ÍNDICE
I. Introdução: A Moralidade e a Conduta
1. A Conduta e a Ação Humana
2. A Ação Humana e a Moralidade
II. O Discurso Moral e o Discurso Prescritivo-Normativo
1. O Discurso Descritivo-Explicativo
2. O Discurso Prescritivo-Normativo
3. O Discurso Moral
III. As Normas Morais
1. A Vontade Divina como Critério de Moralidade
2. O Sentido Moral como Critério da Moralidade
3. A Razão como Critério de Moralidade
4. A Maximização da Felicidade como Critério de Moralidade
5. A Vontade da Sociedade como Critério de Moralidade
6. A Natureza Humana como Critério de Moralidade
A. Natureza Humana, Liberdade, Razão e Moralidade
B. O Caráter Naturalista da Moralidade
C. O Caráter Racionalista da Moralidade
D. Moralidade e Valores
E. A Objetividade dos Valores
F. Moralidade e Egoísmo
I. INTRODUÇÃO: A MORALIDADE E A CONDUTA
A moralidade tem que ver com a conduta do ser humano.
1. A Conduta e a Ação Humana
A conduta humana é o conjunto das ações humanas.
Na verdade, a expressão “ação humana” soa quase pleonástica, porque de outros animais, de plantas e das demais entidades que compõem a realidade dificilmente se pode dizer que ajam – pelo menos, que ajam de forma consciente, voluntária, e, portanto, intencional, que é, presume-se, a forma tipicamente humana de agir.
Mas o que é uma ação?
Em seu sentido mais amplo e genérico, uma ação é alguma coisa que um ser vivo faz para alcançar um determinado objetivo.
Seres inanimados (seres não-vivos) não agem nem mesmo nesse sentido mais amplo e genérico – porque não são capazes de fazer nada. Eles só podem ser objetos da ação de seres vivos – ou, então, objeto do efeito de forças que incidem sobre eles (como, por exemplo, a luz solar, ventos, furacões, tempestades, raios, etc.).
Em relação a seres vivos, como plantas e os animais não-humanos, é possível afirmar que fazem algumas coisas para alcançar determinados objetivos – e, portanto, que agem, nesse sentido mais amplo e genérico do termo. Uma árvore pode se entortar toda para encontrar um pouco da luz solar necessária para que cresça. Um animal normalmente pacífico pode atacar outros animais ou mesmo seres humanos para proteger os seus filhotes.
No entanto, plantas e animais não-humanos fazem essas coisas, ou agem assim, sem consciência do que estão fazendo. Ao agir, portanto, não o fazem de forma voluntária e intencional: agora vou fazer isso, para alcançar aquele objetivo. Seu comportamento, pode-se dizer, é programado neles, e sua ação, se é que é realmente apropriado falar em ação nesse caso, é instintiva e não o resultado de um processo consciente e intencional, decorrente de sua vontade.
No sentido mais restrito e específico (e, portanto, mais forte) do termo “ação”, apenas seres humanos agem. (Deuses e anjos, caso existissem, provavelmente também agiriam). Agir, como foi dito, é fazer alguma coisa consciente para alcançar um determinado objetivo – no caso dos seres humanos, é fazer alguma coisa de forma voluntária e intencional, com o objetivo de, com ela, alcançar um determinado estado de coisas que se deseja.
Há muitas coisas que os seres humanos fazem que não são ações. Digerimos o alimento que comemos, não por causa de um ato intencional de vontade nosso, mas porque somos, pode-se dizer, programados dessa forma. Quando estamos dormindo podemos virar bruscamente na cama e dar uma cotovelada no rosto de quem está dormindo perto de nós, mas isso, embora seja algo que fizemos, não é uma ação nossa, porque não o fizemos, de forma consciente e voluntária, e, portanto, intencional, para alcançar determinado objetivo.
É preciso registrar que, às vezes, fazemos alguma coisa consciente, voluntária e intencionalmente, com o objetivo de alcançar determinado estado de coisas, e não somos bem sucedidos (i.e., não alcançamos o esperado estado de coisas). Pessoas que estão com doenças graves às vezes tentam qualquer coisa (simpatias, por exemplo) para se curar – geralmente sem sucesso… Pessoas que amam sem ser correspondidas também tentam, às vezes, as coisas mais absurdas (até mesmo feitiços, “despachos”, “encomendas”), para conseguir que a pessoa amada lhes corresponda o amor – geralmente sem sucesso… Isso quer dizer que nem sempre nossas ações (coisas que fazemos consciente, voluntária e intencionalmente, com o objetivo de alcançar um determinado estado de coisas) são bem sucedidas (i.e., alcançam o objetivo esperado).
Ainda pior, às vezes podemos fazer uma coisa consciente, voluntária e intencionalmente, com um determinado objetivo, e produzimos resultados que não tínhamos nenhuma intenção ou mesmo vontade de produzir. Ao comer uma deliciosa maionese numa festa de casamento, nossa intenção é saciar a fome ou saborear algo gostoso – nunca é ficar com dor-de-barriga (embora esse seja de vez em quando o resultado produzido, quando a maionese está estragada…).
Enfim, creio que está razoavelmente claro que, dentre as coisas que fazemos, algumas são ações (no sentido restrito e específico): coisas que fazemos de forma consciente, voluntária e intencional, para alcançar um determinado objetivo. Ações (nesse sentido) decorrem de atos conscientes de nossa vontade e são intencionais. Também está claro que nem sempre alcançamos nossos objetivos com nossas ações e que, às vezes, conseguimos resultados que nem de longe faziam parte de nossa intenção ou mesmo de nossa vontade.
Daqui para frente vou falar em ações humanas apenas nesse sentido estrito e específico.
2. A Ação Humana e a Moralidade
Se a moralidade tem que ver com a conduta do ser humano e a conduta do ser humano é o conjunto de suas ações, a moralidade tem que ver com a ação humana – com aquilo que o ser humano faz de forma consciente, voluntária, e intencional, para alcançar determinado objetivo.
Mas a moralidade de uma ação não aponta, própria e necessariamente, para uma categoria específica de ação. A moralidade é uma forma de considerar determinadas ações – que não perdem os seus objetivos originais por serem consideradas morais.
