Embora tenha muita coisa para fazer nesta quinta-feira, não posso deixar de compartilhar algo que li ontem – na verdade, já hoje, dia 25 de Agosto de 2016 (Dia do Soldado, Dia da Renúncia do Jânio, etc.), pois li entre 2 e 3h30 da madrugada – acerca de uma mudança de paradigma no Direito de Família. A leitura foi do livro de Manual de Direito das Famílias, 8a edição, revista, atualizada e ampliada, de Maria Berenice Dias, que também é, atualmente, Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM (a sigla é assim mesmo, como “D” em itálico), criado em 1997, em Belo Horizonte, MG, durante o I Congresso Brasileiro de Direito de Família.
Vou resumir aqui, como dizia o Rubem Alves, aquilo que eu, tendo lido a parte relevante do livro, digeri, aquilo que entrou no meu sangue e passou a fazer parte de mim, ou de meu entendimento das coisas. A parte relevante do livro é uma subseção com o título “Afetividade”, dentro da seção “Princípios Constitucionais da Família”, no capítulo “Princípios do Direito das Famílias” (que é o capítulo 3, que vem (como seria de esperar…) logo depois do capítulo 2, que trata de “Famílias Plurais”.
A tese de Maria Berenice Dias, enunciada já de forma resumida na seção pré-introdutória “Meu Caro Leitor”, é que o Direito de Família mudou de paradigma no Brasil nos últimos anos, passando de Direito da Família para o Direito das Famílias – e que isto se deu pelo reconhecimento de que central no entendimento da família e das relações familiares é a realidade do afeto, e não o ordenamento normativo abstrato elaborado, por assim dizer, independentemente da realidade afetiva. Isso é o que ela deixa claro na subseção “Afetividade”, mencionada no parágrafo anterior. E é esse fato que está na base do reconhecimento da realidade plural, não mais singular, da família: trata-se de discutir “Famílias Plurais”, não “A Família” (homem e mulher casados na forma da lei com seus filhos ditos legítimos), como soía acontecer no paradigma anterior.
De certo modo, a mudança de paradigma teve um impulso significativo com a Constituição Federal de 1988, que no parágrafo terceiro do seu Artigo 226 afirma:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
Parágrafo 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
A Constituição Federal de 1988 deu o primeiro passo. Reconheceu como “entidade familiar”, equiparada à “família matrimonial”, regulada em lei, a “união estável”. Esta é a união (ainda “entre o homem e a mulher”) baseada no afeto, no amor, ainda que ao arrepio da lei. Um casal de solteiros que simplesmente “vive junto”, ainda que nada impeça a regularização do relacionamento na forma considerada convencional, a matrimonial, é reconhecido como família. Também o é o relacionamento entre um homem e uma mulher impedidos legalmente de se casar, porque um, ou ambos, são, digamos, separados de fato, mas não de direito, e, portanto, legalmente falando, ainda casados com outrem. E assim vai. O importante aqui é reconhecer que os liames afetivos valem mais do que a letra da lei, ainda que tenham lugar ao arrepio da lei. A união estável veio a ser regulamentada pelas Leis nº 8.971/94 e 9.278/96. (Vale a pena ler o artigo “União Estável” no site Jus Brasil: vide http://arianenanii.jusbrasil.com.br/artigos/117925263/uniao-estavel).
A Constituição Federal de 1988 inovou – mas o caminho para a inovação foi preparado por mudanças na sociedade. Como diz Isabela Yassue, “O legislador constituinte de 1988 positivou aquilo que já era costume, aquilo que de fato já existia na sociedade”: vide seu artigo “A Família na Constituição Federal de 1988” no site DireitoNet: http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5640/A-familia-na-Constituicao-Federal-de-1988.
