Transcrevo, adiante, excelente artigo do Rubem Alves sobre o vestibular.
Faço-o, não porque o tema especialmente me entusiasme.
A razão da transcrição está no fato de que, ao discutir o vestibular, o Rubem Alves traça considerações importantes sobre uma questão mais ampla, que, esta sim, me entusiasma: a questão das mudanças NA e DA educação.
Aproveito o “gancho” do Rubem para abordar essa questão.
A educação brasileira está em estado calamitoso. Todo mundo sabe disso. Ninguém ousa discordar. Já está assim há algum tempo.
E, pessoalmente, não acho que seja apenas o sistema público de educação que esteja a requerer mudanças. A educação das escolas (e redes de escolas) privadas também é muito ruim – com honrosas exceções.
Dê-se crédito ao então Ministro da Educação, Paulo Renato Costa Souza, que, em sua longa gestão de oito anos frente ao Ministério da Educação, durante o governo FHC, tentou promover a melhoria da educação brasileira de uma maneira sistêmica, abordando a questão do ângulo (que me parece correto) da mudança da educação como um todo – não de mudanças parciais, pequenas, graduais, superficiais, incrementais, aqui e ali (hoje se muda uma porta, amanhã uma janela…).
As mudanças parciais, pequenas, graduais, superficiais, incrementais, aqui e ali, são o que o Rubem Alves chama (biblicamente) de remendos: elas tentam colocar tecido novo para tapar buraco de tecido velho, já podre… Não adianta, no buraco “Acesso ao Ensino Superior”, colocar um remendo de tecido novo. O problema não é aquele buraco, especificamente: o problema está em todo o tecido que forma a educação brasileira, que está literalmente podre.
Cito o Rubem Alves citando outro autor (a passagem inteira está adiante):
“O problema não é o buraco; é a podridão do tecido. Nas palavras de Jay W. Forrester, cientista, professor de administração do MIT (Massachusetts Institute of Technology): “Em situações complicadas, esforços para melhorar as coisas frequentemente tendem a torná-las piores, algumas vezes muito piores e – ocasionalmente – calamitosas”.
David Hargreaves, em um pequenino livro chamado Education Epidemic, disponível na Internet, me ajudou a ver essa questão da forma que hoje a vejo – que é basicamente idêntica à forma em que o Rubem Alves a vê.
Hargreaves me ajudou a ver que há dois tipos de mudanças:
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Umas acontecem dentro de um paradigma e, portanto, são parciais, pequenas, lentas, graduais, superficiais, incrementais, reformando, mas não transformando o paradigma
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Outras são sistêmicas, maiores, rápidas, súbitas, profundas, abrangendo o todo, mexendo em tudo, e subvertem o paradigma, levando não à sua reforma, mas à sua transformação e substituição
O que faz com que passemos de um tipo de mudança para o outro é a dinâmica de inovação. O seguinte quadro ilustra o que quero dizer:
No caso da educação brasileira, portanto, vemo-nos diante da seguinte alternativa:
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Realizar mudanças dentro do atual paradigma da escola, ficando próximos da prática atual, reformando aspectos não-fundamentais da escola, e, portanto, promovendo mudança NA educação
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Mudar o paradigma, transformando, pela inovação, a própria educação (e a instituição escolar – reinventando a escola), de modo a alcançar, assim, a mudança DA educação
Não há mais dúvida de que as mudanças que ocorreram no mundo, inclusive no Brasil, nos últimos sessenta e cinco anos (desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mais ou menos) são tantas, de tamanho alcance e profundidade, que estão a justificar a escolha da segunda alternativa. Só na área das tecnologias de informação e comunicação, temos, nesse período, a popularização do rádio e do telefone, a invenção da televisão, a invenção do computador digital, a miniaturização dos componentes eletrônicos que permitiu o aparecimento de toda sorte de equipamento eletrônico-digital, como o próprio microcomputador e o telefone celular, a expansão das telecomunicações via satélite, a criação de redes de computadores de alcance global, como a Internet, a invenção do e-mail, da Web, das mensagens de texto/áudio/vídeo instantâneas, as mídias sociais…
Todas essas mudanças alteraram profundamente a informação disponível, a forma em que acedemos a ela, as maneiras com que nos comunicamos uns com os outros, trabalhamos e nos divertimos – enfim, a forma em que vivemos. É difícil entender como alguns podem imaginar que essas mudanças não nos obrigam a rever as formas em que aprendemos e, por conseguinte, a reinventar a educação (e, dentro dela, a escola). Não será possível nos safar com pequenos ajustes aqui e ali na instituição escolar, como por exemplo, a introdução da tecnologia, a inserção de alfabetização digital ou da fluência tecnológica no currículo, a formação de professores para dominar o manejo técnico da tecnologia, etc. NÃO: as mudanças que a nova realidade vai obrigar a escola a realizar são mais amplas, profundas, e radicais do que essas. Elas envolvem uma mudança de paradigma.
