Identidade Pessoal e Mudanças [versão revista de 2022]

Nossa identidade é aquilo que nos define como “eu” – que nos torna “únicos”, que faz com que eu seja eu, e não você, e você seja você, e não eu…

À primeira vista a questão pode parecer simples – mas não é, não. Pelo contrário: é bastante complicada, e já ocupou horas preciosas da reflexão de grandes pensadores…

A questão pode, naturalmente, ser encarada de diversos pontos de vista.

Encarada do ponto de vista físico e biológico – a questão pode parecer mais simples do que de outros pontos de vista (psicológico, social, intelectual [filosófico, religioso, etc.]), etc., mas mesmo aí vem se tornando cada vez mais complicada.

Dizem os entendidos que a impressão digital de uma pessoa é absolutamente única e permanece a mesma durante toda a vida dela. Com a ajuda de algumas informações complementares, a impressão digital poderia, portanto, ser usada para definir quem a pessoa é do ponto de vista físico e biológico: ela é a versão mais idosa (e, é de esperar, mais experiente) do nenê que nasceu no dia tal, a tantas horas, em tal lugar, de fulana de tal.

Mas dizem novamente os entendidos que as células de uma pessoa morrem e são substituídas por outras dentro de determinados períodos (relativamente curtos) de tempo. Assim sendo, ainda que eu tenha a mesma impressão digital do nenê Eduardo Oscar que nasceu em Lucélia, no dia 7 de Setembro de 1943, às 21h45, na Rua Amazonas s/n, de Edith de Campos, então já renomeada Edith de Campos Chaves (sendo Oscar Chaves o pai presumido), as células que aquele rechonchudo bebê tinha, há 65 anos [alterado na revisão: 78 anos completos, a partir do aniversário em 2021], já morreram todas e foram substituídas por outras – e isso muito mais de uma vez. Por algum milagre biológico, a impressão digital continua a mesma, imagino (não tiraram minha impressão digital quando eu nasci) mas, do ponto de vista físico e biológico, nada físico e biológico que aquele nenê tinha permanece em mim hoje exatamente como era em 7.9.1943.…

Atualmente a coisa fica ainda mais complicada. Algumas pessoas fazem transplante de órgãos: trocam, por exemplo, o seu coração pelo de outra pessoa; ou outros órgãos seus, como um rim… Nada impede que uma pessoa, hoje, receba múltiplos transplantes de órgãos de uma outra pessoa que morreu — ou de mais de uma pessoa. Em alguns casos, até, possivelmente, de um animal não humano. No futuro, é possível que seja possível até mesmo transplantar o cérebro de uma pessoal para outra (como Robert Heinlein já previu em I Will Fear No Evil / Não Temerei Mal Algum – livro que recomendo sem reservas no contexto desta discussão). Quando isso acontecer, se x recebe o transplante do coração, do cérebro, dos rins, e saiba Deus lá mais do que, de y, a pessoa resultante será x ou y – ou será uma mescla das duas, digamos xy? São os tribunais que vão resolver se ela continua x, ou y, ou passa a ser xy, ou w? (Que as leis e os tribunais vão ter de enfrentar essa questão mais cedo do que se pensa, não tenho dúvida.)

E ainda há a possibilidade de a pessoa receber próteses de vários tipos, com características visíveis puramente mecânicas ou com aparência humanoide. Um ser com várias próteses (algo concebível) será (ainda) uma pessoa humana ou será (ou passará a ser) um robô?

A possibilidade de transplantes de cérebro levanta questões importantes, porque se acredita que o cérebro é a base física e biológica da memória… e a nossa memória parece ser um componente essencial de nossa identidade pessoal. Quem sofre um acidente que afeta o cérebro pode perder sua memória, em parte ou totalmente.

E aqui o físico-biológico, de um lado, e o mental, do outro, começam a se confundir… E com o mental vêm o intelectual, o afetivo, a criatividade, a imaginação, a sensibilidade… Ou será que essas características não são total ou puramente mentais? 

Na verdade, John Locke, o grande filósofo britânico do século XVII (que, na minha opinião, é o segundo maior filósofo britânico de todos os tempos, e, portanto, da história, perdendo apenas para David Hume, meu santo padroeiro, mas ganhando de Bertrand Russell), uma vez defendeu a tese (em Essays Concerning Human Understanding) que a memória é o ÚNICO critério definidor de nossa identidade pessoal — que fique para lá o físico-biológico, como as impressões digitais ou arcada dentária…

Em um de seus famosos “experimentos mentais” (que ele gostava muito de fazer), John Locke postulou que se, num dado dia, um príncipe e um sapateiro acordassem com suas memórias totalmente trocadas, um teria se tornado o outro (e vice-versa): eles haveriam trocado de identidade pessoal (apesar de manter o mesmo corpo de antes da troca de memória, com suas impressões digitais, arcadas dentais, etc.). Entre outras mudanças, a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) sapateiro passaria a estar apaixonado pela princesa (ou por quem quer que fosse que o príncipe estivesse apaixonado), e a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) príncipe passaria a estar apaixonado pela mulher do sapateiro (ou por quem quer que fosse que o sapateiro estivesse apaixonado). O (até ali) sapateiro passaria a ter a inteligência sofisticada, os gostos refinados, a sensibilidade, a criatividade, a imaginação do (até então) príncipe, passaria a gostar de ler a melhor literatura, ouvir as mais delicadas músicas… Na música, deixaria de gostar de sertanejo raiz, ou de funk, para gostar de Mozart… E vice-versa.

Ou seja, para Locke, a nossa identidade pessoal nada tem que ver com física ou biologia: ela é definida por fatores puramente mentais. Ou seja: cai na província da psicologia ou (como Locke preferia) da filosofia.

(Lembro-me, neste contexto, de um filme de 1991 com Harrison Ford, que tem o título original de Regarding Henry, em que Ford era um advogado mau caráter e muito chato. Sem que ele soubesse, a mulher dele havia optado por encontrar uma companhia menos cansativa. Mas ele recebeu um tiro na cabeça (que atingiu o seu cérebro) durante um assalto e perdeu a memória: não se lembrava nem de quem era – e, num toque de realismo do filme, teve de reaprender a andar, a falar e a funcionar normalmente. A tese do filme é a de que ele, na verdade, virou outra pessoa: uma pessoa com caráter, legal, interessante, por quem a mulher dele (em sua identidade prévia) voltou a se apaixonar… [Vide http://www.imdb.com/title/tt0102768/]. Vide também o filme brasileiro Se eu Fosse Você, de 2006, em que os personagens – Tony Ramos e Glória Pires – trocam de identidade quando a mente de um passa a ocupar o corpo do outro, e vice-versa – ou seria o oposto: quando o corpo de um se apropria da mente do outro, e vice-versa. Curiosa e significativamente, a sinopse do filme no International Movie Data Base, afirma que os dois “trocaram de corpos” – “switched bodies”. No filme um dos personagens pergunta: se eu me jogar da janela, quem vai morrer, eu ou você? [Vide http://www.imdb.com/title/tt0448927/]. Estava para sair (quando eu escrevi a primeira versão deste artigo, em 2008), ou já saiu (hoje eu o reviso em 2022), Se eu Fosse Você 2. [Vide, para a sequência, http://www.imdb.com/title/tt1099227/]).

É verdade que, como sugere Robert Heinlein (com base, provavelmente, no que diz a maioria dos cientistas, que são, quase todos eles materialistas, e não dualistas, como René Descartes, ou até trialistas, como Karl Raymund Popper), nossa memória tem, no cérebro, a sua indispensável base física e biológica (se o cérebro morrer vão-se embora com ele nossas memórias). Talvez, como o próprio Heinlein sugere, em seu famoso romance, até mesmo o restante de nosso sistema nervoso tenha papel nisso, alguns hábitos e trejeitos nossos, que envolvem componentes físico-biológicos, ficando armazenados, não no cérebro, mas no restante do sistema nervoso central, podendo sobreviver até mesmo a um transplante de cérebros! Mas deixando de lado essa controvérsia científica meio futurística, a sugestão de Locke parece fazer muito sentido: eu sou quem eu me lembro de ter sido… Ou, como preferia dizer o Rubem Alves, eu sou o que fui… ou eu sou quem fui… ou, se o Rubem se lembrasse bem de suas leituras de Locke, eu sou quem eu me lembro de ter sido… Eu ainda sou protestante, dizia ele, porque um dia eu fui… e, eu acrescento: e porque me lembro claramente de ter sido! [Veja a esse propósito o belo artigo do Rubem Alves, “Reflexões de um Protestante Obstinado”, escrito originalmente em 1981, e transcrito em mais de um blog meu, mas a transcrição definitiva é no meu blog Rubem Alves: Teólogo, Filósofo, Educador, que eu criei como um tributo ao amigo querido, no endereço https://rubemalves.com/2021/09/16/rubem-alves-confissoes-de-um-protestante-obstinado/.%5D

O leitor atento terá percebido que, na discussão da identidade pessoal, passei rapidamente de características físicas e biológicas, como impressões digitais e arcadas dentárias, passando por questões que parecem, à primeira vista, ser puramente mentais, como nossa memória, algo que é discutido em manuais de psicologia e não em tratados de biologia ou, muito menos, física, e chegando, finalmente, a questões que são quase mais-do-que-mentais, chegando, quem sabe, ao plano do social, ou quem sabe, do socio-mental, ou da psicologia social: nossas características intelectuais e afetivas, nossa criatividade, nossa imaginação, nossa sensibilidade, quiçá nossos valores — tudo isso faz parte de nossa identidade pessoal, não faz? Ou será que devemos distinguir a identidade física-biológica (que é de natureza material), a identidade pessoal (que é de natureza mental, estando vinculada à memória, ou, pelo menos, dependente dela), e a identidade social, ou psico-social, que envolveria essas outras características nossas que acabei de mencionar: nossas características intelectuais (nossa inteligência e nossas ideias) e afetivas (as coisas de que gostamos e as que detestamos), nossa criatividade, nossa imaginação, nossa sensibilidade, quiçá nossos valores mais básicos (não só nossos gostos e preferências, como gosto mais de churrasco de picanha do que de carne moída com farinha de mandioca misturada).

Exceto no caso de alguns dinossauros mentais, que preferem morrer e se fossilizar a mudar de ideias, de afetos, de hábitos e costumes, etc., é possível que esse conjunto de características que estou chamando de psico-sociais (nossas ideias, etc.) mudem mais rapidamente que as células do nosso corpo… Tem gente que hoje pensa uma coisa, amanhã pensa outra, ontem gostava do Bolsonaro, hoje o acha um monstro genocida, antes era calmo, sereno, tolerante, hoje é explosivo, agressivo, disposto a partir para a ignorância diante da menor desavença ou discordância… (Já li em algum lugar que, ao casar, a mulher espera mudar o homem com quem está se casando, e o homem espera que a mulher que está desposando nunca mude, fique sempre como era quando solteiros os dois, carinhosa, delicada, atenciosa, prestativa, de fala mansa e dengosa… Os dois se frustram.)

O grande desafio, como os filósofos gregos já sabiam, é descobrir a continuidade que subjaz à mudança… E a continuidade, Locke descobriu, é dada, no caso da identidade pessoal, por fatores mentais, como a memória! Quando a memória falta, perdemos a continuidade, e passamos a ser outro, como no caso do filme de Harrison Ford. Ou a descontinuidade, como nós descobrimos a cada dia, é dada pela mudança de ideias, de características afetivas, de sensibilidades, de estilos de relacionamento, de formas de tratamento, de hábitos e costumes, etc.

Voltei a pensar sobre essas coisas (sobre as quais penso há muito tempo e até mesmo já escrevi bastante aqui) porque, recentemente, um número razoável de pessoas tem me dito que mudei bastante – talvez até demais – e quer saber quem sou eu hoje: serei eu quem agora pareço ser ou seria aquilo que eu antes era, o que para elas seria o meu eu real??? Em suma: há continuidade por baixo da mudança, ou eu sou um caso de mudança de personalidade?

Pablo Neruda confessou que viveu. Eu confesso, sem nenhuma vergonha, que mudei – na realidade, estou ainda mudando. Porém, a questão de 64 mil dólares é: aquilo que sou agora é o que realmente sou, ou será que meu eu real é aquilo que eu antes era e hoje eu mudei de identidade, vale dizer, de personalidade? 

Durma-se com um barulho desses… A questão é difícil. Confesso que se eu não fosse um cara bastante opinionado, com convições firmes, eu estaria no momento passando por uma enorme crise de identidade. Mas, como sou teimoso, persisto em acreditar, mesmo quando confrontado com evidência em contrário, que eu continuo eu mesmo. Como disse YHWH no passado, eu sou o que sou. A despeito de evidências ao contrário. E acabou. Ponto final. Quem quiser discordar, que discorde – mas eu não posso discordar de mim mesmo.

E estou certo de que continuo o mesmo Eduardo Chaves que eu era porque, afinal de contas, apesar das mudanças que eu não nego nem contesto, mas francamente admito, eu me lembro de que sou o mesmo que fui. Eu me lembro de que vivia, desde minha mais tenra idade, com Oscar e Edith Chaves, e os chamava de pais… Eu me lembro de que meus pais tiveram outros filhos e que, portanto, eu tive – e tenho – irmãos: Flávio, primeiro, depois Priscila, depois Eliane. Eu me lembro de que vivi em Marialva e Maringá no Paraná, nos anos 40 e no começo dos anos 50, e de que me mudei para Santo André no começo de 1952. Eu me lembro de que estudei no Grupo Escolar “Prof José Augusto de Azevedo Antunes”, na Rua Senador Flaquer, em Santo André, e de que tive como professoras, no Primário, de 1952 a 1955, Donas Maria José Ferraz de Alvarenga, Judith Ramos Milaneze, Elídia Lopes Duarte e Mercedes da Silveira Lopes (depois Mercedes Lopes Ferraz, quando ela se casou). Lembro-me de que, junto com o quarto ano Primário, fiz dois meses de Curso de Admissão com a Carla Strambio (hoje minha colega tradutora juramentada). Lembro-me de que entrei no Colégio Estadual e Escola Normal “Dr Américo Brasiliense” em 1956 e lá fiquei até 1959, quando recebi o diploma (ou certificado, sei lá) do Ginásio, no Cine Tangará, em Santo André (e o Pedro Cia foi nosso paraninfo).

Não vou entediar o leitor com todos os fatos de que me lembro – e vou me calar sobre as pessoas que amei, ou sobre aquelas que quis ver mortas (ou que, ainda agora, gostaria de ver mortas, no Inferno, já sofrendo, desde já, as primícias das penas eternas…). Mas eu sou o que fui. Eu sou aquilo que me lembro de ter sido… Admito que a memória é seletiva (deixa coisas de fora) e até mesmo inventiva (traz pra dentro coisas que nunca aconteceram). Foi Mark Twain (se bem me lembro…) que disse, quando já velho, que é mentira que a nossa memória fica mais fraca quando a gente fica mais velho. A memória dele era tão boa, disse, que ele conseguia se lembrar até de coisas que nunca aconteceram… 

De qualquer forma, mesmo admitindo que, excepcionalmente, deletamos uns fatos e inventamos outros, nossa memória é que nos faz ser, hoje, o que somos. Dando por pressuposto que a maior parte de nossas memórias é verídica, nós somos, hoje, o que somos, porque fomos o que fomos no passado – e nos lembramos disso!

Assim, eu sou quem eu sou hoje, apesar de todas as mudanças, porque me lembro de que, em determinados momentos, quis mudar… e, como acontece agora, mudei e continuo mudando – e me lembro também de que, em outros momentos, quis mudar e, por alguma razão, não mudei… E me lembro ainda de que, em relação a determinados aspectos (os físicos e biológicos, por exemplo), mudei sem necessariamente querer mudar… 

E, em outros momentos, quis mudar e alguém me convenceu de que não era bom negócio…

Ontem [esta parte está sendo escrita em 9.1.2022, de manhã, como parte da revisão deste artigo] participei de um encontro virtual de 24 horas de “popperianos” — gente que, em maior ou menor medida, subscreve a ideias originadas pelo filósofo austríaco-depois-britânico Karl Raymund Popper — Sir Karl, como gostam de chamá-lo os entendidos. (Tomem cuidado: Bertrand Russell é “Lord Russell”, o título é herdado, mas Popper é apenas “Sir Karl”, título que nenhum filho herdou, até porque ele nunca teve nenhum filho). Quando recebi o convite, de meu amigo australiano Rafe Champion, me perguntei: mas será que eu sou mesmo, ou suficientemente, “popperiano” para participar? Certamente eu aceito e endosso muitas das ideias extremamente originais de Popper. Mas basta isso para ser popperiano? Não tenho dúvida de que meu orientador no doutorado, William Warren Bartley, III, que, por sua vez, teve Popper como orientador do seu doutorado, é popperiano. Embora eles tenham se desentendido em um momento, e ficado vários anos sem se ver e mesmo sem conversar, por carta ou qualquer outro meio, há razoável consenso entre os “popperianos” de que Bartley foi o “discípulo amado de Popper”, não só o mais brilhante, mas o que, apesar da briga, foi o mais querido, aquele que, para Popper, fez as vezes do filho que ele nunca teve, e que, como qualquer filho, especialmente os muito parecidos com o pai, de vez em quando se rebelam…

Uma ideia puxa a outra, quase como se eu estivesse brincando de deixar a minha consciência entrar em regime de free flow, fluxo livre… Lembrei-me de que, ao longo do meu doutorado (1970-1972) eu, em parte, pela força combinada de ideias de David Hume, sobre quem escrevi minha tese, e de Karl Popper, meu Doktorgrossvater, decidi que eu não era mais presbiteriano, nem protestante, nem cristão, nem “teu” (o oposto de ateu). Mas será que eu havia me tornado uma mescla de humeano e popperiano? Lembro-me de que, na minha recém-descoberta ateicidade, eu me interessei pelas ideias de uma “American Humanist Association“, e pensei em me tornar sócio dela. Quando falei sobre o assunto com Bill Bartley ele me disse algo assim: “O que é isso, você acabou de se livrar de uma gaiola e quer se meter em outra?” (Ele não usou a metáfora da gaiola, que é uma metáfora, tanto quanto eu saiba, criada pelo Rubem Alves, mas a ideia foi essa: você está se libertando de uma prisão e está procurando outra?

