Terminei o artigo anterior discutindo a tese fundamental dos críticos da economia de mercado de que o mercado, em si, não é capaz de resolver adequadamente todos problemas de distribuição (como, por exemplo, o fornecimento de alimentação [habitação, saúde, educação, etc.] adequados à população que vive na miséria e, assim, não tem dinheiro para pagar os preços de mercado) e, portanto, precisa ser corrigido e aperfeiçoado pela ação governamental – o que implicaria um controle ainda que parcial do mercado por parte do governo.
Há várias maneiras em que um governo que pressupõe que essa tese seja verdadeira pode controlar (parcialmente) o mercado. Listarei apenas alguns:
a) Apesar de deixar livre quem as empresas ou mesmo as pessoas físicas podem contratar, determinar salário mínimo de qualquer trabalhador, ou o piso salarial de cada categoria, ou o teto salarial de cada categoria, ou então a forma obrigatória de reajustar os salários, ou então os benefícios que devem ser pagos aos trabalhadores, seja em dinheiro, como salários adicionais, seja na forma de descanso remunerado (fins de semanas, feriados, férias, etc.) e até mesmo abonado (como é o caso das férias do trabalhador brasileiro), ou então determinando percentuais adicionais para horas extras, trabalho noturno, trabalho perigoso, trabalho insalubre, ou então determinando idades para aposentadoria compulsória, etc.;
b) Controlar, em termos de categoria, até mesmo quem as empresas devem contratar, ao determinar que contratem, obrigatoriamente, um determinado percentual (cota) de deficientes, ou de minorias raciais ou étnicas (negros, indígenas, etc.), ou até mesmo de mulheres;
c) Controlar, através de tabelamento ou do estabelecimento de tetos (preços máximos) e, por vezes, pisos (preços mínimos), o preço que as empresas podem cobrar pelos bens e serviços que oferecem no mercado;
d) Impedir determinados tipos de empresas de atuar em determinados segmentos do mercado, através de reserva de mercado (por exemplo, para empresas 100% — ou outro percentual – nacionais), ou através de monopólios (por exemplo, para empresas estatais ou até mesmo para empresas privadas);
e) Proibir empresas de comercializar bens e serviços que teriam interesse em comercializar;
f) Obrigar empresas, em determinadas circunstâncias (por exemplo, de escassez de produtos no mercado), a colocar no mercado bens que, naquele momento, não é de seu interesse comercializar;
g) Impedir empresas de realizar fusão ou de adquirir outras empresas, quando as partes diretamente envolvidas estão interessadas em fazer negócio;
h) Obrigar empresas a retirar de circulação determinadas marcas ou, então, vendê-las a concorrentes;
i) Oferecer incentivos e crédito subsidiado para a produção de determinados bens ou serviços ou para sua exportação, e, por vezes, até mesmo pagar produtores agrícolas para não produzir;
j) Oferecer incentivos e crédito subsidiado para determinados tipos de empresas ou para determinados tipos de pessoas, incentivando-as a empreender;
k) Impedir a importação de determinados bens e serviços ou dificultar sua importação através de alíquotas elevadas de taxação;
l) Manipular a taxa de câmbio para alcançar objetivos econômicos, como o aumento da exportação ou a redução da importação;
m) Favorecer, por razões ideológicas, determinados tipos de empresas e/ou produtos, em detrimento de outros, em processos licitatórios ou outros tipos de compras por parte do governo, sem levar em conta uma análise imparcial, do ponto de vista técnico e econômico;
n) Atuar diretamente no mercado através de empresas estatais ou semi-estatais em condições evidentes de favorecimento (como, por exemplo, dispensa de licitação);
Virtualmente tudo isso que foi listado – e a listagem não é exaustiva – tem acontecido no Brasil nos últimos trinta anos (1975 para cá).
O Brasil, apesar da criatividade de nossos políticos em inventar formas de interferir no mercado, não tem conseguido inventar a roda nessa área: todos esses procedimentos já foram testados lá fora, e, em alguns casos, aqui dentro, e falharam – “falhar” querendo dizer que causaram resultados desastrosos, muito diferentes das intenções supostamente nobres que os motivaram. Tabelamentos e controles de salários e preços, controle de importações, reservas de mercado, atuação direta no mercado por parte do governo, monopólios, favorecimento de determinadas empresas e/ou produtos por razões ideológicos, manipulação da taxa de câmbio, etc., tudo isso já foi tentado e abandonado no Brasil por não dar certo. Uma legislação trabalhista extremamente paternalista vem sendo revista aos poucos, mas ainda muito devagar. Mas caminhamos bastante nos últimos quinze anos, desde o início do governo Collor, no sentido de remover boa parte do entulho da intervenção estatal na economia – embora muito ainda esteja por fazer.
Porque virtualmente todas essas tentativas de o estado interferir na economia têm se mostrado desastrosas, aqui e lá fora, porque a economia de um país é algo extremamente complexo, em que qualquer interferência afeta todo o sistema, produzindo resultados imprevistos e, o mais das vezes, indesejáveis, os governos têm mudado de estratégia. Embora ainda critiquem a economia de mercado em seus discursos, os governos hoje, na prática, admitem que ela é a única que funciona – tanto no âmbito da produção (algo já admitido há tempo) como no âmbito da distribuição (algo nem sempre admitido em teoria, embora o seja tacitamente, na prática. Com isso, têm procurado reduzir, com tendência a eliminar, a interferência do estado na economia.
A alternativa que encontraram para lidar com o problema de que alguns segmentos da população não possuem recursos para sair da miséria ou da pobreza, problema esse, segundo os críticos da economia de mercado, causado pelo Capitalismo, foi redistribuir riquezas, isso é, taxar as empresas, e, no plano dos indivíduos, aqueles de maior renda, e, com esses recursos, criar programas sociais, que chegam até mesmo ao nível de pagamento de uma complementação de renda àqueles cuja renda fica abaixo do mínimo, criando assim uma “renda mínima nacional”.
Embora essa estratégia possa parecer menos danosa ao mercado, se este for visto apenas do ângulo de sua eficácia como estratégia de produção e distribuição de bens e serviços, ela é igualmente danosa ao mercado visto do ângulo de sua justificação moral, como nada mais do que a extensão da liberdade e dos direitos humanos ao reino econômico.
No próximo artigo sobre esse assunto tratarei dessa questão.
Em Campinas, 4 de agosto de 2005