Impostos e taxas (e mais: contribuições, empréstimos compulsórios, etc.)

(Para o conceito de tributos na Constituição Federal, envolvendo impostos, taxas, contribuições e empréstimos compulsórios, vide os artigos 145-149A da Constituição [https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm]).


A Folha de S. Paulo de hoje (22/8/2005) revela que planos e estudos para permitir a cobrança de pedágio pelo trânsito nas vias urbanas estão em fase de conclusão no governo federal e em pelo menos as duas maiores metrópoles do país, São Paulo e Rio de Janeiro.

Parece que uma das razões que vem retardando o lançamento e a implantação da medida é a atual notória falta de apoio popular aos políticos. Se é isso, temos mais essa dívida de gratidão para com Roberto Jefferson: a crise deflagrada a partir de suas denúncias pode nos salvar (pelo menos por enquanto) de mais um assalto ao nosso bolso por parte de políticos, com o devido apoio de técnicos investidos de poder na burocracia estatal – os tecnoburocratas.

Um desses tecnoburocratas chega ao extremo de afirmar que o transporte automobilístico no Brasil é altamente subsidiado. E o subsídio (tirante um pequeno subsídio aos carros populares, que nem sei se existe mais) seria a permissão para estacionar gratuitamente nas vias públicas urbanas.

Há uma série de equívocos nessa afirmação.

Primeiro, nas vias públicas urbanas do centro da cidade de nossas grandes metrópoles praticamente inexiste o estacionamento gratuito. O estacionamento nas vias públicas do centro da maioria de nossas cidades maiores já é cobrado pelos respectivos governos municipais. Será que o tecnoburocrata está cogitando de que eu tenha de pagar para estacionar na frente de minha casa, que fica longe do centro em Campinas (sede de uma região metropolitana) e num local em que não há problemas de estacionamento (exceto nos dias em que há missa na igreja católica que fica em frente, felizmente em reforma há mais de um ano)?

Segundo, a justificativa oferecida pelo tecnoburocrata é para a cobrança por estacionamento nas vias públicas do centro das grandes cidades – mas a medida que se cogita é de cobrar pelo trânsito em vias públicas nesse local. Uma coisa é estacionar, outra é transitar. O que pode justificar um pode não justificar o outro.

Terceiro, o tecnoburocrata, tentanto fazer uma reductio ad absurdum da pretensão dos cidadãos de não precisar pagar para transitar com automóvel nas vias públicas urbanas, procura ridicularizar o uso feito, por alguns cidadãos, do direito de ir e vir para justificar esse trânsito, perguntando, retoricamente: será que essas pessoas acham que o automóvel é um pedaço do corpo delas? Ora, as leis que garantem o direito de ir e vir – a nossa Constituição, por exemplo, ou a lei natural, como diria John Locke – não restringem o direito de ir e vir a ir e vir a pé… Nos termos da atual Constituição, o direito de ir e vir não passa a ser ilegítimo se se usa cavalo, carruagem, bicicleta, ou automóvel para ir e vir. A pergunta do tecnoburocrata é idiota.

Mas aqui entra uma complicação que o tecnoburocrata não contempla, talvez por ignorância, talvez porque não seja no seu interesse.

A lei natural lockeana e a Constituição brasileira atual contemplam o direito de ir e vir. Mas não afirmam, nem faria sentido fazê-lo, que compete ao governo fornecer ao cidadão – muito menos gratuitamente – os meios de ir e vir. Entre esses meios estão não só estradas e ruas (vias) como os próprios veículos. O cidadão pode ir e vir livremente. Mas se quiser fazê-lo a cavalo, tem de comprar o animal ele mesmo. Se quiser fazê-lo de automóvel, tem de comprar o veículo. E é evidente que há uma diferença significativa entre esses dois meios de transporte: o primeiro – o cavalo – dispensa estradas e ruas; o segundo – o automóvel – as requer. (Também as carruagens puxadas a cavalo as requeriam, é bom lembrar).

