Os pequenos roubos de cada dia no emprego (e nas viagens?)

Interessante o artigo de Lisa Belkin, transcrito abaixo, publicado, primeiro no The New York Times, depois no International Herald Tribune, onde eu o encontrei. O artigo trata de pequenos roubos (“pilfering”) que empregados e funcionários fazem regularmente no emprego (especialmente no escritório – no chão da fábrica é, aparentemente, mais difícil, havendo, em alguns casos, revista ou detetor de mercadorias retiradas sem autorização). Nada muito valioso ou grande: geralmente pequenos materiais de consumo, como caixinhas de clips ou de grampos, post-its, cadernos, lápis, canetas, cartuchos de tinta para a impressora, etc. Aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra, disse Jesus, em situação não exatamente idêntica mas comparável.

O artigo de Lisa Belkin chama a atenção para vários aspectos curiosos, dos quais destaco cinco.

1) Antes, quando a gente era obrigado a manter horas de trabalho relativamente rígidas, pegar algo do trabalho em vez de sair e comprar poderia significar um ganho para a companhia: o que ela perdia com o material era compensado pela não ausência do empregado do local do trabalho. Lisa Belkin menciona um caso dela mesma (verdadeiro ou criado para dar efeito ao artigo). Um dia, estava sem papel higiênico em casa. Mercadoria essencial, convenhamos. Ela tinha um trabalho importante a fazer. Se saísse para comprar o papel higiênico antes de fechar-se a loja em que comprava essas coisas, não terminaria o trabalho. Logo, surripiar um rolo de papel higiênico era no interesse da firma, não era? Embora o ato pudesse ter um componente moral questionável, do ponto da racionalidade administrativa ele representava um investimento correto do tempo dela, não é verdade? Clever.

2) Hoje, quando boa parte dos funcionários dos escritórios trabalha em regime de “flextime” ou mesmo de “home office” parcial, a coisa muda um pouco de figura. Se eu estou em minha casa, fazendo serviço da firma, uso o meu telefone residencial ou o celular cuja a conta a firma paga? Se imprimo um relatório grande na minha impressora pessoal, não tenho eu o direito de trazer o papel e o toner do escritório? Afinal de contas, estou trabalhando para a firma — e o estou fazendo sem comprar aluguel de meu escritório doméstico, sem cobrar o gasto proporcionalmente maior com eletricidade, água, e telefone, sem cobrar uma parcela do acesso em banda larga à Internet que é pago por mim… As coisas ficaram um pouco mais complicadas, do ponto de vista, digamos, gerencial — embora do ponto de vista moral elas talvez não sejam muito diferentes do caso anteriormente descrito (no item 1).

De qualquer maneira, é forçoso reconhecer que o raciocínio descrito no item 2, se legítimo, pode ser estendido. Se o trabalho que faço em casa é para a empresa, e por isso posso levar para casa papel e toner de impressora para imprimir os relatórios, o que é que me impede de levar o notebook e a impressora da empresa para casa também? Note-se que algumas empresas cedem, hoje em dia, aos empregados, para uso profissional, um notebook, e admitem que eles os levam para casa à noite e nos fins de semana, no pressuposto de que continuarão a trabalhar para a companhia. Quando saem da empresa, porém, têm a obrigação de devolvê-lo. (A menos que, como relata Lisa Belkin, eles façam um Boletim de Ocorrência de que o equipamento foi roubado ou perdido, sem que isso realmente tenha acontecido. Neste caso, porém, comprovada a fraude, o resultado pode ser cadeia).

Mas o que é que distingue, do ponto de vista moral e mesmo legal, o caso descrito no item 2 do sua aplicação “mais ampla”? É apenas o valor da coisa roubada?

3) As instituições empregadoras (não são só empresas: ONGs e órgãos governamentais sofrem do mesmo problema) sabem que os empregados levam para casa um monte de miudezas. Intervêm, em geral, apenas quando o objeto surripiado é material permanente, patrimoniado, e, portanto, uma providência se torna mandatória. (No Brasil, porém, uma tesoura é material permanente…). Em relação ao resto, fazem de conta que não vêem. O problema é que essas coisinhas pequenas, quando levadas para casa regularmente por milhões de empregados ou funcionários, passam a adquirir significado financeiro. Lisa Belkin relata um relatório relativo à NASA que mostra que, durante uma década, seus empregados surripiaram bens no valor total de nada menos do que 94 milhões de dólares. A estimativa é de que, em todas as instituições empregadoras, nos Estados Unidos, o valor total dos bens “pilferados” chega a 14 bilhões de dólares anuais!

