Transcrevo a seguir uma mensagem que enviei hoje para minha lista de discussão "LivreMente" (Axel é Axel de Ferran, participante da lista).
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Foi bom o Axel trazer de novo essa questão à baila, porque tenho voltado a pensar bastante sobre ela. Na, verdade, não só sobre o binômio Direita vs Esquerda, mas também sobre as dicotomias Conservador vs Progressista, Liberal (no sentido clássico do termo, não no sentido em que o termo é usado nos EUA) vs Socialista, etc.
Além do sentido, propriamente dito, de cada um desses termos, é importante também registrar o fato de que eles, hoje, em especial aqui no Brasil, carregam uma conotação emocional que é preciso levar em conta. No Brasil de hoje, se alguém é rotulado como de direita, conservador e liberal, não se está meramente descrevendo o que ele pensa, como sente, e de que forma age: em geral também se está quase que xingando a pessoa. Como se diz atualmente, quem se opõe às tendências representadas por esses termos conseguiu, no Brasil de hoje, "demonizá-los". Como ninguém quer ser acusado de fazer parte do time do demônio, quase ninguém hoje no Brasil aplica esses termos a si próprio: eles só são usados, por terceiros, como xingamentos.
O problema principal com a ascensão da conotação emocional desses termos é que eles passam a ser usados por quem não tem concepção clara de seu sentido. Como eles se tornaram termos de opróbrio, passaram a ser simples xingamentos. Eu tinha um amigo que xingava desafetos de morféticos — mas não sabia qual era o sentido do termo: só sabia que era uma coisa ruim…
Mas deixando de lado à conotação emocional dos termos, vamos ao seu sentido — problema que, em si, já é extremamente complexo.
Já escrevi várias vezes nesta lista que considero as expressões direita-esquerda e liberal-socialista como basicamente equivalentes.
O liberal é, por definição, um defensor radical da liberdade. Prefere a liberdade mesmo que essa possa — como necessariamente vai — aumentar a desigualdade. O socialista é, por outro lado, o defensor radical da igualdade. Prefere a igualdade mesmo que essa possa — como necessariamente vai — reduzir a liberdade.
Notem que o liberal não é contra todo tipo de igualdade: é favorável à chamada igualdade formal, diante da lei. Ele é contra à tentativa de, através do governo, tentar igualizar oportunidades ou resultados. Por outro lado, muitos socialistas não são contra à liberdade — tentam até mesmo implantar um socialismo democrático. Mas se a liberdade de uns (em geral os mais ricos) estiver impedindo que se alcance a igualdade, ele em geral está disposto a sacrificar essa liberdade.
Por defender a liberdade do indivíduo, o liberal, virtualmente sem exceção, quer um governo com poucas e bem definidas funções, voltadas para garantir a liberdade e os direitos individuais, e claramente limitadas por uma Constituição que deixe explícito que o governo não pode limitar, restringir, suspender e muito menos violar ou revogar os direitos individuais básicos à vida e à integridade física, à liberdade, e à propriedade. Esses direitos são, para o liberal, inalienáveis e imprescritíveis. O socialista, por seu lado, por achar que é função do governo buscar a igualdade e melhorar o bem-estar das pessoas, acaba tendo de optar por um governo com inúmeras funções — com poderes não tão limitados, que, não raro, infringem os direitos individuais.
Acho que, no fundo, se ficarmos nesse nível alto de generalidade, o sentido dos dois termos é bem fácil de entender e faz sentido, ainda hoje.
Se considerarmos o binômio direita – esquerda como equivalente ao binômio liberal – socialista, vamos ter de reajustar um pouco alguns outros conceitos geralmente aceitos.
A esquerda em geral procura descrever a direita como se esta fosse defensora de autoritarismo político, de moralismo piegas e de fundamentalismo religioso. Se a equivalência que pleiteio faz sentido, precisamos rejeitar essas identificações.
Primeiro, o liberalismo/a direita não é, de modo algum, autoritário. Ele enfatiza a liberdade, os direitos individuais. Não há como ser liberal e autoritário. Por outro lado, o socialismo/a esquerda tem mostrado sua face autoritária até com razoável freqüência. O socialismo democrático, não autoritário, parece ser, a bem da verdade, uma utopia.
Segundo, o liberalismo/a direita não é moralista. Ele é libertário, individualista, e prega o direito de cada indivíduo buscar a felicidade como lhe aprouver — desde que, nessa busca, respeite os direitos de outros indivíduos. Por outro lado, o socialismo/a esquerda não tem sido avesso a defender um moralismo ultra-piegas. [Estou lendo no momento um livro sobre a guerrilha no Araguia (tem fotos do Genoíno guerrilheiro), e é incrível quão moralistas os revolucionários que participaram da luta armada eram — proibindo, em nome da "causa", sexo e até mesmo namoro entre os camaradas e entre estes e a população circunvizinha.]
