Identidade Pessoal e Mudanças [versão revista de 2022]

Nossa identidade é aquilo que nos define como “eu” – que nos torna “únicos”, que faz com que eu seja eu, e não você, e você seja você, e não eu…

À primeira vista a questão pode parecer simples – mas não é, não. Pelo contrário: é bastante complicada, e já ocupou horas preciosas da reflexão de grandes pensadores…

A questão pode, naturalmente, ser encarada de diversos pontos de vista.

Encarada do ponto de vista físico e biológico – a questão pode parecer mais simples do que de outros pontos de vista (psicológico, social, intelectual [filosófico, religioso, etc.]), etc., mas mesmo aí vem se tornando cada vez mais complicada.

Dizem os entendidos que a impressão digital de uma pessoa é absolutamente única e permanece a mesma durante toda a vida dela. Com a ajuda de algumas informações complementares, a impressão digital poderia, portanto, ser usada para definir quem a pessoa é do ponto de vista físico e biológico: ela é a versão mais idosa (e, é de esperar, mais experiente) do nenê que nasceu no dia tal, a tantas horas, em tal lugar, de fulana de tal.

Mas dizem novamente os entendidos que as células de uma pessoa morrem e são substituídas por outras dentro de determinados períodos (relativamente curtos) de tempo. Assim sendo, ainda que eu tenha a mesma impressão digital do nenê Eduardo Oscar que nasceu em Lucélia, no dia 7 de Setembro de 1943, às 21h45, na Rua Amazonas s/n, de Edith de Campos, então já renomeada Edith de Campos Chaves (sendo Oscar Chaves o pai presumido), as células que aquele rechonchudo bebê tinha, há 65 anos [alterado na revisão: 78 anos completos, a partir do aniversário em 2021], já morreram todas e foram substituídas por outras – e isso muito mais de uma vez. Por algum milagre biológico, a impressão digital continua a mesma, imagino (não tiraram minha impressão digital quando eu nasci) mas, do ponto de vista físico e biológico, nada físico e biológico que aquele nenê tinha permanece em mim hoje exatamente como era em 7.9.1943.…

Atualmente a coisa fica ainda mais complicada. Algumas pessoas fazem transplante de órgãos: trocam, por exemplo, o seu coração pelo de outra pessoa; ou outros órgãos seus, como um rim… Nada impede que uma pessoa, hoje, receba múltiplos transplantes de órgãos de uma outra pessoa que morreu — ou de mais de uma pessoa. Em alguns casos, até, possivelmente, de um animal não humano. No futuro, é possível que seja possível até mesmo transplantar o cérebro de uma pessoal para outra (como Robert Heinlein já previu em I Will Fear No Evil / Não Temerei Mal Algum – livro que recomendo sem reservas no contexto desta discussão). Quando isso acontecer, se x recebe o transplante do coração, do cérebro, dos rins, e saiba Deus lá mais do que, de y, a pessoa resultante será x ou y – ou será uma mescla das duas, digamos xy? São os tribunais que vão resolver se ela continua x, ou y, ou passa a ser xy, ou w? (Que as leis e os tribunais vão ter de enfrentar essa questão mais cedo do que se pensa, não tenho dúvida.)

E ainda há a possibilidade de a pessoa receber próteses de vários tipos, com características visíveis puramente mecânicas ou com aparência humanoide. Um ser com várias próteses (algo concebível) será (ainda) uma pessoa humana ou será (ou passará a ser) um robô?

A possibilidade de transplantes de cérebro levanta questões importantes, porque se acredita que o cérebro é a base física e biológica da memória… e a nossa memória parece ser um componente essencial de nossa identidade pessoal. Quem sofre um acidente que afeta o cérebro pode perder sua memória, em parte ou totalmente.

E aqui o físico-biológico, de um lado, e o mental, do outro, começam a se confundir… E com o mental vêm o intelectual, o afetivo, a criatividade, a imaginação, a sensibilidade… Ou será que essas características não são total ou puramente mentais? 

Na verdade, John Locke, o grande filósofo britânico do século XVII (que, na minha opinião, é o segundo maior filósofo britânico de todos os tempos, e, portanto, da história, perdendo apenas para David Hume, meu santo padroeiro, mas ganhando de Bertrand Russell), uma vez defendeu a tese (em Essays Concerning Human Understanding) que a memória é o ÚNICO critério definidor de nossa identidade pessoal — que fique para lá o físico-biológico, como as impressões digitais ou arcada dentária…

Em um de seus famosos “experimentos mentais” (que ele gostava muito de fazer), John Locke postulou que se, num dado dia, um príncipe e um sapateiro acordassem com suas memórias totalmente trocadas, um teria se tornado o outro (e vice-versa): eles haveriam trocado de identidade pessoal (apesar de manter o mesmo corpo de antes da troca de memória, com suas impressões digitais, arcadas dentais, etc.). Entre outras mudanças, a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) sapateiro passaria a estar apaixonado pela princesa (ou por quem quer que fosse que o príncipe estivesse apaixonado), e a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) príncipe passaria a estar apaixonado pela mulher do sapateiro (ou por quem quer que fosse que o sapateiro estivesse apaixonado). O (até ali) sapateiro passaria a ter a inteligência sofisticada, os gostos refinados, a sensibilidade, a criatividade, a imaginação do (até então) príncipe, passaria a gostar de ler a melhor literatura, ouvir as mais delicadas músicas… Na música, deixaria de gostar de sertanejo raiz, ou de funk, para gostar de Mozart… E vice-versa.

Ou seja, para Locke, a nossa identidade pessoal nada tem que ver com física ou biologia: ela é definida por fatores puramente mentais. Ou seja: cai na província da psicologia ou (como Locke preferia) da filosofia.