E o problema não é só financeiro: ele afeta a cultura organizacional. Ao não agir contra os pequenos roubos, o empregador passa a mensagem aos empregados de que a empresa é tolerante com esses pecadilhos — mas os empregados recebem a mensagem de que, se tolerante nestes, talvez também nos maiores, e o resultado é a institucionalização de uma cultura organizacional em que o roubo, em geral, é tolerado. Todos nós temos visto no que dá isso.

4) O artigo destaca, por fim, que os roubos acontecem, não porque as pessoas têm grande necessidade dos produtos ou não os podem adquirir com seus recursos. Eles acontecem porque a coisa está ali, é uma coisa necessária ou gostosa de ter, e — por que não? — a empresa tem tanto daquilo e não vai sentir falta.

Muitas vezes são os executivos da empresa que dão à luz verdade para esse procedimento. Muitos compram livros com recursos da empresa e os levam para casa. Outros assinam revistas de interesse com recursos da empresa e indicam que devem ser entregues em casa… (Há pouco tempo estive no governo do Estado de São Paulo e a Imprensa Oficial prepara, para os executivos do governo, um excelente clipping diário, que inclui o fim de semana e um volume especial por semana com as revistas semanais. Custa caro. Como os Secretários de Estado e outros executivos do governo estadual em geral chegam meio tarde ao serviço, e gostam de chegar lá já tendo lido as notícias relevantes, a Imprensa Oficial se dispõe a enviar o clipping para a casa deles, por serviço de entrega. Isso é legítimo ou não? Vide item 5).

Aqui entra o famoso cartão de crédito corporativo, tão abusado pelos mais altos escalões de nosso governo. O cartão de crédito pode ser usado para pagar um almoço com um cliente, naturalmente, ou para cobrir despesas de alimentação quando o executivo está viajando. Mas e se o executivo não está viajando nem está almoçando com cliente — está almoçando sozinho ou com a mulher (namorada, seja o que for)? Será que ele se lembra de que aquele almoço não deve ser pago com o cartão de crédito corporativo?

E os gastos com o automóvel cedido pela empresa? Ele deve ser usado em contextos relacionados ao trabalho, não é? Mas e uma saída à noite, para jantar com os amigos? Vale ir com o carro, a empresa pagando o combustível? E quando o carro vem acompanhado de um chofer?

5) Diante dessas complexidades, tem-se sugerido, como mostra o artigo, que mais necessárias do que medidas que impeçam esses procedimentos são medidas que criem um ambiente de transparência: é preciso ficar muitíssimo claro o que os empregados ou funcionários podem ou não podem fazer e quais são as penalidades por não cumprirem as normas.

No caso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, mencionado por mim atrás, há transparência: é o próprio órgão oficial do Estado que prepara o clipping que pergunta se o recipiente quer recebê-lo no trabalho ou, sem custo adicional, em casa. Ao permitir isso, é evidente que o governo sanciona o procedimento de receber em casa algo que é pago com seus recursos.

o O o

Por fim, quero tratar, até por força das circunstâncias, de uma situação semelhante.

Hotéis de qualidade disponibilizam no quartos, para uso de seus clientes, um monte de “amenidades”. Antigamente eram apenas sabonetes e vidrinhos de shampoo e condicionador. Hoje em dia há loção para as mãos e para o corpo (Occitane, aqui no Four Seasons de Tokyo), escovas de dente (duas), aparelho de barbear, pente e escova de cabelo, material para lustrar os sapatos, touca de banho, cotonetes, lixa de unha, algodão para tirar maquiagem, e até fivelas para o cabelo e elásticos para rabos-de-cavalo e marias-chiquinhas. É lícito botar na mala e levar para casa o material que você não usa no quarto? A maior parte dos visitantes ocasionais a esses hotéis não tem o menor escrúpulo em fazer isso: o hotel colocou as coisas lá para eu usar, argumentam, eu não usei ali mas tenho o direito de levar para casa… (Os viajantes regulares e freqüentes raramente fazem isso — precisariam de um armário especial em casa para estocar todo o material).