Vem então a pergunta: a quem cabe prover as estradas e ruas nas quais vão transitar os hoje onipresentes automóveis? Ao governo ou à iniciativa privada.

Se analisarmos a questão do ângulo histórico, a maior parte dos governos, no afã de expandir suas funções e, por conseguinte, seus poderes, chamou a si a tarefa de construir estradas fora do perímetro urbano e ruas no perímetro urbano. Esses espaços são públicos, argumentavam os governos, e, portanto, cabe ao governo viabilizar seu uso adequado. Para que os governos pudesse fazer isso, foram cobrados ou aumentados impostos.

Logo, historicamente as vias (estradas e ruas) em que transitavam os diferentes veículos que as requeriam (primeiro carruagens, depois automóveis) se tornaram públicas e sua construção e manutenção eram custeadas com dinheiro arrecadado pelos governos (federal, estadual ou municipal) na forma de impostos. As únicas vias que permaneceram privadas foram aquelas que permitiam o trânsito dentro de uma propriedade particular grande, como uma fazenda, por exemplo.

Ultimamente, porém, com o aumento considerável dos gastos dos governos, decorrentes do fato de que eles assumem cada vez mais funções e, portanto, maiores poderes, começa a faltar dinheiro para que construam e mantenham vias públicas adequadas a uma demanda cada vez maior por essas vias resultante do aumento no uso de veículos automotivos. Resultado: começaram a inventar novas formas de arrecadar dinheiro dos proprietários de aumóveis e outros veículos motorizados. Aqui no Brasil, todos nos lembramos da famosa TRU – Taxa Rodoviária Única. Que fosse chamada de única era um insulto, porque logo lhe foram acrescentadas uma Taxa de Licenciamento de Veículos e o IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores. A TRU foi eventualmente extinta – mas as rodovias públicas começaram a cobrar pedágio… sem que fossem extintos a taxa de Licenciamento de Veículos e o IPVA. Oportunamente a gestão das estradas foi, em grande parte, privatizada – mas privatizou-se apenas o direito de explorar, por tempo limitado, não a propriedade das estradas. Agora se cogita de cobrar pedágio também nas vias urbanas – ainda que seja preciso de alguma forma privatizar a sua gestão.

Em resumo: a população paga pelas estradas e ruas por meio de impostos regulares, de imposto específico (IPVA), de taxa de licenciamento e de pedágio.

Voltando agora para o foco expresso no título deste artigo, impostos e taxas, devo esclarecer o que penso, do ponto de vista liberal:

a) Como já disse, o direito de ir e vir é um direito não só natural mas (para quem não aceita o direito natural) garantido na Constituição Brasileira;

b) O direito de ir e vir não inclui ou embute um direito aos meios que facilitam o ir e vir ou ampliam o seu alcance (veículos e vias), e, portanto, ninguém deve esperar que pessoa privada ou governo lhe forneça esses meios gratuitamente;

c) Assim, da mesma forma que a aquisição de um veículo é paga, o uso de estradas e ruas (ou seja, de vias interurbanas e urbanas) que a pessoa mesma não construiu em sua propriedade deve ser pago de alguma forma;

d) Em países como o Brasil, em que o direito já reconhece as estradas interurbanas e as ruas urbanas como públicas, o pagamento deve acontecer de uma ou outra de duas formas: impostos ou taxas;

e) Impostos, em princípio, são cobrados de todos os cidadãos para custear a manutenção geral do governo, no pressuposto de que todos se beneficiam com a existência de um governo que mantém a ordem; taxas são cobradas dos usuários de serviços específicos prestados pelo governo que atendem às necessidades de apenas alguns usuários, e devem cobrir o custo básico da prestação desses serviços; 

[Para uma discussão pedante – como sói ser a discussão jurídica – do conceito de impostos e taxas vide, em especial: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5592 e  http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7146. Eu não endosso tudo o que o texto afirma – mas é útil].