(Lembro-me, neste contexto, de um filme de 1991 com Harrison Ford, que tem o título original de Regarding Henry, em que Ford era um advogado mau caráter e muito chato. Sem que ele soubesse, a mulher dele havia optado por encontrar uma companhia menos cansativa. Mas ele recebeu um tiro na cabeça (que atingiu o seu cérebro) durante um assalto e perdeu a memória: não se lembrava nem de quem era – e, num toque de realismo do filme, teve de reaprender a andar, a falar e a funcionar normalmente. A tese do filme é a de que ele, na verdade, virou outra pessoa: uma pessoa com caráter, legal, interessante, por quem a mulher dele (em sua identidade prévia) voltou a se apaixonar… [Vide http://www.imdb.com/title/tt0102768/]. Vide também o filme brasileiro Se eu Fosse Você, de 2006, em que os personagens – Tony Ramos e Glória Pires – trocam de identidade quando a mente de um passa a ocupar o corpo do outro, e vice-versa – ou seria o oposto: quando o corpo de um se apropria da mente do outro, e vice-versa. Curiosa e significativamente, a sinopse do filme no International Movie Data Base, afirma que os dois “trocaram de corpos” – “switched bodies”. No filme um dos personagens pergunta: se eu me jogar da janela, quem vai morrer, eu ou você? [Vide http://www.imdb.com/title/tt0448927/]. Estava para sair (quando eu escrevi a primeira versão deste artigo, em 2008), ou já saiu (hoje eu o reviso em 2022), Se eu Fosse Você 2. [Vide, para a sequência, http://www.imdb.com/title/tt1099227/]).

É verdade que, como sugere Robert Heinlein (com base, provavelmente, no que diz a maioria dos cientistas, que são, quase todos eles materialistas, e não dualistas, como René Descartes, ou até trialistas, como Karl Raymund Popper), nossa memória tem, no cérebro, a sua indispensável base física e biológica (se o cérebro morrer vão-se embora com ele nossas memórias). Talvez, como o próprio Heinlein sugere, em seu famoso romance, até mesmo o restante de nosso sistema nervoso tenha papel nisso, alguns hábitos e trejeitos nossos, que envolvem componentes físico-biológicos, ficando armazenados, não no cérebro, mas no restante do sistema nervoso central, podendo sobreviver até mesmo a um transplante de cérebros! Mas deixando de lado essa controvérsia científica meio futurística, a sugestão de Locke parece fazer muito sentido: eu sou quem eu me lembro de ter sido… Ou, como preferia dizer o Rubem Alves, eu sou o que fui… ou eu sou quem fui… ou, se o Rubem se lembrasse bem de suas leituras de Locke, eu sou quem eu me lembro de ter sido… Eu ainda sou protestante, dizia ele, porque um dia eu fui… e, eu acrescento: e porque me lembro claramente de ter sido! [Veja a esse propósito o belo artigo do Rubem Alves, “Reflexões de um Protestante Obstinado”, escrito originalmente em 1981, e transcrito em mais de um blog meu, mas a transcrição definitiva é no meu blog Rubem Alves: Teólogo, Filósofo, Educador, que eu criei como um tributo ao amigo querido, no endereço https://rubemalves.com/2021/09/16/rubem-alves-confissoes-de-um-protestante-obstinado/.%5D

O leitor atento terá percebido que, na discussão da identidade pessoal, passei rapidamente de características físicas e biológicas, como impressões digitais e arcadas dentárias, passando por questões que parecem, à primeira vista, ser puramente mentais, como nossa memória, algo que é discutido em manuais de psicologia e não em tratados de biologia ou, muito menos, física, e chegando, finalmente, a questões que são quase mais-do-que-mentais, chegando, quem sabe, ao plano do social, ou quem sabe, do socio-mental, ou da psicologia social: nossas características intelectuais e afetivas, nossa criatividade, nossa imaginação, nossa sensibilidade, quiçá nossos valores — tudo isso faz parte de nossa identidade pessoal, não faz? Ou será que devemos distinguir a identidade física-biológica (que é de natureza material), a identidade pessoal (que é de natureza mental, estando vinculada à memória, ou, pelo menos, dependente dela), e a identidade social, ou psico-social, que envolveria essas outras características nossas que acabei de mencionar: nossas características intelectuais (nossa inteligência e nossas ideias) e afetivas (as coisas de que gostamos e as que detestamos), nossa criatividade, nossa imaginação, nossa sensibilidade, quiçá nossos valores mais básicos (não só nossos gostos e preferências, como gosto mais de churrasco de picanha do que de carne moída com farinha de mandioca misturada).

Exceto no caso de alguns dinossauros mentais, que preferem morrer e se fossilizar a mudar de ideias, de afetos, de hábitos e costumes, etc., é possível que esse conjunto de características que estou chamando de psico-sociais (nossas ideias, etc.) mudem mais rapidamente que as células do nosso corpo… Tem gente que hoje pensa uma coisa, amanhã pensa outra, ontem gostava do Bolsonaro, hoje o acha um monstro genocida, antes era calmo, sereno, tolerante, hoje é explosivo, agressivo, disposto a partir para a ignorância diante da menor desavença ou discordância… (Já li em algum lugar que, ao casar, a mulher espera mudar o homem com quem está se casando, e o homem espera que a mulher que está desposando nunca mude, fique sempre como era quando solteiros os dois, carinhosa, delicada, atenciosa, prestativa, de fala mansa e dengosa… Os dois se frustram.)

O grande desafio, como os filósofos gregos já sabiam, é descobrir a continuidade que subjaz à mudança… E a continuidade, Locke descobriu, é dada, no caso da identidade pessoal, por fatores mentais, como a memória! Quando a memória falta, perdemos a continuidade, e passamos a ser outro, como no caso do filme de Harrison Ford. Ou a descontinuidade, como nós descobrimos a cada dia, é dada pela mudança de ideias, de características afetivas, de sensibilidades, de estilos de relacionamento, de formas de tratamento, de hábitos e costumes, etc.

