Mais uma crônica antiga: Meus 60 anos

 
[Esta crônica foi distribuída na minha lista 4pilares, em 7 de setembro de 2003, dia em que completei 60 anos. Eu estava em Salzburg, Áustria, participando de um encontro sobre Inclusão Digital patrocinado, em parte, pela Microsoft. Meu terceiro neto, a que faço referência, nasceu dois dias depois, dia 9/9/2003, prematuro de seis meses, e com problemas, e morreu no dia 15/9, menos de uma semana depois.]
 
Comecei escrever esta crônica faz mais de três meses. Daí parei, por excesso de trabalho e falta de tempo… Além disso, parecia haver tempo suficiente até o dia. Mas o dia chegou: hoje, aqui em Salzburg, na Austria, cinco horas na frente de São Paulo, à 1h00 da manhã, sozinho no quarto de um castelo do século XVIII, celebro o meu aniversário. 7 de setembro de 2003: faço 60 anos hoje. Tomei um copo de vinho à meia-noite (zero hora). Está feita a celebração.
 
Quantos anos de vida ainda tenho eu? Não sei. Ninguém sabe. Dezoito meses atrás tive um enfarto que quase acabou com minha vida, antes de eu conhecer minha segunda neta, que nasceu em 11/3/2002, no dia em que saí do hospital. Hoje, dezoito meses depois, estou aqui preocupado com minha outra filha, que está no hospital, com risco de perder o meu terceiro neto, numa gravidez meio complicada que mal completou seis meses. Parece que a morte anda me rondando ultimamente. Depois do meu enfarto, sinto como se estivesse vivendo uma prorrogação: empatei o jogo no último minuto e ganhei mais algum tempo para tentar ganhar o jogo contra a morte. É um jogo de "morte súbita" — termo funesto que era usado no futebol, hoje substituído pelo menos assustador "gol de ouro".
 
Mas se paro para pensar mais filosoficamente sobre o assunto, ninguém sabe quanto mais de vida vai ter. Gente nova e sadia pode morrer amanhã num acidente de carro — ou por uma bala perdida, como a Fernanda da novela. Na área da saúde falamos em "expectativa de vida ao nascer": isto é, qual é o número de anos que se espera que uma criança que nasça hoje provavelmente vai viver. A expectativa de vida ao nascer não avalia a expectativa de vida de pessoas hoje vivas, como eu, que, provavelmente, já viveram muito mais do que era a sua expectativa de vida ao nascer, sessenta anos atrás… Mas mesmo uma criança que nasça hoje, em um país desenvolvido como a Áustria, em que me encontro hoje, e que tem, digamos, uma expectativa de vida de cerca de 80 anos, senão mais, pode morrer amanhã de causas acidentais ou congênitas. Meu terceiro neto, que até nome já tem (Guilherme), luta pela vida antes de nascer. Não pesa nem um quilo ainda. Fico aqui torcendo mais por ele do que por mim.
 
O destino — ou Deus, para quem acredita nele — me concedeu o privilégio de chegar aos sessenta. Privilégio, quero dizer, se olhamos para trás. Se olharmos para a frente, sessenta anos pode ser, para alguns, daqui a alguns anos, a idade madura — ou, quem sabe, até mesmo o fim da adolescência. Há não muitas gerações era comum morrer aos trinta ou quarenta anos.
 
Quantos anos mais tenho para viver?
 
No interessante filme "About Schmidt", o personagem principal, Schmidt, representado por Jack Nicholson, se aposenta, no início do filme, aos sessenta e seis anos — idade 10% maior do que a minha hoje. Sua aposentadoria vem depois de uma longa carreira como Analista de Risco em uma companhia de seguros. Estatístico por formação, sua tarefa na companhia era avaliar o risco, por parte da companhia de seguro, de aceitar diferentes propostas de seguro de vida. Nos primeiros dias de sua aposentadoria ela começa aplicar a sua especialidade a si próprio. Ele se faz a mesma pergunta com que comecei esta crônica: Quantos anos de vida será que ainda tenho? Dados os seus hábitos e o seu estilo de vida — e levado em conta o fato de que ele nunca teve uma doença séria como câncer ou enfarto — ele conclui que, provavelmente, ainda terá uns nove anos de vida pela frente. Isto, naturalmente, desde que as condições básicas de sua vida não se alteram, a saber, que ele continue casado com sua atual mulher e não altere drasticamente seus hábitos. Se sua mulher morrer, a equação é alterada. Se ele se casar de novo depois de viúvo, altera-se mais uma vez. Se se casar com uma mulher muito mais nova e cheia de vigor, altera-se de novo, agora drasticamente! (Neste caso ele pode até vir a falecer uns poucos dias depois do novo casamento…).
 