Mas antes de entrar nessa questão, é preciso esclarecer uma certa ambigüidade no uso do termo “moralidade” – que indica a existência de dois conceitos distintos de moralidade. O termo “moralidade” é usado basicamente em dois sentidos:
” Num sentido genérico, a qualidade de ser moral é atribuída a algumas de nossas ações para demarcá-las de, e contrastá-las com, ações não-morais ou amorais (ações que, do ponto de vista moral, são indiferentes – as ações chamadas “adiaphora”, pelos gregos: moralmente, não faz diferença alguma se elas são realizadas ou não). Nesse sentido genérico, uma ação moral é uma ação que deve ser considerada OU moralmente certa OU moralmente errada – ela não é moralmente indiferente.
”
” Dentro da categoria das ações morais (nesse sentido genérico) algumas serão moralmente certas (ou morais, agora no sentido estrito do termo), outras moralmente erradas (ou imorais). O oposto de uma ação moral, no sentido estrito do termo, é, portanto, uma ação imoral – isto é, uma ação moralmente errada.
”
(Fazendo um parêntese, embora seja comum ouvir falar-se em “valores morais”, determinados valores, como, por exemplo, liberdade, autonomia, individualidade, egoísmo, visão de longo plano, racionalidade, coerência, decisão, propósito, determinação, esforço, paciência, perseverança, resiliência, são, tipicamente, não-morais ou amorais, isto é, moralmente indiferentes: eles podem ser exibidos tanto por quem age de forma moralmente certa como por quem age de forma moralmente errada.)
II. O DISCURSO MORAL E O DISCURSO PRESCRITIVO-NORMATIVO
Disse atrás que a moralidade de uma ação não indica, própria e necessariamente, uma categoria específica de ação, sendo, na realidade, uma forma de considerar determinadas ações – que não perdem os seus objetivos originais por serem consideradas morais.
Aqui procurarei mostrar que “essa forma de considerar determinadas ações” é, na realidade, uma forma de discorrer (discursar) sobre nossas ações, e que, portanto, a moralidade (tanto no sentido genérico como no sentido estrito) é uma modalidade de discurso – na verdade, uma sub-modalidade do discurso prescritivo-normativo.
Essa afirmação me obriga a fazer uma breve incursão na questão das formas ou modalidades do discurso.
Nosso discurso pode ser classificado de várias formas ou em várias modalidades, das quais as principais são:
* Descritivo-explicativo
* Prescritivo-normativo
* Evocativo
* Executivo
Aqui vou me ocupar apenas dos dois primeiros. (O discurso evocativo é o que procura evocar em nós determinadas emoções, como na poesia; o discurso executivo é o que realiza alguma ação no mero ato de ser pronunciado em circunstâncias apropriadas – como dizer “eu te prometo que…” no contexto de fazer um promessa ou “eu te perdôo” no contexto de conceder perdão. Prometer e perdoar, nessa interpretação, não seriam misteriosos eventos interiores: seriam o usar determinadas fórmulas lingüísticas, de forma sincera e apropriada, em determinadas circunstâncias).
1. O Discurso Descritivo-Explicativo
O discurso descritivo-explicativo é aquele que pretende descrever ou explicar a realidade – a realidade sendo qualquer coisa que existe ou acontece, no plano natural, ou que é realizada pelo ser humano, no plano cultural.
O discurso descritivo-explicativo pode classificado em particular e geral.
Um exemplo de discurso descritivo particular é “Este computador que estou usando no momento foi fabricado pela Dell”.
Um exemplo de discurso descritivo geral é “Computadores comercializados pela Dell são mais baratos do que os de outros fabricantes”.
Um exemplo de discurso explicativo geral é “Os computadores comercializados pela Dell são mais baratos do que os de outros fabricantes porque eles são vendidos pela própria Dell diretamente ao consumidor, sem a necessidade de intermediários”.
O discurso descritivo-explicativo geral tem seu limite no discurso universal, que se refere a todos os membros de uma determinada categoria: “Todos os computadores feitos pela Dell têm garantia total de três anos a partir da compra original”.
2. O Discurso Prescritivo-Normativo
Em contraste com essa modalidade de discurso, o discurso prescritivo-normativo é aquele que pretende prescrever ou avaliar uma ação ou um curso de ação. Como vimos, ações ou cursos de ação são coisas que se aplicam exclusivamente a seres humanos – não a animais ou outras entidades da natureza (como plantas e rochas).
O discurso prescritivo-normativo é, em geral, mais complexo do que o descritivo. Essa maior complexidade decorre, em parte do fato de que o discurso prescritivo-normativo pressupõe a existência de normas de conduta.
Normas de conduta são determinações do que deve ou não deve ser feito em determinadas circunstâncias – e elas servem tanto para fazer com que alguém aja ou deixe de agir de determinada maneira ou para avaliar a ação, ou a omissão de ação, de alguém. Assim, o discurso prescritivo-normativo pode tanto prescrever uma ação ou um curso de ação que ainda não foi realizado como avaliar uma ação ou um curso de ação (já realizado ou apenas contemplado).
Indo além, o discurso prescritivo-normativo pode se expressar através de diversas fórmulas lingüísticas. Eis alguns exemplos:
“Você não deve comer tanta carne vermelha”
“Não fica bem usar este vestido naquela reunião”
“É proibido estacionar aqui nesta rua”
“É errado trair a confiança do parceiro da gente”
Nestes casos temos quatro fórmulas lingüísticas diversas para o discurso prescritivo ou normativo – usando locuções com o verbo “dever” no negativo (ou no afirmativo, se fosse o caso), usando a expressão “não ficar bem” (ou “ficar bem”, se fosse o caso), usando expressões do tipo “ser proibido” (ou “ser obrigatório”, se fosse o caso), e usando expressões do tipo “ser errado” (ou “ser certo”, se fosse o caso). Todos os exemplos fornecidos exprimem prescrições negativas (mesmo que a partícula “não” esteja apenas implícita, como é o caso no terceiro e no quarto exemplo): seu objetivo é fazer com que alguém não aja de uma certa maneira em determinadas circunstâncias – ou avaliar negativamente ações já realizadas ou contempladas. O primeiro exemplo e o quarto contêm formulações mais genéricas – seu conteúdo é mais geral do que nos outros dois casos.
Mas há ainda uma complicação adicional no discurso prescritivo-normativo. Como os exemplos fornecidos já indicam, o discurso prescritivo-normativo pode exprimir prescrições ou avaliações de natureza muito diversa.
Quanto dizemos algo do tipo “Você não deve comer tanta carne vermelha” estamos em geral expressando o que Kant – filósofo alemão do século XVIII – chamou de “conselho de prudência”. Nos conselhos de prudência estamos lidando, em geral, com meios para alcançar determinados fins (expressos ou não numa frase condicional). A idéia é: “se você quiser cuidar bem de sua saúde, não deve comer tanta carne vermelha”. O conseqüente (a prescrição ou a avaliação) perde o sentido se o antecedente não se aplicar.