Voltei a pensar sobre essas coisas (sobre as quais penso há muito tempo e até mesmo já escrevi bastante aqui) porque, recentemente, um número razoável de pessoas tem me dito que mudei bastante – talvez até demais – e quer saber quem sou eu hoje: serei eu quem agora pareço ser ou seria aquilo que eu antes era, o que para elas seria o meu eu real??? Em suma: há continuidade por baixo da mudança, ou eu sou um caso de mudança de personalidade?

Pablo Neruda confessou que viveu. Eu confesso, sem nenhuma vergonha, que mudei – na realidade, estou ainda mudando. Porém, a questão de 64 mil dólares é: aquilo que sou agora é o que realmente sou, ou será que meu eu real é aquilo que eu antes era e hoje eu mudei de identidade, vale dizer, de personalidade? 

Durma-se com um barulho desses… A questão é difícil. Confesso que se eu não fosse um cara bastante opinionado, com convições firmes, eu estaria no momento passando por uma enorme crise de identidade. Mas, como sou teimoso, persisto em acreditar, mesmo quando confrontado com evidência em contrário, que eu continuo eu mesmo. Como disse YHWH no passado, eu sou o que sou. A despeito de evidências ao contrário. E acabou. Ponto final. Quem quiser discordar, que discorde – mas eu não posso discordar de mim mesmo.

E estou certo de que continuo o mesmo Eduardo Chaves que eu era porque, afinal de contas, apesar das mudanças que eu não nego nem contesto, mas francamente admito, eu me lembro de que sou o mesmo que fui. Eu me lembro de que vivia, desde minha mais tenra idade, com Oscar e Edith Chaves, e os chamava de pais… Eu me lembro de que meus pais tiveram outros filhos e que, portanto, eu tive – e tenho – irmãos: Flávio, primeiro, depois Priscila, depois Eliane. Eu me lembro de que vivi em Marialva e Maringá no Paraná, nos anos 40 e no começo dos anos 50, e de que me mudei para Santo André no começo de 1952. Eu me lembro de que estudei no Grupo Escolar “Prof José Augusto de Azevedo Antunes”, na Rua Senador Flaquer, em Santo André, e de que tive como professoras, no Primário, de 1952 a 1955, Donas Maria José Ferraz de Alvarenga, Judith Ramos Milaneze, Elídia Lopes Duarte e Mercedes da Silveira Lopes (depois Mercedes Lopes Ferraz, quando ela se casou). Lembro-me de que, junto com o quarto ano Primário, fiz dois meses de Curso de Admissão com a Carla Strambio (hoje minha colega tradutora juramentada). Lembro-me de que entrei no Colégio Estadual e Escola Normal “Dr Américo Brasiliense” em 1956 e lá fiquei até 1959, quando recebi o diploma (ou certificado, sei lá) do Ginásio, no Cine Tangará, em Santo André (e o Pedro Cia foi nosso paraninfo).

Não vou entediar o leitor com todos os fatos de que me lembro – e vou me calar sobre as pessoas que amei, ou sobre aquelas que quis ver mortas (ou que, ainda agora, gostaria de ver mortas, no Inferno, já sofrendo, desde já, as primícias das penas eternas…). Mas eu sou o que fui. Eu sou aquilo que me lembro de ter sido… Admito que a memória é seletiva (deixa coisas de fora) e até mesmo inventiva (traz pra dentro coisas que nunca aconteceram). Foi Mark Twain (se bem me lembro…) que disse, quando já velho, que é mentira que a nossa memória fica mais fraca quando a gente fica mais velho. A memória dele era tão boa, disse, que ele conseguia se lembrar até de coisas que nunca aconteceram… 

De qualquer forma, mesmo admitindo que, excepcionalmente, deletamos uns fatos e inventamos outros, nossa memória é que nos faz ser, hoje, o que somos. Dando por pressuposto que a maior parte de nossas memórias é verídica, nós somos, hoje, o que somos, porque fomos o que fomos no passado – e nos lembramos disso!

Assim, eu sou quem eu sou hoje, apesar de todas as mudanças, porque me lembro de que, em determinados momentos, quis mudar… e, como acontece agora, mudei e continuo mudando – e me lembro também de que, em outros momentos, quis mudar e, por alguma razão, não mudei… E me lembro ainda de que, em relação a determinados aspectos (os físicos e biológicos, por exemplo), mudei sem necessariamente querer mudar… 

E, em outros momentos, quis mudar e alguém me convenceu de que não era bom negócio…

Ontem [esta parte está sendo escrita em 9.1.2022, de manhã, como parte da revisão deste artigo] participei de um encontro virtual de 24 horas de “popperianos” — gente que, em maior ou menor medida, subscreve a ideias originadas pelo filósofo austríaco-depois-britânico Karl Raymund Popper — Sir Karl, como gostam de chamá-lo os entendidos. (Tomem cuidado: Bertrand Russell é “Lord Russell”, o título é herdado, mas Popper é apenas “Sir Karl”, título que nenhum filho herdou, até porque ele nunca teve nenhum filho). Quando recebi o convite, de meu amigo australiano Rafe Champion, me perguntei: mas será que eu sou mesmo, ou suficientemente, “popperiano” para participar? Certamente eu aceito e endosso muitas das ideias extremamente originais de Popper. Mas basta isso para ser popperiano? Não tenho dúvida de que meu orientador no doutorado, William Warren Bartley, III, que, por sua vez, teve Popper como orientador do seu doutorado, é popperiano. Embora eles tenham se desentendido em um momento, e ficado vários anos sem se ver e mesmo sem conversar, por carta ou qualquer outro meio, há razoável consenso entre os “popperianos” de que Bartley foi o “discípulo amado de Popper”, não só o mais brilhante, mas o que, apesar da briga, foi o mais querido, aquele que, para Popper, fez as vezes do filho que ele nunca teve, e que, como qualquer filho, especialmente os muito parecidos com o pai, de vez em quando se rebelam…

