (da qual era pastor o Rev. José Borges dos Santos Júnior). A minha transferência se deu já dentro de um processo de cisão da Igreja Presbiteriana do Brasil, que acabou por se consumar apenas em 1978, com a criação da Igreja Presbiteriana Unida, à qual a Igreja do Jardim das Oliveiras passou a pertencer (com várias outras igrejas locais que, naquela ocasião, deixaram a Igreja Presbiteriana do Brasil.

De 1967 até 1972, enquanto estudei no Pittsburgh Theological Seminary e na University of Pittsburgh, nos Estados Unidos, e morei nas dependências do Seminário, frequentei a igreja que se chamava então United Presbyterian Church in the USA, e que se chama hoje Presbyterian Church – USA. Na verdade, durante esse período, preguei quase todo domingo, quase sempre em uma igreja diferente, através da “Preaching Association” do Seminário.

De 1972 a 2011, ou seja, durante longos 39 anos, não fui membro de nenhuma igreja.

Em Novembro de 2011, tornei-me membro da Primeira Igreja Presbiteriana Independente do Brasil de São Paulo, conhecida como a Catedral Evangélica de São Paulo, da qual sou membro até o presente. A Igreja Presbiteriana Independente do Brasil é uma cisão, efetivada em 1903, da Igreja Presbiteriana do Brasil.

Essa breve introdução ao tema das cisões dentro do Cristianismo e da Igreja Presbiteriana já serve de explicação para o meu interesse no assunto.

II. As Principais Causas de Cisão

Analisando as cisões mais importantes que ocorreram dentro da História da Igreja Cristã, podemos concluir que os seguintes fatores tiveram um papel preponderante entre as causas das diversas divisões:

  • Divergências teóricas ou conceituais em relação às coisas em que se deve acreditar, às coisas em que não se deve acreditar, e as coisas em que há liberdade de acreditar ou não (divergência doutrinária é como vou rotular isso);
  • Divergências práticas ou comportamentais em relação a como se deve comportar, a como não se deve comportar, e às condutas que podem ser adotadas ou rejeitadas livremente (divergência prática é como vou rotular isso);
  • Divergências litúrgicas ou cultuais em relação a como se deve realizar os eventos comunitários de adoração a Deus, se ele deve se realizar em templos ou pode se realizar em qualquer lugar, se ele deve ser sério, solene, majestoso, ritualístico e programado em detalhe ou pode ser alegre, cheio de vida (avivado, vivificado, etc.), espontâneo, até certo ponto improvisado ao saber das circunstâncias e dos interesses (divergência litúrgica é como vou rotular isso);
  • Divergências na forma de organizar e administrar a igreja, incluindo, na forma de organização, se a igreja é organizada de forma mais “monárquica e hirarquizada” (com um líder central, arcebispos, bispos, etc.) ou mais “republicana e federativa” (mais horizontal, com líderes eleitos, alternância no poder, etc.), e até mesmo o estilo pessoal de gestão de alguns pastores (que podem ser autoritários e quase ditatoriais mesmo em igrejas organizadas de forma republicada e federalizada e que se imaginam democráticas), etc. (divergência quanto à organização e gestão é como vou rotular isso);
  • Divergências acerca do modo de ver o essencial ou fundamental no Cristianismo, se é conformidade da fé pessoal com as doutrinas aceitas como padrão, se é uma transformação na vida (conversão, regeneração, nascer de novo, tornar-se uma nova pessoa), se é o processo de condução da vida pessoal (santificação), se é um fluxo constante de experiências consideradas religiosas ou de relacionamento (comunhão) com Deus, se é a convivência dos crentes uns com os outros (a chamada comunhão dos santos), se é o amor e o serviço ao próximo (caridade), ou alguma outra coisa (divergência na forma de entender o essencial da religião é como vou rotular isso);
  • Divergências na forma de estruturar o processo de formação de clérigos e outras lideranças (divergência na forma de  formar lideranças é como vou rotular isso).
  • Divergências pessoais entre grupos de membros, líderes e liderados, incluindo divergências acerca de questões sociais e políticas (como a abolição da escravatura, no século 19, , aborto, divórcio, homossexualidade, busca de espaço e poder por parte de líderes ou aspirantes a líderes) e outras questões não necessariamente religiosas (divergência pessoal ou em questões externas é como vou rotular isso).

