Esquerda e direita – mais uma vez

A Folha de S. Paulo de 26 de fevereiro de 2006 (domingo de Carnaval) pergunta, na seção Tendências: "Ainda faz sentido usar os termos direita e esquerda para designar posições políticas?". A Profa. Maria Hermínia Tavares de Almeida, agora da USP, antes da UNICAMP, responde afirmativamente – e o faz, em grande medida, nas linhas já sugeridas por Norberto Bobbio, em seu útil livrinho, Esquerda e Direita.

Concordo quase que inteiramente com a posição da professora. Só faço uma ressalva ao final – mas essa ressalva é, para mim, fundamental. 

Vou resumir aqui as principais teses enunciadas pela Profa. Maria Hermínia para, depois, destacar minha ressalva. Não procurarei distinguir minha posição da posição da professora, exceto quando absolutamente necessário. As palavras serão sempre minhas, exceto quando coloca-las entre aspas, em cujo caso se trata de uma citação.   

1) A Profa. Maria Hermínia responde afirmativamente à questão da Folha.  Os termos "esquerda" e "direita" continuam úteis, hoje, como, de resto, sempre o foram, para permitir que indivíduos e grupos se identifiquem ("auto-rotulem") e se posicionem em relação ao espectro de diferentes visões e posicionamentos políticos, especialmente sobre o papel do estado (governo) na sociedade.  

“As palavras esquerda e direita continuarão válidas [enquanto rótulos] enquanto houver quem se proclame de esquerda ou de direita”, afirma a professora. Se elas esclarecem ou tornam ainda mais confuso o posicionamento político face às alternativas disponíveis, depende, naturalmente, de se “atribuir[em] conteúdos mais precisos a ambas as palavras”.

2) É forçoso reconhecer, observa a professora, que há, na esquerda, além de uma tendência que se pretende democrática, uma tendência que não faz questão nenhuma de parecer democrática (os stalinistas, Fidel, por exemplo) — tendência esta, é bom que se acrescente, que era até pouco tempo (antes do colapso do comunismo, por exemplo) inegavelmente majoritária. Se àqueles que se opõem à esquerda se aplica o rótulo de direita, como faz sentido, pelo menos para que as coisas fiquem representadas espacialmente, num espectro), também ali existe uma tendência claramente democrática (a tendência liberal de von Mises, von Hayek, Friedman, Rand — entre autores do século XX -– e de Thatcher e Reagan, entre políticos da segunda metade do século XX) e uma tendência conservadora (com várias sub-tendências e vários matizes, alguns claramente autoritários e não-democráticos). 

3) As tendências democráticas da esquerda e da direita estão hoje mais próximas uma da outra do que já estiveram do passado. É bom que se acrescente, porém, que, nos Estados Unidos, até mesmo a direita conservadora convive bem com o jogo democrático, com poucas exceções, como, por exemplo, a KKK e os movimentos que promovem ataques a clínicas que realizam aborto.

4) No entanto, persistem diferenças importantes entre a esquerda e a direita, mesmo em suas tendências democráticas — e o resumo que a Profa. Maria Hermínia faz delas é basicamente correto:  

4a) "A direita democrática [o liberalismo], que defende [as liberdades individuais e] a igualdade civil e política, considera naturais e aceitáveis as desigualdades produzidas pela economia de mercado, aposta na capacidade dos indivíduos de prover a própria subsistência e quer reduzir ao mínimo a atuação dos governos sobre o mercado, além de rever o sistema de proteção social erigido ao longo do século 20." Perfeita descrição. Os colchetes indicam acréscimos meus à citação.

4b) "A esquerda democrática concebe a igualdade de maneira mais ampla [substantiva]. Ela deve comportar não só garantias individuais e direitos políticos mas também direito a bens e serviços que assegurem aos cidadãos, no curso da sua vida, condições decentes de existência e acesso a oportunidades e recursos sem discriminações. Defende a economia de mercado, mas sabe de suas imperfeições e das conseqüências socialmente perversas que elas produzem. Aceita a competição, mas sabe que é necessário equalizar as condições em que ocorre." Os colchetes indicam acréscimos meus à citação. Não tenho nada a opor a essa descrição. De que seja essa a intenção da esquerda democrática não tenho nenhuma dúvida. O objetivo declarado da esquerda democrática é, como diz a profa. Maria Hermínia no parágrafo seguinte, "reduzir as desigualdades ao mínimo compatível com a preservação das liberdades individuais e da democracia".  

5) Chego agora ao ponto em que certamente divirjo da Profa. Maria Hermínia – mas a divergência não será explícita, porque a professora não se pronuncia sobre essa questão.

O que a Profa. Maria Hermínia está afirmando é que a esquerda democrática vê como objetivo do estado a promoção do bem-estar material (e, talvez, cultural) da população e, assim, a igualdade substantiva no padrão de vida dos cidadãos.  

