Epistemologia da fé – 1

Hoje, enquanto ia até Salto (105 km daqui), ouvi um debate longo na CBN sobre a fé. Foi no programa Caminhos Alternativos, e o título foi: “Os caminhos da fé: uma força que move a vida”.

(Vide http://cbn.globoradio.globo.com/programas/caminhos-alternativos/2010/05/29/OS-CAMINHOS-DA-FE-UMA-FORCA-QUE-MOVE-A-VIDA.htm).

Participaram do debate um budista, um professor de física da UNICAMP e um filósofo (Luís Felipe Pondé, da PUC-SP e colunista da Folha). Em gravação participou o Heródoto Barbeiro.

Muita besteira foi dita, inclusive pelo Heródoto – embora o Pondé e o físico da UNICAMP de vez em quando dissessem algo que valia a pena ouvir.

Dou o título “Epistemologia da fé” a este post porque esta é a questão que não foi realmente discutida pelos debatedores – e que, a meu ver, deveria ter sido.

O que é a fé?

Em particular:

É a fé um modo de descobrir ou desvelar insights que não somos capazes de descobrir pela experiência e pela razão (i.e., pela ciência e pela filosofia)? Uma espécie de intuição sobre assuntos transcendentes? A fé seria, neste caso, sinônimo de revelação? Ou seja, ela opera no chamado “contexto da descoberta”.

Ou:

É a fé um modo de validar epistemicamente crenças que a experiência e a razão (i.e., a ciência e a filosofia) não conseguem validar? Uma espécie de método transcientífico que justifica nossa crença em enunciados que a ciência e a filosofia não são capazes de validar? Ou seja, a fé opera no chamado “contexto da justificação ou validação”.

Ou, ainda:

É a fé uma defesa da não-necessidade de justificar a crença em determinados enunciados porque eles exigem de nós um “salto no escuro”, um “mergulho na irracionalidade”? Como dizia Tertualiano, um dos Pais da Igreja, “credo quia absurdum”, creio exatamente porque é absurdo (vale dizer, incrível). Em outras palavras: se aquilo em que se crê fosse justificado epistemicamente, a fé seria desnecessária. Ela só se torna justificável, enquanto fé, quanto seu objeto é absurdo (ou “loucura”, como preferiu Paulo, o apóstolo).

Ou, ainda:

É a fé um fazer de conta no plano da ação, não da tanto da crença, um viver “as if” (“como se”): a decisão de viver como se a vida tenha sentido, como se o bem e a justiça valham a pena, como se a honestidade compense (e o crime não), etc.

Ou, ainda:

É a fé confiança pessoal, um relacionamento pessoal baseado em confiança (trust) com outra pessoa? Algo equivalente ao fato de que eu confio em determinadas pessoas, me dou a elas, passo a depender delas, mesmo sem ter evidência suficiente de sua confiabilidade. (A gente se casa com quem mal conhece, toma aviões dirigidos por pessoas que desconhecemos, acreditamos que os mecânicos fizeram a manutenção correta nos aviões, acreditamos que as empresas vão nos entregar os produtos que compramos pela Internet, etc.).

Ou, por fim:

É a fé confiança em si próprio e aceitação de si mesmo (mais ou menos a tese do Heródoto)?

A maioria dos participantes pareceu-me não acreditar que a fé se esgote na crença de que um Deus (parecido com o Deus cristão descrito na Bíblia) existe. Todos eles (inclusive o budista) pareceram estar interessados em defender um tipo de fé que transcenda a questão religiosa e não se esgote na questão de Deus (ou até mesmo não a envolva). (A questão de Jesus e da redençaão nem chegou a ser discutida, talvez em respeito à presença do budista…)

No fim, todos pareceram ser a favor da fé, todos se declararam pessoas de fé (em algum sentido do termo). O físico da UNICAMP foi o único a sugerir, em alguns momentos, que a fé não é necessariamente uma coisa boa – nem mesmo quando entendida como confiança em si e aceitação de si. (Se eu sou um crápula ou um criminoso, a situação parece ficar pior se eu acreditar em mim mesmo e me aceitar como sou…) 

O debate só ficou interessante quando a apresentadora relatou algo dito por uma atriz, solicitando que os debatedores comentassem. O que a atriz disse foi algo mais ou menos assim: “Eu quero crer, rezo toda noite para crer, para que eu venha a ter, ou receba, fé, mas… “

Isso gerou uma discussão interessante sobre a seguinte questão: a fé é algo que cada um de nós decide ter ou não ter, voluntariamente? É um ato de decisão pessoal? Se é, por que tantas pessoas aparentemente querem crer, querem ter fé, e não conseguem? Se não é, porque tantos cristãos condenam tantas pessoas por não terem fé?

É doutrina da Reforma Protestante que a fé não é uma realização humana, mas, sim, um dom divino (uma graça). Nesse caso, os incréus não poderiam ser responsabilizados por sua descrença, nem os crentes pela sua fé. A estes Deus teria graciosamente dado a fé, àqueles ele a teria negado. Essa doutrina desemboca na predestinação.

Protestantes mais “soft” introduziram uma inovação: Deus daria a fé a alguns, mas não graciosamente: os recipientes precisariam primeiro crer que isso era possível e desejar que isso fosse feito. Essa inovação é complicada: além de sugerir que Deus dá a fé apenas a quem já de alguma forma crê, ela parece fazer da própria fé uma obra, negando a doutrina da justificação sola gratia.

Enfim, coisa complicada.

Em São Paulo, 29 de Maio de 2010

 

 

Uma resposta

  1. Minha definição:

    Fé é um elemento/recurso incentivador/motivacional de natureza psíquica-historica-socio-cultural capaz de fazer um indivíduo desprovido de uma educação que favorece o desenvolvimento do ser humano que transforma sua realidade e gera opiniões a tomar iniciativas e realizar coisas.

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  5. Paul Tillich (1886-1965), que era considerado filosófico demais para ser um teólogo, e teológico demais para ser um filósofo, publicou um livrinho que em português é chamado Dinâmica da Fé, tem como tese principal que a fé emana da dúvida, sem dúvida não haveria a fé. A dinâmica da fé seria , segundo ele, a própria dúvida. Se for assim, penso eu, não seria a fé uma disposição para descobrir aquilo que de antemão não teria uma heurística, nem uma epistemologia conhecida, mas que se admite de antemão não se ter a capacidade de alcançar o conhecimento sem uma abertura para além de nossos limites,ou dito de outra forma, uma abertura para uma transcendência de si, para aquilo que está além da linha do cognoscível até que, sendo em parte conhecido, ainda assim permaneça mistério? Teria eu superinterpretado Tillich?

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