Uma ideia puxa a outra, quase como se eu estivesse brincando de deixar a minha consciência entrar em regime de free flow, fluxo livre… Lembrei-me de que, ao longo do meu doutorado (1970-1972) eu, em parte, pela força combinada de ideias de David Hume, sobre quem escrevi minha tese, e de Karl Popper, meu Doktorgrossvater, decidi que eu não era mais presbiteriano, nem protestante, nem cristão, nem “teu” (o oposto de ateu). Mas será que eu havia me tornado uma mescla de humeano e popperiano? Lembro-me de que, na minha recém-descoberta ateicidade, eu me interessei pelas ideias de uma “American Humanist Association“, e pensei em me tornar sócio dela. Quando falei sobre o assunto com Bill Bartley ele me disse algo assim: “O que é isso, você acabou de se livrar de uma gaiola e quer se meter em outra?” (Ele não usou a metáfora da gaiola, que é uma metáfora, tanto quanto eu saiba, criada pelo Rubem Alves, mas a ideia foi essa: você está se libertando de uma prisão e está procurando outra?

Isso me fez refletir, na ocasião, se era possível viver “desengaiolado”, ou, como preferia Bill Bartley, “desengajado”, “sans engagement“, “without commitment“. A tese de doutorado dele, famosa, foi publicada como Retreat to Commitment (Flucht ins Engagement, em Alemão). Nela ele criticou principalmente a Neo-Ortodoxia de Karl Barth, que, desiludido com a Teologia Liberal, resolveu se comprometer (engajar-se, fugir para o engagement) com “a revelação em Cristo”…

E “popperiano”, a gente poderia ser, sem ser criticado? A resposta foi de que popperiano a gente só poderia ser, não como um “ultimate commitment“, nem como um comprometimento total, que negligencia os concorrentes e os críticos, mas como algo provisional, sujeito e aberto a críticas, um popperianismo altamente auto-crítico, e, no caso de críticas irrespondíveis, próprias ou de terceiros, perfeitamente rejeitável — ou, se possível, modificável nos aspectos em que a crítica foi irrespondível.

Um comprometimento que a gente mesmo procura diariamente criticar, para o qual a gente procura críticas de outros… Se você resolve se considerar popperiano, seu dever é ler os críticos, os anti-popperianos, para analisar com seriedade se deve continuar sendo popperiano…

Desse jeito, sou popperiano até hoje, mas com ressalvas, e sem exclusividade. Também sou, em alguns aspectos, aristotélico, humeano, randiano, rothbardiano, cslewisiano, bultmanniano. Talvez até, em alguns aspectos, teísta, cristão, protestante, presbiteriano… Tudo isso sem compromissos definitivos e sem exclusividade.

Seria isso eclético demais? Estaria eu próximo do relativismo? Creio que não e não. Nunca seria, por exemplo, platonista, cartesiano, kantiano, hegeliano, existencialista, marxista, socialista, social-democrata keynesiano, presbiteriano fundamentalista…

Se eu não me lembrasse desses fatos, poderia fazer sentido afirmar que eu mudei recentemente de identidade (ou de personalidade). Mas eu me lembro do que eu era e sei o que eu sou, e sei que as mudanças recentes foram desejadas — e que outras mudanças ainda virão no tempo que me resta, apesar de eu estar beirando os oitenta. Apesar de, no momento, estar contente com o que hoje sou, ou estou me tornando – ainda que possa haver quem prefira que eu não tivesse mudado…

Desculpem-me os leitores se o meu post pode, em alguns aspectos, parecer enigmático ou mesmo ininteligível. Garanto-lhes que não é enigmático e que faz bastante sentido. Podem crer. Raul Seixas poderia até dizer que eu sou uma “metamorfose ambulante” — sem deixar, em nenhum momento, de ser eu mesmo. 

Em São Paulo, 22 de Dezembro de 2008. Revisão, com mudanças significativas, quatorze anos depois, em 9 de Janeiro de 2022. Quem quiser cotejar esta versão revista com a versão original, pode consultar “Identidade Pessoal e Mudanças [versão original de 2008]”, neste mesmo blog, Liberal Space, no endereço https://liberal.space/2008/12/22/identidade-pessoal-e-mudancas-versao-original-de-2008/.

Como um século faz diferença. . . ou não!

Dei-me conta no último fim de semana (que, para nós, aqui em Salto, inclui a segunda-feira, no caso ontem, 25/4/2016) como um século faz diferença – embora seja relativamente pouco tempo (quando comparado com a história do Cristianismo, um século é apenas 1/20; se comparado com a eternidade, então…). No meu caso, por exemplo, só me faltam meros 27 anos para completar um século – se é que eu chego lá (tenho sérias dúvidas).

Comecei a refletir sobre essas coisas ao ler um livro (que não acabei ainda, mas acabarei logo, por ser uma delícia sua leitura) chamado Crowns in Conflict: The Triumph and the Tragedy of European Monarchy – 1910/1918, de Theo Aronson.

É um livro mais de biografia do que de história – embora trate de história também. Na verdade, biografia é história, não é verdade? História com foco numa vida individual – ou num conjunto delas, como no caso desse livro.

Cem anos atrás, em 1916, o mundo (principalmente a Europa) estava no meio a sua primeira guerra mundial, iniciada em 1914.

Cem anos atrás, em 1916, a Revolução Comunista na Rússia não tinha ainda acontecido, e a Rússia era governada pelos czares Nicolau e Alexandre, com a ajuda (? se aquilo foi ajuda…) do sinistro Rasputin. A Revolução Comunista deflagrada dezoito meses depois de Abril de 1916 não durou nem sequer um século – na verdade, nem ¾ de século. Vamos ver como nossos comunistinhas tupiniquins comemoram a Revolução Russa no ano que vem.