Espero, em artigos seguintes, analisar alguns cismas que foram (de alguma forma, direta ou indiretamente) importantes em minha vida, como cristão, protestante, presbiteriano, e presbiteriano independente.

Em São Paulo, 3 de Novembro de 2014, revisado em Salto em 6 de Abril de 2017

Fatos, Narrativas, e Novos Fatos (estes gerados, em parte, pelas Narrativas)

Transcrevo, abaixo, uma página e meia do livro Christianity’s Dangerous Idea, de Alister E. McGrath, publicado em 2007, pela Harper, nos Estados Unidos e comercializado também em e-book. O texto, infelizmente, está em Inglês, mas está disponível em Português nas pp. 67-68 da tradução brasileira, de Lena e Regina Aranha, sob o título A Revolução Protestante (Editora Palavra, Brasília, 2012).

A razão para a transcrição dessa pequena passagem de um livro que, em Português, chega a 532 páginas, está no fato de que ontem (25/8/2014) publiquei um artigo aqui no meu blog “Liberal Space” com o título de Verdade e Mito (http://liberalspace.net/2014/08/25/verdade-e-mito/). Nesse artigo comentei um artigo muito interessante de Denis Lerrer Rosenfield chamado “Verdade e Narrativa”, e foi publicado no Estadão naquele mesmo dia, ou seja, 25/8/2014. O artigo de Rosenfield está disponível em http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,verdade-e-narrativa-imp-,1549100/.

Hoje cedo (26/8/2014) estava me preparando para uma aula acerca da Reforma Protestante, em especial sobre a transição da Reforma Alemã de Lutero para a Reforma Suíça Francesa de Calvino, e encontrei a passagem abaixo transcrita, que é relevante para a discussão de ontem, embora com algumas diferenças significativas.

No texto McGrath argumenta que, no início, não existia algo que pudesse ser chamado de “A Reforma”, quanto mais “A Reforma Protestante”. Havia, isto sim, a partir do final do século 15 (ou mesmo antes, se a gente inclui Wycliff e Huss no quadro), uma série de movimentos e iniciativas individuais visando reformar aquilo que se chamava de Cristandade – uma síntese, ora confortável, ora atribulada, ora conflitante – entre o Cristianismo, chamado de “poder espiritual”, representado, homogenicamente, até então, pela Igreja Católica Romana, liderada pelo Papa, e os diversos “poderes temporais” ou “poderes seculares”, quais sejam, principados, estados e impérios existentes e em processo de consolidação na Europa que, a partir de 1519, encontravam na figura do jovem Carlos V (19 anos, apenas), o titular do chamado Sacro Império Romano (na verdade, uma macroentidade que abrangia a Alemanha e algumas regiões vizinhas na parte central da Europa, mas com ambições realmente imperiais), sua figura mais representativa. [Em geral se refere ao “império” nazista de 1939-1945 como sendo “O Terceiro Reich”. Bem, o Sacro Império Romano é, na visão de muitos alemães, o primeiro dos três “Reichs”. Vide sobre isso, inter alia, https://sites.google.com/site/caroluschess/medieval-history/charlemagne/list-of-holy-roman-emperors].

Voltando ao que mais importa.

Havia, portanto, no início do século 16, na Europa, uma série de movimentos e iniciativas individuais visando reformar a Cristandade – alguns com ênfases mais teológicas (doutrinárias e litúrgicas), outros com ênfases mais político-institucionais, outros com ênfases mais filosóficas e macro-políticas (visando, por exemplo, remover de vez a ingerência do chamado “poder espiritual” sobre o “poder temporal”, introduzindo, portanto, a ideia liberal de separação entre igreja e estado). Não nos esqueçamos de que, desde o Papa Inocêncio III, pelo menos, a Igreja Católica, o poder espiritual, pretendia ter ascendência sobre os poderes temporais, podendo até destituí-los. O fato de que os vários poderes temporais frequentemente resistissem a essa tese não impedia que a igreja a defendesse e lutasse para aplica-la.