Jay Allard, um dos vice-presidentes da Microsoft, disse, em uma entrevista à revista Business Week de 4 de Dezembro de 2006, o seguinte (p.64):
“Para mudar o mundo, precisamos imaginá-lo diferente do que é hoje. Se usarmos, nessa visão, muito do conhecimento e da experiência que nos trouxeram até aqui, terminaremos exatamente onde começamos. … Para ter um resultado diferente, temos de olhar às coisas de uma perspectiva radicalmente diferente”
Concordo plenamente com essa afirmação. Temos de reconhecer que as mudanças por que o mundo tem passado nos últimos tempos nos obrigam a ter um olhar diferente para as coisas da educação – caso contrário, continuaremos a ter uma instituição escolar anacrônica.
O meu trabalho nos últimos 30 anos tem se concentrado, em grande medida, no seguinte:
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Demonstrar a necessidade de mudança de paradigma na educação, à vista das mudanças radicais, amplas e profundas, que aconteceram no mundo nos últimos 65 anos, alavancadas, em grande parte pela tecnologia, e que justificam a alegação de que ultrapassamos a Sociedade Industrial e vivemos em uma nova era, a Sociedade da Informação ou a Economia do Conhecimento;
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Definir os elementos essenciais de um novo paradigma para a educação que leve em conta plenamente as mudanças, nos últimos 65 anos, do contexto em que a educação acontece, e que contemple uma nova visão da educação e uma nova forma de entender como aprendemos, que leve a um reconhecimento cabal do papel da tecnologia na vida, no trabalho, no lazer e, naturalmente, na aprendizagem;
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Detalhar as mudanças necessárias dos ambientes de aprendizagem (vale dizer, da escola, entre eles) para que eles se reinventem, de forma realmente inovadora, tornando-se coerentes com a nova visão e estratégia da educação e com nosso atual entendimento de como aprendemos, especialmente em contextos ricos em tecnologias de informação e comunicação.
O seguinte diagrama ilustra essa proposta:
Em seu artigo, o Rubem Alves diz, evocando a famosa controvérsia Kühn-Popper na área da epistemologia da ciência:
“Por séculos os astrônomos tentaram remendar os buracos que havia na teoria que punha a Terra no centro do universo. Mas não adiantava. Os buracos ficavam cada vez maiores. Tudo se resolveu quando apareceu um novo alfaiate que jogou fora a roupa velha podre e costurou uma roupa nova.”
Hoje em dia, dada a complexidade da vida, que nos exige especializações, o problema está bem mais complicado… Não basta apenas um alfaiate para costurar a roupa nova. Precisamos de toda uma fábrica de confeções em que roupas, de diversos tipos, são produzidas por máquinas sofisticadas (os verdadeiros alfaiates de hoje) que agem segundo as especificações dos designers (estes, sim, em demanda e prestígio cada vez maiores). Eu, confesso com humildade, me vejo muito mais como aprendiz de designer educacional do que como alfaiate, propriamente dito. E, depois, são necessários marketeiros e vendedores para convencer o povo a comprar as novas roupas; alfaiates (agora, sim) e costureiros para fazer os ajustes nas roupas que permitam que elas sejam usadas com conforto; profissionais que nos treinem na postura e no andar para que as roupas se mostrem atraentes e elegantes mesmo em corpos fora da curva de normalidade; e formadores de opinião que enfatizem a necessidade de andarmos bem vestidos, na moda, em sua necessária variedade, e de, portanto, usarmos bem as roupas novas e estilosas que compramos… Esse o preço que nos cobra a modernidade (ou será a pós-modernidade?).
