O besteirol que Antonio Cícero condena no artigo transcrito abaixo, publicado na Folha de hoje (14/11/2009), é antigo.
Na minha modesta opinião, a onda começou com o livro The Social Construction of Reality, de Peter L. Berger e Thomas Luckmann, publicado em 1966.
Esse pessoal quer sempre chamar a atenção: por isso dá nome um nome chamativo aos livros, ao qual, depois, acabam tendo de renunciar.
No caso de Berger & Luckmann, o nome do livro era (em Português) A Construção Social da Realidade. A impressão que se tem, ao ler o título, é de que entidades como a Terra, a Lua, o Sol, os minerais, os vegetais, a sociedade, os próprios seres humanos – a Realidade – são todos “socialmente construídas”. Ou seja, se não houvesse os seres humanos vivendo em sociedade, não haveria a Terra, a Lua, o Sol, etc.
Ao se ler o livro, fica-se a impressão de que os autores, embora pretendam estar falando da construção social da realidade, estão mostrando apenas, e se tanto, que a Realidade Social é construída. Mas isso acredito que ninguém conteste… A Realidade Social é dependente dos seres humanos vivendo em sociedade…
No artigo transcrito abaixo, Antonio Cícero discute algumas teses absurdas dessa anta que é Bruno Latour – autor de Vida de Laboratório: A Construção Social dos Fatos Científicos… Subseqüentemente ele renegou o sub-título do livro. Mas as teses principais do livro, não. E as teses do livro corroboram o sub-título que ele afirma ter renegado…
Enfim: O livro de Latour parece sugerir que não há fatos, que todos os fatos são socialmente construídos… Quando se vai ler o texto com atenção, se percebe que ele postula a construção social dos fatos científicos. Como a ciência é uma produção humana, e nós os humanos vivemos em sociedade, os fatos existiam antes, mas não como científicos… Funny. Como é que alguém se torna famoso dizendo esse besteirol???
Deliciem-se com o artigo de Antonio Cícero.
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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1411200926.htm
Folha de S. Paulo
Antonio Cicero
A tuberculose do faraó
Para o idealista Latour, natureza e realidade são o que cientistas decidem que sejam
POR OCASIÃO da morte de Lévi-Strauss, o antropólogo francês Philippe Descola, interrogado sobre "quem seriam os gênios de hoje", citou, em primeiro lugar, Bruno Latour. Mal pude crer no que li. A primeira coisa que me vem à mente, sempre que leio ou ouço o nome de Latour, é o título do excelente livro de Alan Sokal e Jean Bricmont, "Imposturas Intelectuais".
E, embora ele tenha merecido todo um capítulo nessa obra, esse título me vem à cabeça por outra razão: é que, anos atrás, caiu-me nas mãos um exemplar de um dos mais ridículos livros que já li: o "Jamais Fomos Modernos (Ensaio de Antropologia Simétrica)", de Latour, do qual me poupo -e ao leitor- de falar.
Estaria Descola sendo sarcástico? Não. Ele pretendia estar sério. Isso me pareceu lamentável, tratando-se do diretor do Laboratório de Antropologia Social do Collège de France. Entretanto, lembrei-me de duas teses de Latour que, de tão grotescas, chegam até a ser engraçadas. Uma é sobre os dinossauros; a outra, sobre Ramsés 2º. O leitor talvez já as conheça, pois não são novas. Mas, na dúvida, vou contar ao menos a que fala de Ramsés 2º.
Antes, observo que Latour é frequentemente classificado de "construtivista -ou melhor, construcionista- social". Isso não é surpreendente, já que seu livro "Vida de Laboratório", de 1979, escrito em parceria com o sociólogo inglês Steve Woolgar, tem como subtítulo "A Construção Social dos Fatos Científicos". Em 1986, porém, o subtítulo foi removido e Latour passou a recusar essa classificação.
Contudo, sua recusa diz mais respeito ao adjetivo "social" do que ao substantivo "construção", pois ele continua acreditando que os fatos científicos são construídos. Para o idealista Latour, em última análise, a natureza e a realidade são aquilo que cientistas decidem que sejam, e não algo que preexista à investigação científica.
Mas vamos à história. Em 1976, a múmia de Ramsés 2º, acometida por fungos e mofo, foi enviada à França para ser tratada. As fotos de sua chegada foram publicadas pela revista "Paris-Match", com a legenda: "Nossos cientistas socorrem Ramsés 2º, que adoeceu 3.000 anos após sua morte".
Ao ler essa legenda, Latour precipitadamente pensou que ela se referia a outro fato: o de que os cientistas, tendo examinado os restos mortais do faraó, haviam anunciado a descoberta de que ele morrera de tuberculose. "Profundo filósofo", escreveu então, "aquele que redigiu essa legenda admirável". Por que "profundo filósofo"?
Porque, ao contrário dos seres humanos que se guiam pelo bom senso, o autor dessa legenda teria "compreendido" que Ramsés 2º não poderia, no ano 1213 a.C., ter morrido de um bacilo que foi descoberto por Robert Koch somente em 1882…
Para o bom senso "grosseiro", é claro que o bacilo já existia muitíssimo antes de Koch o descobrir. Já para o "sutil" Latour, "antes de Koch, o bacilo não tem existência real. […] Os pesquisadores não se contentam com "des-cobrir’: eles produzem, fabricam, constroem". Assim, o bacilo da tuberculose foi "construído" na época moderna.
Mas, então, como é que ele pode ter causado a morte do faraó, em 1213 a.C.? "Afirmar, sem outras formalidades, que o faraó morreu de tuberculose", diz Latour, "significa cometer o pecado cardeal do historiador, o do anacronismo". Se fosse assim, seria anacronismo afirmar, "sem outras formalidades", que a lei da relatividade tivesse vigência antes de Einstein a demonstrar; ou que a lei da evolução das espécies vigorasse antes de ser enunciada por Darwin.
E quais são as "outras formalidades"? Suponho que consistam em fazer a ressalva de que, para nós, que vivemos depois de 1976, o faraó morreu de tuberculose, mas não para quem viveu antes de 1976. Ora, se isso quer dizer simplesmente que antes de 1976 não sabíamos que o faraó em 1213 a.C. morreu de tuberculose, então é uma verdade: mas não passa precisamente da verd
ade trivial que o bom senso já conhecia, de modo que, nesse caso, Latour nada diz de novo.
Se, por outro lado, quer dizer que, antes de 1976, o faraó, em 1213 a.C., não morrera de tuberculose, então é um disparate: é "nonsense", e é sem dúvida o que ele pensa, ao afirmar que, "antes de Koch, o bacilo não tem existência real".
Mas devemos reconhecer ao menos um mérito ao artigo de Latour sobre Ramsés 2º: ele inadvertidamente efetua uma redução ao absurdo não só das suas próprias teses mas de todo o construcionismo contemporâneo.
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Em Salto, 14 de Novembro de 2009