Não havia, portanto, unidade entre os vários movimentos de reforma. Não raro eles se viam competindo entre si. Quando o movimento inspirado e, em parte, liderado por Calvino extravasou os limites territoriais de Genebra e da Suíça, e penetrou, entre outros locais, em terras alemães (no Palatinado, por exemplo), o movimento inspirado por Lutero reagiu, vendo, no Calvinismo, o inimigo.

Se os vários movimentos de reforma não conseguiam se ver, inicialmente, como parte de um movimento maior, derivando dele sua identidade, muito menos se enxergavam como um movimento de reforma Protestante – o nome nem existindo ainda, até mais tarde.

A tese de McGrath, que ele parece ter absorvido, em parte, de Dorothea Wendebourg (citada na Nota 3 do texto transcrito), é que esses diversos movimentos foram se considerando parte de um movimento que tinha como intenção não só reformar a Igreja Católica, mas criar um novo conjunto de igrejas (as Igrejas Protestantes), assim redesenhando o mapa religioso da Europa, e, ainda mais, produzir até mesmo um novo modelo de organização política da sociedade, com a separação entre estado e igreja, tolerância religiosa, e, por conseguinte, pluralismo religioso dentro de um mesmo estado, etc. tudo isso demorou muito para acontecer e, de certo modo, só se pode dizer que aconteceu em retrospectiva, como a narrativa dominante (assumida pelos Protestantes) do que teria acontecido, à medida que foram se caracterizando, para os Protestantes, dois inimigos perigosos: primeiro, a Igreja Católica, o inimigo original; segundo, o Estado (que, no entanto, inicialmente, foi aliado dos Protestantes na lita contra a Igreja Católica em muitos casos). Neste segundo caso, não houve uniformidade. Por um bom tempo, e em muitos lugares, as Igrejas Protestantes, tendo ganho a luta com a Igreja Católica, se tornaram igrejas estatais – em alguns casos tentando reprimir não só a Igreja Católica como Igrejas Protestantes concorrentes. Isso se deu, em grande medida, na Alemanha, mas, principalmente, na Inglaterra. E o grande mérito da Reforma Protestante que aconteceu nos Estados Unidos está no fato de que ela, apesar de idas e vindas (porque ela foi da Inglaterra e da Holanda para o continente americano no Norte), ela foi bem sucedida em separar a igreja do estado.

De qualquer forma, é importante registrar que uma narrativa, que não corresponde muito bem aos fatos históricos “wie sie eigentlich gewesen sind” (como eles de fato e verdadeiramente ocorreram), acabou por gerar fatos históricos novos, estes sim, acontecidos de fato e verdadeiramente.

Aqui está o texto do McGrath – que está rapidamente se tornando meu historiador da Igreja favorito.

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Alternatives to Luther

1. Diversification of the Reformation

The name of Martin Luther dominates most popular accounts of the origins and development of Protestantism. By 1519 Luther’s name was beginning to be known more widely, especially within humanist circles. Luther himself was somewhat despondent about the outcome of the debate with Johann Eck at Leipzig, feeling that he had been outwitted and outmaneuvered by the canny theologian from Ingolstadt. Yet humanist networks were buzzing with the news of a hitherto unknown Augustinian monk who had laid down a formidable challenge to papal authority. Luther was about to be hailed as a leading representative of the case for reform of the church and would attract support from even such a luminary as Erasmus of Rotterdam.

Yet other reforming movements were springing up elsewhere in Europe around this time, initially without any knowledge of Luther’s activities and aspirations. It is now clear that uncoordinated reforming initiatives were breaking out in many parts of Europe in the 1510s, often in response to local situations or inspired by local heroes. Many of Europe’s great cities became epicenters of reforming movements that responded to and addressed their local situations. Recent scholarship, in stressing the intellectual and sociological heterogeneity of the first phase of the Reformation, has made it virtually impossible to think of it as a single, coherent movement. [1]