Isso me fez refletir, na ocasião, se era possível viver “desengaiolado”, ou, como preferia Bill Bartley, “desengajado”, “sans engagement“, “without commitment“. A tese de doutorado dele, famosa, foi publicada como Retreat to Commitment (Flucht ins Engagement, em Alemão). Nela ele criticou principalmente a Neo-Ortodoxia de Karl Barth, que, desiludido com a Teologia Liberal, resolveu se comprometer (engajar-se, fugir para o engagement) com “a revelação em Cristo”…

E “popperiano”, a gente poderia ser, sem ser criticado? A resposta foi de que popperiano a gente só poderia ser, não como um “ultimate commitment“, nem como um comprometimento total, que negligencia os concorrentes e os críticos, mas como algo provisional, sujeito e aberto a críticas, um popperianismo altamente auto-crítico, e, no caso de críticas irrespondíveis, próprias ou de terceiros, perfeitamente rejeitável — ou, se possível, modificável nos aspectos em que a crítica foi irrespondível.

Um comprometimento que a gente mesmo procura diariamente criticar, para o qual a gente procura críticas de outros… Se você resolve se considerar popperiano, seu dever é ler os críticos, os anti-popperianos, para analisar com seriedade se deve continuar sendo popperiano…

Desse jeito, sou popperiano até hoje, mas com ressalvas, e sem exclusividade. Também sou, em alguns aspectos, aristotélico, humeano, randiano, rothbardiano, cslewisiano, bultmanniano. Talvez até, em alguns aspectos, teísta, cristão, protestante, presbiteriano… Tudo isso sem compromissos definitivos e sem exclusividade.

Seria isso eclético demais? Estaria eu próximo do relativismo? Creio que não e não. Nunca seria, por exemplo, platonista, cartesiano, kantiano, hegeliano, existencialista, marxista, socialista, social-democrata keynesiano, presbiteriano fundamentalista…

Se eu não me lembrasse desses fatos, poderia fazer sentido afirmar que eu mudei recentemente de identidade (ou de personalidade). Mas eu me lembro do que eu era e sei o que eu sou, e sei que as mudanças recentes foram desejadas — e que outras mudanças ainda virão no tempo que me resta, apesar de eu estar beirando os oitenta. Apesar de, no momento, estar contente com o que hoje sou, ou estou me tornando – ainda que possa haver quem prefira que eu não tivesse mudado…

Desculpem-me os leitores se o meu post pode, em alguns aspectos, parecer enigmático ou mesmo ininteligível. Garanto-lhes que não é enigmático e que faz bastante sentido. Podem crer. Raul Seixas poderia até dizer que eu sou uma “metamorfose ambulante” — sem deixar, em nenhum momento, de ser eu mesmo. 

Em São Paulo, 22 de Dezembro de 2008. Revisão, com mudanças significativas, quatorze anos depois, em 9 de Janeiro de 2022. Quem quiser cotejar esta versão revista com a versão original, pode consultar “Identidade Pessoal e Mudanças [versão original de 2008]”, neste mesmo blog, Liberal Space, no endereço https://liberal.space/2008/12/22/identidade-pessoal-e-mudancas-versao-original-de-2008/.

Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo

Conteúdo

  1. Considerações Iniciais
  2. O Problema
  3. Um Interlúdio Histórico e Autobiográfico
  4. A Culpa foi de Rudolf Karl Bultmann
  5. A Construção de um Novo Eu
  6. O Princípio e o Fim da Teologia Liberal
  7. O Legado da Teologia Liberal
  8. Considerações Finais

1. Considerações Iniciais

Como já informei num post no Facebook, finalmente, nesta viagem que acabo de fazer aos Estados Unidos (fim de Junho, começo de Julho de 2015), consegui completar minha cópia da coleção de 90 livretos escritos por vários autores e publicados de 1910 a 1915 sob o título de The Fundamentals (Os Fundamentos — mais corretamente, Os Princípios Fundamentais).

A coleção é considerada até hoje a (evidentemente segunda) Bíblia do Fundamentalismo Religioso Americano. A primeira é, naturalmente, a própria.

A coleção, hoje esgotada, e encontrada, portanto, apenas em sebos, foi preservada para a posteridade, em forma razoavelmente acessível, em uma edição em quatro volumes, preparada, em 1917, a pedido do Bible Institute of Los Angeles (hoje Biola University – BIOLA é uma sigla formada pelas iniciais do nome antigo), depois de revisada pelos dois principais editores da série original: R. A. Torrey e A. C. Dixson. Aparentemente, nem todos os livretos originais foram incluídos na edição em quatro volumes, mas apenas os considerados mais importantes pelos editores. A Baker House publicou essa edição em quatro volumes, reimprimindo-a várias vezes. Mesmo assim a coleção está hoje esgotada.

A iniciativa de solicitar a eminentes autores fundamentalistas (ou, em alguns casos, apenas conservadores) que escrevessem livretos sobre diferentes aspectos da doutrina cristã da ótica fundamentalista partiu de dois empresários conservadores americanos, que financiaram a iniciativa e contrataram os editores que a gerenciariam. Os empresários eram irmãos: Lyman e Milton Stewart, magnatas californianos da indústria petrolífera.

Levei quase dois anos coletando esses livros — e acabei ficando com alguns volumes duplicados. Tenho, por exemplo, duas cópias do volume três e do volume quatro dessa edição em quatro volumes.

Quase no fim de minha busca encontrei uma nova edição dos livretos, agora em um volume só. Para celebrar seu jubileu em 1958, o Bible Institute de Los Angeles (BIOLA) lançou uma nova edição dos livretos, que incluía 64 dos 90 livretos incluídos na edição em quatro volumes (que já não incluía todos os livretos). A escolha e revisão do volume, que teve o título de The Fundamentals for Today (Os Fundamentos para Hoje), ficou a cargo de Charles L. Feinberg. No mesmo ano, essa coleção menor em um volume foi também publicada pela Kregel Publications que acrescentou Introduções Biográficas preparadas por Warren W. Wiersbe e manteve o título original (The Fundamentals), mas acrescentou um subtítulo: The Famous Sourcebook of Foundational Biblical Truths (O Famoso Livro-Fonte de Verdades Bíblicas Fundacionais).

Assim, estou bem munido para terminar meu livro sobre a Controvérsia Fundamentalista – Modernista na Igreja Presbiteriana Americana, que, como já informei alhures, está virando uma Breve História do Presbiterianismo Americano, contada da perspectiva do conflito (aparentemente perene) entre seus Fundamentalistas (conservadores radicais) e seus Modernistas (liberais).

Como sempre acontece quando escrevo sobre questões históricas, meu texto tem um cunho bastante biográfico. Dentro da história maior, é o entendimento e a explicação de minha própria história que eu busco.

2. O Problema

Faz 15 anos (em 1990) eu escrevi um artigo, em Inglês, para apresentar na Second Assembly of the World’s Religions, em Los Angeles, patrocinada pela New Ecumenical Research Association (New ERA), no final daquele ano. O título do artigo foi “How Far Can a Doctrine Change Before Becoming Something Else?” (“Até que Ponto uma Doutrina Pode Mudar Sem se Tornar uma Alguma Outra Coisa?”). A transcrição do artigo original pode ser encontrado em meu blog Liberal Space no endereço: https://liberal.space/2014/05/26/how-far-can-a-doctrine-change-before-becoming-something-else/. Embora tenha sido escrito em 1990 e disponibilizado no blog apenas em 26/5/2014, o foco do artigo foi um tema que sempre me preocupou desde por volta de 1965, quando percebi que estava deixando de ser um cristão presbiteriano ortodoxo (conservador fundamentalista) para me tornar, digamos, um cristão liberal (frequentemente chamado de modernista), meio calvinista, meio luterano, meio adepto da chamada Reforma Radical, meio católico, meio ateu — não mais “apenasmente” presbiteriano.

Discuti essa minha passagem da ortodoxia para o liberalismo, que foi extremamente importante em meu processo de “desconversão”, em dois artigos e em um vídeo que também disponibilizei recentemente no meu blog.

Um dos artigos se chama exatamente “Processo de Desconversão”, e foi transcrito em meu blog no mesmo dia do artigo anterior — ou seja, em 26/5/2014. Trata-se, porém, na verdade, de transcrição comentada de pedaço de uma carta que escrevi por volta de 1990 — um pouco depois do artigo de 1990, pois faço referencia a ele. Esse novo artigo está disponível em https://liberal.space/2014/05/26/processo-de-desconversao/.

O outro artigo foi escrito no dia anterior à transcrição dos dois artigos que acabo de mencionar (25/5/2014). Ele não havia sido publicado ou mesmo escrito antes e tem o título de “Duas Crises Hermenêuticas”, podendo ser consultado em https://liberal.space/2014/05/25/duas-crises-hermeneuticas/.

Nesse artigo (“Duas Crises”) está contido um vídeo, que pode ser encontrado também em meu canal no YouTube https://www.youtube.com/watch?v=I30kYgh3A1o, com o título “Eduardo Chaves: Da Hermenêutica Bíblica ao Liberalismo”. Esse vídeo é um depoimento meu prestado ao meu sobrinho Vitor Chaves de Souza, também teólogo, por insistência dele, sobre a evolução (ou involução, como meu pai certamente acharia) de minha visão teológica.

Os três artigos e o vídeo apontam para o que sempre me pareceu um dilema ou quase uma aporia que persegue a História do Pensamento Cristão desde o seu início: como atualizar o objeto de nossa fé, face a novos contextos históricos, sociais, econômicos, políticos e principalmente culturais, e os novos desafios que eles apresentam à fé, preservando, ao mesmo tempo, de um lado, a “relevância” dessa fé e, de outro lado, a sua “identidade” e “continuidade”?

É relativamente fácil “atualizar” o objeto da nossa fé, fazendo sua “acomodação” a novos contextos, se não estamos muito preocupados com a questão da preservação de sua identidade e continuidade.

Por sua vez, uma preocupação excessiva com a identidade e continuidade da fé pode levar ao seu “afastamento” e até mesmo “isolamento” do contexto em que essa fé deve ser proclamada.

As alternativas do dilema ou da aporia são: uma atualização ou acomodação que torna relevante uma fé que não parece ser mais distintamente cristã, ou uma recusa a essa atualização e acomodação que preserva a identidade e continuidade de uma fé que, entretanto, parece ter perdido sua relevância no novo contexto.

Foi isso, em essência, e usando aqui novos conceitos, que discuti no meu artigo de 1990: “Até que Ponto uma Doutrina Pode Mudar Sem se Tornar uma Alguma Outra Coisa?”. John Gresham Machen (1881-1937), chamado de o fundamentalista mais brilhante que o presbiterianismo já teve, defendeu, em seu famoso livro Christianity and Liberalism (Cristianismo e Liberalismo), de 1923, a tese de que a Teologia Liberal do século 19 (e início do século 20) era até um esforço intelectual interessante — mas não era mais Cristianismo: havia se tornado uma nova religião. Ou seja, no esforço de buscar relevância para o “homem moderno”, atualizou-se e acomodou-se tanto que se tornou uma “outra coisa”. Acho essa uma posição interessante.

3. Um Interlúdio Histórico e Autobiográfico

Cresci na Igreja Presbiteriana do Brasil, filho de um pastor extremamente conservador — hoje eu o caracterizaria como fundamentalista. Cresci nesse ambiente e foi nesse ambiente que resolvi estudar teologia com o intuito de ser pastor, como meu pai. Fui para o Seminário Presbiteriano de Campinas em Fevereiro de 1964 e lá cheguei, depois de três anos no Instituto José Manuel da Conceição, bastante conservador do ponto de vista teológico, moral e político. Hoje percebo que nunca fui fundamentalista porque me faltavam quatro características que me parecem (hoje) ser essenciais no fundamentalista:

Certeza absoluta de suas convicções: o fundamentalista não tem a menor dúvida de que está de posse da verdade, de toda a verdade, e de nada mais senão a verdade;

Intolerância de convicções discordantes: se o fundamentalista está de posse da verdade, e alguém discorda dele, essa pessoa só pode estar errada — e ele não entende por que deva deixar o erro prosperar;

Beligerância, ou disposição de combater opiniões discordantes, até que os que as mantêm se convençam de que estão errados e se disponham a abandonar suas opiniões;

Dogmatismo, ou fechamento de mente, ou ainda indisposição para buscar a verdade através da leitura, da reflexão e do debate acerca de suas próprias opiniões, e, assim, aprender, pois ele acredita já estar de posse de toda a verdade, não contaminada por nenhum erro: não precisa, pois, aprender mais nada.

Eu certamente tinha minhas convicções quando cheguei ao Seminário. Minhas convicções eram conservadoras, mas eu não era fundamentalista, porque logo descobri que minhas convicções não eram inabaláveis, nem muito firmes. Eu tinha dúvidas, não certeza absoluta, acerca da veracidade daquilo em que acreditava. Por isso, tinha muito interesse em estudar, refletir, debater aquilo em que acreditava — e, assim, aprender mais.

Logo no primeiro ano de Seminário li um livrinho fundamental de John Stuart Mill (1806-1873): On Liberty (Da Liberdade). Ali ele faz notar, com toda razão, que silenciar a expressão de uma opinião é roubar a raça humana, tanto a geração presente como a posterior, sendo ainda mais prejudicados os que discordam do que os que mantêm a opinião, pois, se a opinião é correta, aqueles que dela discordam estão perdendo a oportunidade de trocar o erro pela verdade, e, se é errada, os dela discordantes perdem o grande benefício de adquirir uma percepção mais clara e mais viva da verdade, proveniente de sua colisão com o erro. Essas observações de Mill me marcaram, porque me pareceram totalmente convincentes. Ninguém consegue endossar essas palavras e ser um fundamentalista. (Num dos artigos que desencadeou a crise de 1966 no Seminário Presbiteriano de Campinas, eu fiz referencia a essa passagem de Mill).

Para aprender, é preciso ouvir e ler acerca de ideias diferentes das da gente — e estar disposto a refletir seriamente sobre elas e a discuti-las. A atitude adequada, nesse caso, é de debate de nossas próprias ideias — não de combate às ideias diferentes das nossas: estas precisam fazer parte do debate!

Mas essa combinação de atitudes (dúvida, tolerância, busca da verdade, abertura para debate, desejo de aprender) pode vir a ser fatal para as convicções originais — e o foi, no meu caso. Ela representou o fim do meu eu conservador e me mostrou que a Igreja Presbiteriana do Brasil, com o seu conservadorismo (na realidade, um fundamentalismo disfarçado, que tenta se esconder atrás de um verniz acadêmico intelectualizado), não era lugar para mim. Na verdade, a igreja percebeu isso antes de mim. Tentou me manter, proibindo-me de estudar por um tempo, na ilusão de que eu era “recuperável”. Mas eu não tinha mais jeito.

4. A Culpa foi de Rudolf Karl Bultmann…

O principal agente desencadeador de minha gradual perda de fé — não reconhecida como tal inicialmente: eu achava que estava apenas deixando de ser conservador — foi Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), teólogo alemão de confissão luterana, professor de Novo Testamento na Universidade de Marburg. Não vou apresentar em detalhe suas ideias aqui: elas são bem conhecidas. Só vou dizer que ele considerava mítica a visão de mundo do Cristianismo primitivo. Para os cristãos primitivos o mundo era o cenário de uma batalha entre seres e poderes sobrenaturais, bons e maus. O confronto entre os espíritos bons e os maus era constante. O mundo, cenário desse confronto, era plano, mas dividido em três níveis: o do meio, em que vivemos e em que esse conflito se dava; o de cima, local habitado por Deus e os espíritos do bem que são seus instrumentos e mensageiros; e o de baixo, local habitado por Satanás, o inimigo de Deus, e os espíritos do mal, seus agentes, que se aliam a ele. O que acontece aqui, no nosso nível, é em grande medida determinado pelas ações desses poderes sobrenaturais. São eles que nos tornam doentes (a doença em boa parte sendo considerada possessão demoníaca), são eles que nos curam (libertando-nos dos espíritos maus que nos afligem), são eles que nos amaldiçoam e que nos abençoam, fazendo com que, no primeiro caso, as coisas não deem certo para nós, e, no segundo caso, que nossa vida dê certo. Nosso fracasso e nosso sucesso não dependem de nós — dependem do desfecho desse embate entre os espíritos do mal e os espíritos do bem.

Toda essa maneira de entender o mundo, dizia Bultmann, é mitológica. Interpretado literalmente, esse conjunto de mitos é totalmente inaceitável ao homem moderno — para quem o que acontece aos seres humanos aqui na terra é decorrência de suas ações e de ocorrências que se passam no mundo natural, onde as causas são sempre ações humanas ou outras ocorrências naturais. A interpretação literal do conjunto de mitos contido no Novo Testamento deve ser abandonada. O Novo Testamento só será relevante para o homem moderno e contemporâneo se for interpretado não literalmente: se conseguirmos encontrar nele um novo “sensus plenior” (sentido mais profundo, mais pleno).

Diante de mitos do tipo dos que encontramos no Novo Testamento, temos basicamente duas alternativas, segundo Bultmann:

  • ou rejeitamos o mito, considerando-o uma forma de discurso ultrapassada, e nos tornamos agnósticos ou ateus, abandonando a nossa identidade cristã;
  • ou interpretamos o mito como linguagem cifrada que, corretamente decodificada e interpretada, pode ter um significado importante para as nossas vidas.

Bultmann optou pela segunda alternativa. Sua Teologia do Novo Testamento é uma tentativa de desenvolver uma hermenêutica existencial que seja capaz de extrair, dos textos míticos do primeiro século (o Novo Testamento), algum sentido importante para o homem do século 20. Todo o universo conceitual da filosofia existencial de Martin Heidegger, colega de Bultmann em Marburg, é colocado a serviço desse projeto hermenêutico: a existência fora da fé, ou segundo a carne, é uma existência inautêntica; a existência na fé, ou segundo o espírito, é a existência autêntica; a fé é, de certo modo, a decisão (um “salto no escuro” existencial, do tipo kierkegaardiano) de uma forma de existência para outra. E assim caminha a nossa vida.

Fiquei fascinado com a teologia de Bultmann e virei um bultmanniano. Traduzi seu artigo do Alemão para o Português (com a ajuda das traduções para o Inglês, do Francês e do Espanhol, que eu dominava melhor do que o Alemão). Quem revisou a tradução foi o Rev. Osmundo Affonso Miranda, professor de Novo Testamento em Campinas e meu mentor nos dois primeiros anos de seminário. Ele queria me convencer a fazer do Novo Testamento minha área de especialização. O Osmundo saiu do Seminário em meados de 1966, indo para os Estados Unidos. Fiquei sem mentor. Os eventos que se desenrolaram no primeiro semestre desse ano de 1966 (e que estão relatados em outros posts de meu blog) refletiram um pouco a ausência de apoio e aconselhamento de uma pessoa amiga, mas mais velha e experiente, que eu passei a ter a partir da saída do Osmundo do Seminário. Eu 1966 eu tinha 22 anos. Herdei dele vários livros que ele não quis levar para os Estados Unidos.

