Educaçao no Norte e no Sul

Participei, na semana passada, de mais um encontro internacional sobre escolas inovadoras – em Seattle, WA, EUA. Representantes de todo mundo estavam presentes, especialmente do Norte: América do Norte (EUA, Canadá, México), da Europa (que também fica ao Norte), e do Norte da Ásia  (Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong). Coloco no Norte os países que estão acima do Equador. Havia, também, representantes do Sul, entre os quais Brasil, Chile e Austrália.

Dentro de menos de duas semanas parto, pelo quarto ano seguido, para Taiwan para uma série de conferências e palestras, exatamente sobre essa temática (escolas inovadoras). Farei até mesmo uma conferência no lançamento da Escola Inovadora de Kaoshiung, no sul da ilha.

Impressiona-me cada vez mais um problema que, ao tempo que me parece importante, é pouco percebido e até mesmo ignorado.

Alunos de escolas de Hong Kong, Taiwan, Cingapura e Coréia do Sul em geral se saem muito bem nos testes internacionais aplicados a alunos no final do Ensino Médio, como o PISA, da OCDE/OECD. Alunos da Finlândia se saem melhor ainda: em regra são os primeiros em todas as categorias (linguagem, matemática, ciências são as principais).

O problema que me impressiona é o seguinte: o alto nível de desempenho dos alunos desses países em testes internacionais coloca um sério risco para esses países: o de não contemplar seriamente a possibilidade de mudanças suficientemente radicais em seus sistemas educacionais. Quanto mais alto é o nível da qualidade atribuído a um dado sistema educacional, tanto menor é a disposição, por parte daqueles envolvidos nele, de contemplar mudanças radicais nesse sistema.

A questão é sempre: "If it ain’t broken, don’t try to fix it" – se não está quebrado, não tente consertar… No Brasil, país com mais tradição em futebol do que em engenharia ou "bricolage", se diz: "Em time que está ganhando não se mexe". Se qualquer equipamento ou sistema está funcionando bem, tentar consertá-lo é um risco muito grande: o sistema pode ficar pior… Quanto mais se percebe um sistema como próximo da perfeição, menos se sente a necessidade de mudá-lo radicalmente.

A menos que o sistema seja percebido como absolutamente perfeito, algo raro, sempre é possível mudá-lo – melhorá-lo, aperfeiçoá-lo. Mas a mudança, nesse caso, em regra não é radical: ela é "piecemeal", "incremental", aos pedacinhos, gradual… Karl Popper era defensor desse tipo de mudança na ordem social, que ele chamava de "piecemeal social engineering". Conservador que era, Popper era avesso a revoluções, embora admitisse mudanças que não colocassem em risco as conquistas já feitas.

Por que considero essa atitude um problema na área da educação para esses países (e também para qualquer país desenvolvido, como o restante da Europa Ocidental, os Estados Unidos e o Canadá)?

Antes de responder, para a área da educação, analisemos algumas outras áreas.
 
Houve época em que se entregava correspondência através do "Pony Express". Os melhores cavaleiros e os melhores cavalos eram usados nesse sistema. Mas o sistema tem um limite. É possível melhorá-lo um pouco, encontrando cavalos mais fortes e velozes e cavaleiros mais hábeis. Mas há um limite na capacidade de um e de outro: cavalos não conseguem correr além de uma certa velocidade. Quando se alcança esse limite, não adianta ficar perdendo tempo com pequenas e graduais melhorias no sistema: chegou a hora de recomeçar do zero.

Um outro exemplo é o barco a vela Clipper. Ele era quase perfeito – na realidade, perfeito, aos olhos de seus criadores. Mas ele tinha uma limitação séria: se não houvesse vento, ele não andava… Não fazia sentido tentar melhorá-lo aqui e ali, em pequenos aspectos. O que era necessário era um novo tipo de navio – que apareceu na forma do  barco / navio a vapor.

(Peguei esses dois exemplos de uma excelente palestra de John-West Burnham, no encontro mencionado).
 
No início do século XIX havia companhias poderosas que se especializavam na venda de gelo para refrigerar alimentos. Não havia refrigeradores elétricos e nem mesmo a gás. Os alimentos eram refrigerados numa com dois compartimentos com porta: embaixo se colocavam os alimentos, em cima se colocava gelo. Esses proto-refrigeradores eram denominados (com pouca criatividade) "ice boxes", caixas de gelo. Funcionavam bem – no inverno, quando havia gelo… No verão, eram um problema – mas um problema que o mercado logo se encarregou de resolver. Nos meses quentes, nos Estados Unidos, essas empresas iam até o norte do Canadá, às vezes próximo da Groelândia, e cortavam grandes blocos de gelo para trazê-los até os Estados Unidos e vendê-los para os possuidores de ice boxes. Toda uma tecnologia de extração do gelo, de isolamento térmico, e de transporte evolui ao redor desse comércio, que foi sendo aperfeiçoado ao longo do termo, a ponto de permitir às empresas que exploravam essa fatia do mercado a exportar gelo até para a Índia. Apenas metade dos blocos de gelo chegavam até lá, mas mesmo assim o empreendimento era lucrativo. Pequenas melhorias aqui e ali permitiam que o negócio florescesse e crescesse. Até, naturalmente, que surgiu a eletricidade e os refrigeradores elétricos que refrigeravam a gás. Os donos das empresas extratoras de gelo não acharam que esse outro negócio fosse matar o negócio deles. Mas matou – enquanto eles tentavam, desesperadamente, melhorar, ou aperfeiçoar, seus métodos de extração do gelo, de isolamento térmico, de transporte… E eles quebraram todos. Morreram, como empresas, porque não souberam mudar na hora certa.