2. The Heterogeneity of Early Protestantism

The Reformation is best conceived as a series of initially independent reforming movements with quite distinct agendas and understandings of the nature of theology and its role in the life of the church. Through the complex networks of the interchange of people, correspondence, and publications that were characteristic of this age, these originally independent movements came to achieve at least a partial degree of alignment over the following decade. Yet this identity was not determined by the movement’s origins, as if this could be frozen in time and declared to be permanently normative. In a tangled and not fully understood process of reappraisal, reorientation, and reappropriation, it would emerge over time. [2]

The concept of “Protestantism” arose from an attempt to link a series of events in the early sixteenth century to form a common narrative of transformation. For the historian, there has never been a thing called “Protestantism”; rather, there were a number of movements, each with its own distinctive regional, theological, and cultural agendas. To speak of “the rise of Protestantism” is to offer a controlling narrative that links these potentially disparate events as part of a greater, more significant movement. So persuasive was this emerging narrative that many of the reforming groups scattered across Europe realigned their sense of identity and purpose to conform to it. As these movements began to locate themselves on a historical and conceptual map, each came increasingly to identify itself in terms of what was perceived as a greater overarching movement. A subtle process of realignment led to a growing sense of institutional and intellectual identity. Yet that identity was initially conceived primarily in terms of two movements—the Lutheran Reformation in northeastern Germany and the Zwinglian Reformation in eastern Switzerland. The idea that these two movements were as the two sides of the same Protestant coin represents a later retrojection by historians and Protestant apologists.

The suggestion that there exists a universal notion called “Protestantism” must therefore be viewed with considerable caution, as must the traditional idea that Luther’s personal religious views somehow define the essence of this putative “Protestantism.” As will become clear, Protestantism designates a family of religious movements that share certain historical roots and theological resources. Luther—admired and respected in some quarters, less so in others—is certainly one of those resources. As we shall see, Protestantism developed into a coherent entity through a complicated history of negotiations and compromises in the late 1520s and 1530s, during which time it was often unclear who was “in” and who was “out,” let alone what the final outcome might be. Everything was in a state of flux, and the various reforming movements of the era shared no clear sense of a common set of beliefs, values, or ways of interpreting the Bible.

In a highly insightful study on the unity of the Reformation, Dorothea Wendebourg argues that the “unity” of the Reformation emerged retrospectively, primarily in response to later Catholic criticisms of the movement [3]. Protestantism developed its sense of identity primarily in response to external threats and criticisms rather than as a result of shared beliefs. In one sense, the idea of “Protestantism” can be seen as the creation of its opponents rather than of its supporters. The history of Protestantism repeatedly demonstrates that a shared sense of identity that transcends denominational and confessional boundaries depends on there being a credible common enemy—a role that has been played, until very recently, by Catholicism. In this chapter, we explore some of the early alternatives to Luther that sprang up throughout western Europe during the 1520s and early 1530s and the negotiations that ensued to define the characteristics of the movement and maximize the potential for collaboration in the face of shared threats and foes. We begin by noting the tensions and disagreements within the original reforming faction at Wittenberg.

NOTES

[1] See Hans-Jürgen Goertz, “Eine ‘bewegte’ Epoche: Zur Heterogenität reformatorischer Bewegungen,” in Wegscheiden der Reformation: Alternatives Denken vom 16. bis zum 18. Jahrhundert, edited by Günter Vogler (Weimar: Bohlaus Nachfolger, 1994), 23–56; Alister E. McGrath, The Intellectual Origins of the European Reformation, 2nd ed. (Oxford: Blackwell, 2003), 182–89.

[2] For a collection of excellent attempts to make sense of what happened, see Bruce Gordon, ed., Protestant History and Identity in Sixteenth-Century Europe, 2 vols. (Aldershot, UK: Ashgate, 1996).

[3] Dorothea Wendebourg, “Die Einheit der Reformation als historisches Problem,” in Reformationstheorien: Ein kirchenhistorischer Disput über Einheit und Vielfalt der Reformation, edited by Berndt Hamm, Bernd Moeller, and Dorothea Wendebourg (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1995), 31–51.

[Emphases added]

Em São Paulo, 26 de Agosto de 2014

Verdade e Mito

Este artigo vai fazer um voo panorâmico sobre alguns assuntos da maior importância, aterrissando em dois ou três lugares importantes. 

