Identidade Pessoal e Mudanças [versão original de 2008]

Nossa identidade é aquilo que nos define como “eu” – que faz com que eu seja eu, e não você, e você seja você, e não eu…

À primeira vista a questão pode parecer simples – mas não é, não. Pelo contrário: é bastante complicada, e já ocupou horas preciosas da reflexão de grandes pensadores…

A questão pode, naturalmente, ser encarada de diversos pontos de vista.

Encarada do ponto de vista físico – ou biológico – a questão pode parecer mais simples do que de outros pontos de vista (psicológico, filosófico), mas mesmo aí vem se tornando cada vez mais complicada.

Dizem os entendidos que a impressão digital de uma pessoa é absolutamente única e permanece a mesma durante toda a vida dela. Com a ajuda de algumas informações complementares, a impressão digital poderia, portanto, ser usada para definir quem a pessoa é: ela é a versão mais idosa (e, esperamos, experiente) do nenê que nasceu no dia tal, a tantas horas, em tal lugar, de fulana de tal.

Mas dizem novamente os entendidos que as células de uma pessoa morrem e são substituídas por outras dentro de determinados períodos (relativamente curtos) de tempo. Assim sendo, ainda que eu tenha a mesma impressão digital do nenê Eduardo Oscar que nasceu em Lucélia, no dia 7 de Setembro de 1943, às 21h45, na Rua Amazonas s/n, de Edith de Campos, então já renomeada Edith de Campos Chaves (sendo Oscar Chaves o pai presumido), as células que aquele rechonchudo bebê tinha, há 65 anos, já morreram todas e foram substituídas por outras – e isso muito mais de uma vez. Por algum milagre biológico, a impressão digital continuou a mesma, mas, do ponto de vista físico e biológico, nada que aquele nenê tinha permanece em mim hoje…

Atualmente a coisa fica ainda mais complicada. Algumas pessoas trocam o seu coração pelo de outra pessoa; ou outros órgãos seus… Nada impede que uma pessoa, hoje, receba múltiplos transplantes de órgãos de uma mesma outra pessoa. No futuro, é possível que seja possível até mesmo transplantar o cérebro de um para outro (como Robert Heinlein já previu em I Will Fear No Evil / Não Temerei Mal Algum – livro que recomendo sem reservas no contexto desta discussão). Quando isso acontecer, se x recebe o transplante do coração, do cérebro, dos rins, e saiba Deus lá mais do que, de y, a pessoa resultante será x ou y – ou será uma mescla das duas? São os tribunais que vão resolver se ela continua x, ou y, ou passa a ser z? (Que as leis e os tribunais vão ter de enfrentar essa questão mais cedo do que se pensa, não há dúvida.)

A possibilidade de transplantes de cérebro levanta questões importantes, porque se acredita que o cérebro é a base física e biológica da memória… e a memória parece ser um componente essencial de nossa identidade pessoal.

Na verdade, John Locke, o grande filósofo britânico do século XVII (que, na minha opinião, é o segundo maior filósofo britânico de todos os tempos, e, portanto, da história, perdendo apenas para David Hume, meu santo padroeiro, mas ganhando de Bertrand Russell), uma vez defendeu a tese (em Essays Concerning Human Understanding) que a memória é o ÚNICO critério definidor de nossa identidade pessoal. Em um de seus famosos “experimentos mentais” (que ele gostava muito de fazer) ele postulou que se, num dado dia, um príncipe e um sapateiro acordassem com suas memórias totalmente trocadas, um teria se tornado o outro (e vice-versa): eles haveriam trocado de identidade pessoal. Entre outras mudanças, a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) sapateiro passaria a estar apaixonado pela princesa (ou por quem quer que fosse que o príncipe estivesse apaixonado), e a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) príncipe passaria a estar apaixonado pela mulher do sapateiro (ou por quem quer que fosse que o sapateiro estivesse apaixonado).