Um breve parêntese. Acabou de ser publicado nos Estados Unidos um livro extremamente detalhado e bem escrito sobre o pensamento de Bultmann, que chega a quase mil páginas: The Mission of Demythologizing: Rudolf Bultmann’s Dialectical Theology, de David W. Congdon (Fortress Press, lançado em 1 de Junho de 2015). Recomendo a leitura. Fim deste parêntese.

5. A Construção de um Novo Eu

Procurei, inicialmente, me dedicar à área do Novo Testamento, como Bultmann (e como o Osmundo havia me sugerido). Em 1967, depois de ter sido expulso em 1966 do Seminário Presbiteriano de Campinas, vim a estudar na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, no Morro do Espelho (Spiegelberg), em São Leopoldo, fiz um trabalho exegético para o Professor Gerhard Barth (*) acerca de uma passagem de Romanos que era central para Bultmann: Romanos 8:12-17. O título do trabalho (enorme, como sempre) foi: “Bultmann e a Exegese de kata sarkis [segundo a carne] e kata pneuma [segundo o espírito] em Romanos 8:12-17”.

Enfim… Parecia que meu destino estava traçado quando fui para Pittsburgh, fazer meu Mestrado no Pittsburgh Theological Seminary, em Agosto de 1967. Seria um teólogo (ou scholar) do Novo Testamento. Fiz até um esforço nesse sentido. No meu primeiro ano, escrevi uma exegese (também longa) para meu professor de Exegese do Novo Testamento, William F. Orr, sobre a narrativa da ressurreição de Jesus no Evangelho de Marcos (Marcos 16:1-8). Essa narrativa era tida por muitos como a descrição mais antiga no Novo Testamento dos acontecimentos que compõem a história da ressurreição. O título do meu trabalho foi: “The Gospel Resurrection Narratives: An Exegesis of Mark 16:1-8” (As Narrativas da Ressurreição nos Evangelhos: Uma Exegese de Marcos 16:1-8). Ousadamente, discordei da tese de que a narrativa (pericope) marcana da ressurreição fosse a mais antiga e mesmo mais confiável do Novo Testamento. Atribuí essas características à narrativa do Evangelho de João. Na realidade, o trecho que vai do versículo 9 até o fim do capítulo 16 de Marcos é hoje considerado uma interpolação posterior que não fazia parte dos manuscritos mais antigos do Novo Testamento. Ele é omitido na maior parte das edições e traduções críticas da Bíblia. Esse fato não empresta credibilidade aos oito versículos anteriores — pelo contrário.

No entanto, a partir do momento em que comecei a estudar História do Pensamento Cristão (História da Doutrina), com Ford Lewis Battles (1915-1979), o grande tradutor para o Inglês das Institutas da Religião Cristã, de João Calvino, na edição Library of Christian Classics, mestre que cobria o período antigo até a Reforma, e com Dietrich Ritschl (1929-), sobrinho neto do velho teólogo liberal alemão Albrecht Ritschl, que cobria o período moderno e contemporâneo, fiquei fascinado pela História das Ideias e pela Filosofia da Religião. A primeira disciplina investiga como é que a igreja veio a acreditar naquilo que hoje acredita, em especial diante dos desafios do pensamento não-cristão e do pensamento cristão desviante (heresia). A segunda disciplina investiga os fundamentos da fé cristã do ponto de vista epistêmico no contexto atual: que razões e evidências há, hoje, para continuar a acreditar na fé cristã, diante dos desafios da modernidade e da contemporaneidade? Em Pittsburgh meu interesse teológico se consolidou nessas duas áreas. Essa combinação não raro é letal para a preservação e manutenção de uma fé cristã ortodoxa, e o foi no meu caso.

Faço aqui um novo parêntese para dar uma ideia do que era (e ainda é) o Pittsburgh Theological Seminary. Ele resulta de várias fusões e consolidações de seminários presbiterianos anteriormente existentes, oriundos dos vários ramos em que a denominação se desdobrou, ao longo dos anos, à medida que os presbiterianos se dividiam e, posteriormente, se uniam de novo em sua conturbada história de cismas e reunificações. Sua última “encarnação”, na qual estudei, surgiu quando, em 1959, o Pittsburgh-Xenia Theological Seminary (pertencente à Igreja Presbiteriana na América do Norte), e o Western Theological Seminary (da Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América), ambos localizados em Pittsburgh, PA, se consolidaram, formando o seminário em sua atual “personalidade”, em decorrência da fusão das duas igrejas. Pittsburgh-Xenia tinha suas raízes no primeiro seminário teológico presbiteriano organizado em terra americana, em 1794 — dezesseis anos, e, portanto, antes do mais bem conhecido (e bem mais conservador) Princeton Theological Seminary. O seminário de Pittsburgh tem, hoje, portanto, mais de 220 anos a serviço do presbiterianismo. Quando lá estudei, de 1967 a 1970, esse número era quase 50 anos menor. Neste ano de 2015 foi comemorado o aniversário de 45 anos da formatura de minha turma de Mestrado — e 48 anos do meu ingresso no seminário.

Vários teólogos e professores famosos trabalharam lá. Além de Orr, Battles e Ritschl, já mencionados, Markus Barth (1915-1994), professor de Teologia do Novo Testamento, filho de Karl Barth (1886-1968, que doou ao seminário a escrivaninha em que seu pai trabalhou por longos anos), Hans Eberhard von Waldow (?-?), professor de Teologia do Velho Testamento, alemão que passou algum tempo no Brasil, na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), e John Henry Gerstner (1914-1996), professor de História da Igreja, um dos mais famosos defensores do conservadorismo presbiteriano na segunda metade do século 20, que acabou por deixar a Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América para ingressar na conservadora e ortodoxa Igreja Presbiteriana na América, criada em 1936 por John Gresham Machen (1881-1937), chamado de o fundamentalista mais erudito que o mundo já conheceu. Antes da consolidação mencionada de 1959, trabalharam no Western Theological Seminary dois professores que vieram a fazer parte dos luminares da chamada “Teologia de Princeton”: Archibald Alexander Hodge (1823-1886, filho do mais famoso teólogo americano, Charles Hodge, 1797-1878, de Princeton Theological Seminary), que, depois de vários anos em Pittsburgh, foi chamado para suceder o pai naquele seminário, e Benjamin Breckinridge Warfield (1851-1921), que, também foi chamado para Princeton, depois de vários anos em Pittsburgh. Hodge, o filho, e Warfield são autores da chamada “Teoria da Inspiração Plenária” da Bíblia, ainda muito respeitada por fundamentalistas e conservadores até hoje. Vide o longo artigo deles na revista Presbyterian Review, Abril 1881, pp. 225-260, em http://www.bible-researcher.com/warfield4.html. Fim do novo parêntese.

6. O Princípio e o Fim da Teologia Liberal

Neste capítulo vou sucintamente resumir a contribuição de Schleiermacher, Troeltsch, e Harnack — três dos mais importantes teólogos liberais.

A. Schleiermacher

A Teologia Liberal é filha das críticas feitas pelo Iluminismo à religião e à teologia tradicional. Friedrich Schleiermacher (1768-1834) é considerado o pai da teologia moderna e o fundador da Teologia Liberal. Karl Barth (um dos grandes críticos da Teologia Liberal) disse dele o seguinte:

“O primeiro lugar na história da teologia da época mais recente pertence, e sempre pertencerá, a Schleiermacher. Ele não tem rival. . . . Schleiermacher não criou escola, não deixou discípulos: ele fundou toda uma era, e todos nós somos alunos dele.” (From Rousseau to Ritschl, p. 306).

Como fundador da Teologia Liberal, Schleiermacher lhe deu o tom com o qual influenciou o restante da teologia do século 19.

Antes de discutir esse tom, é bom esclarecer que Schleiermacher foi o primeiro teólogo na história do Cristianismo:

  • A perceber quão radical e profundo foi o desafio das críticas do Iluminismo à teologia cristã;
  • A concluir que era impossível continuar fazendo teologia da mesma forma que antes;
  • A extrair de uma parte da tradição cristã (o Pietismo) os elementos para a construção de um outro edifício teológico: a Teologia Liberal;
  • A construir uma teologia que se alicerça, não na razão, ou na revelação, ou na tradição, como tais, mas no sentimento, usando a razão, a revelação e a tradição para esclarecer os sentimentos que produzem a experiência religiosa.

O tom que Schleiermacher deu à Teologia Liberal é, no meu entender, o seguinte: ele promoveu uma revolução copernicana na teologia no início do século 19 ao defender a tese de que a teologia — inclusive a bíblica — tem que ver com o homem, e não com Deus. Para ele, a teologia se caracteriza, não como uma discussão da revelação de Deus ao homem, mas como uma discussão dos esforços do homem para alcançar a Deus, vale dizer, para transcender seu sentimento de dependência, suas limitações, sua finitude.

Da mesma forma que Copérnico percebeu que os diversos problemas da astronomia não seriam resolvidos se a Terra fosse considerada o centro do sistema planetário, e ali colocou o Sol, Schleiermacher percebeu que os diversos problemas que o Iluminismo colocou para a teologia não seriam resolvidos se Deus fosse considerado o foco da reflexão teológica, e ali colocou o Homem, seus sentimentos, sua experiência de dependência, sua frustração com sua limitação, sua impotência diante de sua finitude.

A partir de Schleiermacher, e durante toda a duração da Teologia Liberal, que só terminou (se é que terminou… — para mim, Bultmann é um liberal) nas primeiras décadas do século 20, em grande parte em decorrência da crítica barthiana, a teologia passa a ser a discussão dos esforços humanos — quase sempre frustrados (o que não quer dizer que sejam inúteis) — de buscar o infinito.

É através do estudo do homem, de sua vida, de sua experiência, de seus sentimentos, que se pode chegar a alguma compreensão, mas ainda assim muito limitada, do que se entende por Deus — o Infinito.

A principal característica do homem, e que se revela de forma cabal em sua experiência, é sua finitude, evidenciada no fato de que sua vida tem fim, tem um limite que não depende dele próprio. A experiência humana de finitude implica, pois, também a experiência de dependência. Buscar a Deus é buscar o Infinito que está além de nossa finitude, o Ilimitado que nos impõe limites, é reconhecer o nosso caráter dependente.

Para cristãos, em especial os mais tradicionais, Schleiermacher capitulou ao Iluminismo, quando se recusou a considerar a Bíblia como revelação divina e regra de fé e prática, e relegou as confissões e as doutrinas a papel secundário.

Para os iluministas, Schleiermacher capitulou ao Romanticismo, abandonando o racionalismo da ciência e da filosofia e sucumbindo ao sentimento, à emoção, ao belo, à arte.

De certo modo Schleiermacher deixou aberta para Ludwig Feuerbach a possibilidade de dizer, de forma chistosa, que a teologia tradicional afirmava que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, enquanto a teologia moderna, por seu lado, afirmava que o homem criou Deus, ainda que como contraste, à sua imagem e semelhança…

A religião, como entendida por Schleiermacher, é elemento constitutivo e irredutível da natureza humana, que, como tal, não pode ser reduzido, de um lado, à razão ou ao intelecto, ou de outro lado, à ação moral.

Ao colocar o proprium da teologia no sentimento, Schleiermacher achou que não só respondia às críticas do Iluminismo e do Kantianismo, mas, também, que havia tornado a religião imune às críticas da razão e da moralidade.

E o infinito e ilimitado que faz com que nós, os seres humanos, nos reconheçamos tanto finitos como limitados não é uma criação humana: ele também é dado, da mesma forma que nossa experiência de finitude, limitação e dependência

Assim, Deus não é uma projeção humana, mas uma realidade, que, porém, não nos é dado conhecer a não ser como enigma, como reflexo, como contraste e negação de nossa finitude, limitação e dependência. Deus é uma realidade que escolheu se esconder de nós (Deus absconditus).

B. Troeltsch

Um dos últimos grandes representantes da Teologia Liberal — na realidade, o penúltimo — foi Ernst Troelstch (1865-1923).

No tocante ao seu entendimento da religião, em si, e de Deus, Troeltsch basicamente repete os pontos de vista de Schleiermacher

A essência da religião está no homem, não em Deus: entender a religião é entender o anseio e a busca pelo infinito por parte do ser humano e o sentimento de finitude, limitação e dependência que essa experiência produz, que é o sentimento religioso por excelência. Conhece-se Deus ao conhecer os limites do homem — inclusive os seus limites cognitivos.

Quando Troeltsch fala em revelação divina ele não se refere a um movimento de Deus em busca do homem, de cima para baixo, como se fosse, mas, sim, a um movimento, de baixo para cima, por assim dizer, do homem em busca de Deus, e ao que essa busca nos revela sobre a natureza do homem e, negativamente, e de forma obscura, sobre a natureza de Deus.

A revelação que acontece é, portanto, da natureza do homem em sua busca pelo infinito — buscar por aquilo que se contrasta com ele e contrapõe a ele.

Cada religião revela um aspecto dessa busca. Troeltsch não estava interessado apenas no Cristianismo: interessava-se por todas as religiões e sua evolução — vale dizer, sua história. É considerado um dos fundadores da chamada Religionsgeschtliche Schule (Escola [Teológica] Voltada para Estudar [e Comparar] a História das Religiões).

Troeltsch assim colocou a ênfase na história, na relação do Cristianismo com a sociedade e o estado, e no desenvolvimento dessa relação. Dá mais importância ao pensamento ético-social-político-econômico do Cristianismo do que ao pensamento dogmático, à teologia sistemática

Por isso Troeltsch se propõe a estudar a religião cristã dentro do quadro do estudo comparativo das religiões, tanto históricas como atuais, em sua rica diversidade.

Em decorrência desse estudo, Troeltsch viu o Cristianismo como um movimento religioso que, como tal, deve ser analisado:

  • No contexto social, político, econômico e religioso no qual surgiu e se desenvolveu;
  • No contexto de suas relações movimentos não-religiosos com os quais veio a interagir;
  • No contexto do estudo as Religiões Comparadas

Por isso, Troeltsch se interessou (como já observado) muito mais pela História da Igreja e pela História do Pensamento Cristão (em especial na área ética / social / político / econômica) do que pela Teologia Sistemática e a História do Dogma.

Em outras palavras, seu interesse pela História da Igreja está muito mais voltado para o que se dá “do Cristianismo para fora” do que “dentro do Cristianismo em si”.

Se chamarmos de “mundo” tudo aquilo que, em um determinado momento, não é “Cristianismo”, podemos dizer que o que interessa a Troeltsch é mais a relação entre o Cristianismo e o mundo do que o desenvolvimento interno da Igreja Cristã e suas estruturas próprias, seus sacramentos, seus rituais, sua liturgia, seus credos e confissões, seus dogmas, suas doutrinas. Ou seja: interessa-lhe seu pensamento e sua prática no âmbito ético / social / político / econômico.

Interessa-lhe em especial descobrir um modelo de interação do Cristianismo com o mundo, que ele definiu como uma tensão dialética entre as seguintes atitudes, em relação ao mundo:

  • Indiferença: convivência relativamente pacífica, um aqui, o outro lá
  • Rejeição: recusa de convivência, crítica, combate
  • Envolvimento: interação, interpenetração, transformação mútua

No terceiro estágio desse modelo há, fatalmente, interpenetração e, consequentemente, adaptação e mudança da herança recebida, pela necessidade de lidar com novas realidades (“acomodação”).

Quase sempre, na história do Cristianismo, essas três atitudes conviveram uma com as outras no seio da Igreja, mas não sem tensões e conflitos. A partir do Século 6, no Ocidente, com a queda do Império Romano Ocidental, a terceira atitude veio a prevalecer, sem que, entretanto, as outras duas atitudes deixassem de existir e até mesmo criticar severamente a acomodação.

A Reforma Protestante produz uma luta entre duas visões distintas da acomodação. Para Troeltsch o verdadeiro início da Era Moderna não se dá com o Renascimento e a Reforma, mas sim, com o Iluminismo.

Dados os seus interesses e seu referencial teórico, Troeltsch conclui que na Reforma não houve uma mudança de atitude, alterando-se só detalhes da vida interna da igreja, com pequenos ajustes na atitude adotada pela igreja para com o mundo, que, porém, continuou a ser de acomodação, i.e., de interação, interpenetração, e transformação.

Em compensação, no Iluminismo houve uma clara revolução que totalmente inverteu o equilíbrio de poder entre o Cristianismo e o mundo.

O mundo, de dominado, e condenado a viver num universo em que todas as dimensões, até mesmo a política e a econômica, tinham uma natureza de certo modo sagrada, virou totalmente a mesa e conseguiu dominar o Cristianismo, condenando-o a viver num universo secularizado ou mundano.

A questão que Troeltsch coloca é como pode o Cristianismo sobreviver, depois de tantos séculos em que foi a verdade absoluta, em um ambiente em que não há absolutos nem verdades, mas só instituições em evolução através do tempo?

Entre as verdades que sucumbiram no século 18 está a de que o Cristianismo é único, diferente das demais religiões e instituições, porque tem origem sobrenatural e é mantido graças à providência de seu Criador: todas as religiões reivindicam a mesma coisa.

Consequentemente, o desafio do Cristianismo nos séculos posteriores ao Iluminismo é manter-se e encontrar seu espaço em um ambiente em que ele não é senão uma dentre várias religiões em posição de relativa igualdade, e, num clima de secularização total.

O desafio é tanto mais difícil quanto até mesmo para os cristãos “o mundo” passou a ter maior importância do que “a igreja”.

A posição fundamentalista, intransigente, está fadada a fracassar na prática. A se insistir nela, só se pode terminar em desastre. A história do Cristianismo é altamente instrutiva a esse respeito. Ela é, olhada de longe, como um compromisso e uma acomodação constante entre as demandas utópicas do Reino de Deus e as permanentes condições da vida real no mundo.

C. Harnack

Adolf von Harnack (1851-1930) foi o último grande teólogo liberal.

Embora tenha vivido até 1930, Harnack atuou, até 1900, mais como historiador e teólogo, e, a partir de 1900, como homem de ação — gestor — que se dedicou mais a importantes atividades culturais, políticas e administrativas, tais como:

  • Reitor da Universidade de Berlin
  • Diretor da Biblioteca Nacional Alemã
  • Presidente da Academia Alemã de Ciências
  • Principal Consultor do Kaiser para assuntos culturais

Como historiador, a principal obra de Harnack é História do Dogma, 3 volumes no original Alemão e 7 volumes na tradução Inglesa, em que tem 2.407 páginas, indo até Lutero (Harnack era Luterano). Ele escreveu essa obra de 1894 a 1898.