Na verdade, em 1910, cento e seis anos anos atrás, uma das datas foco do livro, de todos os principais países europeus apenas a Suíça e a França não eram governadas por cabeças coroadas. Devemos dar um certo crédito também a Portugal, que, nessa época, em 1910, estava tentando derrubar a sua cabeça coroada para implantar um governo republicano, em meio a inúmeros golpes de estado. (Nessa área, de implantação do republicanismo, ganhamos deles por cerca de vinte anos. Não sei se o ganho, no caso, foi progresso, como se verá adiante. Quanto a golpes de estado, creio que eles têm mais do que nós – mesmo contando o que o PT acredita estar em curso no momento).

Fiz, com a ajuda do livro e da Wikipedia, uma lista das cabeças coroadas da Europa em 1910 (por aí), dando as datas do monarca que governava então (monarca = rei, imperador, kaiser, czar, sultão, etc.). Coloco os países na ordem que considero mais adequada à realidade (sem defender essa ordem — embora abaixo fique claro por que coloco a Grã-Bretanha em primeiro lugar):

Grã-Bretanha: Rei Edward VII (1901-1910) e Rei George V (1910-1936)

Alemanha (incluindo a Prússia): Kaiser / Imperador Wilhelm II (1888-1918)

Áustria / Hungria: Imperador Franz Joseph (1848-1916) [o marido da Sissi]

Rússia: Czar Nicholas II (1894-1917)

Itália: Rei Victor Manoel III (1900-1946)

Bélgica: Rei Albert I (1909-1934)

Holanda: Rainha Wilhelmina (1890-1948)

Espanha: Rei Alfonso XIII (1886-1931)

Portugal: Rei Manuel II (1908-1910) [1910: República]

Grécia: Rei George I (1863-1913) e Rei Constantino I (1913-1917)

Sérbia: Rei Peter I (1903-1921) [quiseram copiar a gente…]

Bulgária: Czar Ferdinand I (1887-1918)

România: Rei Carol I (1866-1914)

Turquia: Sultan Mehmed V (1909-1918)

Noruega: Rei Hackon VII (1905-1957)

Suécia: Rei Gustav V (1907-1950)

Dinamarca: Rei Frederick VIII (1906-1912) e Rei Christian X (1912-1947)

Deixei os principados e assemelhados de fora (Mônaco, Liechtenstein, Luxemburgo, San Marino, Montenegro, etc.) bem como alguns outros países que não me pareceram tão centrais.

O ponto de partida do livro de Theo Aronson é 1910, ano em que o Rei Edward VII, da Inglaterra, morreu. Ele, filho da Rainha Victoria, e pai de George V, que o sucedeu, era avô ou tio de boa parte desses outros monarcas – quase todos os monarcas europeus eram aparentados com a Rainha Victoria, que reinou de 1837 a 1901 (64 anos, só menos do que a atual rainha), e teve nove filhos, que se casaram, sem exceção, com realezas (em geral príncipes e princesas). Por isso, com o tempo, quase todo rei, rainha, príncipe, princesa, ou qualquer outra pessoa com outro título de nobreza na Europa era descendente da Rainha Victoria. (Theo Aronson tem outro livro sobre este tema: The Grandmama of Europa: The Crowned Descendants of Queen Victoria. A vida amorosa da Rainha Victoria foi muito, digamos, rica. Mesmo que nem todos os seus seis grandes amores, um dos quais foi seu marido e pai de seus nove filhos, tenham sido “carnais”, no fizer de Aronson, eles foram paixões. Vide, todos de Theo Aronson: Heart of a Queen: Queen Victoria’s Romantic AttachmentsQueen Victoria and the BonapartesVictoria & Israeli.)

Wilhelm II, da Alemanha, e Albert I, da Bélgica, eram netos de Edward VII (e bisnetos da Rainha Victoria). A atual rainha Elizabeth II da Inglaterra, é bisneta de Edward VII (filha de George VI, que era filho de George V, e, portanto, neto de Edward VII) e, por conseguinte, trisneta (caso o termo exista) da Rainha Victoria. A rainha Alexandra, mulher de Edward VII, era tia do Czar Nicholas II, da Rússia. O casal Nicholas II e Alexandra, da Rússia, era relacionado em parentesco com a família real da Grã-Bretanha tanto pelo lado de Nicholas como pelo lado de Alexandra – e, através dela, com as famílias reais do resto da Europa. (A vida amorosa de Edward VII foi meio conturbada. (Theo Aronson tem ainda outro livro de interesse no contexto: The King in Love: Edward VII’s Mistresses.)

Vou transcrever parte de um artigo da Wikipedia (Nicholas II of Russia) em que se discutem alguns dos parentescos do czar, só para dar uma ideia. Infelizmente o texto está em Inglês:

“Nicholas was born in Alexander Palace, Saint Petersburg, Russian Empire, the eldest son of Emperor Alexander III and Empress Maria Feodorovna of Russia (formerly Princess Dagmar of Denmark). He had five younger siblings: Alexander (1869–1870), George (1871–1899), Xenia (1875–1960), Michael (1878–1918) and Olga (1882–1960). Nicholas often referred to his father nostalgically in letters after Alexander’s death in 1894. He was also very close to his mother, as revealed in their published letters to each other. His paternal grandparents were Emperor Alexander II and Empress Maria Alexandrovna of Russia (born Princess Marie of Hesse and by Rhine). His maternal grandparents were King Christian IX and Queen Louise of Denmark. Nicholas was of primarily German, as well as Danish, descent. His last ethnically Russian ancestor was Peter the Great. Nicholas was related to several monarchs in Europe. His mother’s siblings included Kings Frederik VIII of Denmark and George I of Greece, as well as the United Kingdom’s Queen Alexandra (consort of King Edward VII). Nicholas, his wife Alexandra, and Kaiser Wilhelm II of Germany were all first cousins of King George V of the United Kingdom. Nicholas was also a first cousin of both King Haakon VII and Queen Maud of Norway, as well as King Constantine I of Greece. Nicholas and Wilhelm II were in turn second cousins once removed, as each descended from King Frederick William III of Prussia, as well as third cousins, as they were both great-great-grandsons of Tsar Paul I of Russia. In addition to being second cousins through descent from Louis II, Grand Duke of Hesse and by Rhine and his wife Wilhelmine of Baden, Nicholas and Alexandra were also third cousins once removed, as they were both descendants of King Frederick William II of Prussia.”