Quando dizemos algo do tipo “Não fica bem usar este vestido naquela reunião” estamos em geral expressando uma norma ditada pelo uso e costume (como é o caso das normas relativas à moda, em particular, ou das normas de etiqueta, em geral). A idéia é que, dados os usos e costumes das pessoas que vão comparecer à reunião em questão, esse tipo de vestido vai ser percebido como inapropriado – talvez por ser muito decotado, ou por não ter mangas, ou por ser muito curto, ou por ser muito justo, ou por ser estampado, ou por ter uma cor muito viva… (Algumas igrejas possuem placas, na entrada, proibindo a entrada de mulheres com vestidos com algumas dessas características – ou, pelo menos, tinham, numa época em que usos e costumes eram mais respeitados).
Quando dizemos algo do tipo “É proibido estacionar aqui nesta rua” estamos em geral expressando uma norma ditada por alguma lei. Alguma instância, com autoridade suficiente para tomar decisões desse tipo, determinou que não se deve (permite) estacionar neste local.
Por fim, quando dizemos algo do tipo “É errado trair a confiança do parceiro da gente” estamos em geral expressando uma norma tipicamente moral: é moralmente errado trair a confiança do parceiro da gente.
É com esse último tipo de norma que estarei me ocupando no que segue: a norma moral.
3. O Discurso Moral
Fica evidente, à luz do exposto, que as normas morais, com base nas quais fazemos prescrições ou avaliações morais, são apenas uma sub-categoria dentro de uma categoria mais ampla, que inclui, além das normas morais, normas que são apenas conselhos de prudência, normas baseadas em usos e costumes (como as relativas à moda e à etiqueta), e normas de natureza legal (fundadas na lei).
Normas que são conselhos de prudência são sempre condicionais. Elas determinam que uma conduta é necessária ou recomendável SE você deseja alcançar determinado objetivo. Se você não quiser alcançar aquele objetivo, elas perdem o seu sentido.
Normas baseadas nos usos e costumes determinam que uma conduta é necessária ou recomendável dentro de um dado contexto definido pelos usos e costumes (admitidamente convencionais) geralmente aceitos pelo grupo social – algo, hoje em dia, um pouco complicado, exceto em contextos muito bem determinados. No tocante a roupas e afins, por exemplo, certas denominações evangélicas ou certos grupos dentro da Igreja Católica exigem, de seus membros, que se vistam de determinada maneira, ou (no caso de mulheres) proíbem que cortem o cabelo ou que entrem na igreja de cabeça descoberta. No tocante a etiqueta, propriamente dita, certos códigos tradicionais ainda são observados em alguns eventos formais. Fora disso, na sociedade em geral, qualquer coisa parece valer hoje em dia.
Normas fundadas na lei (lei positiva, para não confundir com o que alguns chamam de lei natural) determinam que uma conduta é necessária ou recomendável com base na livre vontade ou no alvedrio e, portanto, no arbítrio do legislador.
Normas consideradas morais, porém, tendem a ter, na opinião dos que as adotam, uma força ou um peso maior. Não são, como os conselhos de prudência, apenas meios de alcançar determinados fins que se pode desejar alcançar ou não. Não são, como as normas ditadas pelos usos e costumes, totalmente convencionais, dependendo dos usos e costumes dos diversos grupos sociais nas diferentes épocas. Não são, como as leis positivas, dependentes da livre vontade, do alvedrio e, por conseguinte do arbítrio do legislador. Acredita-se, em geral, que as normas morais têm uma autoridade maior do que a que deriva do expediente, do uso e do costume, ou da legislação.
III. AS NORMAS MORAIS
A autoridade maior das normas morais, com base nas quais fazemos nossas prescrições e avaliações morais, parece estar relacionada ao fato de que elas não são percebidas como convencionais ou arbitrárias, mas, sim, como objetivamente válidas.
A dificuldade tem sido determinar quais são os critérios objetivamente válidos que nos permitem distinguir:
* de um lado, as condutas que são objeto da moralidade – e, portanto, podem ser moralmente certas (e, portanto, obrigatórias) ou moralmente erradas (e, portanto, proibidas) – das condutas que são moralmente indiferentes; e,
* de outro lado, dentro das condutas que são objeto da moralidade, aquelas que de fato são moralmente certas (e, portanto, obrigatórias) das que, de fato, são moralmente erradas (e, portanto, proibidas).
Como se pode ver, há dois critérios aqui.
Um é o critério de ação moral (no sentido genérico, que inclui tanto o moralmente certo como o moralmente errado), vis-à-vis a ação que é moralmente indiferente.
O outro é o critério de ação moralmente certa, que nos permite determinar o que é moralmente certo vis-à-vis o que é moralmente errado.
Nessa busca por critérios objetivamente válidos de ação moral (no sentido genérico) e de ação moralmente correta tem havido, historicamente, várias correntes.
1. A Vontade Divina como Critério de Moralidade
Para alguns, a autoridade das normas morais é tida como tão elevada que eles atribuem sua origem à vontade da divindade (ou de uma divindade, caso se acredite existir mais de uma).
Neste caso, o simples fato de Deus (ou um deus) haver se manifestado sobre alguma questão de conduta já a coloca dentro do reino da moralidade (no sentido genérico). O teor específico da manifestação divina, se favorável ou contrário a uma determinada conduta, determina se a conduta em questão deve ser vista como moralmente certa e, portanto, obrigatória, ou moralmente errada, e, portanto, proibida.
No Judaísmo e no Cristianismo a fonte da moralidade é tida como a vontade da divindade máxima judaico-cristã: YHWH, Jeová, ou o “Deus Pai” dos cristãos. Essa vontade foi expressa, segundo as duas religiões, acima de tudo no Decálogo – os Dez Mandamentos. O Cristianismo, é verdade, tem uma relação mais ambígua em relação aos Dez Mandamentos, porque há manifestações no Novo Testamento (atribuídas a Jesus, tido como o “Deus Filho”) que parecem contrastar a chamada “lei dos judeus”, ou a “velha lei”, como uma nova lei (“Ouvistes o que foi dito aos antigos… Eu, porém, vos digo…”). No geral, porém, a posição cristã tem sido favorável à aceitação da dita “lei dos judeus”, com o acréscimo de algo às vezes chamado de Lei Áurea, expressa de forma tanto positiva quanto negativa: fazer para com os outros aquilo que se deseja que os outros nos façam, e não fazer para com os outros aquilo que não se deseja que nos façam.
