Embora eu seja um defensor ferrenho da liberdade de cada um se meter em qualquer coisa que seja de seu interesse, independentemente de suas atribuições formais, devo reconhecer que estranhas coisas acontecem quando um ministério se mete a discutir assuntos fora de suas atribuições. Vejam a notícia adiante, publicada na Folha de S. Paulo de hoje.
Para o Ministério da Saúde, transmitir o virus da AIDS não é crime – ainda que o transmissor saiba que é portador do virus e conscientemente mantenha relações sexuais com alguém que não é portador(a) do virus.
Para o ministério, para que a transmissão do HIV seja considerada crime é necessário comprovar que o contaminador teve a intenção de passar o vírus para o(a) parceiro(a) – algo que, aqui entre nós, é virtualmente impossível de comprovar, sem confissão. Em outras palavras, se o contaminador nega que teve a intenção de contaminar, deverá ser considerado inocente, mesmo que:
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O portador saiba que é portador do virus;
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Mesmo assim, o portador mantém relações sexuais não protegidas com um(a) parceiro(a) não contaminado(a);
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O(a) parceiro(a) morre em decorrência da transmissão do virus e a conseqüente contaminação.
Imaginemos uma analogia.
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Eu encho a cara de bebida num bar e fico para lá de Badgad de bêbado;
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Eu resolvo ir para casa dirigindo o meu carro e, no caminho, eu saio da calçada e atropelo uma pessoa que esperava o ônibus;
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A pessoa atropelada morre em decorrência do atropelamento;
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Eu afirmo que não tive a intenção de matar a pessoa que esperava o ônibus.
Segundo o Ministério da Saúde, eu também deveria ser considerado inocente dessa morte. Absurdo.
Concordo totalmente com a posição de Damásio de Jesus, descrita na matéria abaixo. É uma vergonha a posição do Ministério da Saúde. É uma vergonha também a posição do Coordenador da tal ONG Grupo pela Vida. Ela só pensa na vida dos aidéticos – não da vida daqueles que sofrem as conseqüências de aidéticos que se comportam irresponsavelmente.
Eis a matéria da Folha,
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Folha de S. Paulo
24 de Novembro de 2009
Para ministério, transmitir Aids não é crime
Pasta da Saúde recomendará ao Judiciário não criminalizar quem saiba ser soropositivo e tenha tido relações sexuais sem proteção
Ministério sustenta que, para que a transmissão do HIV seja considerada crime, é necessário comprovar a intenção de passar o vírus
ANGELA PINHO
JOHANNA NUBLAT
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A transmissão do HIV (vírus da Aids), mesmo que por uma pessoa que saiba ser portadora do vírus e tenha mantido relações sexuais sem proteção, não deve ser criminalizada por si só. Essa é a posição defendida pelo Ministério da Saúde, que prepara uma nota pública sobre o tema endereçada a profissionais da Justiça.
Recentemente, em São Paulo, um homem foi condenado por homicídio doloso (em que há intenção de matar) por ter supostamente transmitido o vírus HIV à sua amante.
Ele disse que não contou a ela ser portador do vírus porque estava apaixonado e tinha medo de perdê-la, mas acabou sendo condenado a dois anos e meio de reclusão. Casos como esse vêm se repetindo no Judiciário, e ao menos um já chegou ao Supremo Tribunal Federal, onde aguarda julgamento.
Para Eduardo Barbosa, diretor-adjunto do Departamento de DST, Aids e Hepatite do Ministério da Saúde, para que a transmissão seja considerada crime é preciso comprovar que o soropositivo teve a intenção de passar o vírus.
"Num contexto cotidiano, das relações sexuais afetivas, é muito difícil você estabelecer uma culpa. É possível analisar particularmente dentro de uma perspectiva de intencionalidade. Na medida em que tiver essa intencionalidade de ferir e transmitir, é diferente."
Ele diz também que é preciso considerar a existência de "fatores psicossociais", o estágio de tratamento da doença e a corresponsabilidade do parceiro de também se proteger.
A nota vai contra uma tendência mundial de criminalizar quem transmite a doença, afirma Barbosa. "Alguns países acabam adotando essas medidas como se fosse possível, isolando e culpabilizando, controlar a epidemia."
Dolo eventual
O professor de direito penal Damásio de Jesus discorda dessa tese. Na sua opinião, se ficar provado que o soropositivo sabia que tinha o vírus e ainda assim não se protegeu nas relações, deveria ser acusado de tentativa de homicídio ou, caso a vítima tenha morrido, de homicídio.
Sua tese se aplica mesmo aos casos em que o portador do HIV não tinha a intenção de transmitir o vírus, mas não contou o fato ao parceiro ou à parceira por vergonha ou medo de se expor. Nesse caso, para ele, seria aplicada a tese de dolo eventual, em que o acusado não tem intenção de cometer o crime, mas assume o risco de ele ocorrer.
Mário Scheffer, coordenador da ONG Grupo Pela Vida, apoia a iniciativa do ministério e defende que a eventual responsabilização do soropositivo só pode ser feita após a comprovação dos seguintes pontos: que a pessoa sabia que era portadora do vírus e que podia transmiti-lo, que teve relações sexuais desprotegidas, que o parceiro ou parceira está infectado, que os dois tiveram relações sexuais desprotegidas, que ele não tinha HIV antes do relacionamento e que ambos têm variedades de HIV compatíveis.
"Se for comprovada a intencionalidade, aí cabe à Justiça avaliar o caso", diz Scheffer.
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Em São Paulo, 24 de Novembro de 2009