A vida é um enigma.
Nos últimos dias dois amigos meus se foram — João Carlos Giampietro, que conheci através da Dell e do Instituto Paramitas, e Greg Butler, que conheci através da Microsoft. Um (Greg) bem mais chegado do que o outro. E um (Greg, de novo) de forma bem mais chocante do que o outro. Um de mal súbito — provavelmente enfarto — e o outro (ainda o Greg), em acidente: atropelado por um trem em Londres. Ambos, de qualquer maneira, eram (ao morrer) BEM mais novos do que eu (hoje).
Se você for fazer seguro de vida e pedir cobertura para atropelamento por trem em Londres, provavelmente ganhará a cobertura de graça ou por menos de 0,01, tamanha a sua improbabilidade. A probabilidade de morrer atropelado por um trem em Londres provavelmente só é maior do a de morrer por abalroamento da residência por um avião cainte. Mas em Guarujá, no ano passado, o risco de morrer desta forma foi enorme, quando o avião que carregava Eduardo Campos caiu sobre um monte de casas e prédios de apartamentos. E o desastre poderia ter sido muito pior, se um dos edifícios altos tivesse sido atingido.
Também se foi, nos últimos poucos dias, uma amiga de longa data, a Tamiko Shimizu, irmã de meu grande amigo Takashi, de Santo André e do Instituto JMC (Jandira) — esta cerca de 13 anos mais velha do que eu, e, aparentemente, daquilo que chamamos de causas naturais: nada excepcional, só velheira.
Fico a me perguntar, em relação ao João Carlos e ao Greg: por que eles, e não eu, mais velho, e que já tive um enfarto, há 13 anos (e, evidentemente, sobrevivi, caso contrário não estaria aqui escrevendo estas mal traçadas)?
E me pergunto, em relação à Tamiko: será que eu chego aos 83 anos com que ela morreu? Meu pai morreu com 78 completos, minha mãe com 84 (incompletos, mas chegando lá). Então, de alguma forma, tirante o enfarto, parece que não é de todo loucura imaginar que possa chegar aos 83.
Quando tive meu enfarto, no alto dos meus 58 anos, em 1 de Março de 2002, achei que, mesmo tendo sobrevivido à morte súbita que muitas vezes acompanha o enfarto (que, no caso, se torna fulminante), teria pouco tempo de vida pela frente. Meu cardiologista me disse que, se eu me cuidasse direito, e tomasse meus remédios como receitados, poderia chegar aos 90 com enfarto e tudo. Os remédios eu tomo religiosamente (eles são quase que a única coisa que eu trato de forma religiosa). Mas, exceto durante os dois primeiros anos depois do enfarto, não tenho me exercitado como devia, nem comido como os radicais sanitaristas recomendam: mato verde, mato amarelo, mato isso, mato aquilo. Mas reduzi (sem de todo abandonar) açúcar, massas, carnes. E procurei gerenciar o meu stress, conseguindo sucesso, em muitos casos (no trânsito, por exemplo — hoje dirijo muito tranquilo). Mesmo assim, acho difícil que chegue aos 90 — mas será que chego aos 83 da Tamiko? Teria mais 11,5 anos de vida, se chegar lá e, como ela, parar. Para um jovem, não parece muito. Mas, para mim, não é de desprezar. Por outro lado, o Niemeyer, que era uma chaminé ambulante e, tanto quanto sei, nunca fez um dia de exercícios em sua vida madura, e que, além de tudo, era ateu e comunista sem o menor resquício de dúvida no seu cérebro arquitetonicamente privilegiado, chegou aos 103. Vá entender.
Quem é crente, especialmente na vertente calvinista (especialmente na presbiteriana), tende a acreditar que as coisas não acontecem por acaso, que tudo é obra da divina providência — da qual haveria três modalidades: a providentia generalis (que cuida de todo o universo), a providentia specialis (que cuida dos seres humanos em geral) e a providentia specialissima (que cuida de nós, calvinistas convictos, os escolhidos e eleitos para a salvação eterna…).
Se eu tivesse morrido em 2002, quando do meu enfarto, teria morrido admitidamente agnóstico e, provavelmente, ateu. Mas, se tivesse sido escolhido e eleito por Deus, desde antes da fundação do mundo, teria morrido (segundo o calvinismo clássico mais radical) ateu e salvo. A minha salvação não dependia de nada que eu pudesse fazer (nem mesmo crer), nem deixar de fazer, mas apenas e tão somente da graça divina (sola gratia) que atua de forma inescrutável mas totalmente irresistível.
Segundo interpretações mais “amenas” (arminianas?) do calvinismo, quem sabe Deus me salvou da morte em 2002 (dentro da providentia specialis) para que eu tivesse uma segunda chance e me voltasse para ele, crendo, reconhecendo-me de novo como eleito… (dentro da providentia specialissima, ainda pela graça, mas envolvendo, necessariamente, pelo menos uma dose mínima de fé: pelo menos abrindo a boca para receber a graça…)… Para os calvinistas linha dura essa amenização já cheira a arminianismo ou semi-pelagianismo. Mas deixemo-los de lado, como certamente merecem.
Mas o que é a fé, nesse caso? É a crença que exclui toda e qualquer dúvida ou é deixar de resistir e abrir a porta para a esperança, é não desistir e voltar a buscar, mesmo sem certezas, mas apostando sempre (como sugeriu Pascal), confiando? “Eu creio, Senhor, mas ajuda-me em minha descrença” (“Lord, I believe; help thou mine unbelief”; Marcos/Mark 9:24, KJV).
