Transcrevo, a seguir, uma mensagem que escrevi dia 19 de Abril de 1999 na minha lista de discussão EduTec.Net (encerrada em Setembro de 2002). Redescobri-a por acaso, dando uma busca no Windows Live Search em outro assunto de interesse meu. Achei que vale a pena transcrevê-la aqui no meu Space. Aqui vai:
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From: Eduardo O C Chaves chaves@mindware.com.br
To: edutec@mindware.com.br edutec@mindware.com.br
Date: Monday, April 19, 1999 12:54 AM
Subject: Escrita como tecnologia
Comprei recentemente um livro interessante: Writing Space: The Computer, Hyptertext, and the History of Writing, de Jay David Bolter.
Eis uma passagem particularmente interessante:
"Escrever com caneta e papel não é mais natural, ou menos tecnológico, do que escrever com teclado e vídeo num computador. É verdade que um computador é mais complicado e mais frágil do que uma caneta. Mas não podemos nos isolar da tecnologia e reverter para os métodos de escrever mais antigos. Além disso, a produção de canetas e papel hoje também requer um processo sofisticado de manufatura: sem eletricidade, organização industrial, e redes de transporte e distribuição, não teríamos, hoje, suprimentos adequados de canetas e papel, os materiais necessários para a escrita antes do computador. De qualquer forma, não é a complexidade dos materiais que importa tanto: mais importante é o estado de mente técnico, que é comum a todos os métodos de escrever." (p.37).
Esta passagem, que eu não havia lido antes, se liga a algo que disse na palestra que dei em Uberaba, a convite da Iolanda [EC: Esses dados eram facilmente inteligíveis no contexto da lista na época]. No debate, uma aluna argumentou que a calculadora e o computador estão prejudicando a educação das crianças, porque estão fazendo com que estas deixem de fazer (e, em breve, de aprender a fazer) contas com lápis e papel e passem a fazê-las na calculadora (ou no computador). Minha resposta a ela foi de que fazer conta com lápis e papel não é uma forma natural de fazer contas: é uma forma de fazer contas (dividir, por exemplo) que usa tecnologia — não só o lápis e o papel, mas o método de dispor os números, a técnica de concentrar na parte do dividendo que é divisível pelo divisor e temporariamente ignorar o resto, etc. O método mais natural de fazer contas seria o de fazer contas mentalmente — mas nem esse é natural, porque precisamos inventar técnicas e macetes para conseguir lidar com grandes números mentalmente — e nem todos, de fato muito poucos, conseguem fazer isso. Assim, se nada temos contra o uso de lápis e papel na aritmética, por que objetar à calculadora ou ao computador? Porque no caso de lápis e papel usamos algoritmos? Mas a maior parte das pessoas aprende a aplicar o algoritmo automaticamente, sem necessariamente entendê-lo. Por que, então, não usar simplesmente a calculadora ou o computador?
No meu último livro [EC: escrito para o MEC, em 1988] argumento que mesmo a arte de falar, a linguagem em si, é tecnologia. O uso de conceitos envolve processos mentais sofisticados e complexos, faz uso de regras. Conseguir se comunicar pela linguagem é dominar métodos e técnicas de comunicação sofisticados — como todo mundo que aprende uma língua estrangeira descobre. O fato de que falamos nossa língua materna desde pequeninos nos oculta o fato de que estamos usando uma tecnologia sofisticada.
Lutam em vão os que se posicionam contra o desenvolvimento tecnológico. Sócrates lutou contra a escrita. Em vão. Ainda bem que perdeu — caso contrário, não teríamos acesso ao que ele pensou e disse, apesar de ele próprio ter-se recusado a colocar esses pensamentos no papel, através da escrita. Ainda bem que Platão o fez por ele e para nós.
O ser humano é um animal que inventa técnicas e métodos, cria artefatos, constrói mecanismos (devices, gadgets). Não fosse isto, estaríamos ainda antes da idade da pedra, dando grunhidos, como os primatas que, segundo dizem, nos antecederam, e que vieram a ser dominados, na briga pela sobrevivência do mais apto, quando um deles descobriu (segundo 2001: Odisséia do Espaço) que batendo com um osso em outro osso, era fácil quebrá-lo, criando assim uma ferramenta para quebrar a cabeça do inimigo. Duro, brutal, mas provavelmente verdadeiro.
Continuamos a inventar ferramentas para matar os inimigos e os que nos ameaçam. O duro é que, embora tenhamos aperfeiçoado enormemente nossa tecnologia, não tenhamos conseguido aperfeiçoar nossos valores e, conseqüentemente, nossa moralidade. Nesse sentido, concordo com o Antonio Carlos [EC: Novamente, a referência era inteligível no contexto original]. O problema básico é de valores — e dentro dos valores, dos valores morais, cuja descoberta e elaboração é função da ética.
Eduardo Chaves (eduardo@chaves.com.br)
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Os temas continuam relevantes.
Em Tokyo, 4 de Setembro de 2007
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