Ou seja, para Locke, a nossa identidade pessoal nada tem que ver com física ou biologia: ela é definida por fatores puramente mentais. Ou seja: cai na província da psicologia ou (como Locke preferia) da filosofia.

(Lembro-me, neste contexto, de um filme de 1991 com Harrison Ford, que tem o título original de “Regarding Henry”, em que Ford era um advogado mau caráter e muito chato. Sem que ele soubesse, a mulher dele havia optado por encontrar uma companhia menos cansativa. Mas ele recebeu um tiro durante um assalto e perdeu a memória: não se lembrava nem de quem era – e, num toque de realismo do filme, teve de reaprender a andar, a falar e a funcionar normalmente. A tese do filme é a de que ele, na verdade, virou outra pessoa: uma pessoa de com caráter, legal, interessante, por quem a mulher voltou a se apaixonar… [Vide http://www.imdb.com/title/tt0102768/]. Vide também o filme brasileiro “Se eu fosse você”, de 2006, em que os personagens – Tony Ramos e Glória Pires – trocam de identidade quando a mente de um passa a ocupar o corpo do outro, e vice-versa – ou seria o oposto: quando o corpo de um se apropria da mente do outro, e vice-versa. Curiosa e significativamente, a sinopse do filme no International Movie Data Base, afirma que os dois “trocaram de corpos” – “switched bodies”. No filme um dos personagens pergunta: se eu me jogar da janela, quem vai morrer, eu ou você? [Vide http://www.imdb.com/title/tt0448927/]. Está para sair, ou já saiu, “Se eu fosse você 2”. [Vide, para a seqüência, http://www.imdb.com/title/tt1099227/]).

É verdade que, como sugere Heinlein (com base no que diz a maioria dos cientistas), nossa memória tem o cérebro como sua base física e biológica – e, quiçá, como ele próprio sugere em seu famoso romance, até mesmo o restante de nosso sistema nervoso tenha algum papel nisso… Mas deixando de lado essa controvérsia científica, a sugestão de Locke parece fazer muito sentido: eu sou quem eu me lembro de ter sido… Ou, como prefere o Rubem Alves, eu sou o que fui… ou eu sou quem fui…

Exceto no caso de alguns dinossauros mentais, que preferem morrer e se fossilizar a mudar, nossas idéias mudam mais rapidamente que as células do nosso corpo… O grande desafio, como os filósofos gregos já sabiam, é descobrir a continuidade que subjaz à mudança… E a continuidade, Locke descobriu, é dada, no caso da identidade pessoal, pela memória! Quando a memória falta, perdemos a continuidade, e passamos a ser outro, como no caso do filme de Harrison Ford.

Voltei a pensar sobre essas coisas (sobre as quais penso há muito tempo e até mesmo já escrevi bastante aqui) porque, recentemente, um número razoável de pessoas tem me dito que mudei bastante – talvez até demais – e quer saber quem sou eu hoje: serei eu quem agora pareço ser ou seria aquilo que eu antes era o meu eu real??? Em suma: há continuidade por baixo da mudança, ou eu sou um caso de mudança de personalidade?

Pablo Neruda confessou que viveu. Eu confesso, sem nenhuma vergonha, que mudei – na realidade, estou ainda mudando. Porém, a questão de 64 mil dólares é: aquilo que sou agora é o que realmente sou, ou será que meu eu real é aquilo que eu antes era?

Durma-se com um barulho desses… A questão é difícil. Confesso que se eu não fosse um cara bastante opinionado, com convições firmes, eu estaria no momento passando por uma enorme crise de identidade. Mas, como sou teimoso, persisto em acreditar, mesmo quando confrontado com evidência em contrário, que eu continuo eu mesmo. Como disse YHWH no passado, eu sou o que sou. A despeito de evidências ao contrário. E acabou. Ponto final. Quem quiser discordar, que discorde – mas eu não posso discordar de mim mesmo.