Mas voltemos ao nosso assunto: Um pouco mais de cem anos atrás (cento e seis, para ser preciso) o “default” (pelo menos na Europa) era ser governado por uma cabeça coroada. A Primeira Guerra Mundial acabou com várias monarquias e impérios – mas o digno de nota é que tantos tenham ficado, dos quais a mais importante é a Grã-Bretanha, cuja rainha, aquela cujo reino tem a maior duração de toda a história da Inglaterra, é ainda um símbolo de continuidade e estabilidade – sem falar que é objeto de quase veneração por boa parte de seus súditos. Ela está no trono desde 6 de Fevereiro de 1952 – eu tinha oito anos quando ela foi coroada. Desde então nós tivemos o Getúlio (pela segunda vez), o Juscelino, o Jânio, o Jango, o Castello Branco, o Costa e Silva, a Junta Militar Provisória, o Garrastazu Médici, o Geisel, o Figueiredo, o Collor, o Itamar, o FHC (duas vezes), o Lula (duas vezes), a Dilma (uma vez e um pouquinho) – e estamos preparando para o Temer. Isto sem falar nos intermediários, Café Filho, Nereu Ramos, Carlos Luz… Durante esse período tivemos uma República Presidencialista, uma República Parlamentarista, uma Ditadura Militar, outra República (supostamente nova)… Tivemos o impeachment do Collor e estamos com o impeachment da Dilma em curso.

Às vezes, mudança, até mesmo muita mudança, não vem acompanhada de inovação e progresso – pelo contrário: a gente muda e a coisa fica pior. Tenho a nítida impressão de que, se somarmos todos os nossos presidentes, desde a Proclamação da República, o total não tem, em termos de cultura, valores, caráter, sensibilidade política, uma parcela do valor que tinha Dom Pedro II – ou que tem a atual Rainha da Inglaterra.

Karl Raymund Popper, em minha opinião o maior filósofo do Século 20, que era austríaco de nascimento, mas britânico de coração e por adoção, disse, em A Sociedade Aberta e seus Inimigos, que o que caracteriza a democracia não é, de modo algum, um sistema (o voto universal), porque, através do voto, podemos eleger um tirano, como a Alemanha fez, no caso do Hitler, um irresponsável ou um incompetente, como o Brasil fez, no caso do Lula e da Dilma. O que caracteriza a democracia, diz Popper, é a existência de mecanismos que permitem que detectemos com rapidez quando cometemos um erro na escolha dos governantes (por qualquer método, direto ou indireto) e que permitem que nos livremos dele também com rapidez e de forma indolor e não traumática. Para Popper – e eu concordo com ele – uma Monarquia Constitucional e Parlamentar como a britânica é o sistema político mais próximo do ideal. Não há impeachment: há o voto de não-confiança, que força uma nova eleição dentro de pouco tempo. A troca de governo, mesmo que ele tenha sido eleito um ano antes, não é traumática porque: (a) é parte da regra do jogo: o Primeiro Ministro não tem mandato, só ficando no governo enquanto goza da confiança da maioria do eleitorado; e (b) a monarquia garante a estabilidade e uma boa medida de continuidade.

Por isso, anos atrás (21/04/1993), quando houve um plebiscito aqui no Brasil sobre a regime e o sistema de governo, indagou-se dos eleitores qual regime político preferíamos (república ou monarquia) e qual sistema político (parlamentarismo ou presidencialismo). É interessante ler o seguinte artigo da Wikipedia e ali ver os resultados da votação:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Plebiscito_sobre_a_forma_e_o_sistema_de_governo_do_Brasil_(1993).

Eu votei pela monarquia e pelo parlamentarismo. Perdi nos dois itens. Ganhou a república presidencialista. Mas continuo achando que eu estava certo. Num plebiscito democrático a maioria leva – mas isso não quer dizer que esteja certa.

Há um ano e meio atrás a Dilma ganhou a eleição mais ou menos democrática (hoje sabemos que ela mentiu, caluniou seus adversários, usou dinheiro ilegal, fez o Diabo – até fraude pode ter havido). Deu no que deu.

Se fôssemos um sistema parlamentarista, a Dilma já estaria recolhendo seu seguro desemprego há pelo menos seis meses e o seu patrono já estaria mofando na cadeia, para onde ela também deve ir, depois de passado o trauma do impeachment.

A gente teria ganho pelo menos um ano na vida do país. Muita gente não teria perdido o emprego. Muita empresa não teria quebrada. E muita gente não precisaria, agora, fazer lavagem auricular depois de ouvir tanta besteira.

NOTA 1: Todos os livros de Theo Aronson mencionados estão disponíveis em formato e-book, formato Kindle, na Amazon, por preço ao redor de 4 a 6 dólares americanos. Cada um deles tem um número de página que vai de 350 a 600, por aí. Os interessados, como eu sou, na história da Europa, em especial na história das casas reais e das dinastias da Grã-Bretanha, têm aí, por cerca de 30 dólares (6 livros de +/- 5,00), uma mina de informações, em mais de duas mil páginas.

NOTA 2: Fiquei em dúvida se usava o termo “czar” ou “tsar”. Fui verificar e descobri que há disputa. Optei pelo termo “czar” com base neste artigo:

“Czar (tsar em russo) significa “imperador“. Foi o título utilizado pelos soberanos russos, no período de duração do Império Russo, entre 1547 e 1917. . . . O feminino de czar é czarina (“tsaritsa” em russo), sendo que o filho de um czar é designado por “tsarevitch” e a filha por “tsarevna.”