Em relação à interpretação das normas morais como expressões da vontade divina, há uma discussão interessante na história da ética (a ética sendo a reflexão filosófica sobre a moralidade) em que se levanta o seguinte dilema:
* ou as condutas proibidas pelos Dez Mandamentos (por exemplo) são moralmente erradas porque Deus as proíbe (mala quia prohibita);
* ou Deus as proíbe porque as condutas citadas nos Dez Mandamentos são moralmente erradas (prohibita quia mala).
Na primeira hipótese, parecemos nos livrar do arbítrio humano apenas para cair no arbítrio divino, visto que qualquer coisa que Deus proíba, ainda que absurda, tem de ser considerada moralmente errada, e qualquer coisa que Deus determina, ainda que absurda (como o sacrifício de Isaque por seu pai, Abraão), tem de ser considerada moralmente certa.
Na segunda hipótese, se Deus proíbe determinada conduta apenas porque ela, em si, é moralmente errada, é forçoso reconhecer que existe um critério moral fora da divindade que até o próprio Deus tem de observar – e nesse caso poderíamos recorrer a ele, sem precisar invocar a vontade divina…
Na história da ética pode-se verificar uma clara tendência na direção de evitar o arbítrio – tanto o humano como o divino. Assim sendo, a idéia de que determinadas condutas são moralmente erradas apenas porque Deus houve por bem proibi-las, e outras são moralmente certas apenas porque Deus houve por bem exigi-las, sem entrar no mérito das condutas em si, parece caminhar na direção oposta dessa tendência de fugir do arbítrio.
A alternativa mais aceitável para as pessoas que se recusam a admitir o arbítrio, ainda que divino, como critério do que devem ou não fazer no plano moral, é postular a existência de um critério de moralidade extra-divino que, caso se deseje manter dentro de uma visão religiosa do mundo, seria também supra-divino: até Deus teria de respeitá-lo ao formular os seus mandamentos.
A grande questão, porém, é: qual seria esse critério?
As duas principais correntes alternativas à vontade divina como critério de moralidade que têm procurado preservar um critério objetivo de moralidade são as que se referem ao Sentido Moral e à Razão como critérios.
2. O Sentido Moral como Critério da Moralidade
Conforme a primeira dessas duas correntes, nós, seres humanos, possuímos um sentido moral (chamado por alguns de consciência) que nos permite apreender de forma direta e imediata (como se fosse através de um sentido) não só quais condutas são morais (no sentido genérico) mas, também, e principalmente, quais condutas são moralmente certas (e, portanto, moralmente obrigatórias) e quais são moralmente erradas (e, portanto, moralmente proibidas). Percebemos que algumas condutas são moralmente certas e outras moralmente erradas com a mesma força, e da mesma forma direta e imediata, que percebemos que determinados objetos, dados à percepção (isto é, aos sentidos, digamos, não morais), têm determinadas características.
Há dois grandes problemas com essa sugestão, e eles se relacionam a dois fatos.
* Primeiro, algumas pessoas simplesmente se recusam a reconhecer que possuem o mencionado sentido moral.
* Segundo, pessoas que afirmam possuir o referido sentido moral discordam frontalmente sobre o que é moralmente certo e o que é moralmente errado…
Esses problemas têm levado a maior parte dos filósofos da moralidade (filósofos que fazem da ética a sua especialidade) a rejeitar essa sugestão.
3. A Razão como Critério de Moralidade
Conforme a segunda das duas correntes, nós, seres humanos, possuímos, através de nossa razão (que nos diferencia dos demais animais), a capacidade de, refletindo (raciocinando), descobrir quais condutas são morais (no sentido genérico), mas, também, e especialmente, quais condutas são moralmente certas (e, portanto, moralmente obrigatórias) e quais são moralmente erradas (e, portanto, moralmente proibidas). A determinação de que algumas condutas são moralmente certas e outras moralmente erradas não é, neste caso, realizada pela apreensão direta e imediata, como se tivéssemos “um olho moral”: ela é mediada pela nossa razão – pela nossa capacidade de usar a nossa razão para chegar a conclusões desse tipo.
Essa sugestão também enfrenta três problemas.
* Primeiro, algumas pessoas simplesmente se recusam a reconhecer que a razão humana possui a capacidade de justificar nossos julgamentos morais (acerca do que é moralmente certo e do que é moralmente errado).
* Segundo, os filósofos da moralidade não conseguem chegar a um acordo sobre qual seria o critério racional que nos permitiria determinar que condutas são moralmente certas e que condutas são moralmente erradas.
* Terceiro, mesmo entre filósofos da moralidade que concordam a respeito de um determinado critério, há desacordos gritantes sobre a aplicação do critério a condutas específicas.
Só para dar um exemplo, Kant, já mencionado, tido por muitos como o maior filósofo racionalista da moralidade, sugeriu que o critério racional de moralidade tem dois componentes:
a) Uma norma moral tem de ser apreendida pela razão como um imperativo categórico: um dever que se aplica de forma não condicional – em qualquer circunstância, independentemente dos desejos e dos interesses de quem age;
b) A forma de determinar se uma norma moral é um imperativo categórico é o princípio da universalização: se o agente não conseguir desejar, sincera e honestamente, que qualquer pessoa, em qualquer circunstância, independentemente de seus desejos e de seus interesses, aja daquela maneira, então a norma em questão não é um imperativo categórico.
Kant, na verdade, vai ainda mais longe. Sua obsessão com o dever era tão grande que, segundo ele, ainda que uma norma passe o critério racional do imperativo categórico e do princípio da universalização, e, portanto, possa ser considerada, legitimamente, uma norma moral, o agente, ao segui-la, pode fazê-lo de forma não moral – se deixar seus desejos e interesses interferirem na motivação.
Explico. Imaginemos que eu veja uma pessoa muito querida – um filho, digamos – se afogando no mar. Eu não sei nadar direito e, portanto, se for ajudá-lo, posso morrer também. No entanto, eu apreendo, como um imperativo categórico, o dever de tentar salvar o meu filho. Consigo desejar, também, que qualquer pessoa, nas mesmas circunstâncias, fizesse o mesmo com seu filho, independentemente de seus desejos e de seus interesses. Com base nesse raciocínio, arrisco-me e consigo salvar meu filho. Isso me faz extremamente feliz, porque salvar meu filho era o que eu desejava e corresponde aos meus mais legítimos interesses. Mas exatamente por isso, Kant alega que minha ação não teve conotação moral: embora eu a tenha percebido como um dever, decorrente de um imperativo categórico universal, eu não realizei a ação porque era um dever, mas, sim, porque ela correspondia aos meus desejos e interesses – em suma, porque aquela ação me fazia feliz… A moralidade e a felicidade, para Kant, não se conjuminam.