E as máquinas de escrever? As empresas que lideraram o mercado de máquinas de escrever quando a tecnologia era mecânica perderam a liderança quando máquinas de escrever elétricas apareceram. As empresas que lideraram o mercado de máquinas de escrever elétricas perderam a liderança quando as máquinas de escrever eletrônicas (com "margaridas") apareceram. E as empresas que lideraram o mercado de máquinas de escrever eletrônicas não perceberam que os computadores pessoais iriam matar o seu negócio…

E a IBM? Era a maior fabricante de computadores de grande porte (os únicos que havia). Adaptou-se até bem quando o mercado se interessou por computadores de médio porte. Em 1977 apareceram os primeiros computadores pessoais, da Apple, da Radio Shack, da Commodore. A IBM achou que eram meros brinquedos, que não mereciam sua atenção – afinal de contas, ela detinha 75% do mercado de computadores e possuía mais de 400 mil empregados. Três anos depois, começou a ter dúvidas e resolveu fazer um microcomputador, lançado em 1981 – o IBM PC, que virou padrão. Esse computador, que virou sucesso nas mãos da Compaq e outros fabricantes que o clonaram, porque tinha projeto aberto, com partes de mercado, e um sistema operacional feito por outra empresa, a Microsoft, foi colocado no mercado pela IBM sem que ela acreditasse nele! Por não acreditar nele acabou criando concorrentes que quase a mataram: a Microsoft, a Intel, a Compaq, depois a Dell…  Por muitos anos a IBM ainda defendeu a tese de que o PC não seria nada mais do que um terminal inteligente para computadores de grande porte. Quando percebeu seu erro, quase quebrou. Fez "downsize", reduziu o tamanho; fez "reengineering", mudou de negócio… Acabou sobrevivendo, mas como uma empresa menor e totalmente diferente.

Que relevância tem tudo isso para a tese que enunciei no início?

A relevância é a seguinte, e pode ser expressa em duas teses: primeiro, o sucesso é, freqüentemente, o principal fator que impede as instituições de perceber que chegou a hora de mudar; segundo, a melhor hora de mudar é quando as coisas estão indo bem e a mudança pode ser planejada com calma e com cuidado.

Tenho conversado muito com educadores da Finlândia e da Ásia que estão começando a perceber que o sucesso de seus sistemas educacionais nos testes internacionais lhes dá uma sensação de segurança que, entretanto, é uma sensação de falsa segurança… Seus sistemas educacionais estão tendo desempenho superior na formação de pessoas – mas na formação de pessoas para uma realidade que está rapidamente desaparecendo! A Finlândia e a Ásia chegam às melhores posições num sistema educacional projetado e construído para a Segunda Onda (Toffler) – quando várias partes do mundo já fizeram avanços significativos na Terceira Onda! Os alunos desses países são inteligentes e disciplinados, fazem o que deles se espera, são bons no domínio da língua materna, talvez de uma língua estrangeira, são muito bons em matemática e ciências – quando o mercado começa a buscar gente que é criativa, que convive bem com ambigüidade, que está disposta a assumir riscos, que sabe se adaptar a mudanças, improvisar,ou "think out of the box,"que sabe negociar objetivos, resolver conflitos, trabalhar colaborativamente em equipes, administrar o tempo, liderar, motivar, inspirar… No momento em que a Finlândia e a Ásia chegam ao primeiro lugar no campeonato, alcançando níveis excepcionais de desempenho em linguagem, matemática, ciências, percebem que as regras do jogo mudaram…

E nós, no Brasil, dedicamos um enorme esforço para alcançar a Coréia do Sul… Convidamos educadores coreanos para vir ao Brasil nos explicar qual é o segredo… Quando os educadores coreanos mais progressistas estão tentanto aprender com o "jeitinho" brasileiro, com a improvisação brasileira, com a criatividade brasileira….

O sucesso, em um determinado estágio do desenvolvimento tecnolológico, não raro, é o maior obstáculo à percepção de que é necessário não só mudar, mas mudar radicalmente, reinventar o negócio, mudar os pressupostos…
 
Há países bem sucedidos que hoje começam a olhar para o Brasil – porque percebem que a melhor hora de mudar é quando as coisas vão indo bem e não querem que seu sucesso os anestesie quanto à necessidade de continuar mudando…

E nós, continuamos a olhar para trás, não para a frente, e ficamos tentando alcançar a Coréia, em vez de usar as nossas competências mais importantes e "leapfrog", dar um salto por cima de estágios que ainda não cumprimos – mas que não há mais porque devamos cumpri-los.

Em Salto, 28 de abril de 2007

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