(http://www.significados.com.br/czar/)

Em Salto, 26 de Abril de 2016.

Identidade Pessoal e Mudanças [versão original de 2008]

Nossa identidade é aquilo que nos define como “eu” – que faz com que eu seja eu, e não você, e você seja você, e não eu…

À primeira vista a questão pode parecer simples – mas não é, não. Pelo contrário: é bastante complicada, e já ocupou horas preciosas da reflexão de grandes pensadores…

A questão pode, naturalmente, ser encarada de diversos pontos de vista.

Encarada do ponto de vista físico – ou biológico – a questão pode parecer mais simples do que de outros pontos de vista (psicológico, filosófico), mas mesmo aí vem se tornando cada vez mais complicada.

Dizem os entendidos que a impressão digital de uma pessoa é absolutamente única e permanece a mesma durante toda a vida dela. Com a ajuda de algumas informações complementares, a impressão digital poderia, portanto, ser usada para definir quem a pessoa é: ela é a versão mais idosa (e, esperamos, experiente) do nenê que nasceu no dia tal, a tantas horas, em tal lugar, de fulana de tal.

Mas dizem novamente os entendidos que as células de uma pessoa morrem e são substituídas por outras dentro de determinados períodos (relativamente curtos) de tempo. Assim sendo, ainda que eu tenha a mesma impressão digital do nenê Eduardo Oscar que nasceu em Lucélia, no dia 7 de Setembro de 1943, às 21h45, na Rua Amazonas s/n, de Edith de Campos, então já renomeada Edith de Campos Chaves (sendo Oscar Chaves o pai presumido), as células que aquele rechonchudo bebê tinha, há 65 anos, já morreram todas e foram substituídas por outras – e isso muito mais de uma vez. Por algum milagre biológico, a impressão digital continuou a mesma, mas, do ponto de vista físico e biológico, nada que aquele nenê tinha permanece em mim hoje…

Atualmente a coisa fica ainda mais complicada. Algumas pessoas trocam o seu coração pelo de outra pessoa; ou outros órgãos seus… Nada impede que uma pessoa, hoje, receba múltiplos transplantes de órgãos de uma mesma outra pessoa. No futuro, é possível que seja possível até mesmo transplantar o cérebro de um para outro (como Robert Heinlein já previu em I Will Fear No Evil / Não Temerei Mal Algum – livro que recomendo sem reservas no contexto desta discussão). Quando isso acontecer, se x recebe o transplante do coração, do cérebro, dos rins, e saiba Deus lá mais do que, de y, a pessoa resultante será x ou y – ou será uma mescla das duas? São os tribunais que vão resolver se ela continua x, ou y, ou passa a ser z? (Que as leis e os tribunais vão ter de enfrentar essa questão mais cedo do que se pensa, não há dúvida.)

A possibilidade de transplantes de cérebro levanta questões importantes, porque se acredita que o cérebro é a base física e biológica da memória… e a memória parece ser um componente essencial de nossa identidade pessoal.

Na verdade, John Locke, o grande filósofo britânico do século XVII (que, na minha opinião, é o segundo maior filósofo britânico de todos os tempos, e, portanto, da história, perdendo apenas para David Hume, meu santo padroeiro, mas ganhando de Bertrand Russell), uma vez defendeu a tese (em Essays Concerning Human Understanding) que a memória é o ÚNICO critério definidor de nossa identidade pessoal. Em um de seus famosos “experimentos mentais” (que ele gostava muito de fazer) ele postulou que se, num dado dia, um príncipe e um sapateiro acordassem com suas memórias totalmente trocadas, um teria se tornado o outro (e vice-versa): eles haveriam trocado de identidade pessoal. Entre outras mudanças, a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) sapateiro passaria a estar apaixonado pela princesa (ou por quem quer que fosse que o príncipe estivesse apaixonado), e a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) príncipe passaria a estar apaixonado pela mulher do sapateiro (ou por quem quer que fosse que o sapateiro estivesse apaixonado).

Ou seja, para Locke, a nossa identidade pessoal nada tem que ver com física ou biologia: ela é definida por fatores puramente mentais. Ou seja: cai na província da psicologia ou (como Locke preferia) da filosofia.

(Lembro-me, neste contexto, de um filme de 1991 com Harrison Ford, que tem o título original de “Regarding Henry”, em que Ford era um advogado mau caráter e muito chato. Sem que ele soubesse, a mulher dele havia optado por encontrar uma companhia menos cansativa. Mas ele recebeu um tiro durante um assalto e perdeu a memória: não se lembrava nem de quem era – e, num toque de realismo do filme, teve de reaprender a andar, a falar e a funcionar normalmente. A tese do filme é a de que ele, na verdade, virou outra pessoa: uma pessoa de com caráter, legal, interessante, por quem a mulher voltou a se apaixonar… [Vide http://www.imdb.com/title/tt0102768/]. Vide também o filme brasileiro “Se eu fosse você”, de 2006, em que os personagens – Tony Ramos e Glória Pires – trocam de identidade quando a mente de um passa a ocupar o corpo do outro, e vice-versa – ou seria o oposto: quando o corpo de um se apropria da mente do outro, e vice-versa. Curiosa e significativamente, a sinopse do filme no International Movie Data Base, afirma que os dois “trocaram de corpos” – “switched bodies”. No filme um dos personagens pergunta: se eu me jogar da janela, quem vai morrer, eu ou você? [Vide http://www.imdb.com/title/tt0448927/]. Está para sair, ou já saiu, “Se eu fosse você 2”. [Vide, para a seqüência, http://www.imdb.com/title/tt1099227/]).