Como teólogo, sua principal obra é A Essência do Cristianismo (que recebeu o título, em Inglês, de What is Christianity? (O Que é o Cristianismo?), escrita nos anos 1899-1900.

Como historiador, Harnack é uma unanimidade: é considerado simplesmente o maior historiador que a Igreja já teve. Como teólogo, foi muito controvertido e muito criticado.

Eis o que diz Wilhelm Pauck em seu livro Harnack and Troeltsch: Two Historical Theologians (p. 8):

“A História do Dogma terá um lugar permanente entre as obras primas da literatura teológica. Ainda que ela venha a ser ultrapassada em partes específicas, será sempre considerada, em seu todo, o trabalho mais criativo de interpretação histórica jamais feito da igreja e de sua evolução teológico-dogmática, concebido com grandeza e executado com habilidade inigualável, tanto no que diz respeito ao conteúdo como à forma.”

Embora Harnack seja unanimemente considerado o maior historiador que a Igreja já teve, sua tese principal, em relação à História do Dogma e da Igreja, também é controvertida e muito criticada. Seu livro teológico mais importante é um resumo e uma sistematização dessa sua tese.

a. O Historiador

Sua tese histórica é que o foco da mensagem de Jesus ao longo de seu ministério é a chegada do Reino de Deus, enquanto o foco da mensagem dos apóstolos, depois da morte de Jesus, é o significado da pessoa de Jesus, em especial de sua morte e ressurreição, e não mais a mensagem que Jesus pregou enquanto vivo. Isso quer dizer que a religião de Jesus (“Jesusismo”) é uma variante não legalista e não ritualista da religião judaica, enquanto o Cristianismo é uma invenção dos apóstolos.

O Evangelho de João e as Cartas de Paulo são o principal instrumento dessa transformação: o conteúdo do quarto Evangelho é teológico, não histórico, e Paulo, que não conheceu Jesus, teve papel importante nessa mudança. Sob sua tutela, e sob a influência do pensamento helenístico, o Cristianismo foi se tornando, a partir do século 2, uma religião doutrinária e dogmática, que se afasta da religião de Jesus e a nega.

As principais doutrinas definidas nos Concílios de Niceia e de Calcedônia, que serviram de base para o desenvolvimento da ortodoxia cristã, não tinham base alguma na pregação de Jesus, como, por exemplo:

  • A Divindade de Cristo, ou seja, a tese de que Jesus de Nazaré, sem deixar de ser plenamente homem, também é plenamente Deus, e, portanto, eterno, tendo sido gerado (não criado) por Deus Pai antes da criação do mundo, convivendo, assim, em uma só pessoa, as duas naturezas, a humana e a divina;
  • A Trindade, doutrina que se tornou necessária em decorrência da tese da Divindade de Cristo;
  • A Trindade é a tese de que uma única natureza divina é compartilhada por três pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito, sendo Deus, portanto, trino, sem que isso implique em triteísmo (três Deuses) e signifique, consequentemente, negação do monoteísmo (um só Deus) herdado dos Judeus
  • A tese da Divindade do Espírito parece ter sido uma conclusão meio de última hora: o Espírito foi também considerado divino e eterno, tendo “emanado” de Deus antes da criação do mundo.

A Igreja Ocidental acrescentou a cláusula, que não consta das decisões de Calcedônia, e que nunca foi aceita pela Igreja Oriental, de que o Espírito Santo emanou do Pai e do Filho: esta a famosa cláusula filioque, que teve papel muito importante na teologia Medieval e no cisma do Ocidente com o Oriente.

Várias outras doutrinas, como:

  • Igreja (vários ofícios, estrutura hierárquica, centralização das decisões no Papado, a afirmação de que fora da Igreja não há salvação, etc.);
  • Sacramentos (Batismo, Eucaristia, Confirmação, Penitência, Unção de Enfermos, Ordenação para o Sacerdócio e Matrimônio);
  • Outras (Purgatório, Oração pelos Mortos, intercessão de Maria e dos Santos, etc.);

criaram dogmas que nada têm que ver com a mensagem pura e simples do Jesus histórico.

Segundo Harnack, que era luterano, nem mesmo Lutero e os principais Reformadores, que tentaram saltar sobre a Idade Média e voltar para o Cristianismo Primitivo, estavam dispostos a recuperar a religião de Jesus, retomando apenas temas complexos da teologia paulina, como, por exemplo, justificação pela graça, fé como dádiva divina, predestinação, expiação de pecados pela morte de Cristo na Cruz, a ressurreição de Cristo, sua ascensão e sua Segunda Vinda

Ao aplicar à Bíblia o método histórico-crítico, que ele herdou de teólogos liberais anteriores, Harnack a considera como livro puramente humano, vindo, portanto, a rejeitar a historicidade de qualquer relato que tenha qualquer conotação sobrenatural:

  • O nascimento virginal de Jesus;
  • Os milagres atribuídos a Jesus e aos apóstolos;
  • A ressurreição e a ascensão de Jesus; etc.

Harnack também rejeitou a tese tradicional de que o fato de Jesus ter sido batizado e ter participado de uma ceia pascal represente a instituição dos sacramentos.

Harnack encontra alguns elementos que considera históricos, que lhe permitem definir a mensagem (não os detalhes da vida) de Jesus, apenas nos três Evangelhos Sinóticos (os três primeiros: Mateus, Marcos e Lucas). Isso não quer dizer, porém, que considere histórica toda a narrativa dos Sinóticos. Considera como interpolação teológica posterior a maior parte das referências ao cumprimento de profecias (“Isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito…”), as referências que sugerem que Jesus pudesse se considerar divino, etc.

Por não encontrar nos Evangelhos, mesmo nos Sinóticos, material suficiente para sequer esboçar uma história da vida de Jesus, Harnack não se insere na chamada “Busca do Jesus Histórico”, tão magistralmente historiada por Albert Schweitzer em The Quest of the Historical Jesus (1906). É por isso que Schweitzer mal lhe dá atenção em seu livro clássico acerca da tentativa de vários autores do século 18 e 19 de reconstruir o que veio a se chamar “a história do Jesus Histórico”

Tendo se convencido, através de seu trabalho sobre a história da Igreja no período apostólico, que a mensagem de Jesus é totalmente diferente da mensagem e da teologia da igreja que veio a ser criada pelos apóstolos, e que Jesus não teve a menor intenção de criar, nem sequer antecipou, uma nova religião, o desafio de Harnack, como historiador, é explicar como um Jesus não divino e morto pôde se tornar a figura central de uma instituição eclesiástica complexa, hierarquizada, autoritária, com práticas e doutrinas que nada deviam a Jesus.

Harnack desejava enfrentar esse desafio, que, para ele, implicava total rejeição da estrutura institucional, prática e doutrinária (dogmática) da igreja cristã criada pelos apóstolos, sem, no entanto, perder, nesse processo, o que ele via como a “essência” do Cristianismo, a saber, a mensagem de Jesus.

Por isso, logo depois de terminar a História do Dogma, elaborou um curso, publicado, sobre A Essência do Cristianismo. Harnack não usa o termo “Jesusismo”: ele usa o termo “Cristianismo” para a religião de Jesus, e reserva o termo “Catolicismo” para se referir à religião que foi criada pelos apóstolos e por seus sucessores.

A Reforma Protestante, no entender dele, deveria, ao rejeitar o Catolicismo, ter optado claramente pelo Cristianismo de Jesus, isto é, pela religião de Jesus.

Harnack achava que estava fazendo, no limiar do século 20, aquilo que a Reforma Protestante do século 16 deveria ter feito e não fez: rejeitar todo o arcabouço institucional, prático, litúrgico, e, especialmente, doutrinário da Igreja (Católica E Protestante) e voltar à pura e simples mensagem de Jesus, que contém o essencial do Evangelho.

Por isso ele se considerava cristão e protestante, e acreditava que estava prestando um serviço de valor inestimável para a Igreja — serviço esse que a igreja a que pertencia rejeitou.

Harnack e Troeltsch são, ambos, defensores do método histórico para analisar o desenvolvimento do Cristianismo.

Mas Troeltsch vê de forma positiva a acomodação da mensagem cristã ao meio cultural em que ela era apresentada, a penetração, na doutrina e na teologia da igreja, de elementos oriundos de um contexto que, até ali, era estranho ao Cristianismo — mas que passava a se integrar a ele.

Harnack, no entanto, não vê essa acomodação como positiva — muito pelo contrário. Apesar da natureza reduzida das fontes históricas, e de sua contaminação por elementos teológicos, Harnack acredita ser possível chegar ao “núcleo central” da mensagem de Jesus, removendo as “cascas” que lhe foram sendo acrescentadas.

O que ele encontra é, admitidamente, pouco — mas, em sua qualidade, ele considera esse núcleo sublime — quiçá divino, num sentido metafórico.

b. O Teólogo

Segundo Harnack, o núcleo da mensagem de Jesus é o seguinte:

  • “O Reino de Deus e sua vinda”
  • “Deus como Pai e o valor infinito da alma humana”
  • “O amor, uma justiça mais elevada”

Quanto ao Reino de Deus e sua vinda, Harnack ressalta que havia, na época de Jesus, duas visões do Reino de Deus: uma, escatológica, a outra, imanente. Não se distinguia muito claramente, então, entre uma e outra. Entre os ditos atribuídos ao Jesus há elementos das duas. A visão escatológica prevalecia entre seus contemporâneos, mas a visão que Jesus privilegiava era a imanente. Para Jesus, o Reino de Deus não é uma noção que se refere ao futuro: o Reino de Deus, em um sentido importante, já está presente. As parábolas de Jesus são mais importantes aqui do que os outros ditos acerca do Reino de Deus que são atribuídos a ele “O Reino de Deus vem quando o indivíduo o aceita e deixa que ele entre em sua alma, passando a controla-la. O Reino de Deus é de Deus, mas ele é um reino em que Deus governa o coração do indivíduo. Entrar no Reino de Deus é estabelecer uma relação especial com Deus, através de Jesus, vale dizer, pela aceitação de sua mensagem. Essa relação com Deus é ativa, dinâmica, “gerundial”, algo que está sempre acontecendo — não algo que se dá através da aceitação de doutrinas e dogmas e passa a ser estático e imutável. Embora ela envolva um conduta diferente, ela não se limita a um sistema de ética.

Quanto à teoria de Deus como Pai e o valor infinito da alma humana, Harnack vê nela não só parte da essência do Cristianismo, mas a essência mesma da religião: ver Deus como Pai, como quem cuida, apoia e ajuda, e não como Juiz, como quem vigia, julga e condena — e ver a alma humana como algo de valor infinito e inestimável: é nela que Deus habita e é através dela que ele nos transforma. “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”

Quanto à teoria de que o amor é uma justiça mais elevada, Harnack concorda com Agostinho: “Ama e faze o que quiseres”. O amor não é um conjunto de regras, mas o foco em uma disposição e uma intenção pura. O amor deve ser a única raiz e a única motivação de nossas ações. É por isso que Jesus pode colocar o amor a Deus e o amor ao próximo lado a lado.

A religião é a alma da moralidade, e esta o corpo da religião. Dessa forma Jesus redefine a esfera do ético de uma forma que ninguém antes dele havia feito. Comparada com a forma em que o Judaísmo definia o ético, a visão de Jesus é um progresso que só pode ser descrito como incomparável — incomensurável.

Harnack discute ainda nesse livro a questão da relação entre o Evangelho e o mundo. Para ele, o asceticismo, a renúncia do mundo, não tem nenhum lugar no Cristianismo de Jesus. Pelo contrário: Jesus foi acusado de conviver com comilões e com beberrões e de ser tolerante com prostitutas e adúlteras.

Também não tem lugar no Evangelho de Jesus o confronto com o mundo, a visão do mundo como um lugar de conflito e combate. O mundo, para Jesus, é lugar de amor e serviço ao próximo.

Essa afirmação o leva a discutir a questão da relação entre o Evangelho e o pobre. “Ama o teu próximo como a ti mesmo”. Essa a essência do ensino de Jesus em relação à pobreza. Não se trata de casuísmos e regrinhas, mas de uma atitude básica. “As pessoas não devem falar de amor ao próximo se permitem que pessoas do seu lado passem fome, vivam em miséria” (Harnack, referindo-se ao núcleo do chamado “Evangelho Social”, que ele defendeu). “O objetivo do Evangelho hoje é transformar um socialismo que se nutre de conflito entre classes em um socialismo que se alicerça na consciência de uma unidade espiritual da humanidade” (Harnack, idem).

O Evangelho de Jesus não nos oferece orientação sobre como mudar a estrutura política e econômica da sociedade: ele se posiciona acima de questões mundanas relativas ao desenvolvimento. O Evangelho está preocupado, não com mudanças estruturais na sociedade, mas com a alma do ser humano, com o estabelecimento de uma unidade espiritual no seio da humanidade.

Ao chegar ao final do livro, Harnack discute a questão da relação entre o Evangelho, a cultura e a civilização. O Evangelho de Jesus não visa o desenvolvimento cultural e o progresso da civilização. Ele visa a criação de uma rede de serviço ao próximo.

Quanto ao papel do dogma e da doutrina no Cristianismo, Harnack não deixa dúvida: o Evangelho de Jesus não é um sistema de doutrina. Fazer a vontade de Deus amando e servindo o nosso próximo é mais importante do que estar a declamar e endossar credos e confissões.

Harnack conclui seu livro, num tom de aparente contradição, falando sobre o Evangelho, o tempo e a história. Surpreendentemente para um historiador, Harnack vê o Evangelho de Jesus como transcendendo o tempo e a história. Isso acontece, segundo ele, porque a mensagem de Jesus se dirige ao homem, que, em todo lugar e em todo tempo, é sempre o mesmo.

7. O Legado da Teologia Liberal

Dado o caráter da Teologia Liberal, especialmente como revelado em Schleiermacher, Troeltsch e Harnack, não é difícil entender a ameaça que ela colocava ao Cristianismo Ortodoxo.

  • Para o Liberalismo, o Cristianismo não é uma religião única e totalmente diferente de outras: na verdade, ele é uma religião histórica, como todas as outras;
  • A evolução histórica do Cristianismo se deu em contato com o seu ambiente, contato através do qual ele deu e recebeu, influenciou e foi influenciado, numa dialética de acomodação;
  • Na visão liberal, o Cristianismo, como religião, não se baseia numa revelação de Deus para o homem, mas, sim, na busca do homem pelo infinito;
  • Segundo o liberal, conhecer a Deus é, na realidade, conhecer os sentimentos que levam o homem a tentar transcender sua limitação, sua dependência, sua finitude;
  • O núcleo essencial do Cristianismo está localizado na mensagem ética de Jesus que afirma que o amor a Deus se expressa no amor ao próximo;
  • A ética cristã não consiste de uma série de princípios ascéticos que determinam o afastamento do mundo, mas, sim, numa disposição e intenção pura voltada para implantar a unidade espiritual entre os homens e para criar uma rede básica de serviço ao próximo;
  • No Evangelho simples de Jesus (em contraposição à ortodoxia complexa do Catolicismo) dogmas e doutrinas não têm lugar, sendo substituídos pelo amor a Deus que se expressa no serviço ao próximo.

8. Considerações Finais

Espero que tenha ficado claro, ao longo deste artigo, que o Cristianismo, sendo uma religião que se alicerça num livro que os cristãos acreditam conter a revelação divina de regras de fé e prática, tem a obrigação de interpretar o que esse livro espera que eles creiam e como ele espera que se conduzam.

Há razoável consenso de que o processo de interpretação requer normas que, em seu conjunto, constituem a disciplina chamada Hermenêutica.

Em se tratando de textos, a Hermenêutica em geral distingue o gênero dos textos. Narrativas, em regra, devem ser interpretadas literalmente — a menos que contenham elementos maravilhosos ou miraculosos que, no contexto em que se dá a interpretação, sejam considerados indignos de crença. Neste caso, frequentemente se opta por uma interpretação não literal que tenta encontrar, no texto, sentidos mais profundos, quiçá espirituais ou éticos — aquilo que os medievais chamavam de sensus plenior — sentido mais pleno.

O problema, quando se deixa de lado o sentido literal do texto, é que as interpretações que buscam o sentido mais profundo frequentemente divergem entre si sem que haja critérios que permitam adjudicar qual dessas interpretações é a mais próxima da verdade, a que mais bem revela aquele que pode ser chamado de o sentido natural (ainda que não literal) do texto. Assim, se produzem divergências que levam a conflitos.

Espero que o artigo deixe claro que, dados esses fatos, divergência e conflito são coisas naturais no Cristianismo (não só no Presbiterianismo) — mas que representam constantes ameaças para ele. O seu título, “Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo”, aponta para essa razão. O foco do artigo é que, para se manter relevante aos diversos contextos históricos e geográficos em que penetra, o Cristianismo precisa de alguma forma reinterpretar os seus escritos sagrados para se acomodar aos novos contextos, desincentivando, ou mesmo abandonando, uma leitura literal de suas Escrituras. Essa acomodação, porém, que é a proposta básica dos vários “modernismos” que a cada época aparecem, pode levar, e em vários momentos já levou, à perda da identidade e, portanto, da continuidade do Cristianismo. Por isso os “fundamentalistas” se opõem tão ferozmente a ela. Eles estão lutando pelo que entendem ser a preservação de sua religião como algo verdadeiro e relevante e que tem interesse além de meramente histórico.

Em São Paulo, 4 de Julho de 2015. [Revisado em 24 de Março de 2019.]

(*) Na versão original deste trabalho, eu, por lapso, dei o prenome desse professor como sendo “Markus Barth”. Seu prenome é “Gerhard Barth”, como agora está no texto. Markus Barth, filho do grande Karl Barth, foi meu professor de Novo Testamento no Pittsburgh Theological Seminary. Dois especialistas em Novo Testamento com o mesmo sobrenome famoso me levaram ao erro. Agradeço ao Pastor Werner Dietz, meu ex-colega na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em São Leopoldo, RS, em 1967, ter chamado a minha atenção para a troca de prenomes, através de e-mail de 23 de Março de 2019.

Meu livro avança…

Mudei o título do livro que estou escrevendo, que passa a ser BREVE HISTÓRIA DO PRESBITERIANISMO AMERICANO, VISTO DA ÓTICA DA CONTROVÉRSIA FUNDAMENTALISTA-MODERNISTA. Investi tanto na Pré-História e nos Antecedentes da Controvérsia, que o livro se tornou uma história, ainda que sucinta, do Presbiterianismo Americano.

O esboço está todo pronto e cerca de 80 páginas estão redigidas. Precisarei de, no mínimo, outro tanto.

