Em outro artigo celebrei os 40 anos de minha ida para os Estados Unidos para estudar — no dia 19 de Agosto de 1967.
Esqueci de celebrar, entretanto, outra data importante. No dia 8 de Agosto deste ano fez 35 anos que eu defendi minha tese de doutoramento na University of Pittsburgh. O ano foi, naturalmente, 1972. O tema foi David Hume e sua crítica da epistemologia, da ética e da estética. Minha tese básica era de que David Hume (1711-1776, escocês de boa estirpe) tentou arrasar com todos os fundamentos da filosofia tradicional, começando com sua teoria do conhecimento, passando por ética racional e sua estética objetiva. Ao fazer isso, destruiu também sua metafísica e tornou inverossímil a visão de mundo e a religião do período pré-moderno. Kant, argumentei, tentou responder a Hume nesses três quesitos, a fim de ressuscitar (ou reinventar, numa nova base) a metafísica e até a religião. Publicou até mesmo um livrinho chamado "Religião no Âmbito da Razão Pura". Mas, argumentei para concluir, Kant fracassou. Ao destruir a visão racionalista do mundo que caracterizava a filosofia clássica e mesmo a medieval (Tomás de Aquino, como Aristóteles, era um grande empirista-racionalista), Hume abriu as portas a todo tipo de fideísmo e irracionalismo — e, naturalmente, a essa excrescência que é o chamado pós-modernismo hoje. Ser racionalista, hoje, como Popper bem percebeu, exige, em primeiro lugar, lidar seriamente com Hume.
Enfim… No último dia 8 fez 35 anos que defendi essa tese. Nunca a publiquei porque não estava muito satisfeito com sua forma: entre outros problemas tinha 615 páginas! Mas vim retrabalhando (e publicando) pedaços dela. Faz mais de quinze anos que, um dia, quando estava em Genebra (Genève), resolvi re-escrever o trabalho, com um âmbito mais âmbulo e um apelo mais popular, com o título "Em Defesa da Razão". Não terminei ainda, e, na realidade, duvido que venha a ter tempo para fazê-lo. As coisas urgentes da vida atropelam as importantes.
Meu orientador foi William Warren Bartley, III, infelizmente já falecido (1990)
(Vide http://en.wikipedia.org/wiki/William_Warren_Bartley)
Bartley, por sua vez, foi orientando de Popper, na London School of Economics. Foi também o discípulo amado de Popper, a quem este legou a tarefa de cuidar de sua herança intelectual. Infelizmente morreu antes de terminar o hercúleo trabalho — que vem sendo continuando por sua companheiro Stephen Kresge. Bartley também se tornou o testamenteiro intelectual de Hayek — e, como no caso de Popper, não terminou a tarefa, que continua a ser exercida também pelo Steve.
De minha banca de doutoramento participaram Wilfrid Sellars (talvez o maior filósofico americano da época). Quebrando o protocolo, que indica que o orientador deve sair da sala para chemar o candidato quando a banca termina de deliberar, foi Sellars que foi me buscar e, no caminho, fez o sinal típico de sucesso segurando uma mão na outra acima e do lado da cabeça. Fiquei muito orgulhoso de ele ter sido parte da banca. Além de uma honra, foi um privilégio: ele raramente concordava em fazer parte de bancas, especialmente quando a tese passava de seiscentas páginas…
Bartley não só foi meu orientador e amigo como arrumou o meu primeiro emprego nos Estados Unidos. Em 1972 ele estava em seu último ano em Pittsburgh, apesar de ser professor titular estável ("tenured"). Havia certado, naquele ano, sua transferência para a California State University, em Hayward (perto de San Francisco), onde seria a estrela do Departamento de Filosofia, como Theodore Roszak (The Making of a Counter-Culture, 1969) era do Departamento de História.
(Vide http://en.wikipedia.org/wiki/Theodore_Roszak_(scholar))
Bem, Bartley conseguiu me levar junto com ele para Hayward, num "appointment" de um ano. Bartley fico apenas um ano em Hayward e foi para a muito mais prestigiada University of California, em Berkeley, do lado de Hwyard.
Durante o ano que fiquei em Hayward nasceu minha filha Andrea e arrumei um outro emprego, para o ano seguinte, no Pomona College, em Claremont, perto de Los Angeles. Também um "appointment" por um ano.
Ao longo do ano que estive em Claremont me convenci de que o cenário estava mudando drástica e rapidamente no Ensino Superior americano. Até 1972 cada Ph.D. tinha, em geral, pelo menos três ofertas de emprego. A partir desse ano, caiu verticalmente o número de alunos nas universidades e as novas vagas deixaram de existir — na verdade, muitas das antigas foram terminadas.
Soube disse lendo jornais e conversando com colegas. Diante desse quadro, resolvi voltar para o Brasil. A UNICAMP estava interessada em mim — o contato havia sido feito pelo meu primo Anello Sanvido Filho, que estudava Química na UNICAMP. Assim, resolvi voltar para o Brasil em 1974.
Não me arrependi. O tempo mostrou que a decisão foi sábia e tomada na hora certa. Na hora não sabia e tive dúvidas.
Em Taipei comprei um livro sobre o Ensino Superior Americano (A History of American Higher Education), de John R. Thelin (The Johns Hopkins University Press, 2004). Eis o que ele diz, nas páginas 331-332.
"By 1972 the end of a fifteen-year hiring boom had left the academic profession with reduced mobility and little leverage in their power to influence institutional decisions. The academic job market had dried up in all but a few fields. Whereas in 1965 a new Ph.D. from a major university usually received three or four tenure-track job offers, by 1972 there often were no job vacancies posted. It was not unusual for a tenure-track faculty vacancy to attract hundreds of qualified applications. . . . The hiring boom of the 1960s had saturated most institutions, with little prospect for vacancies for years to come. . . . At the same time that the national job market for academics was reaching saturation, the expanded number of Ph.D.-granting programs were tooled up to assure a constant flow of new Ph.D.’s into the academic market fro years to come. What would have been a marvelous solution to higher education’s needs in 1960 had become the millstone of a gluted market in 1980".
Na verdade, ainda fiz uma última tentativa de ficar em Pomona. A posição de diretor do Oldenborg Center for the Study of Modern Languages havia ficado vaga e o cargo era interessante (vinha como uma casa e um joint appointment no Departmento de Filosofia). Havia mais de uma centena de candidatos. No fim ficou entre mim e uma mulher. Um dia o Deão da escola me chamou e me deu a má notícia: eles teriam de contratar a mulher, embora eu fosse o candidato mais bem qualificado, pois precisavam ter mais mulheres em posição de direção e no corpo docente. Acabei sendo vítima da maldita ação afirmativa… Tempos depois me senti meio vingado quando minha grande amiga, Patricia Gleason, que conheci em 1977 em San Francisco, tornou-se diretora do Centro. (Curioso, os anos terminados em "7" aparecem muito nessas minhas memórias).
O ser preterido na escolha como diretor do Oldenborg Center confirmou minha decisão de voltar para o Brasil, que estava em negociação. No dia 6 de junho de 1974 peguei o avião (Braniff) no aeroporto de Los Angeles para, via Lima, vir até Campinas. Cheguei em Viracopos. Em quatro meses eu estaria separado de minha (primeira) mulher e casado (juntado) com a atual (que nasceu em 1947!). A linda família que tenho hoje é, em parte, resultado da decisão de voltar para o Brasil no início de 1974 (e 74 é 47 de trás para frente…).
Em Tokyo, 3 de Setembro de 2007.