O caminho aberto pela Constituição Federal foi sendo alargado por legislação infraconstitucional, mas foi necessário uma decisão formal do Supremo Tribunal Federal – STF para reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Curiosamente, o STF, que é o guardião da Constituição, reconheceu a legalidade da união estável entre pessoas do mesmo sexo ao arrepio do texto da própria Constituição, que diz, claramente, no trecho citado, que a união estável reconhecida como entidade familiar é “a união estável entre o homem e a mulher”. No entanto, em julgamento ocorrido em 4-5 de maio de 2011, o STF reconheceu, por unanimidade, a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo. Vide a crítica à decisão do STF constante do artigo “Contrariando a Constituição, STF Reconhece União Estável entre Pessoas do Mesmo Sexo: Supremo Absurdo”, de Luiz Carlos Lodi da Cruz, no site JusNavegandi: https://jus.com.br/artigos/19087/contrariando-a-constituicao-stf-reconhece-uniao-estavel-entre-pessoas-do-mesmo-sexo. (Lindo o trocadilho em “Supremo Absurdo”, não é?)
Mas há uma certa lógica na decisão do STF. A Constituição Federal de 1988 reconheceu a união estável entre um homem e uma mulher como equiparada ao vínculo matrimonial, isto é, ao casamento formal e legal vigente à época. Fê-lo por reconhecer que, na realidade social, é o vínculo afetivo que importa. Assim, resolveu trazer a realidade social, com seus vínculos afetivos de facto, para dentro do texto constitucional, transformando vínculos de facto em vínculos de jure. Mas, feito isso, é forçoso reconhecer que vínculos afetivos podem existir, e de fato existem, em muitos casos, entre pessoas do mesmo sexo, homem-homem e mulher-mulher. Logo, se é a “afetividade”, e não o texto frio da lei, que manda, não há por que não estender a união sexual também para uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo (as chamadas “uniões homoafetivas”), mesmo contrariando a letra (mas não o espírito!) do texto constitucional.
O passo seguinte será, certamente, o reconhecimento legal de uniões estáveis “poliafetivas” ou “poliamorosas”, como, de resto, já vem acontecendo, mas, por enquanto, ainda não pelo STF. Assim, a poligamia – poliginia ou poliandria – acabarão encontrando guarida em nosso direito pátrio.
Registre-se ainda que a Constituição Federal, no mesmo artigo 226, no parágrafo quarto, reconhece como entidade familiar “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” – a chamada “família monoparental”.
Esse entendimento de que a família deve ser entendida com base nos laços afetivos que unem as pessoas, e não em ordenamentos jurídicos que a evolução (alguns diriam involução) da sociedade já deixou para trás, também foi aplicado em duas outras áreas relacionadas à família, a filiação e o divórcio, que eu só menciono aqui, sem discutir mais detalhadamente:
- O reconhecimento da igualdade de direitos entre os filhos nascidos em um casamento convencional e aqueles nascidos em uniões estáveis, em relacionamentos não estáveis, em relacionamentos claramente adulterinos, e os adotados, até mesmo os adotados por apenas uma pessoa ou por um casal do mesmo sexo;
- A facilitação do divórcio, que pode se dar sem discussão de causa e, por conseguinte, de culpa, ou seja, sem que seja necessário haver a imputação a um dos cônjuges de conduta imprópria – apenas diante da alegação de apenas um dos cônjuges que deixou de amar o outro, por qualquer razão.
Em ambos os casos, o componente afetivo, ou sua ausência, são tomados como base para, primeiro, a jurisprudencialização da realidade, depois para sua legalização.
No tocante a “a”, a jurisprudência tem reconhecido até mesmo o direito de o filho de um cônjuge (o antigamente chamado de “enteado”) adotar o sobrenome de seu “padrasto”, assim reconhecendo que enteado é legalmente filho (ou “filho-amante”, como propõe Maria Berenice Dias) e padrasto é legalmente pai (ou “pai-amante”, segunda a mesma autora).
Muita coisa interessante está ainda por vir. Quem viver, verá. O liberalismo estará a favor dessas mudanças – mas não o conservadorismo de fundo religioso ou cultural de alguns liberais conservadores brasileiros, como Olavo Carvalho, Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino.
É isso.
Em Salto, 25 de Agosto de 2016
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