Onde ficam os educadores aí? Li, um dia desses, que dentro de algum tempo os educadores de hoje precisarão ser substituídos por nove ou dez profissionais mais especializados…
Abaixo, o artigo do Rubem Alves. (Rubão: güenta firme aí).
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Folha de S. Paulo
24 de Novembro de 2009
RUBEM ALVES
“…Quero é fome…”
Em nome de uma suposta excelência intelectual, o vestibular faz estragos nas cabeças dos jovens
EM primeiro lugar, preciso dizer que sou teimoso. Quando estou convencido de uma ideia, não desisto fácil. Já faz 25 anos que luto contra um dragão. Inutilmente. Até hoje a besta não deu sinais de fraqueza, muito embora concorde em trocar suas escamas.
O fato é que, em nome de uma suposta excelência intelectual, o dragão faz estragos nas cabeças dos jovens. Minha primeira proposta para acabar com essa besta chamada “vestibular” data de 1984 num livrinho pobre, estórias de quem gosta de ensinar.
Em segundo lugar, preciso dizer que não acredito em melhorias e reformas. Adoto é a sabedoria evangélica enunciada há quase 2.000 anos: “Não se costura remendo de tecido novo em roupa podre. Porque o remendo de tecido novo rasga o tecido podre e o buraco fica maior do que antes”.
O problema não é o buraco; é a podridão do tecido. Nas palavras de Jay W. Forrester, cientista, professor de administração do MIT (Massachusetts Institute of Technology):
“Em situações complicadas, esforços para melhorar as coisas frequentemente tendem a torná-las piores, algumas vezes muito piores e -ocasionalmente- calamitosas”.
É preciso jogar fora a roupa podre e costurar uma roupa nova. Não é isso que é a muito falada “construção do conhecimento”? Na história da ciência é assim que acontece.
Por séculos os astrônomos tentaram remendar os buracos que havia na teoria que punha a Terra no centro do universo. Mas não adiantava. Os buracos ficavam cada vez maiores. Tudo se resolveu quando apareceu um novo alfaiate que jogou fora a roupa velha podre e costurou uma roupa nova.
Quando se anunciou – meses atrás – que os vestibulares estavam com os dias contados, fiquei muito feliz. E até escrevi um artigo dando minhas felicitações ao senhor ministro da Educação.
“Agora os vestibulares tiveram o seu fim decretado. Fico feliz porque há mais de 20 anos eu tenho estado lutando por isso. (…) Mas tenho um receio. Imaginem um restaurante que servia uma comida de gosto ruim, indigesta e que provocava vômitos e diarreia. O dono do restaurante -diante das queixas dos seus clientes- resolve fazer uma reforma na forma como a comida era servida: trocou as panelas velhas por panelas novas e a louça branca antiga por uma louça azul. Mas a comida continuou a mesma… Será que é possível que isso aconteça?”
Acho que é isso que está acontecendo. Confesso que não percebi a mudança na comida. Percebi, sim, que a mesma comida será servida de maneira diferente. Trocou-se o varejo pelo atacado. E foi por causa disso que aconteceu aquela confusão que terminou com a anulação das provas.
A importância dos vestibulares, como os vejo, não se encontra no fato de serem eles portas de entrada para as universidades.
Sua importância (des)educacional se encontra no fato que eles, os vestibulares, determinam todo o processo escolar que os antecede. Que isso é verdade se revela no fato de que os pais procuram escolas que preparem seus filhos para o vestibular, e não escolas que os eduquem. A menos que eles – os pais – identifiquem o treinamento para os vestibulares com a educação…
Para mim, fim de vestibular não é a comida de sempre servida em louça nova. A filosofia do meu projeto foi a Adélia que escreveu: “Não quero faca nem queijo. Quero é fome…”
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Em São Paulo, 24 de Novembro de 2009
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