Epistemologia da fé – 2

Na discussão do tema no Facebook, várias pessoas se manifestaram. Eis aqui um resumo.

MInha mulher, Paloma, se fez ouvir (ler) nos seguintes termos, citando o autor de Hebreus: “’Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem’ (Hebreus 11:1). Acho que a fé como uma defesa da não-necessidade de justificar a crença em determinados enunciados se aproxima mais da minha idéia de fé…”.

Meu irmão, Flávio, lembrou o pensador inglês G. K. Chesterton, que disse:

"Amar significa amar o que é difícil de ser amado, do contrário não seria virtude alguma; perdoar significa perdoar o imperdoável, do contrário não seria virtude alguma; fé significa crer no inacreditável, do contrário não seria virtude alguma. E esperar significa esperar quando já não há esperança, do contrário não seria virtude alguma."

Eu retruquei:

“Gosto muito do Chesterton — pensador inglês que era católico, não anglicano. Escreveu também vários romances policiais deliciosos. Tenho todos eles. Tendo a concordar com ele. Fé, mesmo, para ser realmente fé, tem de ser em algo inacreditável. À la Tertuliano, Kierkegaard, etc. Não é preciso ter fé, por exemplo, para admitir que Jesus realmente nasceu no século I na Palestina. Para admitir que ele nasceu de uma virgem, porém, é preciso fé. Não é preciso fé, por exemplo, para admitir que ele tenha morrido na cruz. Para admitir que sua morte expiou os pecados do mundo, ou que ele tenha ressuscitado dentre os mortos, é preciso fé”.

Meu sobrinho, Vitor, teólogo, nos lembrou de duas idéias interessantes, referindo-se a Paul Tillich e Miguel de Unamuno:

a) “A fé se aproxima mais de preocupação (‘concern’: "the state of being ultimately concerned", de Paul Tillich) do que de crença”.

b) [Referindo-se a Miguel de Unamuno] “Até que ponto a fé não é desejar, não algo que existe, mas, sim, algo que não existe?”

Eu lembrei as três virtudes paulinas – a fé, a esperança, e o amor – das quais a maior delas é o amor.

Comentei, diante da cutucada da Paloma para que eu me manifestasse, dizendo o que pensava. Comecei comentando algo dito por Ozimar Pereira, a saber: “A fé é justamente acreditar que não existe finitude. É saber que existe algo maior no qual se está inserido e do qual você é um ator ativo”. Retruquei:

“Eu estaria inclinado a dizer mais ou menos o contrário: que a fé é o reconhecimento da nossa finitude, reconhecimento esse acompanhado da crença (ou, se mais fraca, da esperança), de que há algo além, transcendente. Reconhecer a nossa finitude é reconhecer que somos finitos, que temos fim. O Judaísmo e o Cristianismo, por exemplo, diferentemente das religiões gregas, não acreditam na imortalidade da alma: acreditam na ressurreição do corpo. Isso quer dizer que o Judaísmo e o Cristianismo reconhecem, de forma radical, a finitude humana: a morte, o fim humano, é realmente um fim. Não é a morte só do corpo, ficando a alma viajando por aí, atormentando os outros, ou se reincarnando em outro corpo. É realmente o fim. Só um milagre poderá fazer com que, depois desse fim, sobrevenha um novo capítulo em que voltamos a participar. O Judaísmo e o Cristianismo acreditam no milagre da ressureição do corpo. Têm fé (esperança?) de que, um dia, o nosso ser, nosso eu, com corpo e tudo o mais, será reconstituído. Existe alguma base para se crer nisso (além do fato de que a Bíblia o diz)? Estou convicto de que não. Se quem crê (espera) está certo, ou não, só se saberá se a crença (esperança) for verdadeira. Se não for, o nosso fim é verdadeiramente o fim, o fim final, o fim sem follow-up, o fim sem capítulo subseqüente – e a nossa finitude é uma finitude sem transcendência. É bom crer que a nossa morte não é o fim de tudo – que haverá um follow-up eterno em que o bem, o certo, a justiça serão recompensados, em que os conflitos, as guerras, o sofrimento, o mal deixarão de existir, em que o lobo conviverá pacificamente com o cordeiro e nos olhos não haverá nenhuma lágrima. Talvez por ser tão bom crer nisso que eu tenho medo de realmente crer — e prefira ficar no nível da fé-esperança… Segundo Paulo, há três virtudes básicas: a fé, a esperança, e o amor. Será que 2/3 delas não bastam?”

A Paloma cutucou de novo:

“Não crer por medo? Medo por ser algo tão bom? Quantas coisas tão boas temos recebido ainda em vida? Por que não as receberíamos depois da morte? Quantos milagres temos "vivido em vida"? Por que não os poderíamos ‘viver depois da morte’”?