É verdade que, como sugere Heinlein (com base no que diz a maioria dos cientistas), nossa memória tem o cérebro como sua base física e biológica – e, quiçá, como ele próprio sugere em seu famoso romance, até mesmo o restante de nosso sistema nervoso tenha algum papel nisso… Mas deixando de lado essa controvérsia científica, a sugestão de Locke parece fazer muito sentido: eu sou quem eu me lembro de ter sido… Ou, como prefere o Rubem Alves, eu sou o que fui… ou eu sou quem fui…

Exceto no caso de alguns dinossauros mentais, que preferem morrer e se fossilizar a mudar, nossas idéias mudam mais rapidamente que as células do nosso corpo… O grande desafio, como os filósofos gregos já sabiam, é descobrir a continuidade que subjaz à mudança… E a continuidade, Locke descobriu, é dada, no caso da identidade pessoal, pela memória! Quando a memória falta, perdemos a continuidade, e passamos a ser outro, como no caso do filme de Harrison Ford.

Voltei a pensar sobre essas coisas (sobre as quais penso há muito tempo e até mesmo já escrevi bastante aqui) porque, recentemente, um número razoável de pessoas tem me dito que mudei bastante – talvez até demais – e quer saber quem sou eu hoje: serei eu quem agora pareço ser ou seria aquilo que eu antes era o meu eu real??? Em suma: há continuidade por baixo da mudança, ou eu sou um caso de mudança de personalidade?

Pablo Neruda confessou que viveu. Eu confesso, sem nenhuma vergonha, que mudei – na realidade, estou ainda mudando. Porém, a questão de 64 mil dólares é: aquilo que sou agora é o que realmente sou, ou será que meu eu real é aquilo que eu antes era?

Durma-se com um barulho desses… A questão é difícil. Confesso que se eu não fosse um cara bastante opinionado, com convições firmes, eu estaria no momento passando por uma enorme crise de identidade. Mas, como sou teimoso, persisto em acreditar, mesmo quando confrontado com evidência em contrário, que eu continuo eu mesmo. Como disse YHWH no passado, eu sou o que sou. A despeito de evidências ao contrário. E acabou. Ponto final. Quem quiser discordar, que discorde – mas eu não posso discordar de mim mesmo.

E estou certo de que continuo o mesmo Eduardo Chaves que eu era porque, afinal de contas, apesar das mudanças que eu não nego nem contesto, mas francamente admito, eu me lembro de que sou o mesmo que fui. Eu me lembro de que vivia, desde minha mais tenra idade, com Oscar e Edith Chaves, e os chamava de pais… Eu me lembro de que meus pais tiveram outros filhos e que, portanto, eu tive – e tenho – irmãos: Flávio, primeiro, depois Priscila, depois Eliane. Eu me lembro de que vivi em Marialva e Maringá no Paraná, nos anos 40 e no começo dos anos 50, e de que me mudei para Santo André no começo de 1952. Eu me lembro de que estudei no Grupo Escolar “Prof José Augusto de Azevedo Antunes”, na Rua Senador Flaquer, em Santo André, e de que tive como professoras, no Primário, de 1952 a 1955, Donas Maria José Ferraz de Alvarenga, Judith Ramos Milaneze, Elídia Lopes Duarte e Mercedes da Silveira Lopes (depois Mercedes Lopes Ferraz, quando ela se casou). Lembro-me de que, junto com o quarto ano Primário, fiz dois meses de Curso de Admissão com a Carla Strambio (hoje minha colega tradutora juramentada). Lembro-me de que entrei no Colégio Estadual e Escola Normal “Dr Américo Brasiliense” em 1956 e lá fiquei até 1959, quando recebi o diploma (ou certificado, sei lá) do Ginásio, no Cine Tangará, em Santo André (e o Pedro Cia foi o paraninfo).

Não vou entediar o leitor com todos os fatos de que me lembro – e vou me calar sobre as pessoas que amei, ou sobre aquelas que quis ver mortas… Mas eu sou o que fui. Eu sou aquilo que me lembro de ter sido… Admito que a memória é seletiva (deixa coisas de fora) e até mesmo inventiva (traz pra dentro coisas que nunca aconteceram). Foi Mark Twain (se bem me lembro…) que disse, quando já velho, que é mentira que a nossa memória fica mais fraca quando a gente fica mais velho. A memória dele era tão boa, disse, que ele conseguia se lembrar até de coisas que nunca aconteceram…

De qualquer forma, mesmo admitindo que, excepcionalmente, deletamos uns fatos e inventamos outros, nossa memória é que nos faz ser, hoje, o que somos. Dando por pressuposto que a maior parte de nossas memórias é verídica, nós somos, hoje, o que somos, porque fomos o que fomos no passado – e nos lembramos disso!

Assim, eu sou quem eu sou hoje, apesar de todas as mudanças, porque me lembro de que, em determinados momentos, quis mudar… e, como acontece agora, mudei e continuo mudando – e me lembro também de que, em outros momentos, quis mudar e, por alguma razão, não mudei… E me lembro ainda de que, em relação a determinados aspectos (os físicos e biológicos, por exemplo), mudei sem necessariamente querer mudar…

Se eu não me lembrasse desses fatos, poderia fazer sentido afirmar que eu mudei recentemente de identidade (ou de personalidade). Mas eu me lembro do que eu era e sei o que eu sou, e sei que as mudanças recentes foram desejadas. E estou contente com o que hoje sou, ou estou me tornando – ainda que possa haver quem prefira que eu não tivesse mudado…

Desculpem-me os leitores se o meu post pode, em alguns aspectos, parecer enigmático ou mesmo ininteligível. Garanto-lhes que não é enigmático e que faz bastante sentido. Podem crer.

Em São Paulo, 22 de Dezembro de 2008. [NOTA de 9.1.2022: Há uma nova versão deste artigo, amplamente revista e ampliada, publicada em 9.1.2022, neste mesmo blog. Quem preferir a versão mais atualizada pode ir diretamente para ela no endereço: https://liberal.space/2022/01/09/identidade-pessoal-e-mudancas-versao-revista-de-2022/.%5D