1. Estalos de Vieira 

Começo com algo bastante pessoal. Todo mundo já ouviu falar do famoso “Estalo de Vieira”. Mesmo assim esclareço o significado da expressão. O Vieira do estalo é, naturalmente, o Padre Antonio Vieira (1608-1609). Consta — se fato ou não, pouco vem ao caso — que o Padre Vieira era de entendimento meio limitado, até que, um dia, deu-se-lhe algo como um “estalo” em sua mente e ele passou a compreender com clareza aquilo que antes tinha extrema dificuldade para entender. Desde então, toda vez que alguém, meio que de repente, e de forma um pouco misteriosa, quase miraculosa, pelo menos muito coincidentosa, compreende claramente algo que, até aquele momento, lhe era meio confuso, ou de sentido pelo menos meio difuso, diz-se que teve um “Estalo de Vieira”. 

Pois bem. Hoje tive (mais) um Estalo de Vieira. Antes, já tive vários – o que é prova de que, no geral, sou meio tapado, estando a requerer esses tais estalos com certa frequência. Felizmente, tenho-os tido pela enorme generosidade de quem os controla (s’il y en a, como dizem os franceses: se é que existe que os controle). 

Só que meu estalo de hoje não foi, em si, muito misterioso ou miraculoso — embora tenha envolvido uma boa dose de coincidência (ou daquilo que eu já chamei de “provincidência”, que é uma mistura de providência e coincidência que não se compromete com definir o quanto, ali, é providência, o quanto é coincidência). Tive meu estalo lendo o artigo de Denis Lerrer Rosenfield no Estadão de hoje. Denis é um brilhante filósofo que trabalha na UFRGS e é, entre outras coisas, colunista do Estadão. Tive o privilégio de conviver com ele durante três dias num colóquio do Liberty Fund numa deliciosa pousada em São Roque, SP, em Julho de 2008.  Esse mês é, para mim, cheio de lembranças muito agradáveis e importantes, que peço vênia para não detalhar. 

2. A História-Verdade e a História-Narrativa (ou: Verdade e Mito)

O artigo do Denis, para voltar ao que aqui importa, tem o título de “Verdade e Narrativa” (http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,verdade-e-narrativa-imp-,1549100/). É um artigo fantástico. Minha atenção foi chamada para ele por uma referência num artigo de Rodrigo Constantino, no blog da VEJA, que também é um artigo muito bom, com o título “Os Mitos Históricos Seduzem mais do que os Fatos: É a Narrativa que Importa!“. O artigo do Rodrigo está disponível em http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/democracia/os-mitos-historicos-seduzem-mais-do-que-os-fatos-e-a-narrativa-que-importa/. 

Vou resumir o artigo do Denis, embora o título do artigo do Rodrigo já quase faça isso… 🙂 

Ele começa fazendo referência ao excelente filme de Clint Eastwood chamado Flags of Our Fathers, que em Português recebeu o título A Conquista da Honra – gosto mais do título original, que eu teria traduzido por Bandeiras de Luta dos Nossos Pais. (Vide http://www.imdb.com/title/tt0418689/?ref_=nm_flmg_dr_9). [Em colchetes, esclareço que acho todos os filmes de Clint Eastwood excelentes: para mim, ele é o melhor diretor vivo de Hollywood.]. 

No filme, um velho soldado, ex-combatente da batalha de Iwo Jima, uma batalha crucial para o desfecho da Segunda Guerra na sua frente no Pacífico, narra como ele e cinco companheiros tiraram uma foto, ao lado da bandeira americana, para comprovar a vitória americana na batalha. Essa foto se tornou um ícone – sendo considerada o símbolo da “virada” americana na guerra contra o Japão. Aquela foto regimentou a opinião pública e, com o seu apoio, os Estados Unidos acabaram ganhando a guerra. 

Acontece que a foto dos seis soldados com a bandeira foi tirada quando a guerra já estava basicamente ganha. A foto original, tirada pelos soldados que realmente ganharam a batalha, se perdeu, e o que a substituiu foi uma foto “fake“, de quem levou a fama sem ter sido responsável pelo sucesso no campo de batalha. Mas foi a “narrativa”, vale dizer, o “mito” que se tornou a “história”, não no sentido de a história real, vivida, mas no sentido de a história narrada. 