O livro se baseia num trabalho que redigi em 1967-1968, quando fazia o Mestrado nos Estados Unidos, sobre a Controvérsia Fundamentalista-Modernista na Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos.

Eu estava encafifado, naquela época, pela seguinte questão: Por que os Fundamentalistas ganharam a briga na Igreja Presbiteriana do Brasil e a perderam fragrorosamente dentro da Igreja-Mãe, a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos?

A questão que me preocupava pode ter uma redação um pouco diferente. Por que eu, um presbiteriano de nascença, filho de pastor presbiteriano, fui, aqui, escurraçado, em 1966, do Seminário Presbiteriano de Campinas, pertencente à Igreja Presbiteriana do Brasil, e, lá, em 1967, fui acolhido pelo Seminário Teológico de Pittsburgh, da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos. Aqui eu recebi ordem para, em uma semana, retirar todos os meus pertences do meu quarto no Dormitório do Seminário. Lá recebi bolsa completa por três anos, apartamento mobiliado, ajuda para livros, etc. e, por fim, bolsa para fazer o Doutorado. E lá era totalmente desconhecido, não tinha parentes na igreja, não tinha conhecidos na administração da igreja…

Por que os modernistas ganharam nos EUA e perderam aqui, na IPB? Por que lá o Fundamentalismo virtualmente deixou de existir dentro das principais igrejas presbiterianas, refugiando-se em minúsculas denominações, e, aqui, o Fundamentalismo ainda dá as cartas.

Sei que muitos pastores da Igreja Presbiteriana do Brasil não se consideram fundamentalistas, entre eles meu amigo e irmão Guilhermino Cunha​… Estou disposto a admitir que nem todos os sejam. Mas a diferença com a Igreja Presbiteriana americana é enorme — e com a Igreja Presbiteriana Independente, aqui do Brasil, da qual sou membro hoje, também.

Os Presbiterianos Americanos começaram o século passado divididos em quatro denominações relativamente grande: os Presbiterianos do Norte, os Presbiterianos do Sul, os Presbiterianos Cumberland, e os Presbiterianos Unidos. Ao final do século, essas quatro grandes denominações eram uma só, haviam se reunificado, e constituído uma igreja de cerca de 2 milhões de membros, que tinha uma confissão nova, que havia passado a considerar a Confissão de Westminster como apenas uma referência histórica, que ordenava mulheres, que estava engajada em trabalho ecumênico com outras igrejas cristãs, etc. Lá não se recua diante da discussão da aceitação de casamentos gays e mesmo da ordenação de pastores de orientação homossexual.

Aqui no Brasil, a Igreja Presbiteriana do Brasil começou o século 20 como uma igreja, em 1903 passou a ser duas, em 1986, três, sem contar as divisões menos significativas do ponto de vista numérico. Planos não há sequer para discutir uma reaproximação — quanto mais para discutir as outras coisas que a sua congênere americana já discutiu e aprovou.

No meu livro procuro encontrar respostas para essas e outras questões.

Em Salto, 4 de Junho de 2015.

Luiz Roberto Couto Pereira – 1942-2015

Participei ontem, sábado, dia 30 de Maio de 2015, de um encontro memorável. Agradeço, antes de tudo, ao meu amigo Eliezer Rizzo por ter me informado de sua ocorrência e ter me convidado a participar.

Foi na Faculdade de Teologia Metodista, em Rudge Ramos, no campus da UMESP, e o objetivo foi celebrar a vida de Luiz Roberto Couto Pereira, amigo do Eliezer há muito tempo e meu amigo há pouco tempo (2 ou 3 anos) e só pela Internet. O Luiz Roberto morava na França e faleceu lá, de forma meio inesperada, no dia 8 de Abril deste ano, quase dois meses atrás.

O perfil dele no Facebook ainda está disponível em para quem quiser visitar:

https://www.facebook.com/luizroberto.coutopereira

Eis o que escrevi na sua linha do tempo no mesmo dia em que ele morreu:

“Faleceu esta noite, na França, onde morava, Luiz Roberto Couto Pereira, um amigo querido que encontrei aqui na Internet e nunca face-a-face. Quem nos colocou em contato foi nosso amigo comum Eliezer Rizzo.

O Luiz Roberto era um ano e um pouquinho mais velho do que eu. Nasceu em 5 de Maio de 1942. Tivemos, ele, o Eliezer e eu, um passado semelhante, estudando Teologia nos conturbados anos 60.

Foi um prazer enorme conviver com ele aqui no Facebook e através dos e-mails que ele enviava periodicamente com notícias do Protestantismo na França, onde morava há muito tempo.

Há testemunhos magníficos de parentes e amigos na timeline dele. Vale a pena ler.

Fico irritado quando vejo gente criticar, subestimando, o potencial do Facebook de não só nos permitir reencontrar amigos que já tínhamos, mas também nos ajudar a fazer amizades sinceras e profundas com pessoas em quem nunca pusemos os olhos. Tenho inúmeros exemplos de amigos que ganhei aqui. O Luiz Roberto era um deles.

Que descanse em paz.”

O encontro de ontem, como disse no Facebook, foi uma das coisas mais emocionantes de que já participei.

Primeiro, pela idade dos participantes (exceto no caso de dois filhos do ‪Luiz Roberto Couto Pereira e da organista). Não creio que, exceto por esses, houvesse algum outro participante com menos de 70 anos. Foi a primeira reunião quase que exclusivamente de septuagenários de que já participei.

Contei as cadeiras da capela: havia 70, sete fileiras de dez cadeiras, todas tomadas. E havia gente fora dessas 70 cadeiras e em pé: o oficiante (o Bispo Paulo Ayres Mattos), a organista, e algumas pessoas no fundo. 70 cadeiras vezes uma média de (digamos) 72 anos, dá 5.040… Em outras palavras, havia ali, naquela capela pequena, nada menos do que cinco milênios de vida humana, se somarmos as idades de todos que estavam lá…

Que homenagem, hein, ‪Luiz Roberto Couto Pereira? Vá lá: quando o Consistório se reúne para eleger um Papa talvez haja ali, em termos de anos de vida vivida, algo comparável. Mas é raro — e é para eleger um Papa, não é verdade? Por aí se vê em que nível de companhia se situa o nosso querido amigo.

Segundo, é preciso mencionar o calibre dos participantes. Além do Bispo Paulo Ayres, estavam ali o Prof. Rev. Adahyr Cruz, o Anivaldo Padilha, o Eliezer, e mais umas 65 pessoas. Sobreviventes, todos, de anos muito difíceis — inclusive o Luiz Roberto, que sobrevive agora de outra forma… Todos estudamos Teologia na década de 60 aqui no Brasil. Todos, menos eu, no Seminário Metodista. E todos fomos perseguidos, de alguma forma, dentro e em alguns casos fora da igreja. Vários foram presos. Alguns exilados. Alguns sofreram o que ninguém merece sofrer — pelo “crime” de pensar a serviço de uma Igreja Protestante. Muitos se esparramaram e foram fazer outra coisa depois dos expurgos e dos fechamentos de Seminários. Boa parte saiu da igreja. Alguns conseguiram dar a volta por cima e acharam uma forma de trabalhar na igreja de alguma forma, alcançando grande sucesso. Não por generosidade da igreja, mas por sua competência e pelo seu valor.

Terceiro, o ponto alto do encontro: as manifestações de vários dos participantes — todas elas comoventes. Não sei quantos falaram. Creio que não chegou a dez o número. Mas todos falaram por todos. Abriram seu coração. Falaram não só do Luiz Roberto (como disse, havia pessoas da família dele presentes). Falaram da igreja (a de então e a de hoje), falaram dos anos 60, falaram da Ditadura Militar. Nada piegas, nada que nem de longe soasse como autocomiseração. Fala de gente que tem brio, que sente, que sente raiva… mas que consegue, de um momento para outro, deixar o que foi triste de lado e falar de coisas mais alegres.

Quarto, porque encontrei lá pessoas interessantes – e, depois, vim a descobrir fatos interessantes sobre algumas dessas pessoas. O ‪Anivaldo Padilha, entre eles. Fiquei conhecendo o Anivaldo pela Internet, já faz algum tempo, vendo um conjunto de três blocos de entrevista que ele deu para o também recém-falecido Antonio Abujamra. A entrevista me deixou extremamente tocado pelo drama pessoal que ele viveu. O fato de ele ser pai do Alexandre Padilha, então Ministro da Saúde, e, depois, candidato ao Governo de São Paulo pelo ora quase-finado PT, não diminuiu um iota da minha admiração por ele. Em Outubro do ano passado tive a oportunidade de vê-lo face-a-face, mas não cheguei a conversar com ele. Foi na Semana Teológica da Faculdade de Teologia em que trabalho, que foi dedicada à atitude dos protestantes para com a Ditadura Militar, que fez 50 anos no ano passado. Ontem, ao chegar ao estacionamento da Igreja Metodista de Rudge Ramos, onde deveríamos estacionar, eis que chego ao mesmo tempo que ele. Apresentei-me, disse que o conhecia, e ele disse que me conhecia de nome. Subimos juntos para as dependências em que seria tomado o café da manhã. Hoje descobri que uma tia de minha mulher, Josira Arruda Machado, que é metodista, é muito amiga do Anivaldo, tendo ele sido padrinho de seu casamento com o Moysés Rocha. Mundo pequeno esse nosso mundo protestante… Especialmente quando a gente já passou da casa dos 70…

Vi com o Prof. Rev. Adahyr Cruz uma foto de 1967 de meu grande amigo Aharon Sapsezian. Conheci o Aharon naquele ano, quando ele era Diretor Executivo da Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE) e eu fui lá, na Rua Rego Freitas, pedir uma bolsa de viagem para poder viajar para Pittsburgh, PA, para fazer Pós-Graduação, pois havia recebido uma bolsa completa (exceto passagem) para estudar lá… Passei vinte anos sem contato com o Aharon. Vinte anos depois, em 1987, eu o encontrei em Genebra, quando fui lá prestar serviços junto à Organização Mundial da Saúde que eram de interesse da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, onde eu era Diretor de Informações. De 1987 a 1992 voltei lá uma sete vezes, passando mais de um ano em Genebra. Nessas ocasiões, via o Aharon e sua mulher, a Zabel, pelo menos umas duas ou três vezes por semana. Ele era uns doze anos mais velho do que eu, mas ficamos melhores amigos. Descobri, em momentos em que jogávamos conversa fora, que ele havia sido aluno de Caligrafia de meu pai em Patrocínio, MG, no início da década de 30… Coincidências. Ou, como eu as chamo, provincidências — coisas que a gente não sabe se foi coincidência ou providência. Fiz uma cópia da foto e a coloquei no Facebook.

Ainda neste quesito, encontrei lá minha colega da primeira série de Ginásio (quinta série do Fundamental) Zuleica de Castro Coimbra (hoje também Mesquita, pois se casou com Jorge Mesquita). Estudamos juntos em 1956, no Colégio Estadual e Escola Normal Dr. Américo Brasiliense, em Santo André. No ano que vem fará 60 anos que isso se deu. Eu tinha 12-13 anos. Ela, possivelmente, um ou dois anos menos. Fazia nada menos do que 59 anos que não nos víamos! Nós éramos os dois únicos protestantes numa classe de 40 ou 42 alunos: ela Metodista, eu Presbiteriano. Na chamada da classe, ela era a última, por ter o nome começado por “Z”, seguido de “u”…

Por fim, uma nota dissonante — pequena e insignificante. Apareceu lá, durante o almoço que seguiu ao culto, Josias Dias França, pai do ex-marido de minha mulher. Ele foi estudante de Teologia lá em Rudge Ramos nos 60. Cumprimentei-o discretamente com a minha cabeça e ele virou a cabeça como quem não viu — como sói fazer.

Voltemos a assuntos mais edificantes.

Fiquei comovido ontem ao ouvir o Bispo Paulo Ayres dizer algo assim:

“Tenho certeza de que vocês todos aqui tiveram um dia a ideia de servir a Igreja Metodista como pastores e pastores, ou em alguma outra capacidade”.

Eu não era nem nunca fui Metodista. Sou presbiteriano “de nascença”… Mas pensei nos 83 alunos que o Seminário Presbiteriano de Campinas tinha no início de 1966, o ano em que ele implodiu. Sessenta e oitos daqueles alunos não terminaram o ano, eu entre eles. Fomos expulsos. Só ficaram 15 alunos, todos eles do primeiro e do segundo ano, que hipotecaram solidariedade à administração do seminário que fazia aquele expurgo — aquilo que ela chamava de “limpeza”. O Seminário ficou basicamente três anos sem formatura. A Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) achou que podia abrir mão de 68 pessoas decididas a serem pastores dela (isso só no Seminário de Campinas — fez algo semelhante em outros seminários), jogou-as fora, perseguiu-as, em alguns casos (como o meu), tentando impedir que voltassem a estudar teologia em seminários de outras igrejas. Querem algo mais absurdo do que isso? O principal culpado de tudo isso foi o Rev. Boanerges Ribeiro, colega de seminário de meu pai. Mas os demais, de sua época e depois, são culpados também, pela sua conivência, pelo seu silêncio, pelo seu medo de falar mesmo quase 50 anos depois. A Igreja Presbiteriana do Brasil nunca pediu perdão pelo que fez aos 68 alunos do Seminário, e, aos poucos, nos anos seguintes, a todos os seus professores. A Igreja Metodista, para seu crédito, celebrou, alguns anos atrás, um Culto do Perdão, em que, como instituição, pediu desculpas pelo que fez nos anos 60 e 70. Para a Igreja Presbiteriana no Brasil, porém, é como se nós, aqueles 68 de 1966, tivéssemos sido obliterados, pulverizados, deixado de existir a não ser como moléculas jogadas ao vento às quais nem sequer se dirige a palavra. Ela prefere, ainda hoje, fazer de conta que não existimos.

Apesar de tudo, muitos de nós conseguimos continuar a estudar teologia em outros lugares. Eu fui para a Faculdade de Teologia Luterana em São Leopoldo, depois para o Seminário Presbiteriano de Pittsburgh. O Eliezer foi para o Seminário Metodista. Alguns ainda acreditavam o suficiente, depois disso, para se disporem a ser pastores — mas nenhum, que eu saiba, na Igreja Presbiteriana do Brasil, a impenitente. Para crédito deles.

Em São Paulo, 31 de Maio de 2015

Minhas Dívidas Intelectuais: Pintando Pequenos Retratos de Mim Mesmo

Li uma vez uma história de um avô que passeava carregando a neta nos ombros. Ao encontrar um amigo, este resolveu brincar com a criança, e elogiou-lhe o tamanho. Ao elogio a menina respondeu: “Bom, obrigado, mas nem tudo disso que o senhor vê sou eu”. [1]

A observação da criança é relevante aqui. Pouco daquilo que eu escrevo ou digo em minhas aulas e palestras é idéia original minha. Ao especialista, isso ficará imediatamente evidente. Para o leigo no assunto, porém, isso deve ser clara e formalmente declarado.

Nenhum artigo ou livro é uma produção totalmente individual. Além das dívidas com professores e outras pessoas que deixaram uma marca em nós, há nossas dívidas com autores de livros, realizadores de filmes, e com outras pessoas, muitas das quais já morreram, em alguns casos há muito tempo…

Minha formação pessoal se deu, formalmente, na teologia e na filosofia. Tenho dívidas intelectuais enormes com alguns famosos filósofos e com alguns teólogos. Com nenhum deles concordo inteiramente, mas todos os que vou citar deixaram em mim influências marcantes.

Sócrates, o mestre de Platão, chamou minha atenção para os seguintes fatos: primeiro, como crianças, ideias são sempre concebidas em interação humana; segundo, como a mulher que dá à luz uma criança, freqüentemente precisamos de um parteiro que nos ajude a dar à luz as ideias que concebemos; e, terceiro, como a criança que nasce, nossas ideias precisam se desenvolver, o que novamente se dá através da interação humana, do diálogo, do embate de pontos de vista, da discussão crítica… Seria “parteiro de ideias – dos outros” uma boa metáfora para o papel do professor?

Aristóteles me marcou pela ênfase que deu ao fato de que as ideias que concebemos devem estar ancoradas na experiência e à necessidade de que, ao tratar essas ideias, precisamos sempre respeitar a lógica e razão [2]. Ele também me convenceu de que algumas de nossas idéias são objetivamente verdadeiras, e que o relativismo e o ceticismo se destroem a si próprios (são “self-defeating”, como se diz em Inglês). E, por fim, me convenceu de que o fim principal do homem é ser feliz — ou, pelo menos, buscar a felicidade. (Calvinistas ortodoxos vão se escandalizar com essa minha admissão, mas ela é verdadeira. Um dos catecismos de Westminster diz que “o fim principal do homem é glorificar a Deus e desfruta-lo para sempre”. Pergunto eu: que forma melhor de glorificar a Deus existe do que ser uma criatura sua que é feliz com a vida que tem?).

David Hume, o grande cético (não-radical, convenhamos) da época do Iluminismo, sobre quem escrevi minha tese de doutoramento em 1970-72, me ajudou a evitar o dogmatismo ao insistir que tudo, até mesmo nossa experiência sensorial, a lógica, a racionalidade e a crença na posse da verdade, deve ser encarado com certa dose de ceticismo. Mas ele não foi capaz de fazer de mim um cético total, nem um relativista, nem um descrente na experiência sensorial, na lógica, na razão e na existência da verdade. Houve momentos em que acreditei que Hume havia feito de mim um ateu convicto. Mas em outros momentos ele me fez duvidar até mesmo daquilo de que eu parecia estar mais convicto…

Hume e seu melhor amigo, Adam Smith, foram, porém, capazes de me convencer de que existe algo que é apropriado chamar de natureza humana – e que nunca se desrespeita essa natureza sem pagar um alto preço, especialmente quando se trata da organização da sociedade… E Adam Smith me ajudou a me tornar um liberal estilo clássico (mas nisso teve ajuda de muitos outros, em especial de Ayn Rand).

Karl Popper, crítico de Hume em alguns aspectos, mas seguidor dele em outros, me ajudou a ver o processo de construção do conhecimento – incluindo o conhecimento científico – como algo humano, e, portanto, falível, nunca final e definitivo, mas que não deixa de ser, por isso, objetivo e racional. Popper ainda me ajudou a entender a continuidade que existe entre a ciência e o senso comum, bem como entre a ciência e a filosofia (ambas dependentes da razão crítica). Popper também me ajudou a entender porque a racionalidade crítica só pode prosperar numa sociedade aberta e livre.