É verdade que levar um vidrinho de loção Occitane é diferente de levar uma toalha de banho ou um roupão. No caso da toalha e do roupão o hotel claramente os fornece para uso no quarto, e a maioria dos hotéis até tem aviso de que, caso você tenha ficado tão atraído pelas toalhas e roupões que resolva ficar com eles, o hotel os vende, por um preço razoável (evitando, assim, que você enfrente a situação constrangedora de ser pego com material alheio ao fazer o checkout).

Há material nessas questões para um interessante curso de ética pessoal e corporativa, não há?

A seguir, o artigo que provocou essas considerações.

Em Tokyo, 4 de Setembro de 2007

—–

http://www.iht.com/articles/2007/09/03/business/workcol04.php

 

http://www.iht.com/articles/2007/09/03/business/workcol04.php?page=2

International Herald Tribune

September 3, 2007

THE WORKPLACE

Corporate pilfering leads to reassessment of company values

By Lisa Belkin

NEW YORK: Years ago, back before children and bulk shopping, back when running out of something meant a separate errand, I stole a roll of toilet tissue from the office restroom. It was in the company’s interest that I stay longer rather than race out before the shops closed, I reasoned. It wasn’t stealing. It was a strategic investment of my time.

I have periodically thought of that moment with embarrassment. Who on earth steals toilet paper? Then, last month, the Government Accountability Office released a report estimating that NASA employees had stolen $94 million in office supplies and equipment over the last decade. One thief appropriated an office laptop as his own by declaring the machine lost. It had been thrown from the International Space Station, he explained, apparently with a straight face, and burned up in the Earth’s atmosphere.

In any workplace in America, at any moment of the day, someone is probably “borrowing” something, a loss to business of about $14 billion a year, according to the National Retail Federation. Studies find that 20 percent to 65 percent of employees admit to various degrees of supply theft at work, depending upon how the question is asked, and that those who earn the most money are most likely to be the culprits, meaning this is not really about need.

“Employees have been dipping into supplies for years,” said Vicki Donlan, a writer who specializes in the subject of business leadership. What has changed, she said, is that there is a new rationalization out there for the dipping: the portable nature of work. Home has become an extension of work, and we spend more time at work than we do at home. So if I am finishing that report on my home computer, doesn’t it make sense that my employer provide the paper for the printer? The Aeron chair?

One of the favorite stories I have collected on this subject over the years was about the office manager who filled his car with the five-gallon jugs from the water cooler, to care for his tropical fish. He then returned the empty containers.

The new laxity about what’s mine and what’s not creates a need for businesses to clarify the rules and “give employees an opportunity to be honest about their pilfering,” Donlan said.

Her belief that what is needed is transparency, not cabinet padlocks, is shared by Dov Seidman, the chief executive and founder of LRN, a company that helps employers create ethical business environments. Seidman is the author of “How: Why How We Do Anything Means Everything … in Business (and in Life),” and he is less concerned that employees are taking supplies than that they are doing it surreptitiously.

Small transgressions are like broken windows, he said, in that not paying attention to the little things sends a message that the company will tolerate larger missteps. The solution may be as simple as not classifying minor thefts as transgressions in the first place, he said. Being open about paper clips and pencils can create an atmosphere that is open in other ways, he said.

How much borrowing is too much borrowing is one of those “shared values” that come to shape a corporate culture, Seidman said. (For the record, no one I interviewed for this article suggested that taking laptops or furniture was in remotely the same realm as taking everyday office supplies.)

The poisonous potential of pilfering is underlined by the fact that it is so often a result of anger. Even if employees don’t think they’re angry, said Armand DiMele, who runs the DiMele Center for Psychotherapy and Counseling in Manhattan, they probably are.

“Anybody who’s in a position of being an employee has some sense that somebody up there is more powerful,” he said, “and that breeds resentment.”

Theft certainly seems to increase during times of tension. Angela Hult watched it happen at First Interstate Bank in Portland, Oregon, after it was acquired by Wells Fargo a decade ago.

The merger brought layoffs, said Hult, who is no longer with the bank, and “as executives received their pink slips, a lot of artwork, office supplies, computers and even small pieces of furniture began to disappear.

DiMele said that a little stealing can be good for a workplace.

“There is an advantage to being stolen from,” he said. “If you steal from me, I own you. Unconsciously, if I’m using a Post-it that I stole from my boss, I someh
ow still have my boss on my mind.”

Which puts my toilet tissue caper in a whole new light. Believe me, I will never do that again.

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