O ponto do artigo de Denis é que, infelizmente, no fundo, é a história narrada que prevalece — enquanto a história real se perde no esquecimento. Por essa razão é que historiadores e pretensos historiadores lutam tanto para controlar qual é a história-narrativa que vai prevalecer e, no futuro, contar como se fosse a história-verdade, a história realmente vivida. 

Ele toma como exemplo a nefasta Comissão da Verdade, que, na realidade, é uma Comissão da Inverdade, que tenta reescrever a história, procurando mostrar que os terroristas, assaltantes de bancos, assassinos do período da Ditadura Militar foram heróis democráticos a quem a Pátria deve honrar e celebrar. Ela quer impor a sua narrativa como verdade, fazer de conta que a sua história-narrativa é a história-verdade. [Essa crítica à assim chamada “Comissão da Verdade” tem sido pisada e repisada por Percival Puggina em seu blog “Conservadores e Liberais”, que merece ser visitado: http://www.puggina.org/.%5D

Em resumo: a narrativa (história-narrativa) que, por qualquer meio, ainda que cheio de invenções, inverdades e meias verdades (que, na realidade, são meias mentiras) é capaz de conquistar a opinião pública acaba prevalecendo e passando por história, como se fosse a história-verdade. Os palestinos dominam essa arte como ninguém, lembra-nos o Rodrigo. 

A distinção entre História-Narrativa e História-Verdade nada mais é do que a distinção entre Mito e Verdade. 

3. Rudolf Bultmann 

Como disse atrás, o meu “estalo” de hoje não é misterioso ou miraculoso, é apenas “coincidentoso”. 

Nos últimos dias, desde quinta-feira à noite, tenho revisitado (como se diz hoje em dia) o pensamento de Rudolf Bultmann, teólogo que comecei a ler há cinquenta anos e que, desde então, nunca parou de me influenciar de alguma forma. É aí que está a coincidência (ou, como disse acima, provincidência: a leitura do artigo do Denis e a releitura de Bultmann se tocaram e, em vez de produzir um curto-circuito, produziram o meu estalo de hoje – ajudaram-me a reinterpretar Bultmann.

Para o cristão comum, leigo em teologia e nas sofisticações do pensamento acadêmico, o Novo Testamento da Bíblia cristã (vamos nos ater a ele) contém vários gêneros literários: ficção inspiradora (as parábolas), preces (o Pai Nosso), ensinamentos morais (as Bem-Aventuranças), e, naturalmente, história — entendida pelo cristão comum como história-verdade. 

O que, para esse cristão comum, é história-verdade no Novo Testamento? Os três primeiros evangelhos, chamados de Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), parte do quarto evangelho (João), o livro de Atos dos Apóstolos (supostamente escrito pelo mesmo autor do Evangelho de Lucas), etc. Nos evangelhos sinóticos está contida basicamente a história de Jesus de Nazareth, desde seu nascimento até sua morte, ressurreição e ascensão aos céus. Tudo isso, para o cristão comum, é história-verdade, isto é, fato histórico inegável. 

Bultmann nega que aquilo que os evangelhos sinóticos relatam sejam fatos históricos, “wie sie eigentlich gewesen sind” (como eles de fato aconteceram — a frase era muito usada pelos historiadores científicos do século 19, todos positivistas, que, mirabile dictu, realmente acreditavam que o historiador consegue descobrir o que de fato aconteceu na história). Para ele, o que temos nos evangelhos, inclusive nos sinóticos, é kerygma – termo que pode ser traduzido como “narrativa daqueles que vieram a acreditar que Jesus de Nazareth era o Messias prometido a Israel, ou, num contexto menos judaizante, o Filho de Deus”. Em outras palavras: o que os evangelhos sinóticos relatam não é história-verdade, mas, sim, história-narrativa, esforço de quem acredita em algo e quer, através de sua narrativa, persuadir os demais a acreditar também…

O surpreendente é que Bultmann não chega a essa conclusão para denunciar a substituição da história-verdade pela história-narrativa no caso dos evangelhos sinóticos. Para ele, o que importa não é a verdade histórica (que os historiadores científicos positivistas ingenuamente imaginavam poder descobrir), mas, sim, a verdade-narrada, a verdade-confessada, a verdade-proclamada. 