Ayn Rand é,por fim, a influência maior, que, além de reforçar, de forma inigualável na filosofia do século XX, os temas aristotélicos, me fez ver algo que Popper já havia me mostrado: que a racionalidade só pode prosperar e frutificar em uma sociedade radicalmente aberta e livre, que valoriza o indivíduo e seus direitos, básicos e fundamentais, quais sejam: o direito à vida, o direito à liberdade (de expressão, locomoção, associação, contrato, e de busca da felicidade como ele a entender), e o direito à propriedade dos frutos do trabalho. Com sua inestimável ajuda consegui a integrar minha metafísica, minha epistemologia, minha ética, e minha filosofia política.

Em 5 de Fevereiro de 2015, dias atrás, o mundo racional e livre comemorou 110 anos do nascimento dessa grande filósofa e insuperável romancista, nascida na Rússia como Alyssa Zinovievna Rosenbaum, mas que cedo percebeu que não seria capaz de manter sua racionalidade numa sociedade sem liberdade, como era a sociedade russa depois da tomada do poder pelos comunistas em 1917, e, por isso, fugiu para os Estados Unidos, onde alcançou fama e sucesso.

Esses filósofos são os pilares em cima dos quais minhas idéias e minha visão de mundo foram sendo construídas.

Mas ainda faltava integrar à minha visão de mundo a minha filosofia da educação…

Aqui, registro apenas uma influência digna de nota — que alguns vão achar que destoa das demais, pois os outros foram todos liberais e este é considerado um progressista, que, na parlância comum, é uma categoria “de esquerda”. Mas mesmo que meio inclinado para a esquerda, considero John Dewey também um liberal.

John Dewey é, a meu ver, o maior filósofo da educação do século XX (embora discorde dele em muitos pontos importantes) – talvez o maior desde Jean Jacques Rousseau. Dewey me ajudou a perceber três aspectos essenciais da educação, com os quais estou totalmente de acordo.

Primeiro, a educação tem que ver com a criança, não com o professor, e, portanto, com a aprendizagem, não com o ensino.

Segundo, a educação é um processo natural de desenvolvimento humano, de “dentro para fora”, por assim dizer, não um processo artificial de imposição à criança, “de fora para dentro”, de um conjunto de informações e conhecimentos.

Terceiro, a forma mais eficaz e eficiente de ajudar a criança a aprender, e, portanto, de ajudá-la a se desenvolver, é respeitando, não subjugando, seus interesses, e esse respeito se traduz, especialmente num contexto escolar, na chamada aprendizagem ativa, que é promovida através da metodologia de projetos de aprendizagem (metodologia que foi introduzida no mundo pedagógico por um discípulo de Dewey, William Heard Kilpatrick).

O meu envolvimento com o Instituto Ayrton Senna me ajudou, de certo modo, a “traduzir” John Dewey para o contexto brasileiro atual, sem violar os demais elementos de minha visão filosófica, que acabei de ressaltar. Neste caso sou devedor a Antonio Carlos Gomes da Costa, meu amigo que se foi muito cedo.

O meu envolvimento com o Instituto Lumiar (do qual fui presidente por dois anos) me permitiu ver que o que penso não é utopia: a Escola Lumiar, em sua concepção, e, espero, cada vez mais na sua prática, junto com a Escola da Ponte e a Sudbury Valley School, são as escolas mais próximas da minha visão da educação que eu conheço. Neste caso, sou devedor a Ricardo Semler, amigo e, na área da educação, uma inspiração.

O meu envolvimento com a Lumiar se deveu também, em grande medida, ao meu grande amigo Rubem Alves, que também já partiu — menos precocemente que o Antonio Carlos, mas ainda mais cedo do que devia. Fomos amigos e colegas durante cinquenta anos, desde meu tempo de seminário, que começou em 1964, até a sua morte, em 2014. E fomos colegas na UNICAMP durante quarenta anos, desde que eu retornei para o Brasil em 1974.

Sou devedor a todas as pessoas já mencionadas, e a outras que não consigo destacar individualmente, pelas ideias que tenho e defendo hoje.

Como disse Rubem Alves no Prefácio a um dos meus livros (que ainda não publiquei), a minha visão é fruto de minha ingestão e digestão dos pontos de vista de muitas pessoas. Mas esses pontos de vista, depois de devorados por mim, passaram a circular no meu sangue, e, por conseguinte, passaram a ser parte do meu DNA: integraram-se à minha visão de mundo.

Um dos biógrafos de John Dewey diz algo muito parecido em relação a ele, que eu gostaria que fosse verdade também em relação a mim:

“Sempre aberto às ideias dos outros, Dewey, no entanto, passava essas influências pelo crivo de seu pensamento e sentimento [i.e., de sua experiência] de modo a dar-lhes sentido e a transformá-las em algo seu, muito pessoal. Ele nunca se esqueceu de uma dívida intelectual ou pessoal significativa, em áreas que considerasse realmente importantes. Mas ele nunca permitiu que as várias ideias que o influenciaram ficassem separadas umas das outras, isoladas, como se ele fosse apenas um conjunto de espelhos que refletisse o pensamento dos outros. Ele armazenava tudo o que aprendia, mas, deixando de lado peculiaridades das fontes que o influenciaram, transformava as idéias dos outros em algo tipicamente seu” [3].

NOTAS

[1] Peguei essa história de terceira ou quarta mão… Ela é mencionada no livro The Schools our Children Deserve: Moving Beyond Traditional Classrooms and “Tougher Standards”, de Alfie Kohn (Houghton Mifflin Company, New York, 1999, 2000), p. 333. O autor afirma que a ouviu contada pelo antropólogo Lionel Tiger, que dizia que o caso se passara com um (não identificado) professor e sua neta…

[2] Entendo a razão com o conjunto de procedimentos e métodos (que certamente incluem a lógica e o respeito à evidência) que impedem que nossos conceitos, juizos e decisões sejam totalmente arbitrários.

[3]  Jay Martin, The Education of John Dewey: A Biography (Columbia University Press, New York, 2002, p. 131.

Transcrito aqui em São Paulo, 8 de Fevereiro de 2015

Minha Educação: Mais um Pouco de Biografia

Minha educação sempre misturou aspectos não-formais, em geral inovadores, com aspectos formais, em geral bastante tradicionais – aquilo que eu, em 1963, em meu convencional discurso de formatura no Curso Clássico, chamei, pouco criativamente, de “a escola da vida” e “a vida da escola”… [1]

Tive sorte: só comecei a vida da escola quando já estava bem a caminho de completar nove anos, em Santo André, SP, no ano de 1952… Assim, iniciei o (então) Primário bastante tarde! Não freqüentei “Prezinhos” e Jardins da Infância, muito menos Cursinhos Maternais e “Hotelzinhos Pedagógicos”. Creio que eles não existiam então nem nos grandes centros – muito menos onde eu morava. Assim, pude brincar e aprender, fora da escola, bem mais do que a maior parte das crianças de hoje (sentenciadas à escola, às vezes, a partir dos dois anos).

Morávamos (1946-1951) no que meu pai então chamava de “o sertão do Paraná” (Marialva, Maringá), onde as escolas eram tão ruins que meus pais decidiram que eu só iria para a escola quando a família conseguisse se mudar para um lugar “mais civilizado”, com melhores escolas. Tanto melhor: além de brincar, aprendi bastante. A escola da vida começou bem cedo – na verdade, com a vida… Logo descobri que brincadeira é coisa muito séria, porque, além de dar prazer, é fonte inesgotável de aprendizagem (especialmente quando é difícil) – sendo esta, talvez, a principal razão por que a brincadeira dá prazer! [2]

Cedo, e em casa, aprendi a ler e a escrever com razoável fluência. Sou, em parte, fruto de home schooling.

Aprendi a ler basicamente sozinho, com alguma ajuda de minha mãe (que mal havia terminado, na década de 30, o então chamado Curso de Comércio, mais ou menos equivalente ao Ginásio, na Academia São Luiz, em Campinas, hoje Colégio Pio XII, ligado à PUC-Campinas). Aprendi a ler na Bíblia e em histórias policiais (especialmente as de Sir Arthur Conan Doyle e as de Earle Stanley Gardner). A Bíblia, por influência de meu pai, pastor presbiteriano por quase 50 anos; as histórias policiais, por influência de minha mãe, que as devorava. O gosto pela leitura de histórias policiais se mostrou mais duradouro do que o gosto pela leitura da Bíblia (que, entretanto, vista como literatura, tem passagens memoráveis). Só recentemente voltei a ler a Bíblia com outros olhos.

No início de 1952, quando tinha oito anos e meio, mudamo-nos para Santo André, SP. Minha educação formal foi iniciada nos bancos de uma escola pública, o Grupo Escolar “Prof. José Augusto de Azevedo Antunes”, na Rua Senador Flaquer. A educação ali proporcionada era bastante tradicional – mas tive a sorte de encontrar professoras que, percebendo que eu já lia e escrevia fluentemente, me estimularam a explorar campos mais férteis e verdejantes do que as cartilhas e os livros-texto de então. Li bastante e amplamente nessa época: não só o Tesouro da Juventude e a literatura infantil e para adultos de Monteiro Lobato (então, em ambos os casos, presentes, de rigueur, na biblioteca de toda casa que prezava a educação), mas também romances policiais. Continuei a devorar Conan Doyle, especialmente suas histórias de Sherlock Holmes, e Erle Stanley Gardner, especialmente suas histórias de Perry Mason; mas descobri também Georges Simenon, com suas histórias do Inspetor Maigret, e Maurice Leblanc, com suas histórias do incorrigível Arsène Lupin, o famoso “ladrão de casaca”, e Agatha Christie, com suas histórias de Hercule Poirot e Miss Marple. Minha maior descoberta, nessa época, entretanto, foram os romances históricos de autores franceses, como os de Alexandre Dumas, especialmente aqueles envolvendo os Três Mosqueteiros, e os de Michel Zévaco, especialmente aqueles envolvendo os charmosos espadachins, pai e filho, “Les Pardaillans”. Por fim, descobri romances em geral, sem discriminar negativamente nem mesmo os livros da então chamada “Biblioteca das Moças”… Li, ainda na pré-adolescência, Rebeca, Jane Eyre, O Morro dos Ventos Uivantes, bem como quase tudo de A. J. Cronin, e muitos outros – que eram livros que minha mãe adorava e que, portanto, estavam disponíveis em casa. Felizmente meus pais nunca me disseram que havia livros que eram “de adultos”, vedados a crianças.

Fiz o Ginásio no Colégio Estadual e Escola Normal “Dr. Américo Brasiliense” (depois Instituto de Educação “Dr. Américo Brasiliense”), também em Santo André. O Colégio ficava (ainda fica, embora em outro prédio e com ainda outro nome) bem no largo do Quarto Centenário (o quarto centenário de Santo André foi celebrado dia 8 de Abril de 1953). A escola também era tradicional, mas o ensino era de qualidade: os professores eram muito bons, dentro da visão pedagógica tradicional. Não se esperava mais do que isso naquela época. A escola pública de então atendia à camada mais intelectualizada da sociedade – servia à elite, portanto. Um pastor protestante naquela época, embora bastante pobre pelos padrões de hoje, tinha um status social razoável. Eu, o primogênito da família, de certo modo destinado a seguir nos passos do pai, tinha a obrigação de entrar na melhor escola da cidade… Entrei – sem Curso de Admissão (apenas com algumas aulas de revisão ministradas, um mês antes dos exames, por Carla Strambio, então novinha, e que, cinqüenta anos depois eu iria reencontrar como minha colega na categoria de “Tradutora Juramentada e Intérprete Comercial” – ela de Italiano, eu de Inglês). Os Exames de Admissão para ingressar no Ginásio do Américo Brasiliense eram, talvez, mais seletivos do que os Vestibulares de muitas universidades públicas hoje em dia. Quando entrei no Ginásio, em Fevereiro de 1956, havia onze candidatos para cada vaga. O Exame de Admissão barrou mais de 90% dos pretendentes: entraram apenas 30 de 330 candidatos ao curso diurno… o que significava que, com o acréscimo de alguns repetentes, havia apenas uma turma de primeira série do Ginásio no turno diurno em 1956 no Américo Brasiliense.

Além das matérias convencionalmente consideradas acadêmicas, a escola tinha um excelente orfeão, uma competente área de artes (com foco especialmente em desenho), uma interessante área de trabalhos manuais (onde aprendi a fazer sacolas, chaveiros, e assentos de palhinha para cadeira), e um bom departamento de educação física (área que, admito sem vergonha, nunca foi o meu forte).

Voltando mais uma vez para a literatura, essa foi a época em que descobri José de Alencar (Cinco Minutos, A Viuvinha, Lucíola, Diva, Iracema, Senhora…), Visconde de Taunay (Inocência), Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha), e, principalmente, Machado de Assis (Helena, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Memorial de Aires…). Adolescente que era naqueles tempos em que o romantismo não havia ainda saído de moda, não deixei de me fascinar pela poesia, lendo comportadamente Olavo Bilac, mas me apaixonando pelos poetas mais românticos, como Casemiro de Abreu, Gonçalves Dias, Castro Alves, Álvares de Azevedo, Raimundo Corrêa… Ainda sei de cor vários poemas que decorei naquela época.

Com esses interesses, era inevitável que eu, na então chamada Escola Secundária, optasse pelo Curso Clássico e não pelo Curso Científico. A bem da verdade, eu até que tentei cursar o Científico no Américo Brasiliense: mas não suportei um semestre de Física e Química…

Fui fazer o Curso Clássico, como aluno interno, no Instituto “José Manuel da Conceição” (JMC), em Jandira, SP, escola privada, pertencente à Igreja Presbiteriana e com ligações com o Instituto Presbiteriano Mackenzie (mantenedor da Universidade Mackenzie). Meu pai já havia estudado no JMC na década de trinta. O Instituto era considerado a melhor via de acesso para o Seminário. Na verdade, era até mesmo chamado de “Seminário Menor”, em analogia com as instituições congêneres da Igreja Católica. Lá não precisei estudar Física e Química, e estudei apenas um pouco de Biologia e Matemática… Em compensação, estudei bastante Língua e Literatura Portuguesa, Francês (incluindo Literatura Francesa), Inglês (incluindo Literatura Inglesa e Americana), Latim, Grego Clássico, Filosofia (especialmente Lógica), Psicologia, História… – todas elas matérias em que eu tinha interesse e sempre me dei muito bem.

Mas havia bem mais no JMC do que a vida acadêmica. Ouso mesmo dizer que os aspectos não-formais (extraclasse) da educação proporcionada no JMC me educaram mais do que as aulas a que assisti. Eu tinha de cuidar da limpeza e da arrumação do meu quarto, lavar a minha roupa, ganhar um dinheirinho trabalhando na escola… Além disso, participei de grêmios culturais (inclusive de debates e de literatura), clubes de língua estrangeira (Inglês e Francês), corais e conjuntos musicais, viagens e excursões, atividades esportivas variadas… Cantei duas vezes, com o coral da escola, dirigido pelo Maestro João Wilson Faustini (hoje dileto amigo), no Teatro Municipal de São Paulo, em programas especiais de Páscoa e Natal. No JMC a gente podia fazer as provas sozinho no quarto. A escola confiava na gente e a gente correspondia: ninguém, que eu saiba, ousava verificar nada nos livros ou nos cadernos que estavam ali à mão. Para completar o ambiente educacional, os professores moravam no mesmo pitoresco campus que nós – e, portanto, tínhamos acesso a eles o tempo todo. Freqüentemente tomávamos café ou mesmo refeições em suas casas. E eles nos emprestavam livros, revistas, discos… Ganhei meu primeiro Webster’s (completo!) do Prof. Fernando Buonaduce, professor de Latim. Ali descobri a literatura francesa, sob a orientação firme de minha mestra favorita, Profa. Maria Elza Fiuza Teles, e a literatura de língua inglesa, neste caso sob a orientação da Profa. Jean Pemberton. Li vários livros no original, fora das exigências dos cursos, apenas por prazer. Ficam em minha memória a leitura de Alexis Zorba, de Nikos Kazantzakis, na tradução para o Francês do original em Grego Βίος και Πολιτεία του Αλέξη Ζορμπά, e The House of Seven Gables, no original em Inglês de Nathaniel Hawthorne. Mas, acima de tudo, os professores conversavam bastante conosco, sobre suas matérias, sobre nossos planos para o futuro, sobre a vida em geral. E, importante, nos levavam a sério, como se fôssemos “gente grande”, seus pares e iguais… Descobri ali que adolescentes e jovens tendem a comportar-se como gente grande quando são tratados como adultos.

No JMC minha educação deu um grande salto – mas nem tanto pelo conteúdo das aulas, que, em parte, com a exceção de algumas competências lingüísticas e lógicas e de alguns gostos pessoais, está devida e felizmente esquecido [3]. O importante, ali, era o ambiente de aprendizagem que a escola proporcionava nos momentos extraclasse. No JMC criei dívidas intelectuais que só sou capaz de registrar, nunca de pagar, até porque os credores são, em alguns casos, bem difusos. [4]

Passo rápido pela educação de nível pós-secundário – porque, ao terminar o curso secundário, os meus interesses básicos estavam basicamente definidos… Depois do Clássico cursei Teologia, em Campinas, no Seminário da Igreja Presbiteriana do Brasil (também freqüentado pelo Rubem Alves alguns anos antes), e em São Leopoldo, na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (onde as aulas, em 1966, eram ainda em Alemão). Não concluí o curso de Teologia no Brasil. O autoritarismo político se refletia dentro da Igreja Presbiteriana (embora não na Igreja Luterana – mas para estudar lá não tinha apoio eclesiástico e, por conseguinte, financeiro). Só fui completar o curso de Teologia nos Estados Unidos, no Seminário Teológico de Pittsburgh (Pittsburgh Theological Seminary), da Igreja Presbiteriana, onde também fiz o Mestrado em História do Pensamento Cristão (com ênfase na parte final da Idade Média, na Renascença e na Reforma). Meu desempenho no Mestrado me facilitou o acesso ao Doutorado na Universidade de Pittsburgh (University of Pittsburgh), na área da Filosofia do século XVIII – o Iluminismo. Meus amigos, Revs. Gordon E. Jackson, então em Pittsburgh, e Aharon Sapsezian, então em São Paulo, tornaram possíveis meus estudos nos Estados Unidos.

Viver no exterior durante sete anos e estudar numa universidade estrangeira de renome e tradição (fundada no século XVIII) envolveu vários aprendizados importantes. Nesse período meu foco principal de interesse passou a se concentrar em questões filosóficas, especialmente as epistêmicas e políticas, que, para mim, se dividiam em questões mais teóricas (o que podemos conhecer e como?) e em questões de cunho mais prático (como devemos viver, no plano individual, e nos organizar como sociedade, no plano coletivo, e por quê?).