Se o objeto de minha ação, entretanto, fosse, não o meu filho, mas meu pior inimigo, então, para Kant, a ação se revestiria do mais nobre caráter moral, porque eu teria realizado o meu dever, mesmo sendo ele contrário ao meu desejo e aos meus interesses – mesmo que, após realizá-lo, eu não me sentisse feliz (ou até me sentisse menos feliz, porque, no fundo, eu desejava que meu inimigo morresse…)
Essa moralidade racional altruística de Kant é muito bem recebida em círculos cristãos – mas muitos outros filósofos racionalistas a condenam enfaticamente.
4. A Maximização da Felicidade como Critério de Moralidade
Dentre os que criticam a moralidade racional altruística de Kant estão os chamados utilitaristas. Em vez de considerar a moralidade como relacionada ao dever (“imperativo categórico”) apreendido racionalmente, eles defendem a tese de que o que torna uma ação moral ou imoral são suas conseqüências – na verdade, um tipo específico de conseqüência. Virando Kant de cabeça para baixo, eles afirmam que uma ação é moral se ela maximiza a felicidade: produz a maior felicidade do maior número de pessoas.
Para aqueles que acham essa formulação meio vaga, os utilitaristas do século XIX procuraram mostrar que o critério da maximização da felicidade era um critério racional e objetivo porque existiriam fórmulas que permitiriam determinar, em um dado contexto, qual a ação que produziria a maior felicidade do maior número de pessoas. Na verdade, alguns utilitaristas gastaram grande energia definindo as regras de um suposto “cálculo felicífico”…
Conquanto possa parecer atraente optar por um critério de moralidade que leve em conta as reais conseqüências de nossas ações, e não apenas suas intenções ou seus motivos, e embora se possa admitir que o apelo à felicidade dos utilitaristas seja muito mais atraente do que o anti-felicismo kantiano, há problemas com essa proposta, e eles são principalmente de dois tipos:
Primeiro, a felicidade parece ser algo muito pessoal, impossível de generalizar, a não ser em níveis de abstração muito elevados. Pode-se arriscar a dizer que feliz é a pessoa que realiza seus projetos de vida. Mas projetos de vida são, talvez, uma das coisas mais variadas que existem… Mesmo que se declare que moral é a ação que permite ao maior número de pessoas realizar seus projetos de vida, a coisa continua complicada, porque projetos de vida são não só variados, mas algumas variedades de projetos de vida são o que muitos gostariam de chamar de imorais…
Segundo, ainda que a felicidade não se caracterizasse por ser pessoal, e fosse possível definir a felicidade de maneira objetiva, é questionável que fosse prático, ou mesmo possível, construir um “cálculo felicífico”. A ação dos economistas de plantão brasileiros que diariamente defendem a queda do valor do real frente ao dólar, é moral ou não? É imaginável englobar, na análise da moralidade dessa ação, todas as suas conseqüências? A queda do valor do real frente ao dólar pode melhorar exportações brasileiras, e, assim, tornar mais felizes uns poucos brasileiros exportadores e aqueles a quem eles empregam, mas prejudicar as exportações da Índia e da China, e, assim, tornar menos feliz, teoricamente, quase a metade do mundo… Complicado!
5. A Vontade da Sociedade como Critério de Moralidade
Diante dessas (e outras) dificuldades, alguns filósofos da moralidade simplesmente abandonaram a busca de um critério objetivo de moralidade. A moralidade é, segundo eles, irremediavelmente convencional, e, portanto, arbitrária, mas não cabe ao indivíduo determinar o que é moral (no sentido genérico) e o que não é, e, dentro das ações que são morais (no sentido genérico), quais são moralmente certas (e, por conseguinte, obrigatórias) e quais são moralmente erradas (e, por conseguinte, proibidas). Para eles, esse papel cabe à sociedade.
Uma dificuldade com esse critério é que ele torna a moralidade simplesmente uma parte do discurso prescritivo-normativo baseado nos usos e costumes. Nada parece diferenciar o discurso moral, neste caso, de outras modalidades do discurso prescritivo-normativo baseado nos usos e costumes que, em outras interpretações da moralidade, seriam não-morais.
Os defensores desse critério argumentam que, das normas baseadas em usos e costumes, umas são mais importantes do que as outras – e que as normas morais seriam as consideradas mais importantes nessa categoria.
Uma outra dificuldade com esse critério, essa mais problemática ainda do que a anterior, é a seguinte. Diferentes sociedades, na mesma época ou em épocas diferentes, ou até a mesma sociedade, em épocas diferentes, possuem usos e costumes que diferem bastante uns dos outros – chegando até a contradizer uns aos outros.
Existem, por exemplo, grupos sociais (geralmente tribos indígenas mais primitivas) que não hesitam em matar os inimigos, até mesmo com requintes de crueldade – havendo aquelas que, tendo-os matado, os cozinham e comem (e algumas, pelo que consta, que até mesmo os matam cozinhando-os vivos).
Existem, em outro exemplo, grupos sociais (especialmente nos países de religião muçulmana) que não hesitam em condenar à morte, em geral por apedrejamento, a mulher adúltera ou mesmo a mulher solteira que se envolve em atividade sexual – não condenando, e até mesmo tendo em alta conta, o homem que se comporta dessa forma.
No mesmo espírito, existem grupos sociais (especialmente africanos de cultura muçulmana) que removem, em cirurgia primitiva, o clitóris das meninas que entram na puberdade (clitoridectomia), e que até mesmo costuram sua vulva (infibulação), deixando apenas um pequeno orifício para passagem da urina e do sangue menstrual, para impedir que sintam desejo sexual ou que, sentindo-o, ainda que desclitorizadas, não possam consumá-lo.
Todas essas ações – assassinato e canibalismo dos inimigos, morte por apedrejamento da mulher adúltera ou que, solteira, engaja em atividade sexual, clitoridectomia e infibulação – não fazem parte dos usos e costumes das sociedades ocidentais.