f) Dessas duas formas de cobrança, é evidente que as taxas são as mais adequadas para o caso. Se vou usar um automóvel, o certo é que pague para transitar nas vias em que de fato transitar – e a parte proporcional necessária para amortizar a sua construção e mantê-la. Esse pagamento é uma taxa – que comumente se chama de pedágio.

g) O pagamento de taxas na forma de pedágio é feito, no Brasil, em acréscimo a outroos impostos, com os quais o pensamento liberal de modo algum concorda, porque oneram a atividade produtiva e o comércio, que incidem sobre as operações de fabricação e comercialização de veículos (IPI, INSS, IOF, ICMF, etc), impostos esses que são pagos, em última instância, pelo proprietário e usuário, e à taxa de licenciamento do veículo, cobrada anualmente (uma taxa única cobrada quando o veículo é originalmente licenciado seria um abuso fiscal mais suportável do que a uma taxa anual, que incide com mais freqüência ainda quando a posse do veículo é transferida ou mesmo quando o domícilio de seu proprietário é modificado);

h) Duas outras coisas são injustificáveis para o pensamento liberal neste contexto: (a) o uso de impostos (que são tributos cobrados de todos os cidadãos e são destinados a manter a operação geral do governo) para construir e manter vias públicas, porque muitos cidadãos não possuem veículos motorizados que trafegam por essas vias (b) criar impostos que incidem exclusivamente sobre os proprietários de veículos motorizados, como o IPVA, porque esses proprietários, ou aqueles a quem eles autorizarem o uso do veículo, já estarão pagando as taxas correspondentes ao uso das vias públicas (pedágios), que é tudo o que deveriam estar pagando (embora, no Brasil, como vimos, paguem ainda os impostos sobre a fabricação e comercialização dos veículos e o seu licenciamento);

i) A argumentação contida nos parágrafos anteriores mostra que a cobrança de pedágios urbanos, num contexto como o brasileiro, em que as ruas (vias urbanas) foram construídas pelo governo municipal, é legítima – desde que, entretanto, os impostos que são cobrados pela fabricação e comercialização de veículos, o IPVA e a as taxas anuais de licenciamento sejam abolidas, por implicarem muito mais do que bitributação;

j) Se a cobrança de pedágios em vias urbanas vai ser feita mediante a privatização das ruas, é algo que não precisa ser discutido aqui: se a cobrança, em si, é justa, e se a proporção cobrada também o é, faz pouca diferença se o dinheiro fica nos cofres públicos ou vai para a iniciativa privada;

Mesmo sem propor maiores mudanças no modelo socializante que é adotado no Brasil, em que o governo se atribui uma série de funções que deveriam estar na iniciativa privada, se nosso modelo fosse liberal, a forma de custear os serviços governamentais, como educação, saúde, etc. deveria ser através de taxas cobradas dos usuários e não de impostos cobrados de toda a população. A população que não usa esses serviços (que usa a escola privada e tem planos de saúde privados) não deveria estar pagando pelos serviços usados pelos demais, pois assim paga duas vezes pelo mesmo serviço (bitributação clara).

No que diz respeito aos impostos, a sua distribuição pela população deveria obedecer o princípio da eqüidade. Um valor igual imposto a cada habitante seria a forma mais justa. Depois dessa, um imposto percentual único aplicado sobre todas as transações financeiras realizadas através do sistema bancário (no máximo 1% seria suficiente). Depois dessa, um imposto percentual fixo e único sobre a renda. O sistema tributário que temos no Brasil, progressivo quando aplicado sobre a renda, e acrescido de vários outros impostos, taxas, contribuições e até mesmo empréstimos compulsórios (nunca devolvidos, é bom que se diga) é de longe o mais injusto.

Por enquanto, é isso.

Em Campinas, 22 de agosto de 2005

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