Vá saber. Ou, quem sabe, só Deus sabe. De qualquer forma, vários dos meus amigos se têm ido e eu aqui ainda estou. Aguentando firme (mais ou menos). E, reconhecidamente, por enquanto. Enquanto Deus quiser, diz a religião e a teologia — e digo eu. Por mim, tudo bem — Deo volente. Ele tem querido até aqui. “Até aqui nos ajudou o Senhor” (1 Samuel 7:12). Parodiando o versículo que usei como base para meu discurso de formatura no Clássico em 1963, “Uns confiam em carros [médicos e remédios], outros em cavalos [exercícios, dietas e estilo de vida]; mas nós faremos menção do nome do Senhor, nosso Deus” (Salmos 20:7). Talvez a fé, em sua essência mínima, seja isso: reconhecer que nossos esforços só podem nos levar até certo ponto, e, que, se chegamos além dele, quem sabe é porque alguém, além de nós, o quis e para isso tramou. . .
Conheci o pai da Paloma quando ele e eu éramos crianças — ele mais criança do que eu, que sou mais velho do que ele cerca de uma mão de anos. Quem sabe, num daqueles encontros nossos, lá na Santo André (Parque das Nações) dos anos 50, Deus, que tudo vê, nos observando, guris que éramos, tenha decidido, em seus insondáveis decretos, que o mais velho iria um dia se casar com a filha do mais novo… Algo assim parecido com o que parece ter acontecido com algumas das figuras nas estórias do Velho Testamento.
O ser humano, acreditando-se livre, julgando ter livre arbítrio, vai tomando suas decisões, fazendo seus planos, vivendo sua vida. Faz isso, faz aquilo. Escolhe o namorado, noiva, casa… Se é crente, pede a orientação e a bênção de Deus, acha que está fazendo a vontade divina, mas nunca sabe com certeza (ou nunca deveria ter total certeza, como têm alguns)… Sabe-se apenas (ou assim se presume) que Deus, lá por trás, vai mexendo os seus pauzinhos, tramando o seu plano, sem que saibamos o que ele faz e qual é efetivamente o seu plano.
Um dia — foi 26/8/2004 — Deus tramou (assim acredito hoje) para que a Paloma e eu nos encontrássemos. Houve agentes intermediários, interpostos, como a Mary Grace Andrioli. Ambos, Paloma e eu, segundo tudo indicava na ocasião, estávamos bem casados (com outras pessoas) e nos acreditávamos felizes. Nenhum dos dois estava procurando encrenca ou buscando uma vida diferente.
A coisa não funcionou naquela ocasião (daquela que pode muito bem ter sido a perspectiva divina — eu acho que foi) e Deus tramou para que nos encontrássemos de novo — dessa vez em condições mais tranquilas e propícias. Isso se deu quase nove meses depois, no dia 11/5/2005, no SENAC da Rua Tito na Lapa… Lá perto do lindo Bar e Restaurante da Cacilda. . . (que ficou para sempre com um lugar especial no meu coração).
Dessa vez as coisas começaram a se colocar em andamento. Devagar, naturalmente. Afinal de contas… Será que pode ser parte da vontade de Deus desmanchar (ou deixar que se desmanchem) dois casamento aparentente funcionais para constituir outro, improvável e arriscado, entre pessoas com 32 anos de diferença? Um ateu, ou quase, e a outra, crente convicta? Quem iria arriscar prever: a Paloma, tão crente, justo com um velho ateu de 65 anos. Alguém efetivamente publicou isso aos quatro ventos no Orkut…
Levou mais de três anos, a partir daquela data. E, deixados a nós mesmos, não sei se teríamos tido coragem…
Mas dessa vez Deus (aparentemente) estava resolvido e decidiu pegar as rédeas em suas mãos e agir (ainda que sempre através de interpostas pessoas). Decisões que não conseguíamos tomar, ele tomou por nós (através de terceiros). Facilitou o nosso processo decisório. E aqui estamos. Fazendo o que achamos que é o melhor, mas sem nunca saber por certo o que Deus trama por trás.
Tem gente que acha que sabe com certeza absoluta qual é a vontade de Deus para tudo e o que Deus acha certo e errado em cada caso particular.
Tenho pena deles. Uma hora Deus vai sacudir essa gente para um choque de realidade.
Eu prefiro acreditar como aquele ditado que diz que, se você quer ver Deus dando uma boa risada, conte a ele os seus planos… Diga a ele o que você acredita que é a vontade dele. Ele só não rola de rir no chão porque não tem corpo, e só não morre de rir porque é eterno. Ainda bem.
Leiam Tiago 4:13-16:
” 13. Ouçam agora, vocês que dizem: ‘Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro’.
14. Vocês nem sabem o que acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa.
15. Em vez disso, deveriam dizer: ‘Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo’.
16. Agora, porém, vocês se vangloriam das suas pretensões. Toda vanglória como essa é maligna. “
Em São Paulo, 20 de Janeiro de 2015
Amei e lindo.
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Olá Eduardo, gostei muito das suas reflexões e de certa forma, das confissões. Creio que nada é por acaso e tudo o que vivenciamos servirá de crescimento (para nós mesmos e aos demais). Você é uma pessoa muito inteligente e que faz muito a diferença por onde passa. Espero que o “seu tempo” esteja longe de acabar. Continue com seus posts, com seus amores, seus estudos, reflexões, viagens e bem longe dos trens de Londres. Ah, o avião do outro Eduardo (Campos) infelizmente caiu aqui em Santos, próximo da minha casa… De certa forma, também escapei. Bjs
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Oi, Denise… Quanto tempo! Fiquei contente de revê-la por aqui – e de saber que você está bem e que escapou do avião do Eduardo Campos. Saudades. Um abração.
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