Concluído o Doutorado, em 1972, dei aulas de Filosofia, durante dois anos, na Universidade Estadual da Califórnia (California State University), em Hayward, e nas Faculdades Integradas Claremont (Claremont Colleges), em Claremont, ambas as cidades na Califórnia. No último caso, fiquei lotado no Pomona College. As disciplinas que ministrei nessas duas instituições incluíram Metafísica, Teoria do Conhecimento, Ética, Filosofia Política, Lógica… O básico de um curso Introdução à Filosofia, só ficando de fora a Estética. Aprendi bem mais filosofia dando aulas do que assistindo a elas…

Em 1974 vim para a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), como professor de Filosofia – mas acabei na Faculdade de Educação, responsável pela disciplina Filosofia da Educação, que eu nunca havia cursado, muito menos lecionado. Na realidade, nunca havia estudado Educação formalmente, antes de vir para a UNICAMP, e nunca fiz um curso sequer na área depois – o que, hoje percebo, foi uma enorme vantagem. Os cursos superiores na área da Educação são em geral muito ruins – aqui e lá fora. Fiz trinta e dois anos e meio de UNICAMP em 2006 e me aposentei, com grande alívio, ao final do ano.

A vida acadêmica me ensinou bastante – mas também me cansou muito rápido… As comunidades universitárias do Brasil, com algumas honrosas exceções, e com a exceção de algumas áreas dentro das demais, são guetos esquerdizantes e socializantes voltados para a doutrinação político-ideológica, não raro de natureza claramente partidária. Do ponto de vista pedagógico, elas deixam muito a desejar – apesar de pretensiosas. Os anos na UNICAMP me serviram de inspiração – totalmente negativa, é evidente – para as idéias de um livro que comecei a escrever em 2001 e ainda não terminei… (embora erroneamente achasse que tinha terminado em Setembro de 2002). Aos leitores atentos deste blog se torna desnecessário sublinhar os meus pontos de discordância com a visão de educação que é, eu diria, quase hegemônica na Faculdade de Educação da UNICAMP e, até certo ponto, nas demais instituições congêneres do país. Essa visão só não foi totalmente hegemônica, no caso da Faculdade de Educação da UNICAMP, durante a maior parte do tempo em que lá estive, em virtude da existência de honrosas exceções ao catecismo vigente, especialmente dentro da área de Filosofia do Departamento de Filosofia e História da Educação, área em que estive lotado todos esses anos. Hoje essas exceções estão todas aposentadas, de modo que a hegemonia da esquerda foi finalmente alcançada.

No início da década de oitenta, quando era Diretor da Faculdade de Educação da UNICAMP, aconteceram alguns eventos que ensejaram um acréscimo especial aos meus interesses. Em 1981 oito diretores de faculdades ou institutos da UNICAMP, eu entre eles, todos nós candidatos a Reitor no (que eu saiba) primeiro processo democrático de escolha de Reitor tentado em uma universidade brasileira, fomos surpreendidos com nossa exoneração do cargo por uma Portaria do Reitor publicada em uma edição de sábado do Diário Oficial no mês de Outubro. Eventualmente consegui retornar ao meu cargo (no início de Dezembro) por força de uma decisão judicial, mas o episódio me fez dolorosamente consciente do fato de que a única coisa que eu realmente sabia fazer era dar aula em universidade… Se essa porta se fechasse… Os tempos ainda eram de ditadura. A partir daquele momento resolvi que, ao lado de minha vida acadêmica, teria sempre alguma atividade externa. Essa decisão deu uma direção totalmente diferente à minha vida.

Em decorrência dessa resolução, decidi em 1982 comprar um computador e aprender a fazer alguma coisa útil com ele. No artigo anterior que publiquei neste blog esclareço a gênese de meu interesse em computadores. Comprei um Commodore 64 – aparentemente um dos primeiros lançados no mercado americano… Em seguida, ainda naquele ano, criei, com alguns colegas da Universidade (Maurício Prates, Saul d’Ávila, Paul Shepard, José Eustáquio da Silveira e Silva), uma empresa de treinamento e consultoria e decidi que iria me tornar pequeno empresário na área de treinamento e consultoria. A empresa existe até hoje, sob a batuta do Saul d’Ávila e seus filhos. Vendi-lhe minha parte há muito tempo. Ainda sou pequeno empresário até hoje – na verdade, hoje em dia, mais micro do que pequeno empresário. Aprendi muito nesse ofício. Às vezes de forma muito difícil, dolorida e até mesmo financeiramente onerosa. Minha desilusão com pessoas que considerava amigos, em alguns casos melhores amigos, foi quase total — e marcou indelevelmente a minha vida posterior.

Mesmo dentro da Universidade, quando voltei para o meu cargo de Diretor da Faculdade da Educação da UNICAMP em 1981, resolvi acrescentar alguns novos interesses aos já antigos. Criei, em 1983, junto à Reitoria, o Núcleo de Informática na Educação (NIED), primeiro (que eu saiba) órgão interdisciplinar de pesquisa aplicada nessa área dentro de uma universidade brasileira. O NIED elaborou e submeteu ao Programa EDUCOM, coordenado pela Secretaria Especial de Informática, FINEP e MEC, o projeto da UNICAMP, que oportunamente foi um dos cinco selecionados para financiamento e implantação a partir de 1984. Coordenei o NIED e o Projeto EDUCOM da UNICAMP até 1986. Mas isso tudo está narrado em mais detalhe no artigo anterior neste blog.

Contingências políticas dentro e fora da UNICAMP me levaram a ser colocado à disposição do governo do Estado de São Paulo, de 1986 a 1990, para dirigir, primeiro, o Centro de Informações Educacionais da Secretaria da Educação e, depois, o Centro de Informações de Saúde da Secretaria da Saúde. Nessa última função acabei me tornando consultor junto à Organização Pan-Americana da Saúde (Pan-American Health Organization), em Washington, e à Organização Mundial da Saúde (World Health Organization), em Genebra. Aprendi muito sobre informática, saúde e consultoria nesse trabalho.

De volta à UNICAMP, estabeleci uma parceria da minha empresa (MindWare) com a Microsoft, em 1998, para a criação do site EduTec.Net e da comunidade virtual de aprendizagem colaborativa EduTec [5]. A parceria durou cerca de quinze anos, até 2013. Em decorrência dessa parceria acabei sendo indicado pela Microsoft para participar de um programa que ela estava propondo ao Instituto Ayrton Senna, em 1999: o “Sua Escola a 2000 por Hora”.

Ao longo de todo esse tempo minha identidade profissional foi se construindo: minha identidade mais especulativa, como homo academicus, especificamente como filósofo, vem, há bem mais de 25 anos, convivendo com minha identidade mais prática, como homo actionis, empresário e consultor. É a junção da vita contemplativa e da vita activa de que falavam os filósofos medievais… Sem essa junção nunca teria chegado aos meus interesses e aos meus pontos de vista atuais!

NOTAS

[1]      No Discurso citei o poeta Antonio Zoppi, de Americana. Diz ele, em uma simples quadra: “Sapiência não se esmola, deve ser adquirida: na doce vida da escola ou na acre escola da vida”. Para quem se interessar, o juvenil discurso pode ser lido, em sua inteireza, aqui neste blog, em http://liberalspace.net/2013/10/24/discurso-de-formatura-1963/ .

[2]      Só muito tempo depois vim a ter contato com as idéias de “Diversão Difícil” (“Hard Fun”) e de “Brincadeira Séria” (“Serious Play”), a primeira proposta e a segunda sugerida por Seymour Papert, que, em muitos aspectos, se tornou um guru meu. Ambas as idéias foram adotadas pela Lego, empresa com a qual acabei me associando em 2010. Vide os artigos de Papert: “Hard Fun”, in http://www.papert.org/articles/HardFun.html, e “Does Easy Do It? Children, Games and Learning”, in http://www.papert.org/articles/Doeseasydoit.html (ambos consultados em 25/02/2011). Vide também http://wn.com/Lego_Serious_Play (consultado em 25/02/2011). Uma busca por “Serious Play” na Web vai gerar inúmeros resultados.

[3]      Michael Hammer, em seu livro Beyond Reengineering: How the Process-Centered Organization is Changing our Work and our Lives (Harper Business, New York, 1996), p. 237, caracteriza a educação como “aquilo que permanece conosco depois de nos esquecermos do que nos foi ensinado”…

[4]      Vide meu artigo “O JMC nos deu educação”, em duas versões, no meu blog Instituto JMC, que criei e mantenho: https://institutojmc.wordpress.com/2010/03/07/o-jmc-nos-deu-educacao/ e https://institutojmc.wordpress.com/2010/03/07/o-jmc-nos-deu-educacao-%E2%80%93-no-sentido-mais-pleno-do-termo/. O Instituto “José Manuel da Conceição” foi fechado pela Igreja Presbiteriana no auge da ditadura, em 1970. Nunca me conformei com isso – em especial porque as razões para o fechamento nunca foram divulgadas, sendo, aparentemente, um dos segredos mais bem guardados nos porões da Igreja Presbiteriana do Brasil.

[5]      A comunidade virtual e o site não mais existem, infelizmente, por falta de tempo para cultiva-los como devem ser cultivados.

Transcrito aqui em São Paulo, 8 de Fevereiro de 2015

Quietude e Solitude — Quieto e Só Entre os Amigos Livros

Estava com saudades de ficar aqui no meu cantinho, na biblioteca do sítio (chamada de “Akston Lounge – I” — a biblioteca de casa é a “Akston Lounge – II”), escrevendo, lendo, contemplando os meus principais amigos: os meus livros. De vez em quando me levanto da confortável poltrona, tiro um livro da estante, dou uma olhada nele, aliso-o com carinho, tiro o pó, e o ponho de volta. Outras vezes apenas mudo um livro de lugar, porque estava num lugar não muito adequado, dado o assunto… Ou acerto o alinhamento deles: parece que eles se mexem sozinhos, preferindo ficar desalinhados, ou de alguma forma protestando contra o alinhamento militar que sempre pretendo lhes impingir. . . 

Sou meio maníaco com essas coisas, com esses arranjos. Não só com o alinhamento, of course. Eles são secundários. Mais importante é o agrupamento e ordenamento. . . Livros podem se perder se fora de seu grupo (categoria) ou se fora de ordem. Bibliotecários sabem disso. Por isso, nas bibliotecas de livre acesso, pedem que a gente não coloque os livros de volta nas estantes, deixando-os nos carrinhos. Um livro colocado no lugar errado em uma biblioteca grande é um livro perdido. Como tenho bem mais de 20 mil livros aqui no sítio, cuido muito disso — apesar de, em regra, só eu e a Paloma mexermos neles.

Em geral agrupo e ordeno meus livros por categoria, começando com grandes áreas: Filosofia, Teologia e Religião, Política (incluindo FIlosofia Política, Teoria Política e Ciência Política — não a prática da política), Economia, Administração, História, Psicologia, Educação… Tenho uma seção grande de livros de Lógica, porque dei aula de Lógica por dois anos nos Estados Unidos. (Política e Lógica são, para mim, parte da Filosofia, mas eu agrupo essas áreas separadamente, por ter muitos livros em cada uma delas). 

Dentro de cada categoria maior, agrupo os livros por assunto e por autor… Em Filosofia, há um agrupamento natural, cronológico, por período da História da Filosofia: Filosofia Grega, Filosofia Medieval, Filosofia Moderna, Filosofia Contemporânea. . . Dentro da Filosofia Moderna, ordeno os livros por sub-período, mas agrupando os autores principais: Século 17, Século 18, Século 19, Século 20… No Século 17, Descartes, Spinoza, Leibniz, Hobbes, Locke… No Século 18, Deístas, Adam Smith, Hume, Kant, Rousseau, Voltaire, os demais Iluministas Franceses (os Philosophes)… No Século 19, Schopenhauer, Nietszche, Kierkegaard, John Stuart Mill… No Século 20, Bertrand Russell, Wittgenstein, Popper, Ayn Rand.

Dentro da Filosofia Contemporânea (lato senso), ordeno os livros por tema: Metafísica, Epistemologia, Lógica, Ética, Política, Estética (já falei na Política e na Lógica).

Em Teologia e Religião, História do Cristianismo (incluindo História do Pensamento Cristão), Teologia Sistemática, Teologia Prática, Velho Testamento, Novo Testamento, Línguas Bíblicas. . . Não tenho muitos livros sobre religiões não cristãs, com exceção do Judaísmo, por razões óbvias: o Judaísmo é a religião-mãe do Cristianismo…  Às vezes há dúvidas sobre onde colocar um autor, se entre os teólogos ou entre os filósofos… Tomás de Aquino está, para mim, entre os filósofos. 

Os autores dos quais ou sobre os quais tenho mais livros são David Hume (disparado o número 1: fiz minha tese de doutorado sobre ele, mais de 200 livros nessa categoria), Ayn Rand (minha autora favorita, vem em segundo lugar, destacado), Karl Popper (em terceiro lugar, com seus discípulos, amigos, defensores e críticos — meu orientador, W. W. Bartley, III, está aqui, como aluno, amigo, defensor e crítico respeitoso), e, pela ordem, Bertrand Russell, Adam Smith, Tomás de Aquino, João Calvino, Rudolf Bultmann, Karl Barth, Paul Tillich, C S Lewis, Agostinho, Platão e Aristóteles, John Dewey, Jean Piaget, etc.

Faz quase um mês que não ficava quietinho aqui… Sinto falta dos meus amigos livros… Não preciso nem lê-los (embora o faça o tempo todo): basta estar ao lado deles… 

Em Salto, 23 de Agosto de 2014

50 Anos Atrás

Estou lendo uma biografia de Rudolf Karl Bultmann. O título é Rudolf Bultmann: A Biography, e o autor é Konrad Hammamm. Estou lendo em um e-book comprado da Amazon Kindle.

Li Bultmann pela primeira vez há 50 anos. Em 1964 eu fui para o Seminário Presbiteriano de Campinas e lá fui apresentado a Bultmann. Não pelos professores: Bultmann era muito avançado e radical para eles. Foram os colegas que me apresentaram Bultmann: Waldir Berndt, Elias Abrahão… Principalmente eles. Foi o contato com Bultmann que começou a desestruturar a fé simples, não-refletida, ingênua, que eu havia trazido comigo para o seminário. Uma fé que se contentava consigo mesma, que se bastava a si mesma, que não buscava, como um dia sugeriu Santo Anselmo, o entendimento. Uma fé sem entender, que cria mesmo naquilo que não entendia.

O que os colegas me falavam sobre Bultmann despertou minha curiosidade. Acabei comprando um livro, em dois volumes, chamado Kerygma and Myth, editado por Hans Werner Bartsch, que começava com um artigo de Bultmann, com o título “The New Testament and Mythology” e trazia uma série de artigos que discutiam o artigo programático de Bultmann. Comecei a ler — e fiquei abalado. Fiquei em dúvida se deveria continuar lendo. Eu tinha apenas 20 anos, mas sabia que seria arriscado. Aquilo que eu já havia lido falava sobre questões acerca das quais eu nunca havia pensado, em minha santa ingenuidade de primeiro anista de seminário. Mas eu imediatamente percebi que o artigo de Bultmann era nitroglicerina pura. Se eu optasse por continuar a lê-lo, sabia que minha fé correria risco. Mas parar de ler não era mais uma opção. Li, então, até o fim. Era longo. E resolvi traduzir o artigo, oportunamente, para o Português. Fiz isso já no meu segundo ano de seminário, 1965. O Setor de Apostilas do Centro Acadêmico “Oito de Setembro” (CAOS) publicou a tradução em apostila — usando estênceis (não sei se o termo stencils se traduz assim), daqueles velhos, encerados, e um mimeógrafo que era propriedade do CAOS. Eu mesmo digitei (datilografei) o texto nos estênceis. Publicado, interna corporis, sem pedir permissão a ninguém, o artigo causou furor. Ajudou preparar a crise do ano seguinte, 1966.

O que mais me causava surpresa no artigo de  Bultmann era o seguinte. Se ele tivesse sido escrito por um ateu, o impacto em mim não teria sido tão grande. De um ateu você normalmente não espera grande coisa. Na verdade, você até mesmo espera que ele critique sua religião. Mas Bultmann era “crente”. Mais do que isso: era pastor luterano — e teólogo, um dos mais famosos do mundo protestante, professor de teologia numa das mais conceituadas universidades mundiais: Marburg, na Alemanha. Havia livro com sermões dele… O exemplo dele falou tanto quanto seu artigo. Levou-me a crer que era possível defender as ideias que Bultmann defendia no artigo e continuar a ser crente, pastor, teólogo, professor de teologia…

Talvez eu mantivesse, ao acreditar nisso, um pouco da minha ingenuidade. Quem sabe era possível acreditar naquilo que Bultmann dizia e continuar a ser crente e pastor na Alemanha, país avançado… Mas, na Igreja Presbiteriana, aqui do Brasil, não seria. E não foi. Fui defenestrado do seminário em 1966. Em parte por causa de minha propaganda das ideias bultmannianas.

Mas fui parar, intermediariamente, na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em São Leopoldo. Lá vi que luteranos se entendem. Bultmann lá não era escândalo: era normal. Aos poucos eu comecei a conviver com as ideias de Bultmann como se fosse normal olhar para a Bíblia, Jesus Cristo, e o Cristianismo daquele jeito…

Começava meu exílio da fé, que durou cerca de 40 anos.

Agora estou aqui, de volta, lendo uma biografia de Bultmann, 50 anos depois. Descubro, na biografia, que ele também enfrentou problemas por causa de suas ideias. Sofreu oposição. Universidades, como a de Leipzig, o convidaram para se transferir para seu Departamento de Teologia, como professor e parte do corpo docente, apenas para, depois, retirar o convite por pressão da Igreja Luterana… a mesma que, em grande medida, apoiou, logo depois, Hitler e o Nacional Socialismo. Senti-me mais irmanado a Bultmann ao descobrir isso. A igreja luterana alemã apoiou, em grande medida, o Nazismo — e a igreja presbiteriana brasileira apoiou, em grande medida, a Ditadura Militar brasileira…

Os livros de e sobre Bultmann que comprei nos anos 60 e 70 do século passado — são uns cinquenta — ainda os possuo: nunca achei que devia me livrar deles. Eles eram — e continuam sendo — parte de mim. Dispor deles era como me livrar de um pedaço de mim. Não do meu corpo, mas da minha alma. As ideias deles entraram pelo meu sistema de ideias, foram mastigadas, algumas mal, outras melhor, foram todas de alguma forma digeridas, e, depois, algumas ficaram no sistema, outras foram excretadas, mas as que ficaram se misturaram com o que já estava no meu sistema e passaram a fazer parte de mim, parte do meu DNA. . .