Terceiro, o liberalismo/a direita não é fundamentalista em relação à religião. Na verdade, não é nem mesmo religioso (embora, ao defender a liberdade, respeite em quem queira o direito de ser religioso como ache melhor). O liberalismo surgiu, historicamente, com a bandeira da liberdade religiosa, da tolerância em questões relativas à religião. Muitos dos liberais clássicos, como David Hume e Adam Smith, eram virtualmente ateus — no mínimo agnósticos. Sendo defensores da liberdade e do individualismo, não se davam bem em organizações, como igrejas e partidos políticos, que tentam "comprar a sua alma". Isso nem sempre acontece com a esquerda, que é uma tendência muito chegada a "coletivos", a "partidos", a "disciplina", etc.
Resta falar um pouco do outro binômio: conservador/progressista.
O termo "conservador" tem um sentido razoavelmente preciso: conservador é aquele que tenta defender e preservar as tradições, os costumes, os valores, as hierarquias, as distinções sociais. Ele se opõe ao progresso — razão pela qual seus opositores em geral se chamam progressistas.
O liberalismo/a direita não é, de forma alguma, conservadora. Pelo contrário: quando surgiu, foi um movimento altamente revolucionário, que mudou a face da sociedade através da Revolução Americana de 1776 e da Revolução Francesa de 1789. O liberalismo/a direita, longe de combatê-lo, sempre buscaram o progresso. Ainda hoje, o liberalismo/a direita querem mudanças em um mundo que caminhou demais na direção na direção do socialismo/da esquerda.
Alguns autores hoje chamam o movimento em geral associado com o Partido Republicano, em especial com o ex-Presidente Reagan e o atual Presidente Bush, de "direita americana" ou "conservadorismo americano". Em relação a isso, recomendo o livro The Right Nation: Conservative Power in America, de John Micklethwait & Adrian Wooldridge. Os autores (que são ingleses) mostram que o gênio desse movimento está em ter sabido reunir, debaixo de um mesmo guarda-chuva, grupos bastante diferenciados, que às vezes mal se toleram, mas que têm clara percepção de seus interesses e sabem que o socialismo/a esquerda
NÃO vai promovê-los. Entre eles estão:
a) Liberais que querem limitar as funções do governo e reduzir impostos, acabando com, ou reduzindo drasticamente, os "programas sociais", as "políticas públicas", etc.;
b) Gente que, mesmo sem ser liberal, se opõe ao welfare state, à medicina socializada, à educação pública;
c) Homens de negócio que querem que o governo largue de seu pé e os deixe operar com maior liberdade;
d) Gente que é contra aborto, comportamento sexual meio desregrado, inclusive o homossexualismo e filhos fora de uniões estáveis, drogas, integração forçada (pelo Governo) com gente muito diferente (em raça/etnia, costumes, valores), etc. — coisas que, segundo eles, foram permitidas ou mesmo tornadas obrigatórias pela esquerda;
e) Gente religiosa que não quer saber de que o Governo dite como eles devem se conduzir na vida pessoal, em especial nos aspectos éticos e religiosos;
f) Gente simples, moradora em pequenas cidades e na zona rural, que está cheia da esquerda socializante, bem educada, snob, freqüenta as universidades da Ivy League e se concentra na região costeira do Leste e, em menor grau, do Oeste (vide o mapa vermelho e azul das últimas eleições: com uma ou duas exceções, em todos os estados fora da zona costeira Leste e Oeste ganharam os republicanos (eram vermelhos);
g) Gente que se orgulha de ser americano, que é patriota, e que procura incorporar os valores tradicionais em que se sustentou a nação americana: liberdade, individualismo, responsabilidade pelo próprio destino, trabalho duro, economia, provisão para o futuro.
Todos esses grupos gradativamente perceberam, ao longo dos anos sessenta – oitenta, que os socialistas / a esquerda estavam contra valores que eles prezavam. E, aos poucos, perceberam que teriam muito a ganhar fazendo uma aliança, em que todos ganhavam o que queriam — e não se preocupavam se os aliados que mal toleravam ganhavam também.
O resultado foi Reagan e, agora Bush. Clinton foi um interregno nefasto, porque o velho Bush não conseguiu sustentar a boa situação econômica que herdou de Reagan.
É isso — por enquanto.
Em Campinas, 25 de Junho de 2005.
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