Retruquei:

“Sabe quando você tem medo de acreditar em algo porque "it is too good to be true"? Sei que, muitas vezes, mesmo sem a crença, "it is true". Tenho provas irrefutáveis disso (você sabe). Mas não aceito a validade de argumentos indutivos. O que já aconteceu muitas vezes no passado, pode não acontecer no futuro, exatamente em relação ao que, no esquema total das coisas, mais parece importar…”

O Vítor comentou:

“Bem lembrado sobre Paulo, tio. ‘Fé, esperança e amor’. Talvez sejam três virtudes básicas da humanidade, independente de cultura ou religião. Pra mim, até então, de forma breve, fé seria a preocupação mais decisiva e a decisão certa diante da preocupação; esperança, a paciência na vida e o trabalho constante para mudar; e amor, a aceitação do outro e de si mesmo. Parecem-me virtudes que somam qualidades positivas e nos fazem viver e conviver melhor. Se isto vai garantir uma vida após a morte? Talvez sim, talvez não… O medo da morte não pode ser o único motivo para viver estas virtudes básicas. Se de repente não houver nada após a morte, é melhor viver o paraíso aqui com a gravidade e a beleza destas virtudes (ou 2/3 delas) e esperar pela surpresa insondável da vida, do que antecipar um inferno aqui :-)”.

Retruquei:

“Obrigado por mais uma vez participar, Vitor. Concordo com você. Não sou mais, hoje, daqueles que acham que é ‘tudo ou nada’, ‘all or nothing at all’ (como cantava o incomparável ‘ol’ blue eyes’). Já fui. Hoje acho que 1/3 é melhor do que 0; 2/3 melhor do que 1/3; e que 3/3 talvez seja o ideal. Mas ainda sou suficientemente protestante/presbiteriano/calvinista para confessar que não acho que a fé seja simplesmente uma decisão da vontade: quero acreditar, vou acreditar, acredito. Na doutrina bíblica (na interpretação calvinista) a fé é dom, é graça, não é uma realização intelectual e conativa minha. Bela discussão para o nosso www.theologia.com.br…“

Ozimar Pereira voltou a participar:

“Talvez precise estudar um pouco mais, mas há linhas no Cristianismo que dizem que não há fim. A morte é apenas uma passagem e a vida apenas um de muitos estágios. Fé é acredi
tar nisso e não esperar um ressurgimento do pó no dia do Juízo Final… Enfim…”

Respondi:

“Pelo que sei, há tendências no Cristianismo que acreditam que, na nossa morte, apenas o corpo morre, e a alma (dos salvos, naturalmente) vai direto para os céus, ter com Deus (algo assim). Acredito que essa tendência tenha surgido em contextos influenciados pela doutrina da imortalidade da alma. Se a alma é imortal, apenas o corpo morre. E a alma, quando morre o seu corpo, tem de ficar em algum lugar. Como os cristãos majoritariamente rejeitam a doutrina da transmigração de almas (reincarnação), inferiu-se que a alma dos salvos vai direto para o céu e a dos condenados direto para o inferno. Não encontro base bíblica clara para essa doutrina. Há várias referências que dizem que os que morreram estão "dormindo", mas isso não me parece base suficiente. Por outro lado, há passagens no Velho e no Novo Testamento que sugerem que somos pó e (quando morrermos) voltaremos a ser pó (sem fazer salvaguarda alguma para a alma). Os Testemunhas de Jeová, se bem me lembro, batem firme nessa tecla.”

Enfim. Discussão interessante.

Em São Paulo, 31 de Maio de 2010

6 responses

  1. Um breve comentário:"Testemunha" é uma palavra do gênero feminino assim o correto é: As Testemunhas de Jeová. E a base da crença das Testemunhas é alicerçada na Bíblia como um todo. E a Bíblia não ensina a imortalidade da alma. É interessante que ao colocar o primeiro casal num paraíso sobre a Terra, Deus os instruiu a ter filhos, cuidarem daquele Jardim e o ampliarem para toda a Terra. Havia uma prova de obediência e lealdade: não comer o fruto de uma única árvore. A ordem era bem clara: "se comerdes dela positivamente MORREREIS…". Aquele casal sabia que a desobediência teria como resultado a perda do paraíso e a morte. Deus não estava dizendo a um casal perfeito que a desobediência seria recompensada com algo melhor, como por exemplo, a vida num outro plano. Não faria nenhum sentido que desobedecer; pecar fosse recompensado, pelo contrário resultaria em grande perda, no caso o desfavor do Criador e consequentemente a volta ao \’pó\’ ou inexistência. A Bíblia ensina que a morte é nossa inimiga, portanto como tal será eliminada no futuro quando o propósito de Deus para com a Terra e a humanidade for cumprido. As Testemunhas de Jeová oferecem um curso gratuito da Bíblia, à domicílio, que ajuda muito a raciocinar com base nas Escrituras sobre este assunto e vários outros. É interessante. No mínimo vale a pena dar uma olhada.

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