O que deve um ocidental que aceita a tese de que a vontade da sociedade é o critério de moralidade deve dizer acerca desses usos e costumes que sua sociedade não pratica? Tem ele o direito de criticá-los, do ponto de vista moral? Dificilmente, pois se, para ele, o critério de moralidade é a vontade da sociedade, e os grupos sociais que exibem essas práticas as consideram normais, perfeitamente aceitáveis, e até mesmo laudatórias, então um ocidental que aceita a tese de que a vontade da sociedade é o critério de moralidade deve admitir que essas práticas são moralmente corretas naqueles grupos sociais.
Isso indica que a tese em questão, de que a vontade da sociedade é o critério de moralidade, implica uma outra tese filosófica importante, e altamente questionável pelos que não aceitam esse critério: a tese do relativismo moral. Segundo essa tese, o que é moralmente certo ou moralmente errado é sempre relativo a um determinado grupo social, vivendo numa determinada época. Numa mesma época, como a atual, algo (como as ações constantes dos exemplos fornecidos atrás) pode ser moralmente errado na sociedade ocidental e moralmente certo nos grupos sociais indicados.
Essa aceitação do relativismo moral coloca certos grupos, às vezes, em posição quase dilemática. Darei dois exemplos.
Feministas ocidentais, que defendem com unhas e dentes os direitos civis das mulheres, certamente vêm com profunda revolta o apedrejamento de mulheres que engajam em sexo fora do matrimônio e a clitoridectomia e infibulação das mulheres púberes. No entanto, se aceitam a tese de que a vontade da sociedade é o critério de moralidade, ficam impedidas de criticar essas práticas do ponto de vista moral – porque são forçadas a reconhecer que, naqueles grupos sociais, essas práticas são moralmente corretas!
Tornou-se comum, hoje em dia, que os sindicatos de países desenvolvidos, como os Estados Unidos, exerçam pressão sobre o governo americano, e até mesmo sobre empresas multinacionais de origem americana, para que não façam negócios com países que fazem uso do trabalho infantil. Os sindicalistas americanos estão, naturalmente, defendendo os seus interesses: querem que as empresas multinacionais não transfiram para países em desenvolvimento as suas fábricas, e, conseqüentemente, os seus empregos. Mas, se defendem a tese de que a vontade da sociedade é o critério de moralidade, não podem criticar, do ponto de vista moral, as sociedades em que o trabalho infantil é considerado não apenas aceitável como normal.
Parece que as feministas ocidentais e os sindicalistas de países desenvolvidos que desejam criticar, do ponto de vista moral, as práticas mencionadas precisam abandonar a tese de que o critério da moralidade é a vontade da sociedade.
6. A Natureza Humana como Critério de Moralidade
A tese que vou propor e defender aqui é uma aplicação especial da razão como critério de moralidade. Só que esta tese é muito diferente da de Kant – na verdade, ela é o oposto da de Kant – e da dos utilitaristas.
A tese que vou propor e defender é, além de racionalista, naturalista. Poucos autores, hoje, adotam uma teoria da moralidade de base naturalista. Mas vou nadar contra a corrente – inspirando-me em Ayn Rand, filósofa da qual tomo emprestada a maior parte dessas considerações.
Minha teoria racional-naturalista da moralidade parte do princípio de que a moralidade não é algo imposto aos indivíduos por Deus ou pela sociedade: a moralidade é algo que é derivado de nossa própria condição e natureza humana – e que, dada a sua natureza, seres humanos devem se pautar pela racionalidade. Por isso essa teoria é racional-naturalista.
A. Natureza Humana, Liberdade, Razão e Moralidade
Nós, humanos, somos seres não só mortais mas facilmente perecíveis. Porque podemos perdê-la tão facilmente, e porque ela é condição de possibilidade para tudo o mais que queiramos ser ou fazer, nossa vida é o nosso bem maior. Mas a vida nos é um bem não só enquanto sobrevida (sobrevivência à morte) – mas pelas possibilidades de realização pessoal (i.e., felicidade) que ela nos oferece. Podemos escolher o que vamos ser, o que vamos fazer de nossa vida. Temos liberdade de escolha – e o que vamos ser, o que vamos fazer de nossa vida, depende dessa liberdade. E somos racionais – somos capazes de usar nossa razão para definir os nossos projetos de vida e, tendo definido o que vamos fazer de nossa vida, para buscar os meios necessários, entre eles o desenvolvimento de nossas competências e habilidades, para transformar esse projeto de vida em realidade. (A razão humana não é puramente instrumental, agindo apenas no plano dos meios: ela pode, e deve, atuar também no plano dos fins.)
É evidente a qualquer um que reflete sobre a vida humana que certas condutas contribuem para a preservação de nossa vida e para a realização de nosso projeto de vida – e que outras condutas levam para a destruição de nossa vida e/ou tornam impossível a realização de nosso projeto de vida. A primeira categoria de conduta compreende o que é moralmente certo; a segunda, o que é moralmente errado. O moralmente certo envolve um imperativo categórico de realização pessoal (felicidade): meu primeiro dever moral é a busca de minha realização pessoal, com base em meus valores – ou, em outras palavras, a minha felicidade. Aqui já se vê a natureza anti-kantiana desta proposta.
Sem uma moralidade desse tipo perecemos (em cujo caso tudo se acaba) ou nos tornamos parasitas (que têm de ser cuidados, ou mantidos vivos, por terceiros). Em nenhuma dessas duas hipóteses seremos capazes nossa realização pessoal com base num projeto de vida próprio construído em cima de nossos valores.
B. O Caráter Naturalista da Moralidade
É importante destacar alguns elementos dessa proposta.
Primeiro, o seu naturalismo. Essa visão da natureza da moralidade parte do axioma de que a moralidade é um imperativo da natureza humana. O ser humano não sobrevive “naturalmente” – nem, muito menos, realiza seu projeto de vida “naturalmente”. Para poder sobreviver e, oportunamente, definir e realizar seu projeto de vida, o ser humano requer ação humana – não qualquer tipo de ação, mas ação condizente com sua natureza.
Quando ainda criança, e, portanto, ainda incompetente e dependente, o ser humano, para sobreviver, necessita da ação de outros seres humanos. Felizmente, o ser humano é dotado de uma incrível capacidade de aprender, e, por isso, logo vai adquirindo competências que, no devido tempo, vão torna-lo um adulto competente – e, por conseguinte, autônomo, por não mais depender, para sua sobrevivência e realização pessoal, da ação de outrem. Uma vez adulto, o ser humano normal (dentro da curva de sino que representa a normalidade) é, em maior ou menor grau, capaz de cuidar de si próprio, mantendo-se vivo, e, além disso, de procurar alcançar alguma forma de realização pessoal (felicidade).
