Sempre achei, secundado pelo bom senso, que para que haja um crime é preciso que haja uma vítima – ainda que seja uma vítima difusa, como a “economia popular”.
No entanto, quando estudava nos Estados Unidos, no fim dos anos 60 e início dos anos 70, encontrei um livro que tratava de uma categoria de crimes diferentes, chamada de “crimes sem vítimas”. Os crimes, no caso, eram crimes perante a legislação americana. Achei a coisa fascinante, como evidência da idiotice dos legisladores americanos.
O livro contém uma variedade de ilustrações dessas leis, retiradas dos livros de leis dos estados americanos, como, por exemplo, as leis de alguns estados que proibem relações sexuais consensuais entre homossexuais e ou entre pessoas de sexo diferente mas não oficialmente casadas, ou que proibem casais heterossexuais devidamente casados, com papel passado e tudo, de manterem relações sexuais heterodoxas (orais e anais) ou até mesmo as relações convencionais, mas em posições diferentes da sacramentada “papai e mamãe”, também conhecida como “missionária” (porque era a única sancionada pelos missionários propagadores da fé cristã).
Uma vez, quando viajava de Nova York a San Francisco, pela finada PanAmerican World Airways, pedi um drink à aeromoça num determinado momento do voo. Ela me informou que, lastimavelmente, não poderia me servir, porque estávamos voando por sobre o Estado de Kansas, que é um estado “dry”, até mesmo em seu espaço aéreo.
Sempre me intrigou por que é que os legisladores dos estados que aprovaram essas leis inventaram esses crimes que não têm vítima. Se um casal não oficialmente casado, hétero ou homo, quer, consensualmente, manter relações sexuais, por que seria isso um crime? Não há vítima alguma das ações dos dois envolvidos. De igual forma a relação sexual heterodoxa ou em posição diferente da mais convencional. Por que seria isso um crime? Não há nenhuma vítima! A menos que a vítima seja, em todos esses casos, a religião cristã, em suas variantes mais fundamentalistas.
O mesmo se pode dizer quanto à bebida. A lei do nobre mas conservadoríssimo estado de Kansas pode proibir o consumo de bebidas alcoólicas em locais públicos – mas no chão… No espaço aéreo, dentro de um avião que apenas passa por cima do estado e nem vai parar no seu planíssimo território, não faz nenhum sentido. Quem seria a vítima? Quem seria prejudicado?
Resta perguntar como é que os legisladores esperavam que essas leis fossem aplicadas e suas violações descobertas. Uma polícia sexual iria visitar sem prévio aviso os quartos das casas, apartamentos, quartos de hotel e motel, bancos de trás de carros, para conferir a identidade e o estado civil de quem está fazendo sexo, e para aferir o sexo de cada um dos envolvidos e a posição que adotavam para o ato… Iria Kansas colocar um policial em cada avião para verificar se os (na época penas as) atendentes de bordo estavam cumprindo a lei? Nonsense.
Pensei que essa doença só acometesse os broncos legisladores americanos. Ouvi hoje cedo no rádio, porém, que a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que pune fabricantes, distribuidores, comerciantes E usuários de sutiãs, calcinhas e cuecas que estiverem de posse de peças que não contenham uma etiqueta advertindo os que manuseiem as peças para fazer exames preventivos de câncer de mama e colo de útero, ou, no caso de homens, de próstata.
Se as leis americanas visam proteger algo difuso como a fé cristã fundamentalista contra supostos desvios morais, a brasileira visa proteger as pessoas contra si mesmas. A lei nos considera um bando de idiotas, que se não tivermos em nossas peças íntimas um lembrete, não cuidaremos de nossa saúde.
Mesmo negligenciando o fato de que cada um de nós tem direito de terminar sua vida subitamente, pelo suicídio, e, portanto, também o teria de não prevenir doenças não contagiosas, resta perguntar como nossos ilustres legisladores esperam que a referida lei, uma vez aprovada e sancionada, será aplicada. Os policiais pararão cada um na rua para pedir para dar uma olhadinha no sutiã e na calcinha da pessoa, ou em sua cueca?
Façam-me o favor. O Festival de Besteira que Assola o País ataca novamente.
Em São Paulo, 14 de Maio de 2011 (véspera do aniversário da Paloma…)
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