Vi este filme com minha mulher e com minha filha mais nova (que agora está grávida) e seu marido. Minha mulher e eu gostamos muito do filme. A geração mais nova, nem tanto. Não foi necessária muita reflexão para concluir porquê. Nossa realidade estava mais próxima do problema descrito no filme. Quando você é jovem, a morte parece ser algo distante…
 
Nunca tive coragem de perguntar ao meu cardiologista, depois do meu enfarto, quanto tempo de vida ele achava que eu ainda teria. Médico experiente que ele é, ele me disse, em minha primeira consulta depois da alta no hospital, que eu poderia viver até os 90 anos — SE… um monte de ses se seguiram: se eu tomar os meus remédios, se eu me alimentar de forma sensata, se eu andar todos os dias, se eu não me exceder em atividades físicas ou em emoções extraordinárias… Tudo isso eu venho tentando fazer com seriedade quase religiosa…
 
Tempos atrás encontrei um site na Internet — infelizmente me esqueci da URL — que fazia aos visitantes uma longa série de perguntas sobre sua história de vida, sobre seus antecendentes familiares, sobre seus hábitos, etc., para lhes fazer uma previsão acerca do dia de sua morte. Lembro-me de que, no meu caso, minha morte foi prevista para o dia 23 de agosto de 2023 — uns dias antes de eu completar 81 anos. Mas isso foi antes do enfarto… Provavelmente a data, hoje, seria antecipada um pouco…
 
Li, há alguns dias, uma crônica de meu querido amigo Rubem Alves. Ele fará setenta anos uns dias depois de eu completar sessenta. Somos ambos virginianos (como são muitos de meus grandes amigos). Lembrava ele o texto bíblico que dizia que a duração da vida humana é de setenta anos. Acima disso, diz a Bíblia, nada há a não ser canseira e enfado. Mas o Rubem não parece cansado e enfadado aos setenta anos. Espero chegar aos setenta com o mesmo vigor e o mesmo gosto pela vida que ele ainda exibe.
 
Passei a tarde da véspera de meu sexagésimo aniversário em uma excursão pelos lugares em Salzburg e nos arredores em que foi filmado A Noviça Rebelde — filme que em Inglês tem o nome de "O Som da Música", "The Sound of Music". O ônibus da excursão tinha a placa "SOUND1" — pela qual o motorista pagou 400 euros, segundo disse. Ao sair da excursão vim andando pela cidade velha de Salzburg e, ao lado da catedral, perto da estátua de Mozart, filho mais ilustre da cidade, havia um grupo de índios bolivianos tocando aquelas flautas tradicionais da região deles. A música? "Os Sons do Silêncio", "The Sounds of Silence"… Fiquei pensando: de um lado, o som da música, a vida, cheia de sons, cores, cheiros, gostos (de Apfelstrudel), sensacões alegres… (como vi na excursão). Do outro lado do rio Salzach, os sons do silêncio, a morte, o fim. Perto da Catedral — comme il faut.
 
Ingrid Bergman, uma de minhas atrizes favoritas, que estrelou em Casablanca, filme que ganhou o Oscar de melhor filme no ano em que nasci, e que no mês passado também comemorou seus sessenta anos, um dia disse, em resposta a uma pergunta que lhe indagava como se sentia, envelhecendo e perdendo o virgor da juventude: sinto-me bem, porque a única alternativa que temos a envelhecer é morrer cedo…
 
Uma grande verdade. Ainda que morra agora, vivi bastante. Sessenta anos é muito. Mas embora seja bastante, não é o bastante: quero viver mais, para conhecer o Guilherme Chaves de Moraes Salles, que espero que seja paciente e fique na barriga da mãe o tempo necessário para enfrentar o mundo aqui fora; para ver o Guilherme brincar com o Gabriel (que este mês faz quatro anos, e que todo dia marca no calendário que falta um dia a menos para ele poder brincar de novo com o avô); para ver o Guilherme e o Gabriel brincarem com a Olívia, que está lá em Ohio, mas que já fala "Dudu", para se referir ao avô; e para fazer tantas outras coisas que em sessenta anos não foi possível fazer.
 
Agora vou dormir porque já são duas horas da manhã aqui. Acabei de ouvir tocar os sinos da Catedral de Salzburg. E amanhã (hoje) tenho reunião às 9h00
 
Transcrita em Salto, 30 de agosto de 2006