Bultmann morreu em Julho de 1976, quando eu já era Diretor Associado da Faculdade de Educação da UNICAMP e pensava que havia deixado a teologia definitivamente para trás. Mais um engano meu. Autoengano.

Em Salto, 23 de Agosto de 2014.

Já lá se vão 47 anos. . .

Em 1967, quarenta e sete anos atrás, neste dia, então um sábado, eu estava, nesta hora (cerca de 19h) no Aeroporto de Viracopos, em Campinas, acompanhado de minha mãe, de minha tia, e de minhas irmãs, para viajar para os Estados Unidos, onde iria fazer o Mestrado, no  Pittburgh Theological Seminary (http://pts.edu), em Pittsburgh (http://pittsburghpa.gov/), no oeste do estado da Pensilvânia, já quase no estado de Ohio (onde minha filha mais velha mora hoje — de Pittsburgh até a casa dela, em Cortland, são, eu diria, cerca de 100 km, se tanto). Meu pai não foi ao aeroporto — estava sem conversar comigo. Meu irmão creio que não foi — não sei por que razão. 

Na época eu estava a menos de três semanas de completar 24 anos (como estou, hoje, de completar 71). Vocês podem conferir a minha foto daquele ano, de um mês antes, por aí, que tirei para o passaporte — o meu primeiro. Estava contente, mas ansioso. O meu Inglês era bastante bom (tinha começado a aprender cedo, havia tido, no Instituto JMC, onde éramos internos, uma namorada que falava Inglês nativo, pois era filha de missionários, e havia completado o curso da União Cultural Brasil-Estados Unidos em Campinas). Mas nunca havia ido aos Estados Unidos e tinha grande expectactiva sobre como iria me sair entre os nativos do país. Depois de uns dias iniciais meio traumáticos, saí-me bem. 

Os mais novos vão ficar surpresos de que eu estivesse saindo de Viracopos. Mas a explicação é simples. Naquela época o Aeroporto Internacional de Guarulhos ainda não existia. O Maluf ainda não havia sido nem prefeito nem governador de São Paulo… Cumbica era apenas uma base militar. E o Aeroporto de Congonhas não comportava aviões do porte de um Boeing 707, que eu iria tomar. Voei com a então tradicional PanAmerican World AirWays (PanAm), que, quando fechou, vendeu para a United as suas rotas latinoamericanas. O vôo, se bem me lembro, era PA 202, originado em Montevideo e que chegava a Campinas depois de uma escala em Buenos Aires. O vôo PA 201 fazia a direção contrária, a partir de Nova York. Fizemos uma escala no Rio, no Aeroporto do Galeão (que era um Aeroporto Internacional, além de uma base militar). Do Rio fui direto para Nova York, nonstop, desembarcando no dia seguinte no Aeroporto John Fitzgerald Kennedy (JFK). Este aeroporto havia sido inaugurado em Julho de 1948, com o nome de Idlewild Airport, mas, depois da morte do Presidente Kennedy, em 22 de Novembro de 1963, foi rebatizado em sua honra, na véspera do Natal daquele ano. Do JFK peguei um vôo para Pittsburgh (não me lembro nem da companhia nem do número do vôo, infelizmente), onde me esperava uma família, os Eichleays, com quem iria ficar por uma semana, antes de começarem as aulas. 

A estada com os Eichleays (ele se chamava William, do nome da mulher e da filha me esqueço) foi gentileza de uma instituição fantástica, o Pittsburgh Council for International Visitors (PCIV), uma ONG criada para recepcionar e apoiar estrangeiros (visitantes internacionais, no “politicamente correto” de então) que chegassem à cidade. O PCIV era informado pelas universidades e faculdades da cidade quando estudantes ou professores estrangeiros iam chegar à cidade, ou pelas empresas quando os visitantes eram empresários ou seus empregados. Eles então contatavam as pessoas e indagavam, no caso de estudantes, se queriam ficar, por uma semana, com uma família que, voluntariamente, sem receber nada por isso, se dispunha a hospedar o visitante e “aclimata-lo” na cidade. Eu, naturalmente, aceitei. Minhas aulas só iriam começar depois do Dia do Trabalho americano, comemorado na primeira segunda-feira de Setembro. Assim, me dispus a ser hóspede dos Eichleays de 20, domingo, dia de minha chegada, a 27 de Agosto — o domingo seguinte.

Já de início, naquele domingo, levaram-me para um restaurante muito chique. Nunca tinha ido a um restaurante tão bacana. Comi sirloin steak, com legumes. Achei delicioso. Tomei, de aperitivo, dois martinis. Foi a primeira vez que experimentei esse drinque americano. Depois do segundo, senti o efeito e fiquei meio zonzo. Tive um pouco de medo de que eles notassem isso. Mas se notaram, foram delicados o suficiente para não me deixar perceber. Com a comida, o impacto passou. De sobremesa, experimentei (também pela primeira vez) cheese cake. Achei delicioso. 

Depois do almoço, deram-me uma tournée da cidade, que achei linda. Pittsburgh é cortada por dois rios, o Allegheny e o Monangahela, que se unem, no centro da cidade, para formar o rio Ohio. A cidade era conhecida, nos anos 30, como “Dust City” (Cidade da Poeira), por causa da poluição causada pelas inúmeras indústrias que tinham sede na cidade, em especial várias indústrias do aço, das quais a US Steel, criada por Andrew Carneggie, o homem mais rico do mundo na passagem do século 19 para o 20, era a principal. Pittsburgh era sede de várias universidades, das quais as principais eram a University of Pittburgh – Pitt (vide http://pitt.edu), a Carneggie-Mellon University (vide http://cmu.edu), tecnológica, que, quando cheguei lá, era chamada de Carneggie Institute of Technology, e a Duquesne University (http://duq.edu),  católica. Era sede de três times esportivos profissionais: os Pittsburgh Steelers, de futebol americano (http://www.steelers.com/), os Pittsburgh Pirates, de beisebol (http://pirates.com), e os Pittsburgh Penguins, de hóquei sobre o gelo (http://penguins.nhl.com/). Os Steelers nunca haviam ganho um superbowl. Desde então ganharam seis, sendo o time que mais vezes foi campeão americano. Os Pirates haviam sido campeões mundiais (como eles chamam os campeões americanos) em 1960 e vieram a ser novamente em 1970, quando eu ainda estava lá. Os Penguins foram formados em 1967, e, portanto, não haviam ganho nada ainda quando cheguei lá, mas, depois, foram campeões nacionais três vezes, em 1991, 1992 e 2009. O time de futebol americano universitário da Pitt eram os Panthers, que era ruim quando eu estava lá, mas melhorou muito, sem, contudo, jamais chegar a ficar por muito tempo entre os melhores. A cidade tinha uma fantástica Orquestra Sinfônica (http://www.pittsburghsymphony.org/pso_home). O PCIV dava, semanalmente, bilhetes para jogos e concertos para os estrangeiros da cidade, numa base primeiro a chegar, leva. Como a sede do PCIV era dentro da Pitt, onde eu fiz o doutorado, de 1970 a 1972 eu aproveitei o fato para não perder muitos jogos. Infelizmente, não aproveitei igualmente os concertos. 

Pittsburgh era também uma cidade famosa por suas faculdades de medicina e hospitais. O hospital mais famoso era o Presbyterian University Hospital, que faz parte do University of Pittsburgh Medical Centers como seu principal hospital de clínicas. Ele fica ao lado do estádio dos Panthers, dentro do campus. 

O campus tinha dois prédios célebres. A Cathedral of Learning (Catedral da Aprendizagem), de 38 andares, no centro do campus, que era, naturalmente, uma catedral secular (http://www.nationalityrooms.pitt.edu/about/cathedral-learning), e a Heinz Memorial Chapel (http://www.heinzchapel.pitt.edu/), que funcionava como a igreja não-denominacional do campus, tendo sido construída com recursos doados pelo famoso industrial H. J. Heinz (fabricante de ketchup e mostarda). A empresa dele (vide http://en.wikipedia.org/wiki/H._J._Heinz_Company) é hoje parte do império do suíço-brasileiro Jorge Paulo Lemann e seus sócios. 

Enfim, é isso. 

Fiquei em Pittsburgh cinco anos, de 20 de Agosto de 1967 até 20 de Agosto de 1972, quando me mudei para a California, onde arrumei um emprego em Hayward, na Baía de San Francisco. 

Comemoro a data 19 de Agosto todo ano e sou grato a todos os que viabilizaram a oportunidade que tive de estudar nos Estados Unidos. Foi um privilégio. Cito, em especial, o Rev. Gordon E. Jackson, Deão do Seminário Presbiteriano de Pittsburgh, que me convidou para ir para lá e me deu a bolsa que me permitiu ficar lá durante cinco anos, e o Rev. Aharon Sapsezian, então Secretário Executivo da Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE), aqui de São Paulo, que em 1967 me deu a passagem para ir e voltar. O Aharon virou, em 1987, um de meus mais diletos amigos. Ele faleceu recentemente. Com o Rev. Jackson perdi contato, mas imagino que já tenha falecido. 

Em São Paulo, 19 de Agosto de 2014.

Descendentes do Patriarca José de Oliveira Machado

Sou fã de genealogias. Por isso venho, há vários anos, tentando elaborar a da minha família – minha árvore genealógica já tem cerca de 600 pessoas.

É verdade que ela cresceu bastante quando a Paloma e eu juntamos nossas famílias em Setembro de 2008. Embora só tenhamos nos visto pela primeira vez em 2004 (fará dez anos no dia 26 de Agosto deste ano de 2014), é possível constatar, através deste breve relato, há tangenciamentos, entrelaçamentos e coincidências significativas entre nossas famílias – em especial da minha família com o lado paterno da família da Paloma, que é o lado da família dela que vou apresentar aqui.

O que passo a relatar eu descobri conversando com a Paloma e principalmente os pais dela, mas tive subsídios dos demais parentes, em especial da tia dela, Josira Machado.

JOSÉ DE OLIVEIRA MACHADO, bisavô da Paloma pelo lado paterno, nasceu em 10 de Outubro de 1886, em Campinas, SP, e morreu em 29 de Junho de 1974, em São Paulo.

Casou-se com ALBERTINA MAURI MACHADO, que nasceu em 4 de Janeiro de 1893, também em Campinas, SP, e morreu em 16 de Agosto de 1982, em Diadema, SP. Albertina é a bisavó da Paloma, no lado paterno.

[Abro um primeiro parêntese para registrar que há um tangenciamento interessante entre os bisavós do lado paterno da Paloma, José e Albertina, e meus avós maternos, José e Angelina. Faço este primeiro parêntese para mostrar isso. O parêntese está em itálico. Quem quiser pular, pode.

O meu avô materno, José de Campos, nasceu, também em Campinas, SP, em 7 de Novembro de 1898, e morreu também em Campinas, em de 27 de Agosto de 1967. Casou-se com Angelina Claro Godoy de Campos, que nasceu em 8 de Maio de 1895, e morreu em 28 de Fevereiro de 1969.

Meus avós maternos eram, portanto, da mesma geração que os bisavós da Paloma pelo lado paterno. Os quatro nasceram num intervalo de quase exatamente 12 anos (entre 10/10/1886 e 7/11/1898), os quatro na mesma cidade: Campinas. Faleceram num intervalo de quase exatamente 15  anos (entre 27/8/1967 e 16/8/1982), dentro de um raio de mais ou menos 120 km (distância entre Campinas e Diadema).
 
Há mais coincidências: o bisavô pelo lado paterno da Paloma e o meu avô materno se chamava, ambos, José. E a bisavó pelo lado paterno da Paloma e a minha avó materna ambas tinham nomes terminados em “ina”: Albertina e Angelina. A coisa vai mais longe ainda: a mãe da Albertina também se chamava Angelina, como a minha avó materna.

Fecho o primeiro parêntese.]

[E abro um segundo parêntese… Minha avó agora paterna era chamada, em solteira, Alvina Jacyntha de Oliveira, como o bisavô e o pai da Paloma… Ela nasceu em 24/8/1888 e morreu em 19/4/1959.

Fecho o segundo parêntese.]

José de Oliveira Machado e Albertina Mauri Machado tiveram, pelo que consta em minha base de dados genealógica, 10 (dez) filhos. Com risco de omitir, errar, vou lista-los, pela data de nascimento (embora em um caso, que listo por último, não tenha a data de nascimento. Quando fornecida outra data após a do nascimento, é a da morte.

•    Paulo Machado – 1/2/1912 – 13/8/1992
•    Ruth Machado – 21/2/1914 – 3/5/1976
•    Carlita Machado (Silva) – 29/6/1916 –     /   /2010
•    Jandira Machado (Brito) – 4/9/1918 – 13/6/1977
•    Abelardo Machado (avô paterno da Paloma) – 1/12/1920 – 18/10/2007
•    Wanda Machado (d’Ávila) – 19/9/1923 –    /   /   ?  (conheci o marido dela, Rev. Jacques d’Ávila)
•    Daniel José Machado – 16/8/1925 – 6/12/1925 (viveu apenas um pouco mais de 3 meses)
•    Esther Machado (Dias) – 10/12/1927 (ela nega… :-)) – vivíssima
•    Roberto Machado – 9/3/1933 – vivíssimo
•    Maria Helena Machado –   /   /  ?  –    /   /   ?

Dois dos filhos de José Oliveira Machado e Albertina Mauri Machado estiveram no Encontro da Família Machado realizado em Salto, em 19/7/2014, Esther e Roberto.

Os outros 41 presentes no Encontro eram descendentes de Esther e Roberto, dos outros filhos, já falecidos,  de José de Oliveira Machado e Albertina Mauri Machado, ou, como eu, agregados.

Eis a lista completa, tentando agrupar as pessoas por núcleo, cada núcleo sendo capitaneado por um dos filhos de José de Oliveira Machado e Albertina Mauri Machado. Ordenei os núcleos pela data do nascimento do “capitão” do núcleo, começando com o mais velho.

Apenas três dos dez filhos de José de Oliveira Machado e Albertina Mauri Machado não estiveram presentes no Encontro ou não tiveram nenhum descendente presente no encontro: Ruth, Daniel e Maria Helena.

I. NÚCLEO PAULO MACHADO (“SENIOR”)
01. Paulo Machado Junior [filho de Paulo (“Senior”)]
02. Anita Bueno Machado [mulher de Paulo Junior]
03. Nadieliz Foizer Moraes [filha de Nancy Machado (Foizer), filha de Paulo (“Senior”)]
04. Samuel Barros Moraes [marido de Nadieliz]

II. NÚCLEO CARLITA MACHADO (SILVA)
05. Celma Albertina da Silva [filha de Carlita]

III. NÚCLEO JANDIRA MACHADO (BRITO)
06. Almir Brito [filho de Jandira]
07. Francine Mariane Schoof Brito [filha de Almir]
08. Maurício Rodrigues [noivo de Francine]
09. Sheila Brito Lima [filha de Almir]
10. Fábio Cabral de Lima [Marido de Sheila]
11. Mayara Raquel Rodrigues Brito de Lima  [Filha de Sheila e Fábio]

IV. NÚCLEO ABELARDO MACHADO
12. José de Oliveira Machado Neto (“Machadinho”) [filho de Abelardo]
13. Ana Maria Epprecht Machado [mulher de Machadinho]
14. Ana Patrícia Epprecht Machado [filha de Machadinho]
15. Fábio Kohatsu Kofazu [marido de Ana Patrícia]
16. Júlia Machado Kofazu [filha de Ana Patrícia e Fábio]
17. Paloma Epprecht e Machado de Campos Chaves [filha de Machadinho]
18. Eduardo Oscar Epprecht e Machado de Campos Chaves [marido de Paloma]
19. Bianca Epprecht Machado França [filha de Paloma]
20. Priscilla Epprecht Machado França [filha de Paloma]
21. Aline Machado Kato [filha de Ana Patrícia]
22. Alexandre Keiti Kato (“Japa” [marido de Aline]
23. Milena Machado Kato [filha de Aline e Japa]
24. Ovenice Maia (“Veninha”) [mulher de João Maia, filho de Abelardo]

V. NÚCLEO WANDA MACHADO (D’ÁVILA)
25. Iara D’Ávila Le Du [filha de Wanda]
26. Gerard Lucien Le Du [marido de Iara]

VI. NÚCLEO ESTHER MACHADO (DIAS)
27. Esther Machado Dias [filha de José de Oliveira Machado]
28. Roseli Machado Dias [filha de Esther]
29. Silvia Machado Dias [filha de Esther]
30. Nilton Cordiolli de Oliveira [marido de Silvia]
31. Hamilton Machado Dias (Pituto”) [filho de Esther]
32. Elaine Sanchez Dias [mulher de Hamilton]
33. Thaís Cristina Sanchez Dias [filha de Hamilton e Elaine]
34. Vitor Henrique Sanchez Dias [filho de Hamilton e Elaine]
35. Guilherme Felipe Sanchez Dias [filho de Hamilton e Elaine]
36. Leonardo Vinicius Sanchez Dias [filho de Hamilton e Elaine]

VII. NÚCLEO ROBERTO MACHADO
37. Roberto Machado [filho de José de Oliveira Machado]
38. Anacelis Nogueira Machado [mulher de Roberto]
39. Denise Machado Leme [filha de Roberto e Anacelis]
40. Marilia Machado Leme [filha de Denise]
41. Marcela Machado Leme [filha de Denise]
42. Paulo Roberto Nogueira Machado [filho de Roberto e Anacelis]
43. Sônia [namorada de Paulo Roberto (falta nome completo)]

Espero que estejam certas as informações. Se não estiverem, por favor, me contatem, deixando um comentário a este post.

[Agora uma palavra sobre os entrelaçamentos. Quando adolescente, certamente me encontrei com a Adair Aguiar Arruda (Machado), mulher de Abelardo Machado, e seus filhos, inclusive o Machadinho, pai da Paloma. Isto se deu na Igreja Presbiteriana do Parque das Nações, em Santo André, da qual meu pai, Oscar Chaves, era pastor e a Adair organista e regente do coral. Na realidade, a Albernice Machado (Santos), irmã mais velha do Machadinho, tem a minha idade (nascemos com intervalo de menos de um mês), e ela se casou com um amigo meu, Gideão dos Santos. O Abelardo Machado Júnior, irmão mais novo do Machadinho, se casou com Miriam dos Santos, filha de Rubem dos Santos, também meu amigo, pois era irmão do Gideão. O meu pai fez esses dois casamentos. Apesar de todos esses entrelaçamentos com a família do pai dela, só vim encontrar a Paloma pela primeira vez, como disse, em 2004. Antes tarde do que nunca, não é verdade?]

Em São Paulo, 21 de Julho de 2014