É evidente que nossa capacidade de sobrevivência e de realização pessoal vai depender de nossa maior ou menor capacidade de aprender e das oportunidades que tivermos de aprender. Em outras palavras: é a educação que nos torna mais ou menos capazes de sobreviver e de alcançar a felicidade. E a educação é voltada para o desenvolvimento humano, vale dizer, para a construção de um adulto competente e autônomo.
É parte da educação de uma pessoa – talvez a parte mais importante – descobrir, através da experiência, que alguns tipos de ação contribuem para que ela se mantenha viva e favorecem a definição e a realização de seu projeto de vida, e que outros tipos de ação, pelo contrário, conspiram para aniquilar sua vida e para tornar difícil, se não impossível, a definição e a realização de seu projeto de vida.
Essa não é uma questão subjetiva, passível de respostas divergentes, todas igualmente plausíveis. Essa questão é eminentemente objetiva.
C. O Caráter Racionalista da Moralidade
Aqui entramos no segundo elemento dessa proposta: além de naturalista, ela é racionalista.
A razão humana é o nosso principal mecanismo de sobrevivência e realização pessoal. Não somos caracterizadas por ser, dentre os animais, os mais fortes, os mais rápidos, os que têm mais acurados órgãos dos sentidos, os que possuem os instintos mais eficazes e eficientes na luta pela sobrevivência. Somos menores do que elefantes, hipopótamos e rinocerontes, mais fracos do que ursos, menos ferozes do que leões, menos rápidos e ágeis do que leopardos; temos uma visão menos potente do que a das águias, uma audição pior do que a dos cachorros e de vários outros animais; não conseguimos correr como gazelas, saltar como alguns macacos, voar como condores, nadar como golfinhos… No entanto, conseguimos subjugar ou dominar todos esses animais.
Por sermos racionais conseguimos inventar tecnologia que nos permite ser mais fortes e mais rápidos do que os mais fortes e mais rápidos animais, voar no espaço mais distante e nadar nas profundezas dos oceanos, ver objetos incrivelmente distantes ou pequenos ou ouvir sons de diferentes tipos, ver até mesmo através da matéria. A mesma razão nos permitiu inventar tecnologia que nos dá prazer, como instrumentos musicais, telas, pincéis e tintas, vários tipos de matéria prima natural ou sintética que se presta à escultura ou à arquitetura, etc.
Nossa razão também nos permitiu inventar uma tecnologia sofisticadíssima – a linguagem conceitual – que nos permite descrever, analisar, organizar, estudar e interpretar a realidade, assim construindo conhecimentos que nos permitem adaptar a realidade, dentro de limites, aos nossos propósitos. A mesma linguagem nos permite aceder às informações acerca dos conhecimentos acumulados pela humanidade, permitindo que aprendamos, não só com a nossa experiência, mas com a experiência dos outros. Animais irracionais, quando aprendem, aprendem por tentativa e erro próprio. Seres racionais podem aprender com as tentativas e os erros dos outros… Ainda a mesma linguagem nos permite nos comunicar uns com os outros, exprimir nossos pensamentos, nossas emoções, nossos desejos, nossas intenções, nossas decisões.
Dado o fato, inegável, de que a natureza não provê para o ser humano uma forma automática de sobrevivência, mas lhe dá capacidade de usar sua razão como principal mecanismo de sobrevivência, cabe a cada ser humano adulto, como tarefa primeira, sustentar sua vida através do seu próprio esforço. Para se manter vivo, o ser humano precisa agir: se não o fizer, morre, deixa de existir (a menos que alguém se disponha a sustenta-lo). A vida humana só se mantém através de um processo de ação que continuamente a sustenta. Se essa ação não é da própria pessoa, ela só sobrevive se outros agirem por ela, em seu favor – em cujo caso se torna permanentemente dependente, parasita.
O ser humano, portanto, se confronta, a cada instante, com a mais genuína de todas as decisões: a de continuar vivendo ou perecer. É por isso que precisa de um código de valores para orientar suas decisões e ações.
D. Moralidade e Valores
Aqui chegamos ao terceiro elemento dessa proposta: sua ligação com os valores.
Ayn Rand nos mostrou que um valor é algo que lutamos para ganhar ou manter.
Existem valores que são instrumentais. Nesse caso, o algo que lutamos para ganhar ou manter não possui valor intrínseco, em si mesmo, mas apenas porque é meio para que alcancemos algo que possui valor intrínseco.
Não é concebível que todos os nossos valores sejam instrumentais e que não haja um valor intrínseco supremo, que é valioso em si mesmo.
O valor intrínseco supremo é aquele valor para o qual todos os outros valores são meios. A sua vida é, necessariamente, o valor supremo do ser humano, pois ela não só que permite que os meios de alcançar esse valor supremo se tornem valores (intermediários), mas, sem ela, todo valor deixa de existir.
A noção de valor deriva, em última instância, do fato de que a nossa vida é perecível e frágil. Se fôssemos imortais e indestrutíveis, não haveria valor, como aqui definido.
O valor supremo do ser humano é, portanto, sua própria vida. Sem ela não há nenhum outro valor. Tudo o mais que tem valor para o ser humano tem valor intermediário, derivativo. Sem a vida nada mais existe para o ser humano, nada mais pode lhe ter valor. A vida é, portanto, o padrão de valor: aquilo que contribui (como meio) para sua manutenção, tem valor (intermediário, subsidiário).
A vida do ser humano (como a de qualquer outro organismo) depende, do ponto de vista material, de haver suficiente combustível (alimentação) para que ele sobreviva, mas depende, também, do ponto de vista do organismo, de ele tomar as ações necessárias para se apropriar desse combustível e fazer dele uso apropriado.
Em relação a muitos organismos, esse processo é mais ou menos automático: as ações necessárias para se apropriarem do combustível necessário à manutenção de sua vida são tomadas de maneira instintiva, mais ou menos automática. No caso de seres humanos, porém, esse automatismo não existe. Diz Ayn Rand: “Um instinto de auto-preservação é precisamente o que o homem não possui. Um ‘instinto’ é uma forma inerrante e automática de conhecimento” (For the New Intellectual, p.121). O ser humano não toma, automática ou instintivamente, as ações necessárias para sobreviver: ele tem de escolher como agir, ele tem de conscientemente decidir. Se não fizer isso, morre. O homem, para sobreviver, tem de conscientemente enfrentar um processo de escolha que o leva a decidir quais ações tomar para sobreviver.