Por isso, Bultmann, que se considera cristã, sem maiores qualificativos, não tem o menos problema em admitir que, pelo menos no entender dele, nada se alteraria, em relação à fé cristã, se, per impossibile, se demonstrasse que Jesus de Nazaré nunca viveu e morreu como todo mundo, nunca ressuscitou e subiu aos céus. Para ele a ressurreição de Jesus de Nazaré é algo que não aconteceu dois mil anos atrás na Palestina, mas, sim, algo que acontece hoje (como vem acontecendo desde o início do Cristianismo) na pregação da igreja cristã, sempre que alguém, em decorrência da pregação da igreja, tem a experiência existencial de realmente encontrar, na figura de Jesus de Nazaré, o Messias, o Cristo e o Senhor de sua vida. 

O “Jesus da História”, para Bultmann, não importa. Não importa nem mesmo se houve um Jesus histórico (isto é, que verdadeiramente existiu em algum momento no primeiro século de nossa era na Palestina). O que importa é o “Cristo da Fé”, proclamado na narrativa do Novo Testamento. Uma vez admitido isso, nada impede, pelo contrário, que se faça uma distinção “clara e distinta” entre os livros históricos e os livros confessionais do Novo Testamento, como é o caso das cartas paulinas. 

4. Conclusão do Estalo 

Na minha leitura de Bultmann, até hoje, sempre considerei como mais importante o fato de que ele mostra que a visão de mundo do Novo Testamento é, basicamente, uma visão mítica, não uma visão científica, enquanto que a visão de mundo do homem moderna é, basicamente,  uma visão científica. Nessa leitura, a visão mítica do mundo se contrasta com a visão científica do mundo, vale dizer, com a verdade científica; e a verdade científica é verdade real, não uma construção narrativa… E, nessa leitura, seria preciso reinterpretar a visão mítica do mundo encontrada no Novo Testamento. Segundo essa visão mítica, seres espirituais “do andar de cima do mundo”, isto é, que habitam o céu (Deus, os anjos e outros espíritos “do bem”), lutam, incessantemente, com seres espirituais “do andar de baixo do mundo”, isto é, seres que habitam o inferno (Diabo, anjos caídos e outros espíritos “do mal”), para controlar a nossa vida aqui “no andar térreo” e, por esse controle, determinar se, um dia, depois de nossa morte, vamos habitar no céu ou no inferno (para sempre). A proposta de Bultmann seria procurar reinterpretar essa visão mítica, de acordo com os cânones da ciência (e da filosofia) moderna,  para chegar a um relato sério e honesto do que acontece com nossa vida aqui na Terra (que é o único local que conhecemos), em que nos vemos atraídos, ora para o bem, ora para o mal, em que, embora convencidos de que devemos fazer o bem (ou viver “segundo o espírito”), nos vemos lamentavelmente atraídos para fazer o mal (para viver “segundo a carne”), que possa nos oferecer uma saída para esse dilema e nos permita alcançar um viver autêntico e realizado… 

O problema com essa leitura bultmanniana é que ela desconsidera o fato de que, segundo ele, a forma de passar de uma existência inautêntica para uma existência autêntica tem, necessariamente, que ver com o “evento da salvação” (Heilsgeschehen), que, por sua vez tem que ver com a morte de Jesus de Nazareth e sua ressurreição como o Cristo em quem devemos acreditar e ao qual devemos dedicar a nossa vida, para que ela se torne autêntica e realizada… MAS, nada disso é verdade histórica, ou história-verdade, mas, sim, história-narrativa, ou seja, mito — um outro mito, mais palatável ao homem moderno, mas, apesar disso, um mito, nevertheless (que quer dizer never the less…).  

O esforço de Bultmann, em outras palavras, está no mesmo plano que o esforço da “Comissão da (in)Verdade”. 

Em São Paulo, 25 de Agosto de 2014