A professora fala sobre os objetivos e as intenções da esquerda democrática. Ela não esclarece, porém, até porque provavelmente se inclui, politicamente, na esquerda democrática, que esse objetivo e essa intenção da esquerda democrática, conquanto soem bonitos na teoria, são inatingíveis na prática – e por uma razão muito simples: é simplesmente impossível que um governo "reduza as desigualdades" através da elevação do "bem-estar" e o padrão de vida de uns (os mais pobres), sem violar as liberdades individuais de outros (os mais ricos).

Pode até ser que a violação das liberdades individuais dos mais ricos se faça por processo que, externamente, siga rituais democráticos, como, por exemplo, no caso da implantação, mediante aprovação pela maioria do congresso ou do parlamento, de sistemas de taxação progressiva e de programas de distribuição de renda.  

O problema é que, feito isso, não há como preservar as liberdades individuais daqueles que serão obrigados a, contra a sua vontade, financiar esses projetos de engenharia social. Assim se demole, por impossível, o sonho utópico de uma esquerda democrática.

Ou vejamos.  

A democracia liberal garante a preservação dos direitos individuais à vida e à integridade pessoal, à liberdade (de expressão, de associação, de ir-e-vir) e à propriedade. [A Constituição Americana, por exemplo, considera esses direitos invioláveis, proibindo o Congresso de aprovar legislação que os viole ou restrinja. A Constituição Brasileira afirma esses direitos, mas tergiversa um pouco, como veremos.]

Digamos que em um determinado país o congresso que, em sua maioria, consiste de esquerdistas democráticos, resolve aprovar um sistema de imposto de renda progressiva que taxe as maiores rendas com a alíquota de 75%. Existem sistemas assim. Obviamente, as vítimas desse sistema, aqueles que terão de dar três quartos de sua renda para o governo, vão protestar. Mas o governo não lhes dará ouvidos. Se não pagarem o imposto, o governo agirá contra eles, confiscando sua propriedade e, até mesmo, colocando-os na prisão. Nesse caso, coloca-se de lado a pretensão de democracia e usa-se a força – que é o único trunfo do governo. No caso, usa-se a força para confiscar a propriedade, para violar o direito de a pessoa decidir que destino dá àquilo que recebeu como remuneração de seu trabalho, de seu esforço pessoal, de sua inteligência. Em suma: assalto a mão armada.   

6) A expressão "esquerda democrática" é um oximóron, uma contradição em termos. Qualquer proponente da igualdade substantiva — a igualdade que vai além da igualdade formal — tem de defender, automaticamente, um dos meios de se chegar a essa igualdade. O governo não possui, para efetivar a igualdade substantiva através da melhoria do bem-estar (“welfare”) e do padrão de vida de alguns cidadãos, nem sequer um tostão que não seja tirado de outros cidadãos. Ou esses meios são visivelmente violentos (confisco deslavado de propriedade, etc.) ou eles são disfarçadamente violentos (confisco da propriedade mediante taxação). Não há outra alternativa. Um real dado como bolsa família para algum brasileiro é um real retirado do bolso de outro brasileiro – e retirado a força. 

Não se pode considerar preservação dos direitos individuais da pessoa, não importa que disfarces e embustes se usem, a retirada pela força, de um cidadão, de dinheiro que ele honestamente ganhou, para dar esse dinheiro para os outros, por mais que os outros precisem de dinheiro.

A democracia não é simplesmente uma forma de escolher governantes: a democracia é uma forma de governo que garante aos cidadãos a preservação de seus direitos individuais contra violação por outras pessoas (co-cidadãos ou provenientes de outros países) e pelo próprio governo, mesmo quando as medidas do governo estejam amparadas por amplas maiorias. 

Quando eu sou obrigado a dar dinheiro ao governo para que ele o distribua (“redistribua” é o eufemismo, destinado a gerar a impressão de a primeira “distribuição” foi também feita pelo governo) a quem bem lhe aprouver, para gente que eu nem sequer conheço, e, a bem da verdade, se conhecesse, nunca ajudaria, de livre e espontânea vontade – quando isso acontece, a minha liberdade e o meu direito à propriedade, que são meus direitos individuais básicos, são claramente violados. E se eu tentar resistir a esse confisco, vou preso, ou seja, o meu direito sobre a minha própria pessoa, sobre a minha integridade física, será também violado.

Está aí desnudada a pretensa democraticidade da esquerda que se pretende democrática. 

É impossível haver uma esquerda democrática, quando a esquerda, na melhor (menos pior) das hipóteses, defende uma filosofia robinhoodiana de tirar de quem tem para dar pra quem supostamente não tem. Isso é assalto a mão armada — não importa quanto o beneficiário desse sistema possa precisar. Robin Hood sabia disso. A profa. Maria Hermínia faz de conta que não sabe.

A expressão "esquerda democrática" é um oximóron, uma contradição de termos.  Se é esquerda, a democracia, mais cedo ou mais tarde, sai de férias – ou em exílio permanente. 

Em Salto, 27 de fevereiro de 2006

Deixe um comentário