E estou certo de que continuo o mesmo Eduardo Chaves que eu era porque, afinal de contas, apesar das mudanças que eu não nego nem contesto, mas francamente admito, eu me lembro de que sou o mesmo que fui. Eu me lembro de que vivia, desde minha mais tenra idade, com Oscar e Edith Chaves, e os chamava de pais… Eu me lembro de que meus pais tiveram outros filhos e que, portanto, eu tive – e tenho – irmãos: Flávio, primeiro, depois Priscila, depois Eliane. Eu me lembro de que vivi em Marialva e Maringá no Paraná, nos anos 40 e no começo dos anos 50, e de que me mudei para Santo André no começo de 1952. Eu me lembro de que estudei no Grupo Escolar “Prof José Augusto de Azevedo Antunes”, na Rua Senador Flaquer, em Santo André, e de que tive como professoras, no Primário, de 1952 a 1955, Donas Maria José Ferraz de Alvarenga, Judith Ramos Milaneze, Elídia Lopes Duarte e Mercedes da Silveira Lopes (depois Mercedes Lopes Ferraz, quando ela se casou). Lembro-me de que, junto com o quarto ano Primário, fiz dois meses de Curso de Admissão com a Carla Strambio (hoje minha colega tradutora juramentada). Lembro-me de que entrei no Colégio Estadual e Escola Normal “Dr Américo Brasiliense” em 1956 e lá fiquei até 1959, quando recebi o diploma (ou certificado, sei lá) do Ginásio, no Cine Tangará, em Santo André (e o Pedro Cia foi o paraninfo).

Não vou entediar o leitor com todos os fatos de que me lembro – e vou me calar sobre as pessoas que amei, ou sobre aquelas que quis ver mortas… Mas eu sou o que fui. Eu sou aquilo que me lembro de ter sido… Admito que a memória é seletiva (deixa coisas de fora) e até mesmo inventiva (traz pra dentro coisas que nunca aconteceram). Foi Mark Twain (se bem me lembro…) que disse, quando já velho, que é mentira que a nossa memória fica mais fraca quando a gente fica mais velho. A memória dele era tão boa, disse, que ele conseguia se lembrar até de coisas que nunca aconteceram…

De qualquer forma, mesmo admitindo que, excepcionalmente, deletamos uns fatos e inventamos outros, nossa memória é que nos faz ser, hoje, o que somos. Dando por pressuposto que a maior parte de nossas memórias é verídica, nós somos, hoje, o que somos, porque fomos o que fomos no passado – e nos lembramos disso!

Assim, eu sou quem eu sou hoje, apesar de todas as mudanças, porque me lembro de que, em determinados momentos, quis mudar… e, como acontece agora, mudei e continuo mudando – e me lembro também de que, em outros momentos, quis mudar e, por alguma razão, não mudei… E me lembro ainda de que, em relação a determinados aspectos (os físicos e biológicos, por exemplo), mudei sem necessariamente querer mudar…

Se eu não me lembrasse desses fatos, poderia fazer sentido afirmar que eu mudei recentemente de identidade (ou de personalidade). Mas eu me lembro do que eu era e sei o que eu sou, e sei que as mudanças recentes foram desejadas. E estou contente com o que hoje sou, ou estou me tornando – ainda que possa haver quem prefira que eu não tivesse mudado…

Desculpem-me os leitores se o meu post pode, em alguns aspectos, parecer enigmático ou mesmo ininteligível. Garanto-lhes que não é enigmático e que faz bastante sentido. Podem crer.

Em São Paulo, 22 de Dezembro de 2008. [NOTA de 9.1.2022: Há uma nova versão deste artigo, amplamente revista e ampliada, publicada em 9.1.2022, neste mesmo blog. Quem preferir a versão mais atualizada pode ir diretamente para ela no endereço: https://liberal.space/2022/01/09/identidade-pessoal-e-mudancas-versao-revista-de-2022/.%5D

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