Por causa disso, porque o homem precisa conscientemente decidir como agir para poder sobreviver, ele precisa de um código de valores para orientá-lo em suas decisões. O homem tem de escolher mediante um padrão de valor. Uma escolha racional aponta na direção de um padrão e de um código de valores que lhe permitem sustentar sua vida. Uma escolha irracional aponta na direção de um padrão e de um código de valores que impede ou mesmo destrói a vida. Diz Ayn Rand: “Tudo o que é próprio à vida de um ser racional é o bem; tudo aquilo que a destrói é o mal” (For the New Intellectual, p.122).
O homem pode, portanto, decidir não escolher o padrão objetivo de valores: a vida. Nesse caso, suas ações levarão (no devido tempo) à sua destruição. “Vida ou morte é a única alternativa fundamental do homem. Viver é seu ato básico de escolha. Se ele escolhe viver, uma moralidade racional lhe dirá que princípios de ação são necessários para implementar sua escolha. Se ele não escolhe viver, a natureza se encarrega de destruí-lo” (Ayn Rand, Philosophy: Who Needs It?, p.99).
Por que é que a moralidade necessária para a promoção da vida do ser humano deve ser considerada não só uma moralidade natural mas, também, como uma moralidade racional?
Porque, para que possa elaborar um código de conduta, o homem precisa conhecer a natureza do mundo que o cerca, a sua própria natureza e a natureza de seus próprios meios de cognição: isto é, ele precisa responder às questões colocadas pela metafísica e pela epistemologia, pois doutra forma não poderá saber o que fazer (Cf. Ayn Rand, Philosophy: Who Needs It?, p.3).
O instrumento de cognição do homem é sua razão: é através dela que ele integra os elementos da percepção e, assim, vem a conhecer o mundo que o cerca. Isso significa que a moralidade não está fundamentada, como acreditam muitos filósofos, no sentimento, nas emoções, na intuição, nos costumes sociais, tampouco na noção de utilidade ou de dever. Ela está fundamentada na razão.
Isso significa, além do mais, que a moralidade não é algo imposto sobre o homem porque ele vive em sociedade: “Vocês alardeiam que a moralidade é social, e que o homem não precisaria da moralidade em uma ilha deserta. É numa ilha deserta que ele mais precisaria dela! Deixe que ele pretenda, em um tal lugar, quando não há [ninguém que possa cuidar dele e] nenhuma vítima que ele possa espoliar, que rocha é casa, que areia é vestimenta, que alimento vai cair em sua boca sem causa e esforço, que ele vai ter uma colheita amanhã devorando seu estoque de sementes hoje… — e a realidade o varrerá da face da terra, como ele merece! A realidade lhe mostrará que a vida é um valor a ser comprado, e que o pensamento é a única moeda suficientemente nobre para adquiri-lo” (For the New Intellectual, p.127).
E. A Objetividade dos Valores
Ayn Rand também esclarece, nesse contexto, a noção de “valor objetivo”.
Segundo ela, há, em essência, três escolas de pensamento sobre o natureza dos valores: as que vêem valores como, respectivamente, intrínsecos, subjetivos, e objetivos.
“A teoria do valor intrínseco mantém que o valor é inerente a certas coisas ou ações, enquanto tais, irrespectivamente de seu contexto e de suas conseqüências, independentemente do benefício ou injúria que possam causar aos atores e sujeitos envolvidos” (Ayn Rand, “What is Capitalism?”, in Capitalism: the Unknown Ideal).
“A teoria do valor subjetivo mantém que o valor não tem relação com os fatos da realidade, que ele é mero produto da consciência do homem, criado por seus sentimentos, desejos, ‘intuições’, caprichos” (Ayn Rand, “What is Capitalism?”, in Capitalism: the Unknown Ideal).
A primeira dessas duas teorias mantém que o valor reside em alguma lugar da realidade, independente da consciência do homem; a segunda, que o valor reside na consciência do homem, independente da realidade.
“A teoria do valor objetivo, por sua vez, mantém que o valor não é nem um atributo das ‘coisas em si mesmas’ nem dos estados emocionais do homem, mas uma avaliação dos fatos da realidade segundo um padrão racional de valor. (Racional, neste contexto, quer dizer: derivado dos fatos da realidade e validado por um processo de razão). A teoria objetiva mantém que o valor é um aspecto da realidade em relação ao homem — e o valor tem de ser descoberto, não inventado, pelo homem” (Ayn Rand, “What is Capitalism?”, in Capitalism: the Unknown Ideal).
A noção de valor pressupõe que exista alguém que possa agir para ganhar ou manter alguma coisa, ou seja, que existam seres que possam se comportar de forma a atingir um alvo, uma meta.
Essa noção de valor pressupõe, também, que esse ser confronte alternativas, que existam várias e diferentes coisas que ele pode desejar ganhar ou manter. “A moralidade tem que ver somente com a esfera da liberdade humana, somente com aquelas ações que estão abertas à escolha do homem” (Ayn Rand, Entrevista à Playboy).
Isso significa que apenas seres vivos podem ter valores, pois somente eles, na natureza, podem agir para alcançar alvos e metas, e somente eles são confrontados por alternativas. Dos seres vivos, apenas o homem pode ter um código de valores, e, conseqüentemente, uma moralidade.
F. Moralidade e Egoísmo
Por fim, o sexto elemento dessa proposta: uma moralidade naturalista-racionalista, calcada numa teoria de valores objetivos, é, necessariamente, uma moralidade egoísta.
Ser feliz, i.e., ser capaz de realizar um projeto de vida fundamentado em valores objetivos, que levam não só à sustentação da vida, mas também à realização pessoal, é o objetivo maior e supremo do ser humano. O “fim principal” do homem não é “glorificar a Deus e goza-lo para sempre”, como diz o Catecismo Maior da Igreja Presbiteriana do Brasil (com o que fazem ecos vários outros catecismos e credos). O fim principal do homem é ser feliz, alcançar a realização pessoal – algo que só se dará se seu projeto de vida for alicerçado em valores objetivos.
Essa visão do objetivo maior do ser humano é eminentemente egoísta: o ponto focal de minha vida é a minha felicidade, construída em cima de valores objetivos.
Se cada ser humano tiver esse objetivo, não há necessidade alguma de altruísmo: nossa felicidade será nossa própria construção. Só precisarão ser ajudados – e o serão voluntariamente, por uma natural solidariedade humana para com aqueles que a natureza ou a sorte desfavoreceu – aqueles que, por alguma falha ou carência, decorrente de fatores hereditários ou ambientais, não importa – não tiverem a menor condição de cuidar de si próprios.
Em Salto, 28 de fevereiro de 2006
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